ANTONINO PIO – O IMPERADOR-MODELO

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Em 7 de março de 161 D.C, na cidade de Lório, na Etrúria, Itália,  morreu o Imperador romano Antonino Pio.

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Nascido no ano de 19 de setembro de 86 D.C, próximo à antiga cidade latina de Lanúvio, na Itália, com o nome de Titus Aurelius Fulvus Boionus, Antonino era filho deTitus Aurelius Fulvius,  que seria cônsul em 89 D.C, sendo que o seu avô, que também tinha esse mesmo nome, havia sido cônsul em 85 D.C., tendo se destacado como general no início do governo de Vespasiano, ao derrotar os bárbaros roxolanos na fronteira do rio Danúbio.

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(Lanuvio, antiga Lanuvium, a 32 km a sudoeste de Roma, terra natal de Antonino Pio)

A família dos Aurélios Fúlvios era originária da Gália Narbonense,  sendo radicada na cidade de Nîmes (antiga Nemausum).

Por sua vez, a mãe de Antonino, Arria Fadilla, era filha de Gneaus Arrius Antoninus,  um senador que ocupou por duas vezes o consulado e que era muito amigo de Plínio, o Jovem, que o descreveu como ” um homem de caráter reto“. Os Árrios eram uma tradicional família da classe senatorial de Roma.

O pai de Antonino morreu em 89 D.C, motivo pelo qual ele foi criado pelo avô, de quem herdou o nome e as propriedades, passando a se chamar Titus Aurelius Fulvus Boionus Arrius Antoninus. A vultosa herança do avô materno, somada ao patrimônio herdado de seu pai, tornou Antonino um dos homens mais ricos do Império Romano.

Por volta de 110 D.C, Antonino casou-se com a belíssima Annia Galeria Faustina (Faustina, a Velha), filha de Marcus Annius Verus, o Velho, um conterrâneo (da Hispânia) e amigo chegado do futuro imperador Adriano, e que já tinha sido cônsul durante o reinado de Domiciano (e depois viria a ocupar o posto duas vezes durante o reinado de Adriano).

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(Faustina, a Velha)

O casamento com Faustina aproximou Antonino do circulo íntimo de Adriano. Assim, após exercer os cargos de questor e pretor, Antonino foi nomeado cônsul em 120 D.C. Depois, Adriano nomeou-o Procônsul da Itália e da África, em 134/135 D.C, cargos onde ele se destacou pela boa administração.

Sacramentando a confiança e a estima que Antonino gozava junto a Adriano, este, já enfermo, adotou-o como filho e herdeiro, em 25 de fevereiro de 138 D.C.,concedendo-lhe o poder tribunício e o império proconsular,  distinções que caracterizavam, segundo o costume imperial daquele tempo , o reconhecimento oficial dele como co-imperador.

A única condição imposta pelo imperador Adriano foi que Antonino, por sua vez, adotasse Marcus Annius Verus, o Jovem,  que era sobrinho de sua mulher Faustina ( e que se tornaria o futuro imperador Marco Aurélio), e Lucius Aelius Commodus (que reinaria junto com o primeiro com o nome de Lúcio Vero), filho de Lucius Aelius, quem, anteriomente, tinha sido adotado por Adriano, mas falecera devido a uma hemorragia.

Em 11 de julho de 138 D.C, um dia após a morte de Adriano, Antonino foi aclamado imperador pelo Senado Romano, em uma sucessão pacífica, seguindo a característica dos imperadores da dinastia que tinha sido iniciada por Nerva, em 96 D.C,  mas que acabaria por levar o seu nome (os Antoninos).

Uma das primeiras medidas de Antonino foi convencer o relutante Senado a “deificar” Adriano (Este, no final de seu reinado, havia se indisposto com aquela assembléia, executando alguns senadores acusados de conspiração). Essa devoção ao seu pai adotivo valeu a Antonino o cognome de “Pio”, conferido pelo Senado.

Diplomático e cortês, Antonino Pio, por sua vez, manteria boas relações com o Senado Romano durante todo o seu reinado. Com certeza, o fato de ser ele mesmo um membro de famílias que há muito tempo integravam a classe senatorial favoreceu a sua aceitação.

E o prolongado reinado de Antonino Pio ( o mais longo desde Augusto) foi marcado pela paz externa e interna (para os padrões romanos) e pela relativa prosperidade econômica.

De fato, os poucos conflitos externos foram breves e não muito sangrentos. A principal campanha foi na Britânia, resultando na construção da Muralha de Antonino, mais ao norte da Muralha de Adriano, em 142 D.C. Feita de turfa e protegendo uma fronteira mais curta, esse muro provavelmente foi resultado de um plano de Antonino de obter prestígio militar logo no início de seu reinado, já que o território conquistado parece não ter oferecido atrativos econômicos. Foram cunhadas moedas aludindo ao fato e  conferida uma “salutatio” ao Imperador. Contudo, oito anos após a sua construção,  a muralha foi abandonada e os romanos retornaram para a linha defensiva estabelecida pela Muralha de Adriano naquela Província.

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É preciso observar que, para alguns historiadores, a reiterada falta de interesse de Antonino pelas questões militares,  depois dessa inicial campanha britânica,  e que resultou em uma paz que daria  vinte anos de alívio aos inimigos de Roma, notadamente aos Germanos e Partas,  pode ter sido nociva ao Império Romano, conjecturando-se que eles se fortaleceram muito durante esse período.

Em 141 D.C, a sua amada imperatriz Faustina faleceu. Antonino mostrou o seu pesar e devoção pela esposa ordenando a construção de um templo no Fórum Romano, em honra de Faustina, que, a pedido dele,  havia sido deificada pelo Senado. Esse templo ainda existe (atual Igreja de San Lorenzo in Miranda) e, após a morte de Antonino, que também foi deificado, ele foi renomeado como “Templo de Antonino e Faustina“.

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Antonino também fundou, em memória de Faustina,  uma espécie de instituto de assistência para meninas pobres de família, chamado de “Meninas de Faustina“.

No campo jurídico, o reinado de Antonino foi marcado pela edição de várias leis em favor dos escravos, seja facilitando a alforria dos mesmos, seja prevendo penas para os proprietários que matassem os próprios escravos e estipulando a venda forçada para outro senhor, em caso de maus-tratos. A legislação de Antonino estabeleceu, ainda, a presunção legal de que, nos litígios envolvendo a liberdade, quando as provas fossem duvidosas,  o juiz deveria decidir a favor do escravo.

A situação da economia do império durante o reinado de Antonino foi próspera, mas ele foi obrigado, após os gastos com os festejos pelo 900º aniversário de Roma, a desvalorizar o denário de prata romano. Não obstante, quando ele morreu, Antonino deixou o Tesouro com uma impressionante reserva de 675 milhões de denários.

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Em 146 D.C, seu herdeiro Marco Aurélio casou-se com a única filha sobrevivente de Antonino, Faustina, a Jovem (seus outros três filhos com Faustina faleceram antes de sua ascensão ao trono).

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(Faustina, a Jovem, filha de Antonino Pio e esposa de Marco Aurélio)

A admiração de Marco Aurélio pelo sogro ficou preservada em sua obra  “Meditações”, que assim descreve as qualidades de Antonino Pio:

Gentileza e resolução inabaláveis nas sentenças proferidas após exame minucioso; renúncia às honras exteriores; amor ao trabalho e à perseverança; presteza para ouvir aqueles que têm algo a contribuir para o bem estar público; o desejo de recompensar cada homem de acordo com o seu mérito, com imparcialidade”; (…)”sua energia na defesa de tudo o que fosse feito com a razão, sua equanimidade constante, sua expressão serena, sua doçura, seu desdém pela glória, sua ambição de dominar todos os problemas“.

Em 5 de março de 161 D.C., Antonino Pio descansava em sua antiga propriedade familiar em Lorium, a 19 km de Roma, onde ele tinha sido educado quando criança, quando, após comer  uma porção de queijo, começou a vomitar. Dois dias depois, no dia 7, ele morreria, com a avançada idade de 74 anos. Consta que,  na noite do dia anterior,  o tribuno da Guarda Pretoriana pediu a Antonino a senha para a vigília daquela noite, tendo o moribundo imperador escolhido esta:

Equanimitas” (Equanimidade)

Mais do que a senha para uma noite, equanimidade retratou o espírito do reinado de Antonino Pio.

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(Ruínas da chamada Villa Romana delle Collonace, em Lorium. A villa de Antonio Pio ainda não foi descoberta pelos arqueólogos)

OS GORDIANOS, PUPIENO, BALBINO E O ANO DOS SEIS IMPERADORES

Em 22 de março de 238 D.C., na pequena, mas próspera, cidade de Thysdrus (atual El-Djem, na Tunísia), na província romana da África Proconsularis, uma multidão armada com machados e porretes invadiu a residência do Procônsul da África, o velho senador Marcus Antonius Gordianus Sempronianus (Gordiano I).

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(Anfiteatro romano de El-Djem, na Tunísia, o maior depois do Coliseu, acomodava 35 mil espectadores)

A turba enfurecida tinha acabado de assassinar, poucas horas antes, um dos Procuradores do Imperador, exasperada pela cobrança de impostos e confiscos de propriedades, que tinham sido ordenados para atender a necessidade do imperador Maximino Trácio (foto de seu busto abaixo) em financiar a guerra contra as tribos germânicas no Danúbio (OBS: o reinado de Maximino Trácio será objeto de um artigo próprio).

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Se o velho Procônsul Gordiano, em seus avançados 79 anos de idade, certamente ficou perplexo com a súbita invasão de sua casa, provavelmente mais apavorado ainda ele ficou quando ouviu os chefes da multidão aclamarem-no imperador, dando-lhe, aos gritos, o título de “Africanus“.

Gordiano tentou desesperadamente recusar o título e até chegou a se prostrar no chão implorando que os revoltosos fossem embora, dizendo-lhes que ele era apenas um velho cansado, que nunca lhes fizera mal, mas os chefes, com armas em riste, disseram que seria melhor para ele arriscar uma futura e incerta punição de Maximino do que a certeza da morte que lhe esperava, caso ele não aceitasse a púrpura imperial naquele exato momento.

Sem alternivas, Gordiano I cedeu, e,  dias depois, acompanhou os revoltosos até Cartago. Não obstante, em algum momento entre a sua aclamação e a entrada em Cartago, Gordiano, lembrando que ele era um homem idoso, entendeu que era conveniente que o seu filho, que também se chamava Gordiano (Gordiano II), igualmente fosse aclamado Augusto e, portanto, co-imperador.

Ao chegar a Cartago, uma grande cidade que, naquela época, no Ocidente, só perdia em tamanho para Roma, e, ainda, disputava com Alexandria o título de cidade mais importante da África, os Gordianos foram entusiasticamente recebidos pela população local e pelos líderes da cidade.

Imediatamente, emissários levando cartas de Gordiano foram despachados para Roma, tendo eles sido bem recebidos pelo presidente do Senado (Princeps Senatus), o senador Públio Licínio Valeriano (que, anos mais tarde, tornaria-se também imperador).

De fato, um grande número de senadores, e também parte do contingente da Guarda Pretoriana, que nunca tinham se conformado com a ascensão de Maximino, cognominado, o Trácio, que era considerado nada mais que um bárbaro que havia assassinado o seu antecessor, Severo Alexandre,  apoiaram a revolta e, por conseguinte, assim que a notícia da rebelião na África chegou em Roma, Vitalianus, o Prefeito Pretoriano nomeado por Maximino, foi assassinado.

Em seguida, o populacho de Roma, acreditando nos boatos de que Maximino teria sido assassinado, perseguiu pelas ruas a maior parte dos funcionários e magistrados que ele havia nomeado e destruiu as estátuas do odiado imperador.

Assim, em 2 de abril de 238 D.C., o Senado confirmou a aclamação de Gordiano I e de Gordiano II como imperadores romanos. Cartas foram enviadas aos governadores das demais províncias anunciando a coroação dos novos imperadores. E, de fato, muitos aderiram ao novo governo; contudo, alguns governadores, com medo da conhecida ferocidade de Maximino, preferiram executar os mensageiros.

No ato de sua elevação ao trono imperial, Gordiano I adotou o nome de Caesar Marcus Antonius Gordianus Sempronianus Romanus Africanus Augustus .

Nascido no ano de 159 D.C., com o nome de Marcus Antonius Gordianus Sempronianus, Gordiano I era supostamente filho de um senador romano, cujo nome, segundo a História Augusta, seria Maecius Marullus (um nome que os historiadores modernos acreditam ser fictício). e de Ulpia Gordiana.

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A família da mãe de Gordiano I provavelmente era radicada na Ásia Menor, o que explicaria a origem do nome “Gordianus“. Por sua vez, o prenome feminino “Ulpia” pode indicar algum parentesco com a família do imperador Trajano, ou, mais provavelmente, que a família recebeu a cidadania romana no reinado deste imperador.

Já o prenome “Marco Antônio”, que parece ter sido um nome de família, pode indicar que a família do pai de Gordiano recebeu a cidadania romana durante o triunvirato de Marco Antônio, que governou o Oriente na 2ª metade do século I A.C. Inscrições funerárias encontradas em Ancyra (atual Ancara, capital da Turquia) demonstram que uma certa  Sempronia Romana, filha de um certo Sempronius Aquila , Secretário da Correspondência Imperial em Grego do Imperador (Secretarius ab epistulis Graecis), que podem ter sido a avó e o bisavô maternas de Gordiano I, ergueu o monumento em honra de seu marido, um Pretor, cujo nome, contudo, não aparece.

Inicialmente, durante a sua juventude e idade adulta, os interesses e atividades de Gordiano parecem ter se limitado à  Literatura e Retórica. Ele, segundo a História Augusta, teria escrito poemas e até as biografias dos imperadores Antonino Pio e Marco Aurélio, embora nenhuma obra dele tenha sido citada por algum historiador antigo.

As atividades literárias de Gordiano podem ser a explicação para a dedicatória feita a “Antonius Gordianus“, na obra “Vidas dos Sofistas”, escrita por Filóstrato, poucos anos antes de Gordiano ser nomeado imperador. Na dedicatória, Filóstrato menciona que esse Antonius Gordianus era descendente de Herodes Ático, uma aristocrata grego que também foi filósofo sofista e chegou a ser Cônsul Ordinário para o ano de 143 D.C., sendo o primeiro grego a atingir este importante posto.

Herodes Ático ( foto do seu busto abaixo) era amigo do imperador Antonino Pio e foi professor do imperador Marco Aurélio.  A conexão com Gordiano é reforçada pelo fato da já mencionada Sempronia Romana ser filha de Titus Flavius Sempronius Aquila, que foi Secretarius ab epistulis Graecis do Imperador. Mas, como a idade de Gordiano II, que tinha o mesmo nome do pai, encaixa-se melhor nessa cronologia, é bem possível que a homenagem tenha sido feita a este, e não a Gordiano I. De qualquer forma, a genealogia proposta por Cristian Settipani, com base na Prosopografia se mantém plausível.

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Quando resolveu entrar na carreira pública, Gordiano se destacou como Edil, Questor e Pretor pela magnificência dos espetáculos que financiou e apresentou ao Povo. Disto conclui-se que Gordiano deveria ser muito rico, o que é corroborado pelo fato de ele ser proprietário da “Casa dos Bicos”, uma mansão que pertenceu a Pompeu, o Grande. Seguindo o tradicional Cursus Honorum romano (carreira das magistraturas), o exercicio desses cargos possibilitou a entrada de Gordiano no Senado Romano.

Inscrições sobreviventes indicam que Gordiano serviu como  Governador da Britânia Inferior em 216 D.C. e, posteriormente, como Governador da Síria Coele,  ou Comandante da Legião IV Scythica, estacionada nesta última Província. Ele ainda foi Governador da Província da Acaia. E em algum momento, durante o reinado do imperador Elagábalo, Gordiano foi nomeado Cônsul Suffectus.

Em 237 D.C., o cargo de governador da  importante província senatorial da África Proconsularis, uma das que cabia ao Senado Romano, coube a Gordiano mediante sorteio. E assim, voltamos para os dramáticos eventos que se seguiram após a aclamação dele como Imperador, em Cartago, que narramos na abertura deste artigo.

As notícias da revolta na África e da decisão do Senado chegaram aos ouvidos de Maximino, que se encontrava em Sirmium, na Ilíria. No início, o imperador até manifestou desprezo pelo fato,  considerando tratar-se de uma insignificante revolta de provinciais da África e cidadãos de Cartago, os quais não eram muito considerados, naqueles dias, pelo valor militar,  e que, além do mais, tinham aclamado um senador quase octogenário, e o filho deste, cujo estilo de vida não era muito respeitável. Porém, quando soube da chancela do Senado à aclamação dos Gordianos, o imperador ficou realmente furioso e preparou-se para marchar contra Roma.

Enquanto isso, os Gordianos resolveram livrar-se de um velho desafeto, Capelianus, que era o governador da Província da Numídia, vizinha à África Proconsularis, e que tinha sido nomeado por Maximino, substituindo-o por um novo governador.

Porém Capelianus, quando soube do propósito dos Gordianos, reuniu uma tropa de auxiliares Mouros e  declarou fidelidade ao imperador Maximino, partindo em direção a Cartago, disposto a depor os usurpadores.

A população de Cartago, ao ver a chegada das forças de Capelianus, resolveu armar-se e resistir aos atacantes, liderada por Gordiano II. Porém, sem treinamento militar, os civis foram facilmente derrotados, na chamada Batalha de Cartago. O massacre foi tão grande que o corpo de Gordiano II, soterrado por uma montanha de cadáveres, jamais foi encontrado.

Quando a notícia da derrota do filho chegou ao seu conhecimento, Gordiano I recolheu-se ao seu quarto e matou-se, enforcando=se com a faixa que lhe cingia a túnica, em 12 de abril de 238 D.C. O seu reinado durara apenas 21 dias.

Com a notícia da morte dos Gordianos, não restava nenhuma opção aos senadores romanos senão continuar a revolta contra Maximino Trácio, pois eles tinham certeza que assim que o implacável imperador chegasse a Roma mandaria executar a todos.

Assim, o Senado escolheu dois novos imperadores no lugar dos Gordianos, selecionando-os das suas próprias fileiras., aclamando,  em 22 de abril de 238 D.C, os senadores Marcus Clodius Pupienus (Pupieno) e Decimus Caelius Calvinus Balbinus Pius (Balbino). Ambos faziam parte de um comitê de 20 senadores criado pelo Senado para supervisionar os preparativos militares para a defesa contra Maximino ainda durante o reinado dos Gordianos.

O Senado também conferiu ao neto de Gordiano I, Marcus Antonius Gordianus Pius, um menino de 13 anos de idade, o título de “César”, tornando-o herdeiro do trono.

Pupieno, segundo a História Augusta, era um filho de um ferreiro, e ele ingressou na carreira militar, onde obteve sucesso, chegando a primeiro centurião (Primus Pilus) e, de modo incomum para a época, e foi promovido depois a general e, depois, nomeado Pretor. Depois, Pupieno exerceu cargos de Procônsul em várias províncias, culminando com a sua nomeação para Cônsul Suffectus em 207 D.C. e  Cônsul Ordinário, em 234 D.C. O mais provável, contudo, para alguns historiadores, é que Pupieno fosse da pequena nobreza equestre e tenha escolhido a carreira militar. (muitos equestres serviam como centuriões no exército romano).

