MAXIMUS DECIMUS MERIDIUS-GLADIADOR-O QUE É FATO E O QUE É FICÇÃO?

I- INTRODUÇÃO

Acho que se você, amigo leitor, veio até aqui, é porque já viu o filme “Gladiador“, mas, se por acaso o amigo não tiver visto, fique alerta de que esse texto tem “SPOILERS” e contamos o enredo do filme (então, a hora de sair é agora, rs!).

O filme é excelente, mas obviamente, como quase todos os filmes épicos, especialmente os hollywoodianos, o roteiro nem sempre é inteiramente fiel aos acontecimentos históricos. Identificar no filme o que é fato ou ficção, em si, não é uma tarefa difícil, mas, vamos também, neste artigo, tentar esclarecer se, mesmo no caso dos personagens e situações fictícios, existe alguma verossimilhança, ou, ao menos, apontar se o que consta no roteiro seria plausível.

II – ROTEIRO

Vamos à trama:

Estamos em 180 D.C: O imperador romano Marco Aurélio encontra-se em Vindobona, na província romana da Panônia, assistindo o final da campanha contra bárbaros germânicos nas proximidades da fronteira do Império no Danúbio. As tropas são conduzidas pelo general hispânico Maximus Decimus Meridius, “Comandante dos Exércitos do Norte”. A batalha final é sangrenta, mas os romanos vencem. Porém, o imperador está doente, e manda chamar de Roma seu casal de filhos, o jovem Cômodo e sua irmã, Lucilla. Após o combate, em seus aposentos, o esgotado Marco Aurélio chama Maximus para uma conversa particular em sua tenda e lhe conta que deve morrer em breve e que Cômodo não será o seu sucessor, pois o considera incapaz para governar. Além disso, Roma está mergulhada na corrupção e por isso ele pretende devolver o poder ao Senado Romano e restaurar a República. O imperador pede a Maximus que após a sua morte, ele assuma o Império e cuide para que a República seja restaurada. Maximus, que anseia ir cuidar de sua mulher e filho e de sua fazenda em Turgalium (atual Trujillo, na Espanha), pede para ser dispensado, mas Marco insiste. Ao sair, Maximus e Lucilla, que já foram amantes, e aparentemente ainda sentem algo um pelo outro, reencontram-se. Marco Aurélio, por sua vez, chama Cômodo e informa ao filho que ele não será o novo imperador, pedindo desculpas por não ter sido um bom pai. Cômodo fica transtornado com a notícia e mata o pai, asfixiando-o, mas informa a irmã que o pai morreu por causa da doença. Maximus é chamado para jurar lealdade ao novo imperador, mas deixa transparecer a suspeita pela morte súbita de Marco Aurélio, com quem havia estado pouco tempo atrás, e reluta em fazer o juramento. Cômodo, valendo-se da ajuda de Quintus (lugar-tenente de Maximus), manda a Guarda Pretoriana prender Maximus, que é levado à floresta para ser executado. Ali ele fica sabendo que Cômodo ordenou também a morte de sua família. Porém, Maximus, mesmo ferido, consegue matar seus carrascos e fugir, capturando um cavalo, e galopa da Panônia até a sua propriedade em Trujillo, só para constatar que sua mulher e filho tinham acabado de morrer crucificados. Ele desmaia, exausto e com suas feridas apodrecendo. Então, ele é encontrado desfalecido por uma caravana de mercadores de escravos destinados à província da Mauritânia, no Norte da África, onde ele é vendido ao lanista (dono de uma escola de treinamento e fornecedor de gladiadores para espetáculos) Proximo, ele mesmo um ex-gladiador. Maximus começa a se destacar na arena, recebendo o apelido de “Espanhol” e o sucesso dele como gladiador, e de sua trupe, acaba levando Proximo a conseguir que sua equipe se apresente no Coliseu, em Roma. Enquanto isso, Cômodo, que havia sido falsamente informado da morte de Maximus por Quintus e seus subordinados, havia voltado imediatamente para Roma sem concluir a guerra, e, ao longo do tempo, acabou se mostrando mesmo inapto para reinar, preferindo dedicar-se à sua paixão pelas lutas de gladiadores, inclusive treinando como um. A luta de Maximus no Coliseu foi um sucesso, e ele cai nas graças do público. Cômodo, que assistia à luta, desce até a arena e pede que Maximus diga o seu nome e mostre o seu rosto. Ele inicialmente se recusa e o imperador faz um gesto chamando a Guarda Pretoriana. Assim, diante da possibilidade dele e seus companheiros gladiadores serem mortos, Maximus se revela e jura que vingará a mulher e o filho. Cômodo fica chocado e faz menção de dar a ordem para os Pretorianos matarem Maximus e os outros gladiadores, mas a multidão implora em coro pela vida deles e, pressionado pela turba, o imperador desiste. Para a próxima luta de Maximus no Coliseu, Cômodo manda preparar umas armadilhas com tigres, mas Cômodo consegue matar todos e, após derrotar seu oponente, poupa a vida dele, contra a vontade de Cômodo, que fica possesso, porém o público de novo ovaciona o “Espanhol”. Na saída do Coliseu, Maximus é abordado por seu ex-ajudante de ordens, Cícero, que lhe conta que seus antigos soldados estão acampados nos arredores de Roma. Lucilla, que vinha sendo alvo de investidas, com caráter sexual, do irmão Cômodo, procura Maximus em sua cela na Escola de Gladiadores do Coliseu (Ludus Maximus), junto com o senador Graco, e ambos tentam convencer Maximus a se juntar a uma rebelião para derrubar Cômodo e devolver o poder ao Senado, como planejava Marco Aurélio. Segundo o plano, Maximus fugiria e iria ao encontro de suas antigas legiões, que ele confiava que se uniriam a ele, e derrubariam Cômodo. Porém, o menino Lucius (filho de Lucilla com seu falecido marido, Lucius Verus), que morava junto com a mãe no Palácio, e que é fã do “Espanhol”, acaba inocentemente deixando escapar uma informação e Cômodo ameaça Lucilla, dizendo que se ela não lhe revelar tudo o que sabe sobre os planos de Graco, matará Lucius. A mãe, desesperada, acaba contando tudo e Cômodo ordena que os Pretorianos prendam Graco e matem Maximus, na Escola de Gladiadores. Porém, com a ajuda de Proximo e seus colegas gladiadores, Maximus consegue fugir e vai ao ponto de encontro previamente marcado com Cícero. Porém, os Pretorianos já tinham capturado Cícero e. antes de matá-lo, usam-no para atrair e prender Maximus. Então, Cômodo resolve matar Maximus em um combate encenado no Coliseu lotado, visando ganhar o amor do público, cuidando antes de esfaquear Maximus no pulmão, para que este entrasse na arena enfraquecido. Mesmo mortalmente ferido, no combate, Maximus consegue desarmar e derrotar Cômodo, terminando por matá-lo com o seu próprio punhal, enfiando-o lentamente na garganta do imperador. Os Pretorianos adentram a arena parecendo prontos a matar Maximus, porém, Quintus ordena que os soldados fiquem em posição aguardando as ordens do seu antigo comandante. Agonizando, Maximus proclama que o poder deve retornar para o Senado, na pessoa do senador Graco, e morre nos braços de Lucilla, tendo uma visão de sua esposa e de seu filho. O corpo de Maximus é carregado para fora do Coliseu com honras por Graco e Lucius.