De qualquer modo, o fato de Pupieno (foto de seu busto abaixo) ter sido escolhido imperador por seus pares senadores, na iminência da chegada das tropas de Maximino, com certeza deve-se ao fato dele ter experiência militar, não obstante ele já ter entre 68 e 73 anos de idade, na data de sua elevação ao trono.

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Balbino (foto de seu busto abaixo) era de uma família da nobreza senatorial e ele ocupou vários postos de governador de província, culminando com sua nomeação para dois consulados, um deles em companhia do imperador Caracala.

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Enquanto Pupieno se encarregou de partir para Ravena no norte da Itália para preparar a defesa e recrutar tropas contra Maximino, Balbino ficou em Roma para cuidar da administração civil e da ordem pública na Cidade.

As perspectivas para Pupieno eram as piores possíveis, pois ele teria que enfrentar o experimentado exército de Maximino, que estava em campanha contra os Sármatas, no Danúbio, após derrotar os Alamanos. mas ele fez o melhor que pode reunindo uma tropa de auxiliares germânicos  com os quais ele tinha servido quando fora legado imperial na Germânia.

Porém, quando Maximino chegou ao norte da Itália, necessitando de suprimentos em razão da rapidez com que saíra de Sirmium, a cidade de Aquiléia, na rota para Roma, fechou os portões das suas muralhas,  tomando o partido de Pupieno e Balbino.

As tropas já famintas de Maximino ficaram irritadas durante o inesperado cerco à Aquiléia. Em maio de 238 D.C., soldados da Legião II Parthica invadiram o acampamento de Maximino e o assassinaram,  juntamente com seu filho e seus auxiliares, decapitando-os e enviando as cabeças de todos para Roma.  O reinado de Maximino havia durado pouco mais de três anos.

Parecia, naquele momento, que Pupieno tinha conseguido vencer o seu  maior desafio sem sequer precisar  ter lutado.

Entretanto, em Roma, as coisas degeneraram para Balbino. A plebe se enfureceu com a execução de dois soldados desarmados, e tumultos se espalharam pelas ruas. Parece que alguns senadores insuflaram os protestos, sustentando que o neto de Gordiano I, o César Marcus Antonius Gordianus Pius (Gordiano III) deveria ser o imperador. Para piorar o quadro, em junho de 238 D.C, um grande incêndio irrompeu em Roma.

Como se tudo isso não bastasse, quando Pupieno chegou a Roma, com uma guarda de soldados germânicos, Balbino ficou receoso e as relações entre os dois esfriaram.

Por outro lado, a Guarda Pretoriana, já acostumada em várias oportunidades a fazer e desafazer imperadores, não estava nada satisfeita com o incomum protagonismo do Senado na nomeação de Pupieno e Balbino.

Desse modo, quando os Pretorianos perceberam que Pupieno e Balbino não gozavam da aprovação geral, a sorte de ambos estava decidida.  Assim, no dia 29 de julho de 238 D.C., um grupo de Pretorianos invadiu o Palácio e capturou os dois imperadores. Pupieno e Balbino foram arrastados para o Quartel da Guarda Pretoriana, torturados e executados. Eles tinham reinado por apenas três meses.

Gordiano III, de apenas 13 anos de idade, foi  imediatamente aclamado imperador pelos Pretorianos. Ele nasceu em 20 de janeiro de 225 D.C e era filho de Antonia Gordiana, filha de Gordiano I e de um senador cujo nome é desconhecido, mas que para alguns estudiosos poderia se chamar Junius Balbus.

Entretanto, o controle do governo de fato de Roma, no início, ficou nas mãos do Senado Romano, tendo em vista a menoridade do imperador.

Em 241 D.C, com apenas 16 anos, Gordiano III casou-se com Furia Sabinia Tranquillina, filha de Gaius Furius Sabinius Aquila Timesitheus, um integrante da classe equestre que teve uma carreira de sucesso e exerceu vários cargos militares e civis importantes até ser nomeado Prefeito Pretoriano, tornando-se a eminência parda do Reinado de Gordiano III.

O reinado de Gordiano III também não seria tranquilo. Inicialmente, o governo teve que enfrentar a revolta do governador da África, Marcus Asinius Sabinianus (Sabiniano), que se declarou imperador mas logo foi derrotado pelo governador da província vizinha da Mauretania.

O próximo contratempo foi a invasão do renovado Império Persa Sassânida, sobre a liderança do belicoso Xá Ardashir e seu filho Sapor I, que invadiu o Império Romano e tomou as estratégicas cidades de Hatra, Carras, Singara e Nísibis.

Como muitas vezes se repetiu na História Romana, a partir do século III, quando os romanos deslocavam tropas para a fronteira oriental para combater os Partas ou Persas, os bárbaros germânicos aproveitavam para atacar a fronteira Reno-Danubio, e nesta ocasião, não foi diferente: a tribo dos Carpi aproveitou a oportunidade e fez uma incursão no Baixo Danúbio, mas eles foram derrotados na Trácia por tropas destacadas por Thimesiteus.

O contra-ataque romano aos Sassânidas foi liderado por Thimesiteus e Gordiano III em pessoa e foi bem-sucedido, com a vitória romana na Batalha de Reasena, em 243 D.C e a reconquista das cidades tomadas pelos Persas. Em comemoração, foi celebrado um Triunfo em Roma.

Porém, enquanto o imperador preparava a invasão do Império Persa, seu sogro Thimesiteus morreu em circunstâncias ignoradas. Agora privado do auxílio do sogro, um militar experiente e que era o homem-forte do seu governo, Gordiano III foi obrigado a prosseguir na campanha.

Assim, Thimesiteus foi substituído pelo irmão de Gaius Julius Priscus, o outro Prefeito Pretoriano, de nome Marcus Julius Philipus, mais conhecido como Filipe, o Árabe, devido à sua origem.

Em seguida, o exército romano invadiu a Pérsia, e, repetindo o desenrolar de campanhas militares anteriores e futuras contra o mesmo inimigo, rumou em direção à capital Ctesifonte.

Porém, os romanos foram derrotados na Batalha de Misiche, próximo à Fallujah, no atual Iraque, conforme mencionado nas inscrições persas existentes nos monumentos persas em Naqsh-e Rustam.

Gordiano III morreu em 11 de fevereiro de 244 D.C, por volta do do mês em que ocorreu a Batalha de Misiche, sem que exista, contudo, uma fonte confiável que possa dizer que se o imperador pereceu em combate, como alegam as fontes persas, ou se ele foi assasinado por seus oficiais, antes, durante ou logo após a referida Batalha.

O imperador Gordiano III (foto de seu busto abaixo) foi sucedido por Filipe, o Árabe, que enterrou o corpo do antecessor na cidade de Zaitha e providenciou a sua deificação.

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Conclusão

Por tudo isso, o ano de 238 D.C. ficaria conhecido como “O Ano dos Seis Imperadores” e ele traça com fidelidade um grande retrato dos problemas que o Império Romano estava começando a enfrentar, em meio à chamada “Crise do Século III“, marcada pela instabilidade interna e crescente pressão militar externa nas fronteiras.

O período dos reinados dos Gordianos e de Pupieno e Balbino também ilustra o início da transição do período do Principado inaugurado por Augusto, que era caracterizado ainda por uma predominância da elite senatorial tradicional romana entre os aspirantes ao trono, bem como no exercício dos principais comandos militares e governos de províncias (elite esta que, após a Crise do Século III teria suas fileiras muito diminuídas e seria praticamente afastada do Exército, que passaria a ser também o principal ator político e praticamente o único caminho de acesso para os cargos públicos mais importantes) em direção ao Dominado, que seria implantado com as reformas introduzidas por Diocleciano nas últimas décadas do século III.

FIM

SEPTÍMIO SEVERO – DÉSPOTA APLICADO

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Em 4 de fevereiro de 211 D.C., morreu, aos 65 anos de idade, em Eburacum (atual York, na Inglaterra), o imperador Lucius Septimius Severus Eusebes Pertinax Augustus, mais conhecido como Septímio Severo (e, também, Sétimo ou Setímio Severo).

Quando Severo morreu, na longínqua província da Britânia, ele estava no curso de uma operação contra os bárbaros Caledônios, que acossavam a província romana a partir do outro lado da Muralha de Adriano. Esta era mais uma campanha militar de um imperador que, em seus 18 anos de reinado, passara quase todo o tempo incansavelmente em guerra, contra vários inimigos externos, e também alguns internos.

O futuro imperados Lucius Septimius Severus nasceu em 11 de abril do ano de 145 D.C, na cidade de Leptis Magna, na Província Romana da Tripolitania (atual Líbia), filho de Publius Septimius Geta e Fulvia Pia. O pai dele era integrante de uma família de ancestralidade púnica, ou seja, ligada aos fundadores de Cartago, oriundos da Fenícia, mas que, provavelmente, tinha também algum sangue berbere, a população nativa da região.

O avô de Severo, também chamado Lucius Septimius, era da classe equestre, o segundo nível da nobreza romana. Já a esposa deste último, e avó paterna de Severo, Victoria, era filha de Marcus Vitorius Marcellus, que foi senador e consul suffectus, em 105 D.C, e de Hosidia, filha de Gnaeus Hosidius Geta, que também foi general, senador e consul suffectus, no ano de 49 D.C.

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Vista de Leptis Magna, foto de SashaCoachman

Por sua vez, a mãe de Severo, Fulvia Pia, era de uma antiga família plebeia que, ainda em meados do período republicano, ingressou na nobreza, tendo seus antepassados exercido, inclusive, vários consulados. Alguns Fúlvios, provavelmente, se mudaram para Leptis Magna quando a cidade foi reorganizada e recebeu políticas de incentivo por ordem de Júlio César, quando este tornou-se Ditador.

Leptis Magna, originalmente fundada pelos Púnicos, ou Cartagineses, no século VII A.C, era uma cidade rica que governava um território fértil, extensamente cultivado. E, portanto, sendo uma das famílias mais ilustres da cidade, certamente os Severos deveriam ser eles também muito ricos.

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Consequentemente, o jovem Septímio Severo recebeu a melhor educação que a cidade de Leptis Magna poderia fornecer, tendo sido educado em latim e grego. Entretanto, sabemos que ele também falava o idioma púnico local, que talvez fosse até a sua língua de infância, pois as fontes relatam que ele falava latim com forte sotaque púnico. Severo deve também com certeza ter aprendido Oratória, pois sabe-se que, ainda em Leptis, ele fez o seu primeiro discurso público, aos 17 anos.

Depois disso, obviamente almejando horizontes mais amplos na vida do que os que a provinciana Leptis poderia lhe oferecer, Severo, por volta de 162 D.C, partiu para Roma, a Meca de todos os jovens bem-nascidos do Império.

E quando Severo chegou a Roma, ele foi recomendado por um parente ilustre ao imperador Marco Aurélio, que, em virtude disso, mandou arrolá-lo, já que era descendente de cônsules, como membro da ordem senatorial, o cume da nobreza romana.

Com isso, abriram-se para Severo as portas do “cursus honorum” – a carreira das magistraturas – e ele foi nomeado um dos “Vigintivir”, membro de um colégio de 26 magistrados juniores, que cuidavam, entre outras coisas, de casos judiciais menores e também da manutenção de estradas, ruas ou prédios públicos. Posteriormente, Severo foi nomeado advocatus fiscus, uma espécie de procurador público imperial.

Contudo, sendo ele ainda muito jovem para ocupar cargos mais elevados e, sobretudo, em função da chegada a Roma de uma epidemia de peste, Severo resolveu voltar para Leptis Magna.

Enquanto isso, durante o tempo em que esteve de volta em sua terra natal, Severo completou 25 anos, que era a idade requerida para o cargo de Questor, e, pouco depois, por sorte, a epidemia em Roma abrandou, permitindo que ele voltasse para Roma e assumisse, em 169 D.C, este prestigioso cargo.

Então, como Questor, Severo conseguiu, enfim, ingressar legalmente no Senado Romano.

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Edifício da Cúria do Senado no Fórum Romano

Vale ressaltar que muitos cargos haviam ficado vagos em função da virulência da referida Peste, que havia ceifado muitas vidas, o que permitiu que Severo progredisse ainda mais no serviço público. Assim, ele foi nomeado Questor pela segunda vez.

Porém, logo após esses progressos, Severo foi surpreendido pelo repentino falecimento de seu pai e ele foi obrigado a voltar para Leptis para resolver assuntos ligados à sucessão e ao inventário do falecido.

Resolvidas as questões sucessórias, Severo foi cumprir o resto do mandato de Questor na ilha da Sardenha, que estava temporariamente sob administração do Senado Romano.

Em seguida, Severo foi servir com seu parente Gaius Septimius Severus, que tinha sido apontado Proconsul da África, na qualidade de Legatus pro Praetor, ou seja, governador.

Novamente de volta à Roma, em 174 D.C,  Severo foi escolhido, como candidato do próprio Imperador, Tribuno da Plebe.

Sem dúvida, Severo, até então, estava tendo uma carreira notavelmente promissora: Com efeito, apesar dos relatos dos historiadores de que ele era alvo de piadas em Roma por causa do seu forte sotaque púnico, restava claro que Severo estava sendo visto com simpatia pelos poderosos, e até pelo próprio Imperador, fato que não é de surpreender, pois, como relatamos no início, o seu pedigree genealógico era suficiente para competir com outros candidatos aos cargos mais importantes.

Severo era um homem forte, embora de baixa estatura, e de pele bem morena, como os naturais do Norte da África. E um dos traços mais marcantes da sua personalidade era ser muito supersticioso, acreditando em sonhos premonitórios e astrologia, que frequentemente lhe prediziam um futuro brilhante.

Ele também sentia-se muito ligado à sua Leptis Magna natal e por isso, parece natural que, quando Severo resolveu se casar, aos 30 anos de idade, ele tenha escolhido uma esposa natural de Leptis, chamada Paccia Marciana, originária de uma família de origem púnica, como a sua.

O casamento com Marciana durou dez anos e, se eles tiveram filhos (a História Augusta, considerada pouco confiável, relata duas meninas), os mesmos não sobreviveram até a idade adulta. Marciana morreu por volta de 186 D.C.

Ainda segundo a História Augusta, o sempre supersticioso e agora viúvo Severo, querendo casar-se novamente, recorreu à ajuda de astrólogos para encontrar uma nova esposa. Nessa busca, Severo, então, teria ouvido falar de uma mulher síria acerca de quem se falava da existência de uma previsão de que ela se casaria, um dia, com um rei…

Severo foi até a Província da Síria e encontrou a mulher em questão, Júlia Domna, que era, ela mesma, descendente da casa real dos Sempsiceramidas e Soêmios, reis-sacerdotes da cidade síria de Emesa (atual Homs, na Síria) que era habitada por um povo de origem semítica árabe-beduína que falava aramaico.

Além do incentivo da previsão astrológica, certamente Severo foi incentivado a casar-se com Júlia pelo fato de ser ela muito bonita. E, para completar, Emesa, e os seus governantes sempsiceramidas, eram riquíssimos…

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Cabeça de estátua de bronze de Septímio Severo

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Cabeça de Júlia Domna

Com a aprovação do pai de Júlia Domna, Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus El-Gabal (Elagabalus, ou Heliogábalo, em latim), em Emesa, Severo e Júlia casaram-se em 187 D.C, logo seguindo-se o nascimento dos filhos Lucius Septimius Bassianus (que ficaria conhecido como o futuro imperador Caracala), ocorrido em 188 D.C, quando Severo governava a Gália, e Publius Septimius Geta, em 189 D.C., nascido quando Severo era governador da Sicília.

Vale notar que, desde 180 D.C., o imperador era Cômodo, que sucedera o pai, Marco Aurélio, mas, pelo visto, o nome de Severo continuou a gozar de prestígio junto ao trono.

De fato, o casamento parece ter dado uma nova turbinada na carreira de Severo e, em 190 D.C, ele foi nomeado Cônsul, a mais alta magistratura romana, sob recomendação do imperador Cômodo. E, no ano seguinte, Cômodo nomeou Severo governador da importante província da Panônia, na fronteira do rio Danúbio, o que implicava no comando de várias experimentadas legiões do Exército.

Foi nessa privilegiada posição que Severo encontrava-se quando o imperador Cômodo, após um reinado de anos de tirania e de vários excessos, foi assassinado em um complô palaciano, em 31 de dezembro de 192 D.C.

O ano de 193 D.C começou com um novo imperador, Pertinax (Pertinace). Porém, antes que o ano terminasse, os romanos ainda veriam mais outros quatro ocuparem o trono, motivo pelo qual aquele ano passaria à História como “O Ano dos Cinco Imperadores”…

Com efeito, o  ambicioso Pertinace, Prefeito Urbano de Roma, ao saber da morte de Cômodo, na qual talvez ele até estivesse implicado, correu para o Quartel da Guarda Pretoriana, prometendo um grande donativo aos soldados, caso o aclamassem imperador. Eles assim o fizeram e o Senado, exultante pelo fim da tirania de Cômodo, imediatamente reconheceu o pretendente como Imperador. Porém, depois de quatro meses de um reinado promissor, um outro grupo dos insaciáveis pretorianos, sequiosos de dinheiro, assassinou Pertinace , que teve a sua cabeça fincada e exibida em um poste.

Em um dos episódios mais vergonhosos da História de Roma, os gananciosos Pretorianos abordaram na rua o rico senador Dídio Juliano e insistiram para que ele aceitasse ser aclamado imperador, obviamente em troca do pagamento de uma grande soma de dinheiro. Ato contínuo, os soldados levaram Dídio Juliano para o Quartel da Guarda Pretoriana, onde, para a surpresa do pretendente, lá já estava outro candidato à púrpura imperial, Flávio Sulpiciano. Na presença dos dois, os Pretorianos promoveram um infame leilão do trono, que, após vários lances, foi ganho por Juliano, que ofereceu a cada soldado a quantia de 25 mil sestércios.

Aproveitando-se da debilidade do novo imperador, uma série de governadores de província, rebelaram-se, incluindo o próprio Severo, que foi aclamado imperador pelas próprias tropas, em 14 de abril de 193 D.C.

Antecipando-se aos seus rivais na sucessão, Severo, prometendo vingar a ignominiosa morte de Pertinax, marchou contra Roma, não sem antes assegurar-se de que um potencial rival, Clódio Albino (também ele um romano nascido na África, em Hadrumeto), o governador da Britânia, não reivindicasse o trono. Então, para obter a lealdade de Albino, o astuto Severo ofereceu-lhe o título de “César” (que equivalia, grosso modo, ao de príncipe-herdeiro), que foi aceito.

Entretanto, as legiões do Oriente  também aclamaram o seu comandante, Pescenius Niger (Pescênio Nigro), governador da Síria, imperador.

Antes de Severo chegar à Roma, contudo, boa parte do Senado já o estava apoiando. Assim, em 1º de junho, Dídio Juliano foi destituído pelo Senado e condenado à morte, após reinar por meros 66 dias. Esta sentença foi prontamente executada pelos próprios Pretorianos, aterrorizados com a aproximação das experimentadas legiões de Severo, as quais eles bem sabiam que não tinham a menor condição de enfrentar em batalha.

Desse modo, Severo entrou em Roma sem oposição, no dia 9 de junho de 193 D.C.

Cumprindo a sua promessa, Severo imediatamente puniu os pretorianos, mas de uma forma sorrateira: ele convidou a guarda pretoriana a um banquete no seu acampamento. Porém, quando os pretorianos chegaram, eles foram desarmados por uma força de soldados de Severo, que executaram os assassinos de Pertinace. Mais tarde, Severo substituiu os pretorianos por soldados originários da Panônia.

No Oriente,  Pescênio Nigro, governador da província da Síria, recusou aceitar Severo como imperador e ainda obteve o apoio da província do Egito. Severo marchou imediatamente para o leste e esmagou o indisciplinado exército de Nigro. A batalha decisiva aconteceu em Issos, na primavera de 194 D.C, e Nigro foi morto em Antióquia. A cabeça dele foi enviada à Severo, que estabelecera seu quartel-general em Bizâncio.

Aureus de Pescênio Niger, foto de Numismatica Ars Classica NAC AG, CC BY-SA 3.0 CH https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/ch/deed.en, via Wikimedia Commons

Outra característica marcante de Severo era ser implacável com os inimigos, e isso se aplicava às províncias e cidades que haviam apoiado Nigro, que foram severamente punidas, bem como aos reinos estrangeiros hostis.

Assim, em 195 D.CSevero iniciou uma campanha contra o Império Parta e invadiu a Mesopotâmia, subjugando os árabes osroenes, adiabenes e cenitas, no que também era um acerto de contas pelo fato destes terem apoiado Nigro. Em um gesto simbólico de afirmação de sua origem púnica, Severo, nessa passagem pelo Oriente, mandou reformar com mármore o túmulo de Aníbal Barca, o grande general cartaginês e inimigo mortal de Roma, mas também o seu mais ilustre conterrâneo, que morreu exilado na Bitínia, no longínquo ano de 183 A.C.

Enquanto isso,  Clódio Albino, levando a sério o seu título de César,  começou a cunhar moedas como se fosse imperador, autointitulando -se Augusto.

Severo, que provavelmente sempre tivera a intenção de se livrar do rival, deu a seu filho Lucius Septimius Bassianus, conhecido como Caracala (um apelido dado pelo fato dele usar, costumeiramente, um manto de origem gaulesa, que tinha esse nome) o mesmo título de César, o que, na prática, significava a cassação do status de Albino, que, em seguida, foi declarado “Inimigo Público”.

Foi também 195 D.C que Severo proclamou que ele era filho adotivo do imperador Marco Aurélio, razão pela qual alterou o nome de seu filho Caracala para Marcus Aurelius Severus Antoninus Augustus, numa tentativa de se legitimar como continuador da bem-sucedida dinastia dos Antoninos, que terminara com o assassinato de Cômodo.

Em verdade, Severo e Albino, desde a revolta contra Dídio Juliano, provavelmente sempre estiveram tentando ganhar tempo até terem todas as condições de eliminarem um ao outro. Quando chegou a notícia de sua proscrição pelo Senado, em 196 D.CAlbino já estava preparado para invadir a Gália e, após derrotar o legado de SeveroVinius Lupus, assumiu o controle da importante província, instalando-se em Lugdunum (Lyon).

Na inevitável guerra que se seguiu, Severo conseguiu derrotar Albino, na Batalha de Lugdunum, em 19 de fevereiro de 197 D.C. Foi uma batalha duríssima, segundo Dio Cassio, envolvendo 150 mil soldados de cada lado (número provavelmente exagerado). Severo ganhou o dia utilizando a sua cavalaria. Albino se matou ou foi capturado e executado, não se sabe ao certo. Porém, as fontes narram que Severo dispensou um tratamento cruel ao cadáver, que foi exposto nu e pisoteado pelo seu cavalo. E a cabeça do rival foi decepada e enviada à Roma, como um alerta para futuros pretendentes. Por sua vez, a desafortunada Lyon, como punição pelo apoio a Albino, foi saqueada.

Entre 197 e 199 D.C, foram travadas com sucesso uma série de campanhas contra o Império Parta que derivaram no estabelecimento da nova província da Mesopotâmia.

Após a conquista de Ctesifonte, a capital dos Partas, em cujo cerco faleceram cerca de 100 000 pessoas, os romanos apoderaram-se dos tesouros inimigos.

Em seguimento à vitória, Severo dedicou os cinco anos posteriores a organizar a administração da nova província, cuja existência, entretanto, jamais seria pacífica e teria curta duração, fadada a ser retomada pelos persas sassânidas, que destronariam os partas arsácidas, fundando um novo império.

Não obstante, as vitórias de Severo na região asseguraram o controle das estratégicas cidades de Nísibis e Síngara e a supremacia regional de Roma até o ano de 251 D.C, ou seja, por quase 50 anos. Ficaria, como testemunho dessa campanha, o Arco do Triunfo de Setímio Severo, no Fórum Romano, ainda existente.

Com efeito, a preocupação com o Exército e as questões militares foram o cerne da política governamental de Severo.

Severo começou por extinguir a Guarda Pretoriana e dispensar, com desonra, os seus integrantes. Em substituição, ele formou uma guarda com 10 coortes (cerca de 10 mil homens), com seus veteranos da Panônia. Depois, o imperador ainda acantonou, nas cercanias de Roma, uma legião. Na prática, com essas últimas iniciativas, a Guarda acabou sendo reconstituída.

Depois, Severo decretou um aumento de um terço para o salário dos soldados, o qual passou de 300 para 400 denários e aumentou o número de legiões de 30 para 33, medidas que, entretanto, provocaram um grande déficit público, causando inflação e prejudicando a economia imperial..

Severo também ampliou a “Anona” militar, organizando-a oficialmente como uma instituição permanente de previdência social dos soldados.

O imperador reformou, ainda, o estatuto civil dos militares:

De fato, até o reinado de Cláudio, os soldados não podiam deixar os quartéis enquanto duravam os seus anos de serviço. Consequentemente, exigia-se que eles não tivessem família por um número determinado de anos, variando o tempo em função da unidade a que pertenciam: os Pretorianos durante 15 anos, os legionários durante 20 anos e os auxiliares durante 30 anos.

Cláudio reformara o sistema a fim de permitir aos soldados saírem do acampamento quando não estivessem de serviço, facilitando-lhes assim fundarem uma família; porém, ainda assim, até o reinado de Severo, eles não tinham direito a casar-se legalmente e reconhecer os seus filhos antes de concluir o seu tempo de serviço militar. Então, Severo autorizou que os militares oficializassem a sua vida conjugal.

Como consequência dessa política, aumentou-se o número de cidadãos romanos, pois, com o status de casamento legal, os filhos dos soldados com as mulheres não-romanas que habitavam as proximidades dos acampamentos podiam aspirar à cidadania romana. Desse modo, podemos entender a “Constitutio Antoniniana” – lei editada pelo filho de Severo, Caracala, estendendo a cidadania romana a todo homem livre nascido no Império – como uma continuação desta política de Severo.

Severo também estabeleceu novas honras militares, autorizando aos oficiais portar um anel de ouro, privilégio até então reservado aos cavaleiros.

Além dos assuntos militares, Severo também dedicou-se aos assuntos administrativos e civis.

Vale citar que Severo tinha como seu principal auxiliar o seu primo, Gaius Fulvius Plautianus, nomeado Prefeito Pretoriano, e era também assessorado por juristas célebres, como Ulpiano e Papiniano.

Na Síria, de onde era natural a sua esposa, Severo criou duas novas províncias, para facilitar a administração local e, não menos importante, diminuir o poder do seu respectivo governador, que comandava várias legiões, as quais foram divididas entre as duas novas unidades político-administrativas.

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Depois de concluir a campanha no Oriente, Severo visitou o Egito, onde ele rendeu homenagem ao corpo de Alexandre o Grande, no Mausoléu no qual o famoso rei macedônio foi sepultado, em Alexandria;e, depois, ele navegou o rio Nilo até Tebas. Em seguida, o imperador dedicou-se aos assuntos de sua África natal, onde as tribos nativas dos Garamantes estavam causando problemas. Derrotados os inimigos, com a expansão do Limes Africanus, Severo pode estabelecer oficialmente a província da Numídia, agora separada administrativamente da África, e, finalmente após esse périplo pelo Oriente e África, o imperador retornou à Roma, em 203 D.C.

Painel de madeira pintada (tondo), com as figuras de um Severo já grisalho, da imperatriz Júlia Domna e de seus filhos Caracala e Geta (rosto apagado). A pintura é proveniente do Egito e provavelmente foi pintada quando da viagem da família imperial pela Província, por volta do ano 200 D.C. Posteriormente, quando Caracala sucedeu ao pai e assassinou Geta, foi decretada a “damnatio memoriae” deste e, obedientemente, a imagem de Geta foi apagada dos monumentos públicos, bem como deste painel. É o único retrato pintado de um imperador e ele é valiosíssimo pois nos permite ver as cores das vestimentas e dos ornamentos imperiais, inclusive o cetro e a coroa, além da tez da pele e dos cabelos.

Na capital do Império, Septímio Severo erigiu uma série de importantes construções: ele embelezou o lado sul do Palatino mediante a construção de uma monumental fonte chamada Septizódio, dedicada aos sete principais astros do firmamento. Além disso, foi ampliado o palácio imperial, com a construção de uma nova ala, a Domus Severiana, e ele também começou a construção dos banhos públicos que seriam conhecidos depois como Termas de Caracala, já que foram terminados no reinado de seu filho. Procedeu-se, ainda, à restauração de muitos edifícios danificados pelos incêndios que ocorreram no final do reinado de Cômodo, entre os quais: o Templo da Paz, o Teatro de Pompeu, o Pórtico de Otávia e o Arco de Nero.

A cidade natal de Severo, Leptis Magna, também beneficiou-se amplamente em seu reinado, sendo embelezada com vários monumentos suntuosos: o Fórum de Severo, a Basílica de Severo, o Mercado e  grandes instalações portuárias.

Septímio Severo tomou, ainda, algumas  significativas medidas judiciárias e assistenciais: A Presidência dos tribunais de apelação foi transferida aos Prefeitos Pretorianos, função antes realizada pelo imperador,  e foi instituída a distribuição gratuita de azeite de oliva, que se unia à tradicional repartição de trigo para a plebe.

A fim de consolidar a sua sucessão, Severo casou o seu filho Caracala com Plautilla, filha do Prefeito Pretoriano Plautianus (Plauciano). Este casamento arranjado, porém, foi o início da discórdia entre Severo e seu antigo amigo e parente, e agora sogro do seu filho.

De fato, Caracala odiava Plauciano, e, após o casamento, ele recusou-se a ter qualquer relacionamento com a esposa. Na verdade, consta que Caracala prometeu que, quando se tornasse imperador, daria cabo de ambos, esposa e sogro, o que pode ter levado Plauciano a conspirar contra Severo, ou, ao menos, este foi o pretexto que Caracala usou para conseguir a queda e execução do sogro. Plautiano foi acusado de traição por alguns centuriões em 205 D.C, subornados provavelmente por Caracala. Severo mandou executá-lo e Plautilla foi exilada na ilha de Lipari.

As relações de Severo com o Senado nunca foram boas, devido ao caráter marcadamente ditatorial do seu reinado. O imperador mandou executar dúzias de senadores sob variadas acusações de corrupção e conspiração, substituindo-os por homens fiéis ao trono.

Não obstante, entre a plebe romana, Septímio Severo gozava de popularidade, devido às medidas que ele tomou contra a corrupção generalizada que havia aumentado durante o reinado de Cômodo, e Severo ganhou a boa reputação de ter restabelecido a moralidade pública após os anos de decadência do governo anterior.

Contudo, o aumento vertiginoso das despesas militares, obrigou Severo a promover a maior desvalorização do denário desde o reinado de Nero, o que causaria uma grande inflação.

Nos anos finais do reinado de Severo, ocorreram muitos ataques das tribos caledônias que viviam além da Muralha de Adriano, que foram estimuladas pelo fato de Albino, quando da disputa com Severo pelo trono, haver zarpado para a Gália com praticamente todo o efetivo militar da Britânia.
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Em 207 D.C, o incansável Septímio Severo foi para a Britânia combater os Caledônios, levando consigo a esposa e os dois filhos, realizando várias campanhas ao norte da Muralha de Adriano, que foi reforçada por ele. Todavia, esse esforço não foi suficiente para subjugar aquelas ferozes tribos, antepassadas dos escoceses.

As fontes narram que, preocupado com a instabilidade mental demonstrada por Caracala, Severo nomeou, em 209 D.C, seu filho mais novo, Geta, como “César”.

A campanha contra os Caledônios prosseguiu, com resistência maior do que se poderia supor, e a saúde do já sexagenário Severo não aguentou o tranco. Ele caiu gravemente enfermo, e, pressentindo que ia morrer, mandou chamar Caracala e Geta, para dar-lhes um último conselho, em seu leito leito de morte, o qual ficaria célebre:

Não briguem entre si, deem dinheiro aos soldados e desprezem todos os outros“.

No dia 4 de fevereiro de 211 D.C, em Eboracum(York), aos 65 anos de idade, Septímio Severo morreu e Caracala e Geta foram aclamados imperadores pelas tropas. Ambos decidiram interromper imediatamente a campanha e voltar para Roma.

Nove meses depois, Caracala mataria seu irmão Geta, que se refugiara nos braços da mãe de em pleno palácio, para reinar sozinho. Portanto, Caracala somente seguiria fielmente o segundo e o terceiro conselhos de seu pai…

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Busto de Caracala, o sucessor de seu pai Severo, cuja expressão parece corresponder ao seu caráter violento.

CONCLUSÃO

Septímio Severo é um imperador controverso e o seu reinado é um dos mais difíceis de avaliar:  por um lado, ninguém pode negar que ele foi um servidor público incansável e muito dedicado aos assuntos públicos, tarefa que jamais foi por ele deixada de lado em prol dos prazeres e lazeres que Roma oferecia. De fato, Severo expandiu as fronteiras do Império Romano, visitou inúmeras províncias, venceu guerras e construiu importantes monumentos.

Mas Severo falhou em fazer uma reforma administrativa e tributária capaz de sustentar o aumento no efetivo e no orçamento militar, sendo que o aumento dos soldos acentuou uma tendência que comprometeria as finanças públicas dos reinados que se seguiram. E, ironicamente, tantas benesses dadas aos soldados podem ter comprometido a disciplina militar, estimulando os vários episódios de insubordinação que seriam observados durante os reinados da dinastia inaugurada por ele.

Outra medida  que se considera negativa foi a proibição de que os senadores exercessem comandos militares. Essa vedação, que seria reforçada nos reinados seguintes, afastou a elite romana do serviço militar e acabou contribuindo para criar ou ampliar um estranhamento entre o Exército e o Senado, afastando completamente a aristocracia da carreira das armas, o que no futuro se revelaria nocivo.

E Severo falhou mais amplamente em seguir os quase cem anos de boa política sucessória dos Antoninos, dinastia que ele tinha a pretensão de fazer parte, ao escolher os incompetentes e despreparados Caracala e Geta como herdeiros, mas este, diga-se de passagem, foi um erro no qual o próprio “imperador-filósofo e déspota esclarecido” Marco Aurélio também incorreu.

Quanto às numerosas execuções de senadores e rivais, talvez Severo não tenha sido tão diferente da maior parte de seus antecessores e sucessores. O fato é que ser imperador romano, especialmente no século III, como logo seria constatado, era uma das profissões mais perigosas do mundo.

FIM

NERVA – O INVOLUNTÁRIO FUNDADOR DA IDADE DE OURO DE ROMA

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1- Ancestralidade e nascimento

Em 8 de novembro do ano 30 D.C. (ano provável), nasceu, em Narni, na região italiana da Úmbria, Marcus Cocceius Nerva (Nerva), membro de uma tradicional família da nobreza italiana, sendo ele filho, neto e bisneto de ex-Cônsules.

Aliás, o bisavô de  Nerva foi partidário do triúnviro Marco Antônio, mas em algum momento, durante as guerras do Segundo Triunvirato, ele passou a apoiar Otaviano, o futuro imperador Augusto, que, em recompensa, incluiu a família dos Cocceii Nerva no novo Patriciado, meramente honorífico, formado após as Guerras Civis. Por sua vez, o avô e o pai de Nerva foram afamados juristas, sendo que o primeiro foi amigo pessoal do imperador Tibério.

2- Carreira Pública

Pouco se sabe acerca da carreira política de Nerva no serviço público. Na verdade, parece que o único campo em que ele se destacou em sua juventude foi a poesia, chegando a receber elogios do imperador Nero. E foi no reinado deste imperador que Nerva foi indicado para o cargo de Pretor, no ano de 65 D.C., ocasião em que ele recebeu os ornamentos triunfais. Vale observar, contido, que a História não registra nenhuma campanha militar nesse período, então é altamente provável que Nerva tenha sido recompensado pelo fato dele ter ajudado a debelar a chamada Conspiração Pisoniana, uma trama para assassinar Nero, liderada por Calpúrnio Pisão, que envolveu senadores e integrantes da guarda pretoriana, fartos das excentricidades e do comportamento cada vez mais tirânico daquele imperador (Nero finalmente cometeria suicídio ao ser destronado, em 68 D.C.).

NERO

Tudo indica que Nerva apesar de não ter se destacado como homem público ou na carreira militar, tinha um grande talento para atrair ou se aproximar de pessoas importantes e há vários indícios de que ele, de fato, devia ser tido como um amigo ou conselheiro confiável, tanto é que, para o ano 71 D.C., Nerva foi escolhido para ocupar o consulado junto com o imperador Vespasiano, (que, após os breves reinados de Galba, Oto e Vitélio, tornara-se, em 69 D.C., imperador romano, inaugurando a dinastia dos Flávios).

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Ser escolhido pelo imperador para ser o seu colega de consulado era uma honra excepcional, somente conferida a pessoas muito importantes e próximas do imperador (dois cônsules eram escolhidos para cada ano, e a identificação dos anos do calendário romano era feita de acordo com o nome dos cônsules que serviram naquele ano (ex: “no consulado de Vespasiano e Nerva“, era como os romanos identificavam o que hoje numeramos como o ano 69).

Em 90 D.C., Nerva,  que agora já era um senador veterano, foi escolhido novamente para ser cônsul junto com o imperador Domiciano, o filho de Vespasiano que sucedera o seu irmão mais velho, o adorado Tito, como Imperador, no ano de 81 D.C. Novamente, alguns historiadores acreditam que Nerva deve ter tido um papel importante ajudando o imperador a debelar uma séria revolta, agora capitaneada pelo governador da Germânia, o general Lúcio Antônio Saturnino e suas legiões. Nerva  pode ter atuado para assegurar o apoio do Senado, ou talvez tenha denunciado a trama, não se sabe ao certo.