Russell Crowe como Maximus, foto: MohamedShnawa, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Resumido o roteiro, cumpre abordar, em primeiro lugar, os personagens do filme que realmente existiram:

III- PERSONAGENS PRINCIPAIS

A) MARCO AURÉLIO E CÔMODO

O imperador Marco Aurélio de fato morreu em Vindobona (atual Viena), em 17 de março de 180 D.C, durante a fase final da duríssima e prolongada campanha do Império Romano contra os bárbaros Marcomanos e Quados, que assolavam a fronteira romana do rio Danúbio.

Busto do Imperador Marco Aurélio, do acervo do Metropolitan Museum, NY.

Porém, ao contrário do que é mostrado no filme, não há evidências de que o filho de Marco Aurélio, o jovem Cômodo (vivido no filme por Joaquim Phoenix, em grande atuação), então com 18 anos de idade e que estava presente quando ele morreu, tenha matado o próprio pai.

Todas as fontes antigas mencionam que o imperador contraiu a chamada Peste Antonina, que foi trazida para o Império Romano pelos soldados que participaram da campanha contra o Império Parta no início do reinado dele. Somente o historiador romano Cássio Dião escreve ter ouvido o relato de que a morte de Marco Aurélio teria sido acelerada pelos médicos que pretenderam fazer um favor a Cômodo, mas sem indicar que teria sido a pedido deste. De fato, segundo todas as fontes, Cômodo não apreciava muito a tarefa de governar, então é muito improvável que, aos 18 anos, ele tenha querido acelerar a morte do pai. Além disso, faltava pouco mais de um mês para Marco Aurélio completar 59 anos quando ele morreu, ou seja, mesmo que Marcos não estivesse doente, Cômodo não teria que esperar muito para sucedê-lo.

Marco Aurélio, segundo o consenso dos historiadores antigos e modernos, foi um dos melhores imperadores romanos e, provavelmente, o mais erudito entre todos eles. Ele era adepto do Estoicismo, e tentou viver de acordo com os preceitos dessa corrente filosófica, deixando muitos pensamentos e reflexões profundas por escrito, embora não com o intuito de vê-los publicados. Mesmo assim, sentenças e máximas elaboradas por ele até hoje são citadas. Mais detalhes sobre a vida de Marco Aurélio podem ser consultados em nosso blog, em artigo específico.

A famosa estátua equestre de Marco Aurélio, hoje no Museu Capitolino, em Roma. Foto: Nicholas Hartmann, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Embora as fontes antigas realmente mencionem que Marco Aurélio tinha dúvidas acerca da capacidade do filho para reinar, o fato é que, tecnicamente, Cômodo já era imperador desde meados do ano 177 D.C, pois seu pai fez com que ele fosse proclamado Augusto nessa época. Portanto, não há o menor indício de que o imperador agonizante tencionasse que outra pessoa que não o seu filho Cômodo o sucedesse, e, muito menos, de devolver o poder ao Senado Romano e reinstalar o regime republicano em Roma, algo que um homem sábio como Marco Aurélio certamente sabia não ser factível. Aproveitamos para transcrever os trechos das histórias escritas pelos historiadores romanos Herodiano e Cássio Dião, além da crônica do reinado de Marco Aurélio constante da Historia Augusta:

“Quando o imperador suspeitou que havia pouca esperança na sua recuperação, e percebeu que seu filho se tornaria imperador enquanto ainda era muito jovem, ele temeu que o jovem indisciplinado, privado do conselho paterno, pudesse negligenciar seus excelentes estudos e bons hábitos e voltar-se para a bebida e depravação (porque as mentes dos jovens, inclinada aos prazeres, são muito facilmente desviadas das virtudes da Educação), quando ele tivesse o poder absoluto e irrestrito.

(…)

Perturbado por esses pensamentos, Marco convocou seus amigos e parentes (para seu quartel-general em Vindobona). Colocando o filho ao seu lado e erguendo-se um pouco de seu leito, ele começou a falar da seguinte maneira:

“Não é surpreendente que vocês fiquem incomodados em me ver nesta condição. É natural que os homens sofram com o sofrimento de um semelhante, e as desgraças que ocorrem ante os seus próprios olhos suscitam uma compaixão ainda maior. Eu penso, entretanto, que um laço de afeição ainda maior exista entre vocês e eu; em troca dos favores que eu fiz a vocês, eu tenho o razoável direito de esperar a boa vontade recíproca de vocês.

E agora é para mim o momento adequado de descobrir que eu não derramei por tanto tempo sobre vocês honra e estima em vão, e, para vocês, o de retribuir o favor mostrando que vocês não ignoram os benefícios que receberam de mim. Aqui está meu filho, a quem vocês mesmos educaram, chegando à flor da idade e necessitando de pilotos para os mares tormentosos à frente. Eu temo que ele, jogado para lá e para cá pela ignorância do que precisa saber, seja despedaçado nas rochas das práticas ruins.

Consequentemente, vocês, juntos, assumir meu lugar como pai dele, cuidando dele e dando-lhe conselhos sábios. Nenhuma quantia de dinheiro é grande o suficiente para compensar os excessos de um tirano, nem a proteção dos guarda-costas suficiente para proteger o governante que não goze da boa vontade dos seus súditos”

Herodiano, 1.3.1 a 1.4.4

“Ele morreu da seguinte maneira: Quando a sua doença começou a piorar, ele convocou o seu filho e recomendou a ele, em primeiro lugar, que não fizesse pouco caso do que restava da guerra, a fim de que ele não parecesse um traidor do Estado. E quando seu filho respondeu que o seu primeiro desejo era boa saúde, ele (Marco) lhe permitiu que procedesse como desejasse, apenas pedindo que esperasse alguns dias e não partisse imediatamente. Então, estando desejoso de morrer, ele recusou comer e beber, assim agravando a doença. No sexto dia, ele convocou seus amigos e fazendo pouco caso dos assuntos humanos e desprezando a morte, disse a eles: “Por que vocês choram por mim?, em vez de se preocuparem com a Peste e com a morte que é parte comum que nos cabe a todos? E quando eles estavam prestes a se retirar ele resmungou e disse? “E se vocês me dão licença para ir, eu vos dou adeus e morro antes”. E quando lhe perguntaram a quem ele confiava o seu filho, ele respondeu: “A vocês, e aos deuses imortais”. O exército, quando soube de sua doença, o pranteou em voz alta, porque eles o amavam especialmente. No sétimo dia ele estava exaurido e somente recebeu o seu filho, e mesmo este ele despachou imediatamente, por medo de que ele contraísse a doença. E quando seu filho se foi, ele cobriu sua cabeça como se desejasse dormir e, durante a noite, ele deu o seu último suspiro. Comentou-se que ele previu que, após a sua morte, Cômodo viraria o que ele se tornou, e expressou o desejo de que ele morresse, a fim de que este não se tornasse outro Nero, Calígula ou Domiciano.”