Domiciano, embora não tenha sido, como governante do império, um mau imperador, adotou, ao longo do seu reinado de 15 anos, um comportamento crescentemente despótico em relação à aristocracia senatorial, a quem, de acordo com a constituição não-escrita legada pelo primeiro imperador, Augusto, cabia um papel no governo imperial, administrando diretamente algumas províncias menos importantes, e, reunida no Senado, funcionava como órgão consultivo, sendo destinatária de algumas honrarias e de uma deferência protocolar pelo imperador.

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Toda vez que um imperador não respeitava essas aparências, ligadas à fictícia permanência dos elementos de um regime republicano, que em verdade estava defunto, ele recebia a hostilidade dos senadores mais ciosos de suas prerrogativas, que, em alguns casos, desaguavam em uma conspiração, normalmente reprimida com rigor implacável. 

Os historiadores antigos que escreveram sobre o seu reinado afirmam que Domiciano teria abandonado o título de “Princeps” ( que significava o primeiro senador e cidadão do império) e, abandonando todos os escrúpulos, exigiu ser tratado como “Dominus et Deus” (Senhor e Deus).

Tendo sido Domiciano caracterizado como um governante desconfiado e paranoico, o seu reinado acarretou para a aristocracia romana uma época de perseguições, processos de traição e execuções, período em que prosperaram os informantes e os delatores.

Ademais, com o passar do tempo, Domiciano tornou-se insuportável para o seu próprio círculo íntimo, tendo ele sido finalmente assassinado em uma conspiração arquitetada por cortesãos próximos, incluindo altos funcionários que eram seus escravos libertos domésticos e até mesmo a sua própria esposa, Domícia Longina, em 96 D.C., pondo, assim, fim à dinastia dos Flávios.

3- Ascensão ao Trono

Se dermos crédito aos historiadores antigos, pela primeira vez, não havia generais em revolta dirigindo-se à Roma para assumir a púrpura imperial. E pela primeira vez, coube ao Senado assumir as rédeas da sucessão e nomear o novo imperador. E o escolhido foi o velho senador Marcus Cocceius Nerva.

Observe-se que existe praticamente um consenso sobre os motivos pelos quais Nerva foi proclamado imperador:

Em primeiro lugar, ele era um senador respeitado, de uma família ilustre o suficiente para estar à altura da dignidade máxima do Estado. Vale notar que Nerva deve ter convivido com Tibério quando criança, e o seu tio era parente afim deste imperador. E quatro gerações da família já tinham exercido o consulado.

De certa forma, a figura de Nerva fazia um elo de ligação entre o final da República, o início do Principado e o final da dinastia Flaviana. Politicamente, por sua vez, Nerva não estava ligado a nenhuma facção que fosse inaceitável para os militares.

Porém, talvez mais importante do motivo acima mencionado, era o fato de que Nerva era um homem velho, quase um ancião para os padrões antigos, tendo cerca de 65 anos de idade, e além disso, ele não gozava de boa saúde (a História conta que ele sofria de uma doença que o fazia vomitar com frequência).

E, mais importante ainda do que tudo isso, Nerva não tinha filhos…

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Portanto, Nerva era o “imperador-tampão” ideal, pois não havia risco de que se criasse uma dinastia que reivindicasse, posteriormente, seu direito ao trono, caso a situação política se invertesse e aparecesse algum general poderoso o suficiente para assumir o Império.

4-Reinado

E, de fato, o reinado de Nerva seria curto: de setembro de 96 D.C. a janeiro de 98 D.C.

Nerva, obviamente não desapontou quem esperava o fim da tirania de Domiciano: as suas primeiras medidas foram a anulação de todos os processos de traição, a devolução das propriedades confiscadas, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos. As prerrogativas do Senado voltaram a ser respeitadas.

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Nerva também reduziu alguns tributos, medida sempre bem vista em todos os tempos e lugares, reduziu gastos com espetáculos e também vendeu propriedades do Estado, promovendo um verdadeiro  “ajuste fiscal”.

No campo das obras públicas, procedeu-se à inauguração do chamado “Forum Transitorium“, que foi iniciado por Domiciano, mas concluído e inaugurado por Nerva, em 97 D.C., motivo pelo qual ficou conhecido como Fôro de Nerva. O nome Forum Transitorium, tudo indica, deve-se ao fato de que ele ficava adjunto aos Fôros de César e de Augusto, maiores e mais antigos,  podendo passar-se de um ao outro através do Fôro de Nerva. Ainda subsistem, em Roma, alguns vestígios da colunata deste fórum (vide foto abaixo).

Ironicamente, o reinado de Nerva também seria caracterizado como um “reinado transitório”…

 

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Em outubro de 97 D.C., estourou uma revolta da Guarda Pretoriano, liderada por seu comandante, Casperius Aelianus, exigindo a punição dos assassinos de Domiciano. Os pretorianos chegaram a cercar o palácio imperial, praticamente colocando o imperador na situação de refém. Acossado e humilhado, Nerva teve que ceder e dois implicados na conspiração contra Domiciano foram executados.

Sem dúvida, foi a precariedade de sua situação como governante que obrigou Nerva a adotar o general mais prestigiado do Exército Romano, o hispânico Marcus Ulpius Trajanus (o futuro imperador Trajano), comandante das legiões romanas na Germânia, como filho e sucessor. Segundo a narrativa consagrada, esta adoção representou a escolha do homem mais capaz para a sucessão imperial, fórmula sucessória que seria a marca da dinastia dos Nerva-Antoninos. Porém, nos bastidores, não sabemos se Trajano pressionou Nerva a adotá-lo ou se esta foi uma decisão voluntária do imperador.

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(Denário de Nerva, com a inscrição Concórdia no Exército, provavelmente cunhada para simbolizar o apoio do Exército Romano ao imperador, após a crise com os Pretorianos e a adoção do general Trajano como sucessor)

5- Morte

No primeiro dia do seu quarto consulado, no dia  1º de janeiro de 98 D.C. em uma audiência privada, Nerva sofreu um derrame. A sua saúde frágil certamente sucumbiu à tensão gerada pela revolta dos pretorianos.

Então, em 27 de janeiro de 98 D.C,  Nerva faleceu, aos 67 anos de idade, em sua casa situada nos Jardins de Salústio, em Roma, após uma prolongada febre, que surgiu depois do citado derrame. Trajano, o sucessor legal de Nerva, foi comunicado da morte na Germânia, mas, contrariando as expectativas, ele não se deslocou imediatamente para Roma, preferindo assegurar a lealdade das legiões do Reno antes de sua entrada triunfal na capital, o que somente ocorreria no ano seguinte. 

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CONCLUSÃO

A sucessão pacífica entre Nerva e Trajano seria o paradigma do principado até a morte do imperador Marco Aurélio, em 180 D.C,, oficialmente deixando de lado o princípio dinástico baseado no nascimento, optando-se pela escolha do homem mais capaz como sucessor. Era um ideal caro à dinastia dos Nerva-Antoninos, apesar de, na realidade, as coisas serem um pouco diferentes: os imperadores antoninos em geral tinham entre si algum laço de parentesco, sanguíneo ou por afinidade, ainda que distante.

Com efeito, os anos de governo de Nerva até Marco Aurélio seriam os mais prósperos e internamente pacíficos da História de Roma, sendo o período batizado de “Seculum Aureum” (O SÉCULO DE OURO).

FIM

CALÍGULA – ENLOUQUECIDO PELO PODER

Em 24 de janeiro de 41 D.C (segundo Suetônio), após três dias de exibições dos Jogos Palatinos em homenagem ao divino Augusto, os quais estavam sendo realizados em um teatro montado no próprio palácio imperial, o Imperador Romano Gaius Julius Caesar Germanicus Augustus Germanicus, a quem o povo chamava, carinhosamente, de Calígula, sentiu-se fatigado e foi incentivado por cortesãos a ir tomar um banho.

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Busto de Calígula, Ny Carlsberg Glyptotek. foto de Louis le Grand

Calígula , então, resolveu deixar o teatro e ir para os seus aposentos através de uma passagem subterrânea coberta (criptopórtico), que ligava as referidas áreas e que era privativa para o imperador.

Eram cerca de 15 horas da tarde e o imperador devia estar com fome, pois assistira todas as performances daquele dia sem se ausentar, exibindo-se à vista de todos, rodeado pela sua devotada guarda particular, composta por guerreiros germânicos e que ficou no teatro para vigiar os espectadores.

No caminho, Calígula parou para inspecionar alguns jovens gregos, bailarinos da chamada “dança pírrica”, que se preparavam para se apresentarem no evento, e tinham sido acomodados naquela passagem.

De repente, um velho oficial da guarda pretoriana se aproximou do Imperador…

Era o centurião Cássio Queréa, um veterano e bastante condecorado soldado que inclusive servira sob o comando do pai de Calígula, o adorado general Germânico, 20 anos antes, durante as campanhas romanas na Germânia, ocasião em que Queréa distinguira-se pelos seus atos de bravura, razão pela qual ele conseguiu ingressar e progredir na Guarda Pretoriana, a guarnição militar de Roma e do Palácio Imperial.

Porém, após Calígula ser sagrado imperador e passar a habitar no Palácio, o jovem imperador escolheu Queréa para ser a vítima frequente de suas zombarias e pilhérias:

Neste particular, conta-se que, pelo fato de Queréa ter o timbre de voz fino, Calígula, quando o Centurião estava de sentinela – ocasião em que os escalados deviam, ao iniciar o serviço, perguntar ao Imperador qual seria a senha – escolhia nomes embaraçosos, tal como “Vênus“, só para que Queréa, com seu peculiar timbre feminino, respondesse na frente dos outros, quando a senha fosse exigida.

Uma outra brincadeira que deleitava ao Imperador era quando ele estendia a sua mão para que o veterano centurião beijasse o anel, ocasião em que Calígula, avançava e retirava o punho da boca de Queréa, aludindo a um gesto pornográfico de felação, humilhando o veterano soldado perante os colegas.

Então, naquele dia 24 de janeiro, entretido com os jovens gregos no criptopórtico, Calígula mal olhou para Queréa quando este, como de costume, perguntou-lhe qual seria a senha do dia. Consta que o Imperador respondeu:

“Júpiter”.

Queréa, então, imediantemente respondeu, gritando:

“Assim seja. Toma!”

E, já com o seu gládio em punho, Queréa desfechou um tremendo golpe entre o ombro e pescoço de Calígula, o qual penetrou até o osso do peito, mas sem atravessá-lo.

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Foto do criptopórtico escavado no Palatino. Há grande probabilidade de que este seja o local onde Calígula foi assassinado –  © Photo Ministero dei Beni e delle Attività Culturali

Calígula ficou tão perplexo com o ataque que ele sequer gritou ou esboçou qualquer reação, mas apenas se virou, para receber um novo golpe potente, que, desta vez, praticamente arrancou, de uma só vez, a sua mandíbula inferior, a qual ficou pendendo presa apenas por um fiapo de músculo, deixando o seu rosto com o aspecto de uma máscara grotesca.

Somente então o Imperador começou a correr, somente para ser alcançado por outro conspirador, o tribuno Cornélio Sabino, que lhe acertou um golpe de espada no joelho, levando-o ao chão. A partir daí, Queréa, Sabino, o soldado Áquila e provavelmente outros conspiradores começaram a golpear Calígula, já moribundo, inclusive nos genitais. Assim, ele levou 30 golpes, até morrer. Queréa e os cúmplices conseguiram fugir do Palácio, ironicamente, atravessando a casa de Germânico, o finado pai de Calígula, que tinha sido anexada ao Palácio.

O destacamento de guarda-costas pessoais de Calígula, que, como dito, era composto de bárbaros germânicos, quando percebeu que o imperador tinha sido atacado, tomou-se de um frenesi de vingança e começou a matar todos que viam pela frente no Palácio, inclusive um Senador. Eles logo cercaram o teatro e fizeram menção de massacrar todos os espectadores, até alguém informar que o Imperador estava morto, ocasião os seus líderes devem ter pensado que não havia mais nada o que fazer.

Não satisfeito, Queréa mandou um subordinado, chamado Lupus, de volta ao Palácio, para matar Cesônia e a pequena filha de Calígula, que era ainda apenas um bebê. Assim, Cesônia recebeu, resignadamente, um golpe no pescoço. Já a menina teve a cabeça esmagada contra uma parede.

É difícil achar a explicação para a brutal execução de ambos: Obviamente, não poderia haver pretensão alguma de se ocultar a autoria do assassinato do imperador, cometido à luz do dia e com testemunhas. E não havia a menor chance de Cesônia ou a filha assumirem o governo. Eu posso cogitar de dois motivos: Cesônia saberia de algo que poderia arruinar Queréa, ou, talvez até mesmo ela soubesse o nome de outros conspiradores mais ilustres; como também é possível que a esposa do finado Imperador participasse ativamente das humilhações a que Caligula submetia Queréa.

Muitos, porém, acreditam que Queréa pode ter sido cooptado por senadores que queriam restaurar a República, e por isso, visavam eliminar a descendência de Calígula, para que não houvesse sucessores, porém, para que tal propósito fosse bem sucedido, eles teriam que eliminar também outros integrantes da dinastia Júlio-Cláudia, como o jovem Nero, entre outros…

Com efeito, logo após o assassinato, enquanto o Palácio era vasculhado, um pretoriano chamado Gratus encontrou Cláudio, que era tio de Calígula e irmão do pai dele, Germânico, escondido apavorado atrás de uma cortina do Palácio. Uma facção dos pretorianos saudou Cláudio, que até então era tido como imbecil, como o novo imperador, e levou-o para o quartel da Guarda. Lá, ele foi reconhecido e aclamado como o novo Príncipe pelo Senado.

Um Novo Imperador 41 AD, tela de Sir Lawrence Alma-Tadema (1871), foto: Lawrence Alma-Tadema, Public domain, via Wikimedia Commons

Nascimento e caminho para o trono

Nascido em  31 de Agosto do ano 12 D.C., em Anzio, Itália, Gaius Julius Caesar Germanicus (Caio Júlio César Germânico), que se tornaria popularmente conhecido como o imperador romano Calígula, era filho de Germanicus Julius Caesar, cognominado “Germânico” e de Vipsânia Agripina (mais conhecida como Agripina, a “Velha”, para distingui-la de sua filha, do mesmo nome, Agripina, a “Jovem”, mãe do futuro imperador Nero).

Portanto, por parte de pai, Calígula era sobrinho-bisneto do Imperador Augusto, pois a sua bisavó paterna era Otávia, a irmã do primeiro imperador que se casou com o triúnviro Marco Antônio, em uma união da qual nasceu Antônia, a Jovem, de cujo casamento com Nero Cláudio Druso, por sua vez, nasceu Germânico. E Calígula também era bisneto de Lívia Drusila, a influente esposa de Augusto, avó de seu pai, pois Nero Cláudio Druso era o filho mais novo do primeiro casamento dela com Tibério Cláudio Nero, sendo que o caçula desta união foi o imperador Tibério, irmão de Druso, tendo o primeiro sucedido Augusto como seu herdeiro e filho adotivo, sendo aquele também, portanto, tio-avô de Calígula.

Já pela linha materna, Calígula era bisneto de Augusto, pois sua mãe, Agripina, era filha de Marco Vipsânio Agripa, o grande amigo e braço-direito do primeiro imperador, e de Júlia, “a Velha”, a única filha e descendente de Augusto.

Tal “pedigree” colocava Germânico, o pai de Calígula, como um não-desprezível pretendente à sucessão do próprio Augusto. Aliás, vale observar que todos herdeiros-presuntivos inicialmente favorecidos por Augusto eram seus parentes, tais como seu sobrinho, Marcelo, e seus netos Caio César e Lúcio César. Todos eles, porém, morreram antes do velho imperador, que, muito em função das maquinações de sua esposa Lívia, acabou adotando e nomeando como herdeiro o filho natural desta, o seu enteado Tibério.

Augusto, porém, certamente visando garantir alguma continuidade sanguínea entre si e os seus sucessores, ao adotar Tibério, exigiu que este, por sua vez, da mesma forma adotasse Germânico, como herdeiro.

Ocorre que o pai de Calígula tornou-se um grande general, muito querido pelo Exército e pelo povo. Ele se destacou em campanhas na Panônia e na Dalmácia. Aliás, Germânico e Agripina eram uma espécie de família romana modelo: Eles tiveram nove filhos juntos, seis dos quais atingiram a idade adulta, três meninos, sendo Calígula o mais jovem deles, e três meninas, sendo que a mais velha, Agripina, “a Jovem”, seria mãe do futuro imperador Nero.

Quando Augusto morreu, em 14 D.C., sendo sucedido por Tibério, o sobrinho deste, Germânico, recebeu do novo imperador um comando na Germânia, onde ele comandou uma campanha brilhante na qual conseguiu finalmente, em 16 D.C., vingar a grande derrota sofrida por Varo, sete anos antes (foi por esse motivo que ele recebeu o seu apelido, pois dar ao general um cognome derivado dos inimigos vencidos era uma tradicional honraria romana).

Foi durante esse período que Germânico demonstrou que sabia utilizar sua família como uma ferramenta de propaganda pessoal. Ele residia no acampamento militar, em território inimigo, com toda a sua família e costumava vestir o seu filho mais novo Caio, que tinha entre 3 e 4 anos, com um uniforme militar em miniatura.

E entre as peças de vestuário militar que o pequeno Caio usava, estava uma pequena sandália ou bota militar, “caligae“, em latim. O diminutivo de “caligae” é “caligula” e o menino acabou recebendo da soldadesca esse apelido, que pode ser traduzido como “Botinha” (ou “Sandalinha“), um apelido que “pegou” (e consta que o mesmo era abominado por Calígula, depois de se tornar adulto).

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Inclusive, as fontes narram que em certa ocasião, quando uma das legiões comandadas por Germânico se revoltou, a mera sugestão de que o comandante, temendo pela segurança de sua família, estava mandando o adorado “Botinha” para um lugar seguro, longe dos soldados, bastou para acabar espontaneamente com o motim.

Infelizmente, a imensa popularidade de Germânico seria, para muitos, a provável causa de sua morte…

Consta que Lívia, a imperatriz-mãe viúva, muito provavelmente, e não para o desagrado de Tibério, urdiu uma série de intrigas visando afastar Germânico da linha sucessória, a quem percebia como uma ameaça a seu filho. De fato, as fontes do período, como Tácito, apontam Lívia e Tibério como os principais suspeitos pela morte de Germânico, em 19 D.C., acometido de uma misteriosa doença que se assemelhava a um caso de envenenamento, ainda que não haja provas conclusivas disso.

A postura questionadora da mãe de Calígula e viúva de Germânico, Agripina, em relação à morte de seu marido, azedou as relações dela com Tibério e deu início a uma série de desconfiança e intriga entre ambos. Consta que, certa vez, Tibério, notando uma cara de desagrado em Agripina, teria recitado, em grego, para ela o seguinte verso de uma então famosa obra clássica:

Porque não és rainha, eu te fiz algum mal?