(Historia Augusta, Life of Marcus Aurelius, 28)

“Agora, se Marcos tivesse vivido mais tempo, ele teria subjugado a região inteira; mas, do jeito que foi, ele faleceu no dia 17 de março, não como resultado da doença da qual ele ainda padecia, mas pela ação de seus médicos, como me foi dito abertamente, que quiseram fazer a Cômodo um favor.

(…)

Apenas uma coisa o impediu (Marco Aurélio) de ser completamente feliz: nomeadamente, que. após criar e educar seu filho da melhor forma possível ele ficasse tão imensamente desapontado com ele. Esse assunto será o nosso próximo tópico, porque nossa História agora desce de um reino de ouro para um de ferro e ferrugem, como as coisas se tornaram para os Romanos daquele tempo.”

(Cássio Dião, Epítome,LXII, 33 e Livro LXII, 35)

Relevo da Coluna de Marco Aurélio, em Roma, retratando o início da campanha contra os Marcomanos e Quados. Foto:Barosaurus Lentus, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons

Importante observar que a transcrição de discursos de pessoas célebres pelos historiadores antigos, embora isto fosse um recurso narrativo e estilístico frequentemente usado por eles, quase certamente não é a transcrição exata do que foi dito na ocasião (algo que até podia ocorrer quando eram proferidos em sessões do Senado e transcritos em ata), e visava mais a contextualizar os fatos segundo a opinião ou a visão ideológica do autor.

Assim, o que, ao nosso ver, se extrai do cotejo dos variados relatos, é que Marco Aurélio de fato morreu preocupado com a real capacidade ou preparo de Cômodo para ser imperador e desejava que seus amigos orientassem o filho.

E de fato, os receios de Marco Aurélio quanto à aptidão do filho logo se mostraram justificados:

Em pouco tempo, Cômodo, contrariando o conselho dos amigos de Marco Aurélio, resolveu interromper a campanha contra os bárbaros germânicos e voltou para a Cidade de Roma, onde ele se entregou a uma vida de orgias e à sua paixão pelas lutas de gladiadores. Os assuntos governamentais foram deixados à cargo de seus auxiliares, principalmente seu camareiro, o liberto Saoterus.

Busto de Cômodo, retratado como Hércules. Foto: Capitoline Museums, Public domain, via Wikimedia Commons

Em 182 D.C, entre o segundo e o terceiro ano de seu reinado, Cômodo foi alvo de uma tentativa de assassinato, em uma conspiração da qual a sua irmã Lucilla fez parte, juntamente com alguns senadores, como veremos adiante. No processo de punição aos conspiradores, Saoterus acabou sendo implicado na trama pelo novo Prefeito Pretoriano, Sextus Tigidius Perennis, e assassinado pelo novo camareiro e homem de confiança de Cômodo, o liberto Cleander.

A partir de então, Cômodo deixou de vez às rédeas do governo nas mãos de Cleander e Perennis, que estimularam mais ainda a desconfiança do imperador em relação ao Senado.

O CÔMODO GLADIADOR

Para o leitor que nunca leu sobre a História de Roma, a parte do enredo que talvez pareça mais inverossímil é a de que um imperador romano tenha combatido como gladiador no Coliseu, mas isto realmente aconteceu.

Não obstante, o fato do imperador Cômodo ter lutado na arena foi objeto de espanto para os seus contemporâneos e para os historiadores antigos: a profissão de gladiador era considerada “infamante”, sendo a infamia quase equivalente a uma capitis diminutio (isto é, uma condição que limitava a capacidade civil das pessoas) e aplicável aqueles que praticassem alguma ação ou tivessem alguma profissão, socialmente consideradas como ignomínias (“ignominiosae“), como por exemplo, o fato de ter sido condenado por furto, roubo, bigamia, etc, ou exercício de certas atividades, como a prostituição, a profissão de gladiador e até mesmo a de comediante. Assim, as pessoas consideradas infames não podiam, por exemplo, exercer certos cargos públicos, nem representar alguém em juízo e seu testemunho em juízo tinha valor inferior.

Mosaico Zliten, de Leptis Magna, atual Líbia, mostrando vários tipos de gladiadores e o árbitro das lutas. Foto: By Unknown author – Livius.org, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3479030

Entretanto, os relatos dos historiadores variam em poucos detalhes em relação à dimensão da atuação de Cômodo, enquanto gladiador:

Segundo o relato de Herodiano:

“E agora, o imperador, deixando de lado toda discrição, tomou parte nos espetáculos públicos, prometendo matar com suas próprias mãos animais selvagens de todo tipo e lutar em combates gladiatórios contra os jovens mais valentes. Quando essas novas tornaram-se conhecidas, pessoas de toda a Itália e das províncias vizinhas afluíram a Roma para testemunhar o que ninguém até então havia visto ou até mesmo ouvido anteriormente.

(…)

No que concerne a estas atividades, entretanto, mesmo se a conduta dele dificilmente pudesse ser considerada apropriada para um imperador, ele ganhou a aprovação da massa pela sua coragem e boa pontaria. Porém, quando ele adentrou o Anfiteatro (Coliseu) nu, empunhando armas e lutando como gladiador, o povo testemunhou um espetáculo vergonhoso: um imperador dos Romanos, de nascimento nobre, cujos pais e antepassados tinham vencido tantas batalhas, entrando no campo de batalha não contra bárbaros ou inimigos dignos dos Romanos, mas desgraçando a sua alta posição mediante exibições degradantes e desagradáveis.”

Herodiano, 1.15.1

O relato de Cássio Dião, por sua vez, é um pouco mais detalhado:

“Além disso, ele costumava combater como um gladiador; e, fazendo isso em sua casa, de tempos e tempos, ele matava um homem, e, ao treinar golpes com outros, tentando cortar um tufo dos cabelos deles, decepou os narizes de uns e as orelhas de outros, e ainda, partes variadas de outros mais; porém, em público, ele se absteve de usar o aço para derramar sangue humano.

(…)

No primeiro dia, ele matou sozinho uma centena de ursos, acertando-os com dardos a partir da balaustrada do Anfiteatro; porque todo o anfiteatro tinha sido dividido por meio da interseção de dois muros cruzados que suportavam a galeria que percorria toda a sua extensão, com o propósito de que as feras, divididas em quatro matilhas, pudessem ser mais facilmente atingidas com a lança de curta distância de qualquer ponto.

(…)

Então, no primeiro dia, os eventos que eu descrevi ocorriam. Nos outros dias ele descia da arena do seu palanque e abatia todos os animais domésticos que se aproximavam dele e também outros que eram levados a ele em redes. Ele matou também um tigre, um hipopótamo e um elefante. Tendo concluído esses feitos, ele se retirava, mas à tarde, depois de almoçar, ele lutaria como gladiador. A modalidade de luta que ele treinava e a armadura que ele usava eram aquelas dos secutores, como eles eram chamados: ele segurava o escudo em sua mão direita e a espada de madeira na sua esquerda, e de fato ele tinha muito orgulho de ser canhoto. O seu adversário seria algum atleta ou, incidentalmente, um gladiador armado com uma vara; algumas vezes, era que ele mesmo havia desafiado, outras vezes, algum escolhido pelo povo, pois nisto, assim como em outras questões, ele se colocava no mesmo plano em relação aos demais gladiadores, exceto pelo fato de que estes eram selecionados para atuar por uma quantia bem pequena, enquanto Cômodo recebia um milhão de sestércios pagos pelo Fundo Gladiatório por cada dia.”

Cassius Dio, Epítome do Livro LXXIII

E, finalmente, a versão relatada pela Historia Augusta:

“Ele combateu na arena contra gladiadores inexperientes, mas, às vezes, contra seus camareiros, atuando como gladiadores, usando espadas afiadas.

(…)

Ele participou de combates gladiatórios, e adotou os nomes geralmente dados aos gladiadores com tanta satisfação como se a ele tivessem sido dados ornamentos triunfais. Ele regularmente tomava parte nos espetáculos, e ordenava que esses fatos fossem inscritos nos registros públicos, tantas quantas fossem as vezes que ele o fazia. Conta-se que ele participou de 735 lutas de gladiadores.”

Historia Augusta, “Life of Commodus”, 5, 5

Portanto, os relatos dão conta de que Cômodo, no Coliseu, geralmente participava de combates com espadas de madeira (rudis), ou seja, espadas de treinamento, apresentando-se como secutor (um tipo de gladiador que lutava com um gládio pequeno ou uma adaga e escudo, tendo um dos braços protegidos por uma manica, que era uma proteção de placas de metal circulares e articuladas, presas a tiras de couro, cobrindo o braço e o antebraço, e a cabeça por um elmo ornamentado) e, ocasionalmente, quando os combates eram para valer, ele lutava com espadas de verdade, enfrentando gladiadores inexperientes ou até mesmo seus próprios servos, indicando nestes casos, que provavelmente tratavam-se de lutas arranjadas. Considerando que os secutores vestiam apenas uma subligaculum (ou seja, roupa de baixo, mais especificamente, uma espécie de cueca atada como se fosse um fraldão), o que era inadmissível para um romano distinto fazer em público, não espanta que Herodiano tenha escrito que Cômodo apresentava-se “nu” na arena.

O gladiador da direita é um secutor, o tipo preferido por Cômodo. (foto This site, Public domain, via Wikimedia Commons)

Segundo Cássio Dião, o próprio Marco Aurélio, nos espetáculos em que este imperador comparecia (e portanto, ainda que não os tivesse patrocinado, ele seria considerado como o Editor, isto é, a pessoa que oferecia e pagava o espetáculo, e portanto, determinava quais seriam as regras, inclusive, se os gladiadores lutariam até a morte e, neste caso, se o perdedor seria poupado), exigia que os atletas lutassem usando armas com as pontas protegidas, para que não houvesse derramamento de sangue (Cássio Dião, Epítome, Livro LXII, 29). Aliás, este fato assinala outra pequena impropriedade do roteiro, pois, no filme, ouvimos Proximo, dizer, em um diálogo com Maximus, que Marco Aurélio tinha proibido os jogos de gladiadores em Roma, o que, como se vê, não corresponde aos fatos.

MORTE DE CÔMODO

Cômodo foi assassinado em 31 de dezembro de 192 D.C., por um lutador. Todavia, ao contrário do que poderia parecer por esta curta descrição, isto ocorreu de maneira bem diferente daquela que é retratada no filme. Como não há divergência entre os relatos dos historiadores antigos, vamos deixar de transcrever as passagens, e apenas relatar como ocorreu o evento.

O absenteísmo de Cômodo pelas tarefas governamentais, seu crescente despotismo e a paixão desmedida pela profissão de gladiador tornaram seu comportamento imprevisível e ameaçador até mesmo para seus auxiliares e pessoas mais íntimas, os quais tentavam dissuadi-lo de atos cada vez mais tresloucados.

Assim, após ter sido aconselhado por sua amante, Márcia, pelo Prefeito Pretoriano, Emílio Leto e por seu camareiro, Ecletus, a não comparecer à sessão de abertura anual do Senado Romano vestido como gladiador e acompanhado de outros gladiadores, conforme desejo que ele havia manifestado Cômodo, contrariado por esses apelos, resolveu decretar a morte dos três, escrevendo a ordem para a execução em uma tabuleta de cera.

Porém, enquanto tomava banho, um dos seus favoritos, um menino que tinha o sugestivo nome de Philocommodus (em grego, “aquele que ama Cômodo”), pegou a tabuleta e a mostrou a Márcia, que imediatamente, percebeu do que se tratava e avisou aos dois auxiliares, também condenados.

Então, os três resolveram assassinar Cômodo antes que ele tivesse a chance de matá-los. Márcia se encarregou de arrumar um veneno e servi-lo a Cômodo misturado em uma taça de vinho. Porém, ao ingerir a bebida, após terminar o seu banho, o imperador começou a se sentir mal, e acabou vomitando o veneno. Temerosos de que Cômodo logo descobriria a causa do seu mal estar, os três conspiradores abordaram Narcissus, que era um jovem lutador (provavelmente de pancratium, uma luta que pode ser considerada como precursora da atual MMA) que treinava com Cômodo no Palácio e o subornaram para que ele desse cabo ao imperador. Assim, Narcissus aceitando o encargo, adentrou os aposentos de Cômodo e o estrangulou, sem dificuldade. O imperador tinha, então, 31 anos de idade.

Para saber mais sobre as vidas e os reinados de Marco Aurélio e Cômodo, recomendamos a leitura do nosso artigos sobre esses imperadores (é só clicar nos seus nomes).

B) LUCILLA

Personagem feminina principal do filme, Lucilla é a irmã de Cômodo e ela aparece no filme como a filha predileta de Marco Aurélio, de quem ela compartilha os ideais. De acordo com o roteiro, Lucilla, antes ou depois de ficar viúva de seu marido, Lúcio Vero, manteve um caso de amor com o principal general de seu pai, Maximus. Percebendo as intenções tirânicas de Cômodo, Lucilla resolve colaborar com influentes senadores que se opunham ao reinado de seu irmão, e tramam restaurar a República. Ela também é alvo de investidas com fins libidinosos de Cômodo, mas deixa de resistir de maneira mais enfática por medo de que o irmão possa fazer mal ao seu filho, Lucius. No filme, Lucilla é interpretada pela atriz Connie Nielsen, em atuação primorosa.