Assim, em virtude dessa animosidade, e dos efeitos que isso causou na saúde da sua mãe, Calígula acabou indo morar sua bisavó, Lívia, a principal suspeita pelo assassinato de seu pai.

Em 29 D.C, no mesmo ano em que Lívia morreu, Agripina foi presa e exilada para a remota ilha de Pandatária, acusada de traição junto com seus outros filhos Nero e Druso.

Após sofrer vários maus-tratos e provações, Agripina morreu na ilha, em 33 D.C. Antes disso, os irmãos de Calígula também morreriam em função das acusações: Nero (não confundir com o imperador de mesmo nome) morreu de inanição, enquanto preso e Druso se suicidou. Em todos esses fatos esteve implicado o Prefeito Pretoriano Lúcio Élio Sejano, para alguns como instigador, ou ao menos, como o executor da vontade de Tibério.

Então, em 31 D.C, Calígula, que estava morando junto com sua avó Antônia, foi residir com Tibério, que, deixando os assuntos da administração nas mãos de Sejano, havia abandonado Roma e se mudado para Capri, desde o ano de 26 D.C.

Não temos dúvidas de que a situação deve ter sido aterrorizante para Calígula, pois após morar com Lívia, a suposta algoz de seu pai, agora ele iria viver sob a tutela do filho desta, o imperador responsável pelo sofrimento e morte de sua mãe e de seus irmãos. O que ele podia esperar para si senão o pior?

A julgar pelo relato de Suetônio, em Capri, Calígula habilmente soube fingir ser inofensivo e servil a Tibério. Se os escandalosos relatos do citado historiador forem verdadeiros, na paradisíaca ilha,  Calígula deve ter sofrido a influência maléfica dos inúmeros atos de perversão sexual e crueldade relatados na “Vida de Tibério“, o livro integrante da coletânea de biografias conhecida como “Os doze Césares“, que teriam ocorrido na espetacular Villa Jovis de Tibério, situada em Capri.

No entanto, em 33 D.C, Tibério deu a Calígula seu primeiro cargo público, o de Questor Honorário, e, dois anos mais tarde, Calígula foi nomeado herdeiro do Imperador, juntamente com seu primo, e neto de Tibério, o menino Tibério Gemellus.

Quando Tibério morreu, em 16 de março de 37 D.C, com a avançada idade de 78 anos, Calígula tornou-se o terceiro imperador romano. Suetônio levanta suspeitas sobre a culpa de Calígula na morte do tio, mas o mais provável é que Tibério tenha morrido de velhice.

A morte de Tibério foi recebida com júbilo pelo povo e pelo Senado. De fato, a austeridade de Tibério, que havia acumulado um grande superávit no Tesouro, muito em função dele ser avesso aos gastos públicos, especialmente para com os jogos e corridas tão amados pela plebe, acabou tornando-o consideravelmente impopular, fato que foi reforçado pela sua responsabilização, real ou presumida, pelas mortes dos queridos Germânico e Agripina.

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Assim, a aprovação entusiasmada do Senado e do Povo de Roma acompanhou a aclamação de Calígula como imperador: Além de suceder um governante antipático, ele era o belo e jovem filho de um herói popular e membro de uma família muito célebre e muito estimada. Para comparar, o clima deve ter sido parecido com o que o Reino Unido atual experimentará quando o príncipe William tornar-se rei da Inglaterra, sucedendo ao pai Charles.

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Reprodução de um busto original  romano de Calígula, com cores restauradas, obtidas através de processo científico

Parece que, em seus primeiros meses, o reinado de Calígula parecia promissor (aliás, a crônica do seu início pode ser considerada a narrativa-padrão do reinado de todos os “maus” imperadores romanos, tais como Nero, Domiciano e Cômodo). Ele entrou em Roma em 28 de março de 37 D.C, 12 dias após a morte de Tibério, seguindo-se cerca de três meses de verdadeira adoração, em grande parte espontânea, por parte do povo. De fato, inicialmente, Calígula correspondeu mesmo aos anseios dos súditos:

De fato, o novo imperador mandou pagar todos os legados previstos no testamento de Tibério, tanto individuais como coletivos e, mais importante, mandou destruir todos os documentos que estavam nos arquivos imperiais para dar subsídios aos numerosos processos de crime de alta-traição ou de lesa-majestade, que haviam sido tão frequentes no reinado do seu antecessor.

Calígula também inaugurou o costume, que depois se mostraria funesto, de dar um grande donativo à Guarda Pretoriana em comemoração à ascensão de um novo imperador ao trono (prática que estimularia futuros motins dos Guardas visando destronar o monarca reinante, para assim obter recompensas do substituto).

Passados poucos meses, porém, Calígula não titubeou em se livrar de seu primo Gemellus, o neto de Tibério que, com ele, havia recebido em testamento o Império. Na verdade, um dos primeiros atos de Calígula após a sua aclamação oficial havia sido conseguir do Senado a anulação do testamento de Tibério no que se refere à posição de co-herdeiro de Gemellus. Porém, antes que o ano terminasse, Gemellus seria executado sumariamente à mando de Calígula.

As fontes narram que, antes disso, Calígula, em outubro de 37 D.C, ficou seriamente doente, e que foi somente após recuperar-se desta enfermidade que ele começou a praticar os reiterados atos de tirania, crueldade, devassidão e loucura pelos quais tornaria célebre (Suetônio, contudo, aponta que Calígula já demonstrava sua má índole quando adolescente). Infelizmente, os textos antigos não fornecem detalhes precisos sobre a misteriosa doença dele que possam nos dar alguma pista da sua real natureza –  isto é, se tratava-se uma doença infecciosa, congênita, física ou mental.

Gastos exorbitantes e deterioração na situação econômica

Um fato que parece incontestável acerca do reinado de Calígula é a rapidez com que a situação financeira do Império se deteriorou. Com efeito, são várias as afirmações nas fontes de que Tibério havia deixado um gigantesco superávit no Tesouro do Estado, apontando-se até a soma precisa de 2,7 bilhões de sestércios, e, portanto, parece certo que o problema fiscal foi causado pela política (ou falta de) determinada por Calígula. A desorganização econômica acarretou, ainda, episódios, relatados pelas fontes, da ocorrência de fome entre a população, algo que não ocorria há tempos.

Com feito, ,as fontes mencionam vários gastos desmedidos ordenados por Calígula:

Relata-se, por exemplo, que ele ordenou a construção de uma ponte flutuante de mais de 4 km entre Baiae e Puteoli, apenas para contrariar uma profecia. Uma outra despesa enorme descrita por Suetônio foi a construção de dois enormes navios, para serem usados como templo e palácio. Esses barcos, que tinham mais de 70 metros de comprimento, foram recuperados no Lago Nemi, durante o governo de Mussolini na Itália, e colocados em um museu especialmente construído. Infelizmente, durante a 2ª Guerra, os barcos foram destruídos. Recentemente, vale citar, foi restituído a Itália um pedaço do magnífico pavimento de mosaico da referida embarcação, retirado em data incerta do fundo do Lago, e que foi parar em um apartamento em Manhattan, Nova York, EUA, transformado em uma mesa de centro! (vide https://olhardigital.com.br/2021/12/06/ciencia-e-espaco/como-um-mosaico-do-lendario-imperador-romano-caligula-virou-tampo-de-mesa-em-ny/

De qualquer modo, a Arqueologia confirmou, mais uma vez, os relatos dos historiadores antigos.

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(Foto da escavação de um dos navios de Caligula, no Lago Nemi)

Política Externa

Não obstante, no front externo, Calígula reivindicou a realização de campanhas na Britânia e na Germânia, mas estas teriam, sido, na verdade, na opinião dos historiadores, apenas exercícios ou manobras militares, ou pior, segundo as fontes romanas (cf. Suetônio), uma encenação ridícula. Mas talvez seja provável que essas opiniões tenham exageradas, uma vez que, recentemente, descobriu-se, nas escavações de um forte romano na Holanda, chamado de Velsen-2, indícios de que Calígula pode ter estado realmente nesta região durante o seu reinado, e de que a referida fortificação foi efetivamente construída para viabilizar a invasão da Britânia e conter as tribos germânicas da outra margem do Reno.

Ilustração do Forte Romano em Velsen, extraída da matéria do The Guardian, conforme o link no parágrafo seguinte. Foto de Graham Sumner

A descoberta do forte cf. em https://www.theguardian.com/world/2021/dec/26/roman-fort-built-by-caligula-discovered-velsen-near-amsterdam.

Já a decisão de anexar a Mauritânia, um reino-cliente de Roma, foi tomada durante o reinado de Calígula, mas há dúvidas se a execução desta decisão ocorreu quando ele ainda estava vivo ou se foi deixada para o sucessor, Cláudio, que, assim, teria, em seu reinado, na verdade, continuado iniciativas tomadas pelo antecessor.

Desmandos, perversões e crueldades

Vamos aqui deixar a narrativa detalhada dos inúmeros assassinatos, atos de perversão sexual e gestos tresloucados de Calígula para quem se interessar em ler Suetônio. Entre os últimos, podemos citar o desejo manifesto dele nomear seu cavalo Incitatus para o Senado Romano…

Aliás, o filme Calígula, de Bob Guccione, dono da Revista Penthouse, foi muito criticado por ser porno-erótico, mas a película não deixa de ser bem fiel ao relato de Suetônio (com a interpretação magistral de Malcolm Mcdowell no papel do imperador)…

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De qualquer forma, a personalidade cada vez mais instável de Calígula inviabilizou politicamente o seu governo. As fontes asseguram que ele efetivamente pensava ser um deus-vivo e exigia o culto que lhe achava devido. O judeu alexandrino Filão deixou um precioso relato da embaixada que ele fez à Roma, onde encontrou pessoalmente Calígula, com o objetivo de tentar demovê-lo do propósito de instalar uma estátua de si mesmo no interior do Templo de Jerusalém. Filão descreve em seu texto que percebeu que o imperador ficava muito agitado em alguns momentos, e ele saiu do encontro com a impressão de que Calígula acreditava que realmente era um ser divino.

Calígula era louco?

Entre os autores antigos há certo consenso de que Calígula era louco, mas, hoje em dia, muitos autores modernos lançam suspeitas sobre esses relatos, atribuindo o tom negativo a uma certa antipatia e animosidade política dos escritores romanos, todos integrantes da classe senatorial, que se julgava preterida e perseguida pelos Césares.

Porém, eu acredito que Calígula era insano mesmo, embora não possamos identificar com precisão que tipo de distúrbio psicológico ele sofria. É quase certo que as provações pelas quais passou na infância e adolescência, como, por exemplo, ter visto a mãe e os irmãos morrerem assassinados e o medo incessante de ser executado por Tibério ou por Sejano, tudo isto deve ter deixado marcas profundas em sua mente e pode ter gerado transtornos de personalidade. Por exemplo, Suetônio narra que Calígula conversava com as estátuas dos deuses, não conseguia dormir à noite e vagava como uma alma penada pelo Palácio. É bem possível, portanto, que ele sofresse de esquizofrenia paranóide.

Dessa forma, ao contrário de outros imperadores que se destacaram pelo comportamento tirânico e bizarro, como Nero, que reinou 14 anos, Domiciano, que reinou 15 anos, e Cômodo, que reinou 13 anos, Calígula, apesar do prestígio quase sacrossanto de sua linhagem entre o Povo e o Exército, foi assassinado antes de completar o quarto ano de seu reinado!

A conspiração

Quando Calígula manifestou a intenção de se mudar para Alexandria, onde poderia ser adorado como Deus, muitos romanos influentes perceberam que havia chegado a hora de se livrar do lunático imperador…

A elite política romana estava farta das insanidades de Calígula. Talvez ela até aguentasse as excentricidades e bizarrices se tais comportamentos não comprometessem a deferência e os privilégios aos quais os senadores se julgavam merecedores, mas esse definitivamente não era o caso, já que Calígula não titubeava em tratar os senadores como súditos e submetê-los a inúmeras humilhações.

Assim, somos da opinião de que quando os senadores perceberam que Calígula também não era benquisto por um bom número de seus próprios guarda-costas, a conspiração para se livrarem do perturbado imperador ganhou corpo, e foi posta em prática no dia 24 de janeiro de 41 D.C.,  por elementos da Guarda Pretoriana, como relatamos no início do nosso texto.

Contudo, se os conspiradores alguma vez de fato tiveram alguma esperança de restaurar a República, a realidade tratou de sepultar imediatamente suas aspirações, pois a própria Guarda apresentou ao Senado, o tio de Calígula, Cláudio, como sucessor, demonstrando que, após mais de setenta anos de governo de Augusto e de seus sucessores Júlio-Cláudios haviam colocado a ideia de um regime de uma República governada pelo Senado definitivamente nos livros de História.

FIM

TEODÓSIO – A IGREJA NO PODER

Em 11 de janeiro de 346 D.C, em Cauca (Coca), a 50 km da atual cidade de Segóvia, na província romana da Hispania Gallaecia, nasceu Flavius Theodosius (o futuro imperador romano Teodósio), filho de seu pai homônimo, Flavius Theodosius (Conde Teodósio”, e de Flavia Thermantia (Termântia).

O pai de Teodósio, chamado de “Teodósio, o Velho“, pelos historiadores, para distingui-lo do filho que viria a se tornar imperador, foi um renomado general, também nascido na Hispânia, que teve uma brilhante carreira durante o reinado do imperador Valentiniano I, sendo, em 368 D.C, designado para ocupar o cargo de Conde (Comes) da Britânia, onde, acompanhado do filho, derrotou uma insurreição promovida por tropas romanas amotinadas aliadas a tribos bárbaras.

Posteriormente, Teodósio, “o Velho” foi promovido ao importantíssimo posto de Comandante-em-chefe de Cavalaria do Exército Romano (Magister Equitum) e, novamente acompanhado do filho Teodósio, teve decisiva atuação na campanha contra os bárbaros Alamanos.

Em 373 D.C, o jovem Teodósio já tinha prestígio próprio bastante para ser apontado por Valentiniano I como governador da Moésia superior e Duque (Dux, ou seja, comandante militar daquela província), onde combateu com sucesso os Sármatas.

Enquanto isso, Teodósio, “o Velho” foi enviado à província da Mauritânia, na África, para combater a rebelião de Firmus Mouro, um nobre berbere que ocupava um comando militar no exército romano naquela província. Após uma duríssima campanha, o pai de Teodósio conseguiu derrotar a insurreição e Firmus cometeu suicídio.

Em 375 D.C, Valentiniano I, o último imperador romano que efetivamente comandou um exército poderoso, faleceu após mais um dos seus temidos ataques de fúria, que desta última vez foi causada pelo comportamento insolente de embaixadores da tribo dos Quados, explosão que lhe causou um derrame em plena audiência.

Não se sabe exatamente o motivo, mas, logo após a morte de Valentiniano I, o pai de Teodósio foi preso, quando ainda estava em Cartago, e ali mesmo executado. Muito provavelmente essa execução estava ligada à crise causada pela inesperada sucessão do imperador falecido, quando alguns generais do exército romano, notadamente o general de origem franca Merobaudes aclamaram como imperador Valentiniano II, com apenas 4 anos de idade, forçando Graciano, o filho mais velho de Valentiniano I, então com 16 anos de idade, a aceitar o irmão como co-imperador do Ocidente (Assim, inaugurando uma tendência que dominaria as últimas décadas do império romano: a escolha de imperadores fantoches por comandantes militares de origem bárbara).

Essa solução acabou sendo aceita também por Valente, irmão de Valentiniano I, que, desde 364 D.C., reinava sobre a metade oriental do Império, em Constantinopla. Desse modo, é bem possível que o Conde Teodósio tenha sido executado por ter sido contra aquela manobra, ou, ainda, por ser percebido como um obstáculo ao projeto de poder de Merobaudes.

Teodósio, por sua vez, no mesmo ano em que ocorreu a morte do pai, foi destituído de seu comando e voltou para as terras de sua família, na atual Galícia, dedicando-se aos seus assuntos privados. Discute-se se esse “exílio” de Teodósio foi devido à desgraça do pai ou se foi por causa da derrota de duas legiões que ele comandava para os Sármatas, em 374 D.C. Nesse caso, isso teria sido uma punição infligida ainda em vida por Valentiniano I, que, notoriamente, não tolerava as derrotas de seus generais,  a quem ele frequentemente responsabilizava pelos erros de seus subordinados.

Todavia, em 378 D.C, uma das maiores catástrofes militares sofridas pelos romanos, e talvez a que tenha acarretado as piores consequências, mudaria para sempre a sorte de Teodósio.

Cerca de 200 mil Godos, após cruzarem a fronteira romana do rio Danúbio, procurando asilo motivado pela sucessão de migrações causadas pelo avanço das tribos hunas em direção ao Ocidente, acabaram se revoltando, invadindo a província romana da Trácia.. O efetivo militar dos Godos é calculado entre 20 e 30 mil homens.

Ao saber da invasão, Valente, o Imperador Romano do Oriente, comandando todo o seu exército e sem esperar pelo auxílio das tropas de seu sobrinho Graciano, Império Romano do Ocidente, resolve atacar sozinho os bárbaros, que, liderados pelo Chefe Fritigern, se encontravam entrincheirados próximos à cidade de Adrianópolis, em uma boa posição defensiva, protegidos por um círculo de carroções parecidos com os dos pioneiros do Velho Oeste americano (formação conhecida como “laager“), sem se dar conta de que a cavalaria Goda estava ao largo. Assim, deu-se o desfecho trágico e antes que a noite do dia 09 de agosto de 378 D.C. terminasse, dois terços do exército romano, cerca de 40 mil soldados, morreriam na chamada Batalha de Adrianópolis, incluindo o imperador Valente, cujo corpo jamais foi encontrado em meio à montanha de cadáveres, vários generais e centenas de oficiais.

(Foto 1: Moeda Solidus de Valente; Foto 2: Círculo defensivo de carroções)

A morte de Valente automaticamente tornaria seu sobrinho Graciano, o Imperador Romano do Ocidente (lembrando que a Itália, da África e de parte da Ilíria, eram formalmente governadas pelo seu irmão Valentiniano II, de apenas 7 anos de idade) o governante também do Oriente.

Com os Godos à vontade para se locomoverem nos Bálcãs ( o que ameaçava a própria Itália), sem opções militares, tendo em vista que mal acabara de concluir uma campanha contra os Alamanos, poucos meses antes do desastre de Adrianópolis, e não havendo mais generais experientes no Oriente, Graciano resolve chamar Teodósio de seu retiro na Espanha e, em raro gesto de desprendimento somado à necessidade, o nomeia Augusto, em 19 de janeiro de 379 D.C, entregando-lhe o trono da metade oriental do Império Romano.

Obviamente que o primeiro problema que o novo Imperador Romano do Oriente teve que enfrentar foi a ameça dos Godos, que pilhavam à vontade a Trácia e a Ilíria, somente sendo incapazes de sitiar com sucesso cidades protegidas por boas muralhas, por falta do “hardware” e do “know-how” necessários para esta difícil tarefa.