Estátua de Lucilla, retratada como a deusa Ceres. Foto: Bardo National Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

Na vida real, Lucilla, cujo nome completo era Annia Aurelia Galeria Lucilla, de fato era a irmã mais velha de Cômodo e efetivamente ela se casou com Lúcio Vero, que foi aclamado imperador junto com Marco Aurélio, em 161 D.C ( o casamento foi celebrado em 164 D.C., ocasião em que ela tinha entre 14 e 16 anos de idade) e o casamento durou até ele morrer vitimado por uma doença, em 169 D.C. Em consequência de seu casamento com Lúcio Vero, Lucilla recebeu o título de Augusta (Imperatriz), a posição máxima que uma mulher romana poderia aspirar na sociedade patriarcal romana, e todos os privilégios associados a esta posição.

Lucilla e Lúcio Vero tiveram três filhos: Aurelia Lucilla, Lucilla Plautia e Lucius Verus, mas a mais velha e o caçula morreram ainda crianças, e somente Lucilla Plautia parece ter alcançado a idade adulta.

O imperador Marco Aurélio, após a morte de Lúcio Vero, decidiu que sua filha viúva deveria casar de novo, e ele escolheu para ser o novo marido de Lucilla, o general Tiberius Claudius Pompeianus, um de seus auxiliares mais próximos, que comandara com sucesso as legiões da província romana da Panônia, no norte do Império, e que também derrotara invasões dos bárbaros germânicos Lombardos e Marcomanos.

O casamento com Lucilla, sem dúvida, foi uma honra imensa para Pompeianus, que era um cidadão oriundo da ordem equestre e nativo de Antióquia, na Síria, mas que, devido aos seus méritos militares, combatendo sob as ordens de Lúcio Vero na campanha contra os Partas, havia ascendido ao Senado (o que o tornava um integrante da nobreza, embora na condição de novus homo – “homem novo” – isto é, alguém que não tinha ascendentes que tivessem sido senadores) e sido nomeado Cônsul Suffectus, em 162 D.C. (o Cônsul Suffectus era designado para atuar por um período inferior a um ano, na falta do Cônsul Ordinário). Posteriormente, em 173 D.C, Pompeianus seria nomeado Cônsul Ordinário.

Entretanto, embora Pompeianus, então, na oportunidade tivesse um status social elevado, este era ainda bem inferior ao de Lucilla, que era filha e descendente de imperadores, algo que desagradou tanto a noiva como a sua mãe, segundo a Historia Augusta:

“Justo antes de partir para Guerra Germânica, e antes que o período de luto tivesse terminado, ele (Marco Aurélio) casou sua filha com Claudius Pompeianus, o filho de um Equestre, e já avançado em anos, um nativo de Antióquia, cujo nascimento não era suficiente nobre (embora depois, Marco Aurélio o tenha feito Cônsul duas vezes), uma vez que a filha de Marco Aurélio era uma Augusta e filha de outra Augusta. De fato, tanto Faustina quanto a jovem que foi dada em casamento se opuseram a esta união.”

(Historia Augusta, Life of Marcus Aurelius, 20)

Além disso, Pompeianus, na ocasião do casamento, tinha cerca de 44 anos de idade, enquanto que Lucilla tinha por volta de 21 anos…

Porém, Marco Aurélio tinha boas razões para unir Lucilla a Pompeianus.

Com efeito, quando Lúcio Vero morreu, seu único filho sobrevivente do sexo masculino era Cômodo, mas que tinha apenas 8 anos de idade. Marco Aurélio com toda a certeza entendeu que, caso ele morresse (uma possibilidade nada desprezível, tendo em vista a Peste que grassava no Império), o risco de que algum pretendente ambicioso liderasse uma revolta reclamando o trono era considerável e a melhor garantia para aumentar as chances de seu filho conseguir ser imperador era trazer um general respeitado para o seio da família, considerado o mais leal e confiável possível à dinastia (o que de fato, Pompeianus provaria ser). Observe-se que o primeiro imperador, Augusto, experimentara exatamente este mesmo dilema em relação a dois de seus únicos descendentes de sangue sobreviventes, os infantes Caio e Lúcio César, obrigando-o a casar sua filha Júlia com seu amigo Agripa, também de classe social inferior, mas um comandante respeitado. Dentro dessa mesma lógica, Marco Aurélio confiava que se Pompeianus (assim como Agripa) reinasse, ele reinaria em conjunto com Cômodo ou seria sucedido por este) .

A diferença de idade entre os cônjuges, contudo, não impediu que eles tivessem um filho: por volta de 176 D.C, Lucilla deu a luz a um menino, que recebeu o nome de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus.

O historiador Herodiano dá a entender que Marco Aurélio permitiu que Lucilla mantivesse alguns dos privilégios inerentes ao status de imperatriz após a morte de Lúcio Vero, não obstante sua esposa Faustina, a Jovem, a mãe de Lucilla, fosse, desde então, a única Augusta (Imperatriz). Entretanto, conforme já mencionamos, em 177 D.C, Marco Aurélio decidiu que era já hora de nomear Cômodo co-imperador, dando-lhe o título de Augusto, reforçando a posição do filho como seu sucessor natural.

Naturalmente, a elevação de Cômodo afetou diretamente as expectativas que Lucilla pudesse acalentar quanto às chances de seu marido, Pompeianus, vir a suceder Marco Aurélio, e, com isso, ela se tornar novamente a imperatriz-consorte. E quaisquer anseios neste sentido restaram ainda mais enfraquecidos quando, em 178 D.C, seu irmão Cômodo casou-se com a rica aristocrata Bruttia Crispina, que imediatamente recebeu o título de Augusta, tornando-se a única imperatriz romana, tendo em vista que Faustina, a Jovem, morrera em 175 D.C.

Ao contrário do que é retratado no filme, as fontes antigas dão a entender que a verdadeira Lucilla, do mesmo modo que o seu irmão Cômodo, tinha graves falhas de caráter.

Assim, após a morte do pai, e constatando a inaptidão do irmão para governar, a sua ambição e o seu ciúme e orgulho ferido pela posição inferior à da nova imperatriz Bruttia Crispina impeliram Lucilla a participar ativamente da conspiração que, em 182 D.C, tentou assassinar Cômodo.

A conspiração envolveu diretamente familiares e pessoas próximas à Lucilla, como a sua filha Plautia, mas também vários senadores, e o seu objetivo final era assassinar Cômodo e substituí-lo no trono por Tiberius Claudius Pompeianus, o marido de Lucilla, que com isso voltaria à almejada posição de Imperatriz. Segundo o relato de Herodiano, Lucilla instigou seu primo, Marcus Ummidius Quadratus Annianus, de quem ela supostamente seria amante, a dar andamento ao plano. Este, por sua vez, persuadiu um certo Quintianus, jovem senador que seria sobrinho, ou mesmo filho do primeiro casamento de Pompeianus, a ser o executor da trama.