Para isso, ele precisava de tropas e ele tentou formar um exército, convocando veteranos e até trazendo unidades do Egito. Segundo o historiador pagão Zózimo, Teodósio também recrutou amplamente guerreiros bárbaros, observando que as tropas do Egito acabaram tendo a disciplna severamente enfraquecida pelo convívio com os indisciplinados germanos.

Neste ponto, deve ser observado que o Exército Romano do Oriente sofrera duas grandes derrotas no espaço de quinze anos. Em 363 D.C, a invasão da Pérsia pelo Imperador Juliano resultara em uma grave derrota, com o imperador sendo ferido no campo de batalha e morrendo em sua tenda. E agora, pouco antes da ascensão de Teodósio, dois terços do exécito tinham sido aniquilados em Adrianopla.

O problema do recrutamento sempre foi recorrente durante o Império Romano. A Itália, esteio principal do Exército durante a República, ao longo do Império cessou de contar como fornecedora de tropas. Seus cidadãos tinham ficado durante muito tempo praticamente isentos do serviço militar. De fato, depois que O primeiro imperador Augusto estabelecera as 28 legiões em quartéis na fronteira, os legionários passaram a ser recrutados entre colonos de cidadania romana estabelecidos nos locais onde as legiões estavam baseadas. Já os auxiliares eram recrutados entre os povos vizinhos que tinham vocação guerreira e adquiriam a cidadania romana após 20 anos de serviço. A vida de soldado era dura e não era para qualquer um. Os citadinos amolecidos pelos confortos da vida urbana dificilmente seriam aptos para uma vida de longas marchas em terreno difícil, dormir em barracas precárias em lugares inóspitos e combates cada vez mais sangrentos.

O fato é que os romanos, ainda durante a República, recrutaram contingentes de origem estrangeira para o seu exército. Unidades de cavalaria germânica, por exemplo, foram empregadas por César e Augusto. Porém, o normal era empregar as unidades estrangeiras subordinadas a uma legião, sob o comando de um general romano e submetidas à disciplina militar romana.

As evidências apontam que, a partir do imperador Constantino, uma boa parte dos soldados do Exército Romano era de origem germânica, sobretudo no Ocidente. A “germanização” do Exército é um fato atestado. O próprio Constantino foi aclamado imperador pelas suas tropas e erguido em cima de um escudo, um tradicional costume germânico de saudar um novo chefe. No século IV D.C, registrou-se que os soldados romanos utilizavam o tradicional grito de batalha dos bárbaros, o “baritus”. E o nome de vários generais e soldados mencionados nos textos denota clara origem germânica.

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(soldados romanos do início do século IV D.C)

A partir da metade do século III, Roma passou a enfrentar o desafio estratégico de lutar em dois fronts: 1) A constante investida dos povos germânicos situados na fronteira do Reno e Danúbio começou a aumentar devido a pressão gerada pelas migrações de povos vindos da Escandinávia e do Leste Europeu, deslocadas pelo avanço dos Hunos para o Ocidente a partir da fronteira com a China; 2) A subida ao poder dos nacionalistas Sassânidas na Pérsia que adotaram uma política de confronto militar para conter a influência romana na Armênia e no Oriente Médio, resultando em um estado de guerra constante do século III ao século VII.

Feita essa explanação da situação estratégica de Roma e da situação do Exército Romano antes da derrota de Adrianópolis, é sintomático que uma das medidas tomadas por Teodósio, a qual demonstra a magnitude que o problema do recrutamento de tropas representava para o Império Romano naqueles tempos e o estado desesperador do setor militar romano, tenha sido reformar um Decreto de Valentiniano I determinando que aqueles que tentassem fugir do recrutamento cortando os próprios polegares seriam queimados vivos – Teodósio mudou o Decreto para prever que para cada recruta que se apresentasse sem um dos polegares, outro recruta, da mesma circunscrição, deveria ser apresentado, ou seja, o recruta amputado teria que servir e o seu vilarejo ainda teria que mandar outro!

Não obstante esse quadro, o historiador Zózimo narra que Teodósio começou o seu reino demonstrando indolência e luxo, aumentando o número de funcionários-eunucos e aumentando os gastos com a manutenção da corte. Parece que o julgamento do cristão devoto Teodósio pelo pagão Zózimo seria de uma suspeita severidade, mas certamente a gravidade dos tempos pedia um líder da estatura de um Cipiáo , de um César ou Diocleciano, este último um reformador implacável que enfrentou uma situação parecida com a de Teodósio.

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(Prato de prata, dito Missorium de Teodósio, que está representado no centro.)

De qualquer forma, parece que a tentativa de Teodósio de reforçar o exército romano oriental não teve sucesso. As fontes não são claras, mas tudo indica que, no verão de 380 D.C, o novo exército de Teodósio foi, mais uma vez, derrotado pelos Godos, na Macedônia e na Tessália, ainda que não de forma catastrófica. Teodósio, então, teve que deixar a cidade de Tessalônica, que havia sido o seu quartel-general durante os dois primeiros anos à testa do governo do Oriente e se refugiar na inexpugnável Constantinopla.

A tarefa de conter os Godos nos Bálcãs ficou a cargo do Imperador do Ocidente, Graciano, que enviou para lá um exército comandado pelos generais Bauto e Arbogaste, ambos militares bárbaros de origem franca que serviam o Império.

Os Godos se dividiram em vários bandos. Um dos principais grupos, chamado de Ostrogodos, rumou para o oeste e invadiu a Panônia, No outro grupo importante, conhecido como Visigodos, estourou uma guerra entre o chefe Fritigern e o antigo rei, Atanarico, que foi se abrigar em Constantinopla, lugar onde, em 381 D.C., ele foi recebido com surpreendentes honras por Teodósio.

Em 3 de outubro de 382 D.C, Teodósio firmaria um polêmico Tratado de Paz com os Godos, um inédito acordo que teria consequências duradouras: os Visigodos seriam recebidos dentro do Império Romano como aliados (foederati), recebendo a autorização para se instalarem na Moésia, diocese setentrional da Trácia, continuando a serem governados pelos seus chefes e somente com a obrigação de lutarem quando convocados pelo Imperador, porém como um exército independente. Os visigodos também receberiam tributos em forma de provisões a serem pagas pelos súditos romanos da Mésia e seus chefes um pagamento anual em ouro.

Talvez tenha parecido, a muitos contemporâneos, que uma composição com os Godos era uma medida razoável. Um orador do período, Themistius, louvando Teodósio, até escreveu, esperançosa ou aduladoramente, que os Godos trocariam a espada pelo arado e, romanizados, revitalizariam aquela província. A posteridade, porém, reconheceria que aquele ato de Teodósio foi desastroso: O assentamento permanente dos visigodos dentro do Império seria um fator decisivo de enfraquecimento romano. Com efeito, em 410 D.C, o Império seria abalado pelo saque de Roma pelos visigodos, e eles ainda pilhariam a Gália, até se instalarem na Hispânia, onde criariam um reino independente que duraria até a invasão árabe no início do século VIII D.C.

Enquanto isso, em 25 de agosto de 383 D.C, morreu Graciano, o colega de Teodósio no Ocidente, assassinado em Lyon, para onde teve que fugir após não conseguir debelar a revolta do general da Britânia, Magnus Maximus, um militar também de origem espanhola que havia servido como subordinado do Conde Teodósio, e invadira a Gália para depor o imperador, filho do primeiro, supostamente pelo fato das tropas estarem insatisfeitas com a preferência que Graciano dava às tropas compostas por bárbaros alanos.

Valentiniano II, o jovem irmão de Graciano, que, por influência dos generais francos havia sido reconhecido por ele como co-imperador seria o próximo alvo de Maximus. Teodósio então, pressionado pelas circunstâncias, acabou concordando em reconhecer Maximus como novo imperador das províncias governadas por Graciano, sob o compromisso de que Maximus reconheceria Valentiniano II como co-imperador no Ocidente.

Esse arranjo durou até 387 D.C, quando Maximus resolveu invadir a Itália para derrubar Valentiniano II e assumir o controle total do Ocidente. Um dos motivos principais era a crescente influência de Teodósio nos assuntos da corte de Valentiniano II. Assim, em um momento em que a ameaça externa era enorme, mais uma vez os maltratados exércitos romanos se enfrentariam em uma nova guerra civil, pois Teodósio resolveu intervir e, após juntar suas forças com as de Valentiniano II, que recuara para Tessalônica, valendo-se de seus aliados visigodos e de mercenários hunos, conseguiu derrotar Maximus na Batalha de Siscia, no rio Sava, na atual Croácia, em 388. Maximus conseguiu fugir, mas foi capturado e executado próximo a Aquiléia, em 28 de agosto de 388 D.C.

Na prática, mas ainda não de direito, Teodósio tornou-se o virtual imperador de todo o Império Romano. Ele ficaria ainda três anos na Itália, voltando para Constantinopla em 391 D.C. Oficialmente, porém, o novo imperador único do Ocidente passara a ser Valentiniano II. Contudo, o real poder militar estava nas mãos do general de origem franca Arbogaste, na qualidade de Comandante-em-chefe da Infantaria (Magister Peditum Praesentalis).

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(base do obelisco de Teodósio, no Hipódromo de Constantinopla, mostrando o Imperador presidindo uma corrida)

Em 392 D.C, após um desentendimento público com Arbogaste, Valentiniano II foi encontrado enforcado em seus aposentos. As suspeitas, obviamente, recaíram sobre o general franco. A esposa de Teodósio, a imperatriz Gala, irmã do falecido, não engoliu a tese de suicídio e instou que o marido investigasse a morte do irmão. Porém, Arbogaste não perdeu tempo e, incapaz de assumir ele mesmo o trono, devido a sua origem bárbara, aclamou, em 22 de agosto de 392 D.C, o inesperado Eugênio, que era apenas um professor de retórica, e ministro de Valentiniano II, como novo Imperador Romano do Ocidente.

Teodósio recusou-se a reconhecer Eugênio e preparou-se para invadir a Itália. Durante os preparativos, Teodósio nomeou, em janeiro de 393 D.C, o seu filho de 4 anos, Honório, como Augusto do Ocidente, o que inviabilizou qualquer tentativa de composição com Eugênio. Além disso, Eugênio, embora aparentemente fosse cristão, tomou medidas simpáticas aos pagãos, especialmente para o ainda muito influente grupo de senadores pagãos de Roma, inclusive financiando a restauração de templos pagãos na Cidade. Ele provavelmente tinha, portanto, o suporte de uma boa parte da aristocracia romana tradicional e, indiretamente, de todos os pagãos ainda influentes…

Em 394 D.C, Teodósio estava pronto e marchou em direção a Itália, com seu exército. A longa preparação era necessária pois, nominalmente, o exército do Ocidente era considerado maior e melhor. Ele ainda mantinha um núcleo de tropas tradicionalmente romanas, no que se refere à disciplina e táticas e não havia sofrido tantas baixas como o exército oriental, derrotado fragorosamente em 363 e 378 D.C .

Os oponentes se encontraram no rio Frigidus, no território da atual Eslovênia, em 5 de setembro de 394 D.C. Consta que imediatamente, dispensando qualquer reconhecimento ou preparação, Teodósio mandou os seus 20 mil Visigodos comandados pelo rei Alarico (que mais tarde saquearia Roma) atacarem uma posição bem defendida pelas tropas de Eugênio. Após duríssimos combates, os Visigodos foram repelidos, perdendo 10 mil homens. Muitos estudiosos acreditaram que com esse ataque, Teodósio deliberadamente visou enfraquecer os seus aliados Godos, que eram reconhecidamente a principal ameaça militar ao Império Romano.

As fontes também relatam que, antes do início da batalha, Eugênio e Arbogaste ordenaram que duas estátuas de Júpiter fossem colocadas nos flancos do seu Exército e que estandartes fossem pintados com a imagem de Hércules, dando, assim, um nítido caráter de guerra religiosa ao confronto, já que as tropas de Teodósio, incluindo os Visigodos que professavam a heresia Ariana, eram cristãs.

Assim, no primeiro dia da batalha, o exército de Eugênio e Arbogaste levou a melhor, sendo relatado que houve entusiasmadas comemorações em seu respectivo acampamento.

No dia seguinte, Teodósio, que passara a noite em claro, foi estimulado pela notícia de que um contingente que Arbogaste enviara para guardar umas passagens entre as montanhas desertara para o seu lado. Reanimado, ele decidiu, assim, renovar o ataque. Então, segundo o relato das fontes, no exato momento em que suas tropas atacavam, começou a soprar o fortíssimo vento conhecido como “Bora“, um fenômeno natural que ocorre ainda hoje na região. jogando nuvens de poeira nos olhos das tropas de Eugênio, que, impedidas de combater com eficiência, foram derrotadas. Posteriormente, o influente Ambrósio, Bispo de Milão, mencionaria que o vento decorreu da intervenção divina em favor da Cristandade.

Eugênio, capturado, foi decapitado. Já Arbogaste conseguiu fugir, mas, após vagar sem rumo, perseguido durante dias, preferiu cometer suicídio.

Teodósio tornava-se, assim, o único Augusto reinante, e, efetivamente, o último Imperador a reinar oficialmente sobre as duas metades do Império Romano.

Todavia, em 17 de janeiro de 395 D.C, apenas 4 meses após se tornar o último Imperador a reinar sobre as duas metades, Ocidental e Oriental, do Romano, Teodósio faleceu, em Milão, de causas naturais. Antes de morrer, porém, o imperador tomou as medidas necessárias para que seus filhos Honório e Arcádio se tornassem, respectivamente, após a sua morte, os Imperadores Romanos do Ocidente e do Oriente.

CONCLUSÃO

Para quem olhasse de fora, apenas contemplando um mapa do Império Romano, era um império cuja área era maior do que aquele sobre o qual Augusto reinara, 400 anos antes, e somente um pouco menor do que o de Trajano.

Contudo, era um Império que tinha dentro de si um povo inimigo inteiro, e que dependia de outras tropas recrutadas entre essas mesmas etnias para se defender de outros inimigos que rodeavam suas fronteiras; e, tão grave quanto isso, cuja economia suportava um esforço enorme para custear essa defesa e, que, não menos importante, ainda se via corroído por sangrentas disputas religiosas.

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Assim, em 27 de fevereiro de 380 D.C, Teodósio promulgou, em conjunto com Graciano e Valentiniano II, o Édito de Tessalônica, declarando o Credo Niceno-Trinitário como a única religião legítima do Império e a única passível de ser considerada “católica” (universal), e determinando que todo apoio oficial às demais religiões politeístas fosse encerrado.

Cristão devoto, Teodósio permitiu que a crescente intolerância religiosa por parte do Cristianismo triunfante desaguasse na destruição de importantes templos pagãos, como o Serapeum, em Alexandria, que degeneraram em massacres. Ele também proibiu os sacrifícios pagãos e os Jogos Olímpicos .

Com efeito, em vários episódios, Teodósio mostraria-se submisso à forte personalidade de Santo Ambrósio, Bispo de MIlão, e, quando ele foi excomungado pelo referido prelado, chegou a fazer meses de penitência, fato inaudito para um imperador romano que inaugurou a tendência, frequente na Idade Média, de submissão do poder temporal ao poder eclesiástico.

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(Mosaico do século V, com a figura de Santo Ambrósio, que demonstrou ter ascendência moral sobre o imperador Teodósio)

Ademais, a Batalha do Rio Frígido terminaria por desmoralizar de vez o Exército Romano. Embora houvesse bárbaros lutando dos dois lados, o exército vencedor, o de Teodósio, fora quem empregara os foederati Visigodos em larga escala. E foram eles quem suportaram o maior castigo, reivindicando, a partir daí, a primazia e as recompensas das quais julgavam que o seu esforço era merecedor. O exército de Eugênio, que ainda tinha um núcleo romano tradicional, fora derrotado. A partir de então, a esperança de que o imperador poderia formar e treinar um exército composto majoritariamente de cidadãos romanos começou a desvanecer.

Por tudo isso, para muitos historiadores, Teodósio lançou o Império em um “ponto de não-retorno”, cujo resultado foi a Queda do Império Romano do Ocidente.

FIM

TITO, O IMPERADOR QUE SÓ TEVE TEMPO PARA SER AMADO

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Em 30 de dezembro de 39 D.C., nascia, em Roma, Titus Flavius Sabinus Vespasianus (Tito), filho mais velho de Tito Flávio Vespasiano (que trinta anos mais tarde se tornaria o imperador Vespasiano) e de Domitila, a Velha.

Os Flávios eram uma família de origem sabina (povo itálico vizinho dos romanos), proveniente da cidade de Reate, que, no final da República, ingressaram na classe dos Equestres (ou Cavaleiros), que era o segundo nível hierárquico da nobreza romana.

Com efeito, o bisavô paterno de Tito havia sido um mero centurião das tropas de Pompeu, que lutou na Batalha de Farsália, durante a guerra civil entre este e Júlio César, e, depois, coletor de impostos. Já o seu avô paterno, Titus Flavius Sabinus, também foi coletor de impostos na Província romana da Ásia e, depois, banqueiro.

Por sua vez,  família de Domitila, a Velha, mãe de Tito, havia se estabelecido na cidade de Sabratha, na colônia romana da África. durante o reinado de Augusto, sendo o avô materno de Tito um simples secretário de um questor daquela província (Nota: Domitila, a Velha é avó de Flávia Domitila, que foi canonizada pela Igreja Católica como Santa Flávia Domitila e era sobrinha de Tito. As chamadas Catacumbas de Domitila, em Roma, têm esse nome porque as terras pertenciam a ela, que as legou para a nascente comunidade cristã da Cidade, ainda no século I D.C).

Porém o pai de Tito, Vespasiano, e o irmão mais velho deste, Sabino, tiveram sucesso no serviço público e no Exército, durante os reinados de Calígula e Cláudio. Vespasiano, inclusive, conseguiu ingressar no círculo mais íntimo do imperador Cláudio, em função da sua relação amorosa com a influente liberta Antônia Caenis, que era secretária pessoal da mãe de Cláudio, Antônia, a Jovem, e da amizade com o liberto Narcissus, que era um dos principais ministros deste imperador.

Assim, durante o reinado de Cláudio, Vespasiano conseguiu atingir o cume da carreira pública das magistraturas romanas, ao ser nomeado Cônsul, em 51 D.C., também obtendo um importante comando militar na conquista da Britânia.

Por isso,  Tito teve o raro privilégio de ser educado junto com Britânico, o filho natural de Cláudio, e, obviamente, um natural pretendente ao trono, muito embora as maquinações da imperatriz Agripina, a Jovem persuadissem Cláudio a privilegiar o filho desta, Nero, que foi adotado como herdeiro pelo imperador.

Não obstante, vale observar que, anos mais tarde, quando ficou claro que ele seria o herdeiro de Vespasiano, o comportamento de Tito, durante a sua mocidade suscitaria alguns temores naqueles que chegaram a perceber muita semelhança entre ele e Nero, sobretudo no que tange aos prazeres mundanos…

Segundo o historiador Suetônio, o jovem Tito era bonito e forte, apesar dele ser baixo e barrigudo. Ele montava bem à cavalo e era bom no manejo das armas, notadamente o arco e a flecha (inclusive, durante o Cerco a Jerusalém, Tito teria oportunidade de demonstrar esta habilidade). Outro talento que chamou a atenção, embora fosse um tanto mais preocupante, era a sua extraordinária capacidade de imitar perfeitamente a caligrafia dos outros.