“Porém, quando Cômodo desposou Crispina, o costume exigia que o primeiro assento no Teatro fosse reservado para a Imperatriz. Lucilla teve dificuldade em suportar isso, e sentia que todas as honras devidas à Imperatriz eram um insulto para ela; No entanto, considerando que ela sabia bem que o seu marido Pompeianus era muito devotado a Cômodo, ela não contou nada a ele sobre os planos dela de tomar o controle do Império. Em vez disso, ela testou os sentimentos de um jovem e rico aristocrata, Quadratus, com quem havia boatos de que ela estivesse dormindo em segredo. Queixando-se constantemente acerca desses assuntos da precedência imperial, ela logo persuadiu o o jovem a dar andamento a conspiração que trouxe destruição sobre si mesma e sobre todo o Senado.”

Herodiano, 1.8.4

Planejou-se, então, que Quintianus, valendo-se de uma adaga escondida sob sua toga senatorial, atacaria Cômodo na ocasião mais propícia. E a ocasião e o local escolhidos foram um dia de espetáculo no Coliseu.

No dia escolhido, Quintianus esperou que Cômodo adentrasse uma passagem onde a luz era escassa, esperando valer-se da escuridão tanto para facilitar a abordagem ao imperador, como a sua fuga. Porém, quando o imperador se aproximou, o jovem, antes de desferir os golpes, resolveu dizer a frase: “Eis a adaga que o Senado vos envia“, alertando os guardas pretorianos, que rapidamente pularam sobre ele e o prenderam.

Com o fracasso do atentado, Quintianus e Quadratus foram imediatamente executados e Lucilla e sua filha foram banidas para a ilha de Capri. Entretanto, antes que o ano de 182 acabasse, Cômodo resolveu mandar executar a irmã e enviou um centurião até a ilha, o qual deu cabo da tarefa e jogou o corpo de Lucilla no mar. Plautia foi poupada.

Surpreendentemente, Tiberius Claudius Pompeianus também foi poupado, dando suporte à versão de Herodiano de que ele, a quem a esposa e os demais conspiradores tencionavam que substituísse Cômodo, ignorava completamente a trama.

Vale citar que Pompeianus foi um dos amigos presentes no leito de morte do pai de Cômodo, aqueles aos quais o moribundo Marco Aurélio pediu que protegessem e guiassem o filho com bons conselhos. Extrai-se do relato dos dias que se seguiram à morte do velho imperador, isto é, os primeiros do reinado de Cômodo, que este ouvia e respeitava Pompeianus, e, seja porque o jovem monarca confiava nele, seja por temer o prestígio dele ou por amor à memória do pai, o fato é que Pompeianus sobreviveu ao próprio Cômodo, morrendo por volta de 193 D.C, quando já tinha quase 70 anos. Inclusive, Pompeianus também entraria para a História Romana, como tendo sido a única pessoa que por três vezes teria recusado o trono, que também lhe foi oferecido pelos imperadores Pertinace e Dídio Juliano.

Para finalizar, é altamente improvável que Cômodo tenha tentado se insinuar sexualmente para Lucilla, como aparece no filme. Ela era entre 11 e treze anos mais velha que o irmão. Quando o pai de ambos morreu, ela tinha entre 30 e 32 anos de idade e Cômodo tinha 18 anos.

Assim, falamos sobre os três personagens importantes do filme que realmente existiram. Vamos agora abordar o principal personagem que, contudo, é fictício.

C) MAXIMIS DECIMUS MERIDIUS

Sim, prezado leitor, provavelmente você já sabia disto, mas, caso ainda não saiba, o carismático personagem tão bem interpretado por Russell Crowe jamais existiu.

Para começar, o próprio nome Maximus Decimus Meridius não corresponde ao padrão de nomes adotado pelos romanos: Maximus não era um prenome, mas um cognome, que costumava vir por último, atribuindo uma qualidade ao nomeado, que no caso em questão, seria traduzido como “o maior” ou “enorme”, embora ao longo do tempo tenha virado o sobrenome de algumas famílias romanas ilustres. Assim, o nome correto do nosso herói, de acordo com as convenções romanas seria : Decimus Meridius Maximus, sendo que “Decimus” era um prenome que originalmente significava que alguém seria o décimo filho de determinada pessoa, mas no decorrer da existência de Roma, acabou virando um prenome comum (o mesmo ocorrendo com “Tertius“, “Quintus“, “Sextus” e “Septimus“, por exemplo). Por sua vez, o nome do meio “Meridius“, que seria o nome da gens, ou clã familiar ancestral, a qual o nosso personagem pertenceria, não tem registro nas fontes, sendo provavelmente inventado pelos roteiristas. Traduzido do latim, significaria algo como “do sul”.

IV- A VIDA E A CARREIRA DE MAXIMUS, COMO RETRATADAS NO FILME, SERIAM PLAUSÍVEIS?

Cartaz do filme em baixa resolução, Source: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Gladiator_(2000_film_poster).png

É praticamente consenso que o Cônsul e genro do imperador Marco Aurélio, o já mencionado Tiberius Claudius Pompeianus, foi a principal figura histórica que inspirou a personagem Maximus Decimus Meridius, protagonista do roteiro do filme Gladiador.

Vamos às semelhanças:

1) Pompeianus era nativo da rica província da Síria, e, sendo filho de um integrante da classe Equestre (abaixo da classe senatorial), embora sua família pudesse ter dinheiro, isso não lhe assegurava ascensão aos cargos mais importantes do Império. Maximus era oriundo da também próspera província romana da Hispania Lusitania (cuja capital era Emerita Augusta, a atual Mérida, na Espanha), onde ele tinha sua propriedade, ou então das vizinhas Hispania Baetica ou Hispania Tarraconensis), e, da maneira que ele é retratado no filme, também deve ter vindo de uma família relativamente afluente, provavelmente também sendo originalmente um Equestre.

2) Ambos ascenderam socialmente graças a uma carreira militar de sucesso, e chegaram a ser cotados para se tornarem imperadores, sendo que Pompeianus foi nomeado Cônsul pela primeira vez quando tinha cerca de 37 anos, como recompensa pelo desempenho na Guerra contra os Partas. Quando Marco Aurélio morreu, Pompeianus tinha cerca de 55 anos. Podemos estimar a idade de Maximus, na ocasião da morte do imperador, entre 35 e 40 anos de idade (Russell Crowe tinha 36 anos quando o filme foi produzido, e é altamente improvável que alguém atingisse a posição de Maximus antes de completar 35 anos, naquele tempo, em Roma).

3) Os dois personagens, o real e o fictício, ganharam o reconhecimento do imperador Marco Aurélio, de quem se tornaram amigos. Pompeianus casou-se com Lucilla, filha do imperador, após a morte do marido dela, Lucius Verus, e por algum tempo, ainda que de maneira não expressa, ele chegou a ser considerado como sucessor no trono, com o consentimento de Marco Aurélio (consta que este chegou a propor isto ao genro). Maximus não foi casado com Lucilla, mas teve um caso com ela, embora o filme dê a entender que isto tenha ocorrido antes dela se casar.

4) Quando Marco Aurélio morreu, em 180 D.C, no final da campanha contra os Marcomanos no Danúbio, Pompeianus, que era o comandante militar da mesma, estava entre os amigos a quem o imperador moribundo pediu que orientassem o filho Cômodo no comando do Império. Maximus também atingiu alto posto militar, tendo o posto, também fictício, de “Comandante dos Exércitos do Norte“, que, no enredo do filme, também equivaleria ao comando supremo daquela mesma campanha.

5) Maximus, assim como Pompeianus, é um dos poucos amigos chamados por Marco Aurélio para comparecerem ao seu leito de morte, onde Maximus recebe a notícia de que ele será o sucessor, mas com a incumbência de devolver o poder ao Senado. Como vimos, por algum tempo, Marco Aurélio considerou a possibilidade de Pompeianus ser o seu sucessor, embora o tenha feito vários anos antes de sua morte, mas com o propósito de assegurar que Cômodo um dia pudesse reinar.

Por sua vez, a fuga, sobrevivência, desaparecimento e mudança de identidade de Maximus como aparecem no filme podem parecer fantasiosas, mas os historiadores romanos por vezes relataram algumas histórias reais semelhantes…Uma que se aproxima bastante de uma trama de Hollywood é a de Sextus Condianus, filho de Sextus Quinctilius Valerius Maximus, que era um senador riquíssimo e muito influente até ser condenado à morte por Cômodo, junto com seu irmão Sextus Quinctilius Condianus, tendo ambos sido Cônsules no ano de 151 D.C. Aliás, talvez (não sabemos) a escolha do nome do personagem do filme tenha sido inspirada por este episódio.

Segundo o relato de Cássio Dião, o Sextus Condianus, filho, ao saber que também havia sido sentenciado à morte por Cômodo junto com seu pai e seu tio, também conseguiu escapar de uma maneira quase tão mirabolante quanto nosso Maximus:

“Sextus Condianus, o filho de Maximus, que superou todos os outros em virtude tanto de sua habilidade inata como de seu treinamento, quando ouviu que a sentença de morte tinha sido pronunciada contra ele também, bebeu o sangue de uma lebre (ele estava morando na Síria na época), e depois montou em uma cavalo e dele caiu de propósito; em seguida, ele vomitou o sangue, que supostamente seria o dele e foi erguido, aparentemente a ponto de morrer, e foi carregado até o seu quarto. Então, ele mesmo desapareceu, enquanto o corpo de um carneiro foi colocado no seu lugar em um caixão, onde foi cremado. Depois disso, ele vagou por aqui e acolá, constantemente trocando de aparência e de roupas. E quando a sua estória veio à tona (porque é impossível que tais assuntos fiquem ocultos por muito tempo), ele foi procurado diligentemente de cima a baixo. Em seu lugar, muitos foram punidos por conta da semelhança com ele, e também muitos que alegadamente teriam lhe abrigado em algum lugar; e mais ainda, pessoas que talvez jamais o tenham visto tiveram suas propriedades confiscadas. Mas ninguém sabe se ele realmente foi morto – embora um grande número de cabeças que supostamente seriam dele tenham sido levadas à Roma – ou se ele conseguiu escapar. Entretanto, outro homem, após a morte de Cômodo, audaciosamente alegou ser Sextus e tentou recuperar a sua riqueza e status. E ele bravamente interpretou esse papel, embora muito questionado por várias pessoas; no entanto, quando Pertinace lhe indagou algo sobre assuntos gregos, com os quais Sextus tinha sido bem familiarizado, ele mostrou o maior embaraço, sendo incapaz até de entender a pergunta. Assim, embora a natureza o tenha feito semelhante a Condianus em aparência, e o treino em outros aspectos, no entanto ele não compartilhava o seu conhecimento.”

Cassius Dio, Epítome do Livro LXXIII (LXXII), 6

 

E agora, vamos falar sobre as principais inconsistências e inverossimilhanças do roteiro:

1) Embora não seja uma parte fundamental para a trama do filme, vamos começar pela impressionante cena inicial: A batalha na floresta contra os bárbaros germânicos.

O Exército Romano inicia o combate com uma carga de artilharia de onagros, isto é, uma espécie de catapulta que arremessa pedras ou outros materiais pesados, em direção à floresta onde os inimigos estão escondidos. No caso, os projeteis são uma espécie de granada incandescente, com o objetivo de incendiar a floresta.

Ocorre que não há registro do uso desse tipo de arma em batalhas campais. Onagros eram utilizados em sítios ou cercos a muralhas ou posições fortificadas. As máquinas de guerra que os romanos utilizavam em um campo aberto de batalha contra os inimigos eram a ballista e o “escorpião” (scorpio), que atiravam dardos pesados ou pedras, mas não visando uma trajetória parabólica para ultrapassar defesas, e sim um impacto direto e preciso contra alvos. Além disso, vemos que no filme, logo em seguida à barragem de artilharia, o Exército Romano penetra na floresta ainda em chamas, o que, no mínimo, seria uma grande idiotice.

Um onagro romano (foto: Dayot, Armand. Le moyen âge: la Gaule romaine, les invasions, la France féodale, la royauté. (Paris Flammarion 1911), Public domain, via Wikimedia Commons)
Um “escorpião”, em relevo da Coluna de Trajano. Foto: Attributed to Apollodorus of Damascus, Public domain, via Wikimedia Commons
Uma ballista reconstruída. Foto : Rolf Krahl, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

2) Vamos abordar agora um episódio fundamental na vida de Maximus, que é altamente improvável da forma que se vê no filme, bem como juridicamente impossível de acordo com o Direito Romano do período, a não ser que fossem inseridas algumas circunstâncias, que em nenhum momento são mostradas:

Como já mencionamos, e pode ser visto na tela, após conseguir escapar de seu assassinato pelos pretorianos, ainda na Panônia, Maximus, ferido, cavalga até a sua fazenda, na Hispania Lusitania (que ficava a cerca de 2.600 km, em um trajeto terrestre que levaria mais de 40 dias, no mínimo, isso usando-se o Correio Imperial em sua velocidade máxima), apenas para encontrar os cadáveres da esposa e do filho, aparentemente recém falecidos.

Maximus então desfalece e é recolhido, agonizante, por mercadores de escravos que se dirigem à província da Mauritania Caesariensis (localizada na atual Argélia), onde ele é vendido ao lanista (empresário que explora lutas de gladiadores) e ex-gladiador, Proximo.

Pois bem, no Direito Romano Clássico (que abrange o período do reinado de Cômodo), as causas de escravidão, ou seja, aquelas pelas quais um ser humano nascia ou se tornava escravo estavam previstas no ius gentium (lit. “Direito das Gentes”, aquele reconhecido pelos romanos como praticado por – e aplicável a – todos os povos) e no ius civile (direitos instituídos diretamente por Roma, e reconhecidos apenas aos cidadãos romanos).