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Iniciando a sua carreira militar, entre os anos 57 e 63 D.C, Tito destacou-se como tribuno militar na Britânia e na Germânia.

De volta à Roma, em 63 D.C., Tito casou-se com Arrecina Tertulla, que era filha de um ex-Prefeito da Guarda Pretoriana. Porém, Arrecina  faleceria cedo, em 65 D.C., assim, o viúvo Tito em seguida desposou a nobre Marcia Furnilla, que pertencia a uma distinta família da classe senatorial romana (apesar de, originalmente, no início da República, os Márcios serem uma gens plebeia, eles reivindicavam descender do lendário Rei de Roma Ancus Marcius).

Ocorre que o novo casamento de Tito também teria vida curta, pois ele achou por bem divorciar-se da segunda esposa quando membros da família dela foram acusados de participar da Conspiração Pisoniana, liderada por Caio Calpúrnio Pisão contra o imperador Nero, que ocorreu naquele mesmo ano de 65 D.C.

Tito jamais se casaria de novo.

Pouco depois, Vespasiano, que era um general respeitado, no final do reinado de Nero foi nomeado para comandar as legiões que iriam combater a Grande Revolta Judaica, que estourara em 66 D.C.

Na Guerra contra os Judeus, Tito acompanhou Vespasiano até a Judéia, em 67 D.C., comandando a XV Legião.

Quando estourou a rebelião de Gaius Julius Vindex, na Gália, em 68 D.C., que iniciou a cadeia de eventos que resultaria na deposição e suicídio de Nero, Tito foi enviado à capital por Vespasiano para transmitir o reconhecimento das legiões na Judéia ao novo imperador, Galba. Porém, antes de chegar à Roma, Tito recebeu a notícia de que Galba havia sido assassinado e de que agora Otão era o novo imperador. Ele decidiu, então, retornar para a Judéia para ver o que o pai decidiria diante do novo quadro.

Entretanto, já em 69 D.C., Otão foi derrotado por Vitélio, que, pouco antes,  havia sido aclamado pelas legiões da Germânia, e, com a vitória, foi aclamado como o novo Imperador.

Enquanto isso, Tito teve vital importância e participou diretamente das negociações que levaram Muciano, o Governador da Síria, a jogar a cartada de reconhecer Vespasiano como imperador, desprezando o reconhecimento de Vitélio, que, afinal, tinha menos prestígio que o primeiro.

Vespasiano, assim, partiu para Roma para reclamar o trono e deixou sob o comando de Tito a campanha contra a Grande Revolta Judaica. Consequentemente, ficou sob a responsabilidade de Tito a fase mais difícil da guerra: o cerco e captura de Jerusalém. Em 70 D.C., Jerusalém, após um duro sítio, foi finalmente tomada e saqueada pelos romanos.

Segundo o abrangente relato do historiador Flávio Josefo, que era um líder rebelde judeu que foi capturado e aderiu aos romanos, Tito tinha a intenção de poupar da destruição o Grande Templo de Jerusalém, que teria sido acidentalmente incendiado durante o cerco. Porém, para muitos, essa parte do relato de Josefo não teria muita credibilidade, já o que houve de fato foi uma destruição sistemática do templo, sendo que o referido historiador seria muito propenso a incensar os Flávios, os seus captores e patronos.

O Arco de Tito, em Roma, que foi erguido por seu irmão, Domiciano, após a morte de Tito, comemora a vitória obtida por ele contra a revolta judaica e ilustra em relevos o célebre candelabro de 7 braços (Menorah) sendo transportado na procissão triunfal de Tito em Roma.

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Foi durante a Guerra contra os Judeus que Tito envolveu-se com Berenice, uma bela princesa judia, dez anos mais velha do que ele,  e que era bisneta de Herodes, o Grande, e irmã de Herodes Agripa II, o rei-cliente de Roma que, entre outros territórios, governava a Galileia, situando-se entre seus domínios, a cidade de Cesareia (Nota: Foi em Cesareia, na presença de Berenice, de Herodes Agripa, e do procurador romano Festus, por volta de 59 D.C., que o apóstolo Saulo de Tarso (São Paulo), preso, defendeu sua causa e apelou para ser julgado em Roma (Atos, 26).

O Senado Romano reconheceu Vespasiano como novo Imperador, em 21 de dezembro de 69 D.C.  Em 70 D.C,, enquanto ainda estava no Oriente, Tito foi nomeado Consul junto com seu pai.

Em 71 D.C.Tito recebeu do pai o “Poder Tribunício”, que constituía uma declaração informal de que ele seria o herdeiro e sucessor de Vespasiano (afastando, assim, qualquer pretensão de que seu ambicioso irmão mais novo, Domiciano, pudesse ter de herdar o trono antes dele). Certamente, o sábio Vespasiano quis evitar um dos principais fatores de instabilidade nos reinados dos seus antecessores da dinastia dos Júlios-Cláudios: a pouca clareza quanto à sucessão, pela existência de vários pretendentes dinásticos).

Tito também foi nomeado Prefeito da Guarda Pretoriana, um cargo de grande poder e que demonstrava a confiança que Vespasiano tinha no filho. E, de fato, agindo como comandante da guarnição militar da Capital e Guarda de Honra do Imperador, Tito foi implacável na vigilância e repressão a potenciais ameaças ao reinado do pai, tendo executado sumariamente vários supostos conspiradores.

Em 75 D.C., Tito trouxe sua amante Berenice para viver com ele no Palácio. Porém, a opinião pública romana, sempre suspeitosa contra princesas estrangeiras e não muita afeta à fé judaica, não recebeu bem esta união, talvez amedrontada com um possível paralelo com a união entre Cleópatra e Marco Antônio, que foi considerada prejudicial aos interesses do Estado. Tito, então, teve que se curvar à vontade popular e mandou a princesa judia de volta para o Oriente.

Porém, em 23 de junho de 79 D.C., aos 69 anos de idade, Vespasiano morreu de causas naturais e Tito foi imediatamente aclamado como novo Imperador Romano, aos 38 anos.

Uma das primeiras medidas de Tito foi decretar o fim dos julgamentos por crimes de lesa-majestade (maiestas). Essa antiga lei romana, que originalmente visava processar os responsáveis por conspirações contra a segurança nacional, tinha se tornado, durante o principado, um pretexto para executar qualquer pessoa que desagradasse o trono, até mesmo por uma simples manifestação de desagrado contra os imperadores, inclusive os já falecidos.

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(Estátua de Tito, foto de Sailko)

As palavras de Tito, ao acabar com os processos por maiestas, foram preservadas, e valem ser transcritas:

“É impossível que eu seja insultado ou sofra qualquer tipo de abuso, pois eu nada fiz que mereça censura, e eu não me importo com relatos falsos. No que se refere aos imperadores que já morreram, eles podem se vingar sozinhos se alguém lhes fizer algum malefício, caso sejam eles mesmo semideuses e possuam algum poder…”

A declaração supracitada demonstra que Tito herdou muito da personalidade e das maneiras do pai, Vespasiano, que prezava pela simplicidade, afabilidade e senso de humor. Suetônio assim descreve o comportamento de Tito:

“Ele era muito gentil por natureza, e, considerando que, de acordo com um costume estabelecido por Tibério, todos os Césares que o seguiram recusavam-se a reconhecer favores concedidos pelos imperadores precedentes, a menos que eles próprios os concedessem novamente aos mesmos indivíduos, Tito foi o primeiro a ratifica-los conjuntamente em um simples decreto, não admitindo que fossem requeridos pessoalmente a ele. Ademais, no caso de outros pedidos feitos a ele, a norma que ele adotou foi não deixar ninguém sair sem esperanças. Mesmo quando os seus secretários domésticos advertiam-no que ele estava prometendo mais do que podia cumprir, ele dizia que não estava certo que alguém fosse embora triste de uma audiência com o seu imperador. Em outra ocasião, lembrando-se, enquanto jantava, de que durante aquele dia ele não tinha atendido aos pedidos de ninguém, ele proferiu aquele memorável e louvável comentário: “Amigos, hoje foi um dia perdido

Decorridos cerca de dois meses do reinado de Tito, aconteceu uma das maiores tragédias que já se abateram sobre o Império Romano: a grande erupção do Vesúvio que soterrou Pompéia e Herculano, entre outras cidades.

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Nota: a data da erupção, tradicionalmente considerada como sendo 24 de agosto de 79 D.C., com base em cópias medievais da carta de Plínio, o Jovem, testemunha ocular do fato, descrevendo a erupção, tem sido reconsiderada em função dos achados arqueológicos. Além do estado dos restos de plantas e sementes  encontrados não corresponder a essa estação do ano (verão europeu), indicando mais o outono, recentemente, no final de 2018, nas escavações na chamada Região V da cidade de Pompéia, foi encontrado um grafite feito em carvão em uma parede, contendo a data “17 de outubro” (por ser em carvão, material que se apagaria em pouco tempo ao ar livre, acredita-se que essa inscrição foi feita poucos dias antes da erupção ).

A conduta de Tito após a catástrofe do Vesúvio foi digna de um grande estadista. Ele visitou pessoalmente a região afetada, criou um fundo para assistência às vítimas, tomou medidas para o reassentamento dos sobreviventes e organizou uma comissão do Senado para deliberar sobre medidas adicionais de auxílio.

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(Cabeça de Tito, proveniente de Utica, Museu Britânico, foto de Carole Raddato)

Entretanto, pouco tempo depois, na primavera de 80 D.C., estando o Império ainda traumatizado pela destruição na Itália, uma nova tragédia aconteceria: um novo incêndio de Roma. Novamente, Tito, que ainda estava na Campânia supervisionando as medidas de apoio à população afetada pela erupção do Vesúvio, foi incansável nas ações de assistência aos desabrigados.

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Para alguns dos supersticiosos romanos, e certamente para a maioria dos judeus e cristãos, essas tragédias for consideradas uma punição pela destruição do Templo de Jerusalém.

Mas o reinado de Tito não seria marcado apenas pelas tragédias. Em uma espécie de compensação do destino pelos desastres sucessivos, ficou a cargo de Tito terminar e inaugurar o magnífico e grandioso Amphitheatrum Flavium (Anfiteatro Flávio), que ficaria conhecido popularmente como “Colosseum” (Coliseu). O nome do Coliseu deriva do fato dele ficar ao lado da enorme estátua dourada de Nero (que, segundo os relatos, seria maior do que a moderna Estátua da Liberdade, em Nova York),  conhecida como “Colossus” (Colosso).

A construção do Coliseu foi iniciada por Vespasiano, em cujo reinado a maior parte do edifício foi construída, aproveitando as fundações e parte da estrutura do enorme palácio de Nero (“Domus Aurea“), que foi soterrado.

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(O autor no Coliseu, em 2000)

Foram 100 dias de jogos inaugurais e, portanto, feriados, para deleite da plebe romana, que assistiram a lutas de gladiadores e caçadas de animais (cerca de 9 mil animais teriam sido mortos durante o período desses jogos).

Tito também construiu e inaugurou, no mesmo período que o Coliseu (80-81 D.C.), as suas Termas ou Banhos de Tito) para o uso da população de Roma e que, assim como no caso do Coliseu,  aproveitaram a infraestrutura da Domus Aurea. Embora não fossem muito grandes, comparados com os complexos de banhos que os imperadores construiriam nos séculos posteriores, as Termas de Tito foram as terceiras termas públicas construídas em Roma, após as Termas de Agripa e as Termas de Nero. Segundo Suetônio, nas suas Termas, Tito costumava banhar-se junto com os demais frequentadores do povo.

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Na política externa, o único desafio enfrentado por Tito foi uma revolta das tribos da Britânia, que foi debelada pelo general Agrícola, que levou suas legiões em campanha até a Escócia.

Em 13 de setembro de 81 D.C., o imperador Tito morreu de uma febre súbita, quando visitava a terra natal de seus antepassados, em território sabino, aos 41 anos de idade. A suas últimas palavras teriam sido:

“Cometi senão um erro”.

O real significado da frase derradeira de Tito sempre suscitou muita discussão entre os historiadores. Para alguns, ele se referia ao fato de não ter executado o irmão Domiciano, cujo caráter já há tempos já dava mostras de ser tirânico e que, segundo alguns relatos, teria conspirado para derrubar Tito. Houve também quem acreditasse que o erro lamentado teria sido um romance adúltero que Tito teria mantido com a mulher do irmão, Domícia Longina.

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(Quadro “O Triunfo de TIto“, de Sir Lawrence Alma-Tadema (1885). Na cena, Vespasiano é seguido por Domiciano, de mãos dadas com sua esposa Domícia Longina, que olha sugestivamente para Tito)

O reinado de Tito somente durou dois anos. Apesar das catástrofes ocorridas, o seu comportamento afável e generoso, a ausência de perseguições durante o seu governo, a sua procupação com a sorte das vítimas dos desastres e as obras públicas e espetáculos grandiosos, granjearam-lhe a estima do povo e dos historiadores, que lhe retrataram de maneira favorável.

Nas palavras de SuetônioTito foi:

“O querido e a delícia da raça humana”.

CONCLUSÃO

Tito é um daqueles exemplos em que a morte de uma celebridade jovem no auge da fama preserva a mitifica a sua boa imagem.

Ademais, o reinado do sucessor de Tito, Domiciano, mais autocrático e centralizador, desagradou boa parte dos senadores, que acabaram engendrando algumas conspirações para derrubá-lo. Após o assassinato de Domiciano, a história do reinado dele foi contada por historiadores ligados à classe senatorial, hostis a Domiciano, e os relatos dos mesmos tendem a classifica-lo como um “mau” imperador, cujo reinado intercala-se entre os reinados dos “bons” imperadores, Tito e Nerva.

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DIOCLECIANO – O RECONSTRUTOR DO IMPÉRIO ROMANO

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(Cabeça de Diocleciano, foto de Giovanni Dall’Orto)

Origem

Em 22 de Dezembro de 244 D.C., nasceu, em Salona, na província romana da Dalmácia, próximo à atual cidade de Split, na Croácia, Gaius Aurelius Valerius Diocletianus (Diocleciano).

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(Ruínas romanas de Salona)

O nome verdadeiro de nascença de Diocleciano era Diocles Valerius e ele era filho de um humilde escriba de um senador chamado Anulinnus. Com efeito, acredita-se que o pai de Diocleciano era provavelmente um escravo liberto ou então filho de um liberto.

Embora não saibamos nada sobre a infância e juventude de Diocleciano, é certo que ele alistou-se no Exército Romano e, como muitos conterrâneos de origem ilíria, foi sendo promovido até as mais altas patentes.

Assim, quando a História começa a mencionar a carreira de Diocleciano, ele já ocupava o importante posto militar de Duque da Moésia (Dux Moesiae), no baixo Danúbio.

Ascensão

Em 282 D.C., Diocleciano foi promovido pelo imperador Caro ao prestigioso posto de Comandante dos “Protectores Domestici”, o corpo de cavalaria de elite que funcionava como uma espécie de Guarda Imperial. Nesta condição, Diocleciano acompanhou Caro na guerra contra a Pérsia.

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Aclamação

Após a morte de Caro no Oriente, em 283 D.C. (segundo consta, ele foi atingido por um raio enquanto travava a bem sucedida campanha contra os Persas), os seus filhos Carino e Numeriano, assumiram o trono, sendo que o primeiro assumiu, informalmente, o governo da metade ocidental do Império, e o último, o do Oriente.

Porém, no decorrer do ano seguinte, Numeriano morreu, acometido de uma misteriosa inflamação nos olhos, quando voltava da Pérsia (algumas fontes levantem a suspeita de que ele foi assassinado pelo Prefeito Pretoriano, Lucius Flavius Aper (Áper).

Verdadeira ou não a participação de Áper na morte de Numeriano, o seu suposto crime não lhe trouxe o proveito esperado, pois, quando o exército imperial alcançou os subúrbios de Nicomédia (atual Izmir, na Turquia), um conselho de generais escolheu Diocleciano como sucessor, em 20 de novembro de 284 D.C.

Na presença das tropas reunidas para a sua aclamação, Diocleciano imediatamente acusou Áper de ter assassinado Numeriano e, em seguida, executou-o com a própria espada, na frente dos soldados estupefatos (há quem defenda que Diocleciano estava implicado na trama que assassinou o imperador e a morte de Áper teria sido na verdade uma “queima de arquivo”).

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Eliminando o rival

Ao assumir o seu primeiro consulado, Diocleciano escolheu como colega Lúcio Cesônio Basso, um experiente político de uma ilustre família romana, e, não, como seria natural, o outro imperador, Carino, o filho de Numeriano que reinava em Roma. Este ato representava uma na prática uma declaração de rompimento com Carino, prenunciando uma guerra civil.

Todavia, a disputa entre Carino e Diocleciano foi breve: Diocleciano avançou para o Oeste em direção à Itália e foi confrontado pelas forças de Carino na província da Moésia, no rio Margus, próximo a Viminacium, que ficava no território vizinho à atual Belgrado. No começo da batalha, Aristóbulo, o prefeito pretoriano de Carino desertou para o campo inimigo. Antecipando a derrota, os próprios soldados de Carino, mataram o seu imperador e aclamaram Diocleciano, em julho de 285 D.C.

Consolidando o poder

Contrariando o que se esperava de um imperador romano do século III D.C, o vitorioso Diocleciano não perseguiu os partidários de Carino, mantendo nos cargos muitos dos auxiliares deste, o que emulava, de certa forma a célebre clemência de Júlio César. Por sua vez, Aristóbulo foi mantido como Prefeito Pretoriano e Basso foi nomeado Prefeito Urbano de Roma.

Um dos primeiros atos de Diocleciano no trono foi escolher um colega para governar em conjunto com ele e o escolhido foi seu velho amigo e companheiro de armas, o general e conterrâneo de origem ilíria, Marcus Aurelius Valerius Maximianus (Maximiano). Embora os amigos compartilhassem a origem humilde, Maximiano, ao contrário de Diocleciano, era um homem muito mais áspero e implacável. Não obstante, Diocleciano mantinha sobre o amigo uma perceptível ascendência moral e intelectual. Assim,em 1º de abril de 286 D.C., Maximiano foi elevado do posto de “César” para  o de “Augusto”, que correspondia ao de Imperador.

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(Cabeça de Maximiano

Sintomaticamente, os dois Augustos concederam-se os títulos de “Júpiter” (Diocleciano) e de “Hércules”(Maximiano). Com efeito e não por acaso, os títulos e os atributos das divindades escolhidas visavam ilustrar o papel de ambos no Império Romano, onde Diocleciano aparecia como o sábio pai dos deuses e chefe do Olimpo e Maximiano como o guerreiro encarregado das tarefas militares. Desse modo, embora os dois fossem juridicamente iguais, Diocleciano mantinha para si, na prática, o status de “imperador sênior”.