De acordo com o ius gentium, as duas causas de escravidão eram o nascimento (ter nascido como filho de escrava) e a captura na guerra por um inimigo (ou na paz, caso Roma não tivesse tratado de amizade com o Estado ou povo do qual o escravo era oriundo).

Já com base no ius civile, tornavam-se escravos: a) o condenado a morte ou a trabalhos forçados nas minas; b) a mulher livre amante de um escravo, que, notificada três vezes pelo proprietário do escravo para que cessasse a prática, continuasse a manter relações sexuais com este; c) o homem livre, maior de 20 anos, que, fingindo ser escravo, combinava a sua venda para outra pessoa com um comparsa, dividindo o preço com este (um tipo de estelionato que, por incrível que pareça, devia ocorrer com alguma frequência); d) o liberto que demonstrasse ingratidão com seu antigo dono.

Na época de Cômodo, já havia caído em desuso, aliás, desde os tempos da República, a figura do addictus, isto é, aquele devedor que, ao não pagar a dívida, poderia ser “adjudicado” ao credor pelo juiz, e, após 60 dias, caso o débito não fosse pago por ele ou outra pessoa, o credor tinha a faculdade de vendê-lo como escravo no estrangeiro ou até matá-lo.

Dito isto, o leitor deve estar se perguntando: “Mas Maximus não foi condenado a morte por Cômodo?”

De acordo com o que se vê no filme, a eliminação de Maximus claramente não se trata da execução legal de uma sentença de morte, mas de um assassinato (por isso ele é levado até a floresta). Aliás, o fato da mulher e o filho dele terem sido crucificados é um claro indício disto: de acordo com a lei romana, cidadãos romanos não podiam ser crucificados! (Até os Atos dos Apóstolos ecoam essa regra, quando São Paulo informa ao Governador da Síria que é um cidadão romano da cidade de Tarso, e, após apelar ao Imperador (Provocatio ad Princeps), é levado à Roma e afinal executado por decapitação).

A escravidão era um instituição central na sociedade romana, e juízes, juristas e governantes, mesmo nos reinados de imperadores mais absolutistas, observavam criteriosamente a legislação e os costumes aplicáveis ao instituto. Eu estudo sobre Roma há mais de 40 anos e já li incontáveis relatos sobre atos tirânicos e despóticos atribuídos aos imperadores romanos, incluindo assassinatos, estupros, tortura e massacres, mas não me lembro de nenhum caso em que um deles tenha conscientemente escravizado algum cidadão romano livre sem um processo legal.

Desse modo, Maximus não poderia ter sido vendido como escravo a Proximo.

Assim, a forma pela qual Maximus poderia ter se tornado gladiador seria tornando-se um auctoratus, o homem livre que se compromete ao lanista, mediante contrato por juramento (auctoramentum), a lutar como gladiador, consentindo a “se deixar queimar, prender, açoitar, morrer, etc”. Os juristas a consideravam uma forma de “quase-servidão”, que não retirava do gladiador o status de homem livre, mas que impunha graves restrições à sua capacidade jurídica, sobretudo aquelas decorrentes da condição de infame, inerentes a certas profissões, como a de gladiador.

Entretanto, não há no filme qualquer situação que presuma o auctoramentum de Maximus.

3) Mas, finalmente, talvez a maior inverossimilhança de todas no roteiro do filme tenha sido o propósito manifesto de Marco Aurélio de que Maximus devolvesse o poder ao Senado Romano e restaurasse a República…

Segundo os textos históricos, especialmente os relatos dos historiadores Cássio Dião, Flávio Josefo e Suetônio, a última vez em que isso chegou a ser cogitado seriamente foi em 41 D.C (140 anos antes dos eventos mostrados no filme), após o assassinato do imperador Calígula.

Os guardas pretorianos que mataram Calígula, após encontrarem o tio deste, Cláudio, escondido atrás de uma cortina, o levaram para o quartel da Guarda e o aclamaram imperador.

Cláudio, sincera ou fingidamente, tentou recusar a púrpura imperial, mas acabou cedendo à pressão dos guardas, aceitou. Porém, alguns senadores, especialmente Sentius Saturninus, que fez no Senado um discurso neste sentido, e, até mesmo, alguns outros pretorianos, cogitaram acabar com o Principado e restaurar a República Romana, tal como ela era nos tempos anteriores aos Césares.

Consta até que o Senado, com o objetivo de enfrentar os partidários de Cláudio, chegou a mobilizar na oportunidade os parcos recursos armados que a cidade de Roma dispunha. Porém, este contingente, composto apenas por alguns soldados, vigiles (bombeiros), gladiadores e, mesmo, escravos libertos dos senadores, logo debandou para o lado dos Pretorianos que apoiavam Cláudio.

Esse estado de indefinição entre a aclamação de Cláudio e a restauração da democracia, segundo Suetônio, durou dois dias, ao final dos quais o historiador narra  que teria ocorrido uma crucial intervenção de uma massa de populares gritando pela elevação de Cláudio, que também teria prometido quinze mil sestércios como donativo aos soldados que o aclamaram imperador.

E de fato, em vários outros episódios da Roma Imperial, restaria evidente que a plebe preferia ser governada pelos príncipes em vez dos senadores…

V- CONCLUSÃO

O filme Gladiador é um excelente filme épico sobre a época da Roma Antiga. Como toda superprodução de Hollywood, o roteiro algumas vezes se desvia dos fatos históricos e faz concessões ao drama e ao espetáculo, mas se você chegou até aqui, pôde constatar que ele nem é tão inverossímil e muitas das façanhas e vicissitudes vividas por Maximus e os demais personagens de fato aconteceram ou, ao menos, poderiam ter acontecido como no filme.

Aliás, para nós que amamos o filme, temos uma boa notícia: a estreia de Gladiador 2 esta prevista para novembro de 2024, com Russell Crowe no elenco e novamente dirigido por Ridley Scott!

FIM

Fontes:

Maximus Decimus Meridius

Se você gosta do nosso conteúdo, me ajude a manter o blog, fazendo uma doação de qualquer valor. O blog é gratuito, mas pagamos taxas de manutenção de domínio, e atualizá-lo dá muito trabalho. Meu propósito é divulgar a História de Roma para todos que não podem comprar livros ou viajar e há muito pouco conteúdo disponível em português na internet.

R$ 10,00

Uma vez
Mensal
Anualmente

Make a one-time donation

Make a monthly donation

Make a yearly donation

Escolha um valor

R$5,00
R$10,00
R$20,00
R$5,00
R$15,00
R$100,00
R$5,00
R$15,00
R$100,00

Ou insira uma quantia personalizada

R$

Your contribution is appreciated.

Your contribution is appreciated.

Your contribution is appreciated.

DonateDonate monthlyDonate yearly