Campanhas internas e externas

Diocleciano, desde logo o início do seu reinado, demonstrou uma certa rejeição à cidade de Roma. Muitos historiadores até acreditam que ele sequer chegou a visitar a velha capital quando de sua ascensão ao trono, ou, segundo outros, ele passou por lá tão brevemente que, em novembro de 285 D.C., ele já estava nos Bálcãs em campanha contra os Sármatas, os quais foram batidos, embora não esmagados.

Enquanto isso, Maximiano lidava com os bandos de fora-da-lei conhecidos como bagaudas, no norte da Gália. Submetidos estes, foi a vez dele combater a insurreição de seu subordinado Caráusio, o comandante da frota do Mar do Norte, que chegou a ser aclamado “Imperador da Britânia”. Porém, Caráusio estava firmemente estabelecido na Ilha e lá ele conseguiu resistir por sete anos, cunhando moedas em que ostentava o título de imperador e “irmão” de Diocleciano e Maximiano e louvava a concórdia (paz) entre eles.

Maximiano resolveu lutar contra os Alamanos, na fronteira do Reno, os quais ele combateu inicialmente sozinho, recebendo, posteriormente, a ajuda do colega Diocleciano. Essa campanha foi bem sucedida, e Diocleciano pode voltar sua atenção para o Oriente, onde os Persas criavam problemas crescentes.

Estabelecido em Nicomédia, as iniciativas de Diocleciano asseguraram a assinatura de um tratado de paz com os persas bastante favorável a Roma, que conseguiu instalar um rei-cliente no trono da Armênia. No Oriente, Diocleciano ainda combateu invasores árabes (sarracenos) na Palestina.

Na virada do ano de 290 D.C para 291 D.C, Diocleciano voltou para a Itália, onde encontrou com seu colega Maximiano em Milão, que tinha passado a ser a capital do Ocidente. 

Outras questões externas que ocupariam Diocleciano foram novos ataques dos Sármatas, um povo de origem iraniana, em 294 D.C., que foram derrotados de modo mais duradouro. O imperador decidiu reforçar a fronteira do Danúbio construindo uma cadeias de fortes abrangendo as cidades de Aquincum (atual Budapeste), Bononia (atual Vidin, na Bulgária), Ulcisia Vetera, Castra Florentium, Intercisa (atual Dunaújváros, na Hungria) e Onagrinum (atual, Begec, na Sérvia), que se tornaram parte de uma nova linha defensiva chamada de Ripa Sarmatica. Em 295 e 296 D.C., foi a vez dele dar combate à tribo bárbara dos Carpi, os quais também foram derrotados.

A Tetrarquia

A vivência da eclosão de crises simultâneas em diferentes partes do Império certamente contribuiu para estimular Diocleciano a idealizar a medida mais revolucionária do seu reinado: a chamada Tetrarquia, em 293 D.C.

Em 1º de março de 293 D.C., Diocleciano resolveu nomear o general Flávio Constâncio “Cloro”, genro de Maximiano e Prefeito Pretoriano da Gália, e recentemente encarregado da campanha contra Caráusio, como “César“, o que caracterizava, na prática, o posto de imperador “júnior”, e de herdeiro de Maximiano. Provavelmente, na mesma data ou um pouco depois, Diocleciano nomeou seu genro, o general Galério, marido de sua filha Valéria (Diocleciano não teve filhos homens), para o posto de César, passando a ser o seu herdeiro.

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Bloco de pórfiro entalhado com a representação dos Tetrarcas, trazido de Constantinopla pelos venezianos e colocado na lateral da Basílica de San Marco

Diocleciano considerava o Império Romano grande demais para ser governado por apenas um monarca, motivo pela qual instituiu a Tetrarquia, onde ele seria administrado por quatro governantes imperiais, sendo dois mais graduados, que teriam o título de “Augusto“, inicialmente com as respectivas capitais em Milão e Nicomédia, e dois, em plano um pouco inferior e subordinados a eles, nomeados “César“, instalados em Trier e Sirmium. A escolha dos “Césares”, pelos “Augustos”, visava assegurar uma sucessão tranquila e automática, teoricamente baseada no mérito, sendo que, quando o trono ficasse vago, o “César”, já previamente nomeado e experimentado na tarefa de governar, assumiria o posto vago de “Augusto” e, por sua vez,  este escolheria o novo “César”.

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(Embora a ilustração retrate Maxêncio, os trajes dele certamente são os mesmos que os tetrarcas deviam usar, incluindo o tradicional gorro ilírio,  costumeiramente utilizado pelos militares originários daquela região e que também foi retratado na escultura existente na Basílica de São Marcos).

Reformando o Império

Outra grande reforma administrativa promovida por Diocleciano foi a redivisão das cerca de 50 províncias romanas em 100 unidades menores, agrupadas em doze “Dioceses”, governadas por “Vigários”(Vicarii). Esses Vigários deixaram de ter funções militares, que foram transferidas para dezenas de “Duques” (Duces), mas retendo funções administrativas, judiciárias e fiscais. Dessa forma, Diocleciano tencionava diminuir a possibilidade de revoltas, tão frequentes durante o período imperial, dividindo e diminuindo o poder de que disporiam esses administradores.

Diocleciano também praticamente dobrou o número de funcionários públicos civis e também os efetivos do Exército Romano.

O consequente aumento da despesa pública gerado pelo aumento do tamanho do funcionalismo público e dos militares foi enfrentado com uma grande reforma no sistema tributário imperial. Após a realização de um abrangente e detalhado censo, foram estabelecidas duas unidades fiscais chamadas de “jugum” e de “caput”, a primeira levando em consideração uma determinada área de terra em função do tipo e da quantidade de produção agrícola que ela seria capaz de sustentar, num conceito um tanto parecido com o do módulo rural, e a segunda, o número de pessoas que neles viviam, podendo variar em função do sexo e idade. Em decorrência, os impostos passaram a serem calculados em função da quantidade de “jugera” e “capita” atribuídos a cada região ou cidade integrante do Império. E os impostos agora passavam a ser pagos não apenas em dinheiro, mas também em gêneros (conferir a esse respeito a obra The Later Roman Empire, de A.H.M. Jones)

Para combater a crescente inflação, Diocleciano determinou duas medidas:

1- Uma reforma monetária, estabelecendo três tipos de moeda: de ouro (aureus), de prata (argenteus) e de cobre (follis), fixando os percentuais de metais nas ligas com  as quais elas seriam cunhadas.

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(Um “Antoniniano” de Diocleciano, moeda anterior a reforma monetária, foto de Sosius11)

2- Entretanto, como a inflação não cedia, Diocleciano baixou o seu célebre “Édito de Preços Máximos”, em 301 D.C., que se tratava de uma verdadeira lei de congelamento de preços, bem similar às tão conhecidas dos brasileiros em tempos não tão distantes e que, da mesma maneira que as leis brasileiras, não deu certo, gerando desabastecimento…

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(lápide contendo parte do Édito de Preços Máximos, de Diocleciano)

Uma outra medida de Diocleciano, e que, para muitos historiadores, teria influência duradoura na Europa Medieval, foi a lei que obrigava aos camponeses e seus descendentes a trabalharem permanentemente nas terras agrícolas, tornando compulsória e hereditária esta atividade, além de outras profissões, entre as quais as de soldado, padeiro e até mesmo a função de membros das câmaras municipais, uma política que muitos veem como uma das origens do sistema feudal.

Diocleciano procurou assegurar a estabilidade política do trono promovendo uma verdadeira sacralização da pessoa do imperador, algo que ele fez, não por vaidade, mas para impedir as reiteradas conspirações para derrubar os imperadores romanos, tão comuns ao longo da história imperial. Assim, o cerimonial da corte tornou-se altamente ritualístico, estabelecendo-se como dever de todos que chegassem à presença do imperador prostrar-se no solo (“adoratio”), como se estivessem na presença de um deus. Do mesmo modo, somente o monarca poderia usar a cor púrpura. O título imperial de “Príncipe”, que tinha origem na expressão “primeiro senador”, foi substituído pelo de “Dominus” (Senhor).

O Conselho do Imperador (“Consilium”), que tradicionalmente tinha entre seus componentes algum senador ou figura pública, foi substituído pelo Consistório, um nome que denotava uma assembleia particular e privada.

A ênfase no culto ao imperador, decorrente da política acima citada, levou inevitavelmente à exigência de demonstrações públicas de devoção. Não surpreende, assim, que os Cristãos, que admitiam adorar apenas um Deus, tenham sido alvo de uma perseguição implacável por Diocleciano, decretada em 303 D.C, e que seria batizada pela Igreja Católica como “A Grande Perseguição”. Não obstante, não se pode afirmar que Diocleciano, pessoalmente, nutrisse ódio ou inimizade pelo Cristianismo.

Com efeito, as medidas de Diocleciano contra a fé cristã parecem decorrer mais de sua vontade dele ser o restaurador da velha grandeza do Império Romano, o que também incluía o fortalecimento da religião tradicional romana, do que a um ódio particular contra esta religião. Consta que o seu colega Galério é que era radicalmente avesso aos cristãos. Curiosamente, vale notar que, segundo algumas fontes, Valéria, filha de Diocleciano e esposa de Galério, era simpatizante do Cristianismo ou seria até mesmo cristã, o mesmo ocorrendo com sua mãe, Prisca.

Abdicação e aposentadoria

Em 20 de novembro de 303 D.C., Diocleciano finalmente visitou Roma para comemorar o vigésimo aniversário do seu reinado. Foi uma breve estadia, pois o imperador não gostou das maneiras pouco deferentes dos romanos. Um mês depois, ele viajou para Ravena, de onde partiu para uma campanha no Danúbio. Porém, a saúde de Diocleciano começou a piorar e ele resolveu voltar para Nicomédia, onde ficou recluso no palácio, o que fez circular o boato de que ele havia morrido.

Em março de 305 D.C., Diocleciano reapareceu em público. Poucos dias depois, Galério chegou à Nicomédia. Então, em 1º de maio do mesmo ano, Diocleciano reuniu os generais do Exército e anunciou que ele estava doente e que precisava descansar. E, num gesto inédito na história do Império Romano, o imperador comunicou que iria abdicar em favor de um herdeiro mais capaz: Com base no sistema da Tetrarquia, Galério o sucederia como Augusto e Maximiano também abdicaria, fiel e obedientemente, do trono, sendo sucedido por Constâncio Cloro.

A grande surpresa, porém,  foi quando se anunciaram quem seriam os novos Césares…Com efeito, todos pensavam que Maxêncio, filho de Maximiano, e Constantino, filho de Constâncio Cloro, seriam os novos Césares. Porém, os escolhidos foram Maximino Daia, sobrinho de Galério, e Severo, este um velho amigo de Galério. Portanto, a Tetrarquia, que mal começara, já nascia, assim, ameaçada em sua estabilidade pelo preterimento de dois candidatos naturais à sucessão. Tudo indica que isso decorreu da vontade de Galério, que era agora o verdadeiro homem-forte da Tetrarquia.

Diocleciano, após a abdicação, foi viver em seu espetacular palácio-fortaleza na cidade de Salona, em sua terra natal. Boa parte deste palácio ainda existe e, em seu vasto interior, nasceu a atual cidade de Split, na Croácia. De fato, Diocleciano parece ter encontrado a verdadeira felicidade cuidando de suas hortas e jardins. Assim, consta que, durante a guerra civil que logo eclodiu entre os seus sucessores e precipitou o fim da Tetrarquia, Diocleciano foi instado por populares a reassumir o trono, ao que ele teria respondido:

Se vocês pudessem mostrar ao imperador os repolhos que eu plantei com minhas próprias mãos, ele definitivamente jamais sugeriria que eu trocasse a paz e a felicidade deste lugar pelas tormentas de uma insaciável ambição”.

Morte

Diocleciano morreu em 03 de dezembro de 312 D.C., aos 67 anos de idade, em seu palácio em Split, sendo sepultado em um mausoléu octogonal que ele havia mandado construir no interior do mesmo.

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Reconstituição da aparência do Palácio de Diocleciano, em Split

Legado

O principal feito de Diocleciano foi conseguir dar estabilidade ao Império após um século de crises, guerras civis, derrotas militares e tumultos. Efetivamente, fazia mais de cem anos que um imperador não conseguia reinar 20 anos: A média no período tinha sido de cerca de três anos de reinado para cada imperador em 100 anos. Para isso contribuiu, certamente, a sacralização da imagem do Imperador, oficialmente estabelecida como “Dominus et Deos” (Senhor e Deus). Por isso, o reinado de Diocleciano é considerado um marco que divide a História do Império Romano entre os períodos do “Principado” ( a partir de Augusto, o primeiro imperador) e do “Dominado” (a partir de Diocleciano).

As linhas estabelecidas por Diocleciano, foram em grande parte mantidas por Constantino, que derrotou os demais contendores pelo espólio da Tetrarquia (sendo a mais notável exceção a política religiosa) e elas duraram até o final do Império do Ocidente, cerca de 200 anos mais tarde.

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TIBÉRIO – UM IMPERADOR RELUTANTE

Tiberius,_Romisch-Germanisches_Museum,_Cologne foto Carole Raddato(Cabeça de Tibério, Museu Romano-Germânico, Colônia, foto de Carole Raddato)

NASCIMENTO, INFÂNCIA E JUVENTUDE

Em 16 de novembro de 42 A.C., nasceu Tiberius Claudius Nero (Tibério), membro de uma das famílias mais tradicionais da nobreza romana, cujos ancestrais tinham ocupado os mais importantes postos desde o início da República, desde o longínquo ano de 494 A.C. O menino recebeu o mesmo nome de seu pai, que havia sido Cônsul, no ano de 50 A.C.

Tibério era filho de Lívia Drusila, que, mesmo estando grávida de seu irmão, Druso, o Velho, divorciou-se de seu pai e casou-se, em 39 A.C, com o jovem triúnviro Otaviano, o herdeiro de Júlio César (que em pouco mais de uma década, se tornaria o primeiro imperador romano, com o nome de Augusto).

Em 33 A.C., o pai de Tibério faleceu e foi ele quem fez o discurso fúnebre na tribuna dos Rostra, no fórum romano, diante da multidão, quando tinha apenas 9 anos de idade.

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(Cabeça de Lívia Drusila, molde do original da Glipoteca Ny Carlsberg, foto de Giovanni Dall’Orto)

O casamento de Lívia com Augusto fez Tibério entrar no círculo familiar do imperador, e, após a morte do pai dele, ele passou a viver na casa de Otaviano e Lívia, no Palatino, onde recebeu esmerada educação dos melhores tutores, como por exemplo, Teodoro de Gadara, que lhe ensinou Retórica.

Quando Otaviano celebrou o triunfo pela vitória contra Cleópatra (e Marco Antônio) pelas ruas de Roma, em 29 A.C., o menino Tibério, então com cerca de doze anos, recebeu a distinção de conduzir, ao lado de Marcelo, a quadriga triunfal na qual ia o seu padrasto.

A posição de Tibério na família imperial foi ainda mais reforçada quando ele se casou com Vipsânia Agripina, filha do maior colaborador e amigo de Augusto, o general Marco Vipsânio Agripa, então cotado para ser o sucessor. Arranjado ou não este casamento, o fato é que Tibério e a esposa apaixonaram-se. Eles tiveram dois filhos: Druso, o Jovem, em 14 A.C., e uma outra criança, que morreu precocemente.

(Tibério e Vipsânia Agripina)

Por sua vez, Augusto e Lívia não tiveram filhos e a única descendente do imperador era sua filha Júlia, nascida do seu casamento anterior com Escribônia, e que havia se casado com Agripa.

Porém, Agripa morreria em 12 A.C., deixando Júlia viúva com dois filhos pequenos, Caio César e Lúcio César, que já haviam sido adotados por Augusto em 17 A.C., fato que colocou os meninos na condição de prováveis sucessores do trono. Vale notar que essa adoção ocorreu após a morte do sobrinho e predileto de Augusto, Marcelo, filho de sua irmã, Otávia, a Jovem, ocorrida em 23 A.C. Aliás, essas escolhas permitem vislumbrar como Augusto planejava a questão da sua sucessão, isso também em função de suas reações em função dos imprevistos.

A condição de enteado do imperador fez com que que Tibério, aos 17 anos de idade, iniciasse a sua carreira pública como Questor, apesar de não ter a idade legalmente exigida para o cargo. Nessa função, Tibério demonstrou competência para lidar com um problema de abastecimento de grãos, em Óstia.

O progresso de Tibério na carreira das magistraturas foi rápido e, em 13 A.C., novamente antes de ter a idade legal, ele foi escolhido Cônsul.

ASCENSÃO DE TIBÉRIO

Em 11 A.C, Augusto, chegou à conclusão de que seu enteado Tibério, em caso de uma eventualidade (o já quinquagenário imperador tinha ficado gravemente doente onze anos antes), seria um bom candidato para ocupar o trono, pelo menos até a maioridade dos seus netos, Caio César e Lúcio César. Com essa finalidade, e provavelmente incentivado por Lívia, Augusto “pediu” (na verdade, provavelmente, ele deve ter ordenado) que Tibério se divorciasse de sua adorada Vipsânia e se casasse com sua filha viúva, Júlia.

Tibério, contrariado, teve que obedecer e casou-se com Júlia, tornando-se, agora, além de enteado, genro do imperador. Porém, segundo as fontes, certa vez, após o divorciar-se de Vipsânia, Tibério encontrou-a em algum evento social, ocasião em que copiosas lágrimas desceram pelo rosto dele, obrigando-o a se retirar do local e ir para casa. E, ainda de acordo com o relato, algumas testemunhas teriam ouvido, no trajeto, Tibério implorar aos céus, insistentemente, pelo perdão da ex-mulher. Foi uma cena que certamente inspirou preocupação na família imperial, pois Suetônio conta que

foram tomadas precauções para que Tibério nunca mais tivesse a oportunidade de encontrar a ex-mulher novamente“.

Enquanto isso, Tibério prosseguiu a sua carreira no serviço público como advogado, atuando em defesa de diversas cidades gregas no Senado e também como acusador público de um senador que havia conspirado contra Augusto.

Depois disso, Tibério destacou-se na carreira militar e acabou se revelando um grande general. Ele comandou campanhas bem-sucedidas na Panônia e na Germânia, estas muito bem descritas pelo historiador Veléio Patérculo, que serviu sob as ordens dele. Foi Tibério o primeiro romano a descobrir a nascente do Rio Danúbio e ele também marchou à testa de seu exército até o Rio Elba, um feito notável.

Assim, as vitórias de Tibério, na Germânia, abriram o terreno para estabelecer esta região como província romana, um projeto que, contudo, seria interrompido pelo Desastre de Varo, que narramos em uma das primeiras postagens de nossa página.

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(Campanha de Tibério na Germânia)

Graças a essas vitórias, Tibério foi o primeiro romano a receber os “ornamentos triunfais“, inaugurando esta nova forma de reconhecimento aos generais vitoriosos, já que os Triunfos, agora, passavam a ser reservados apenas ao Imperador, em pessoa.

Em 7 A.C., Tibério foi designado Cônsul e recebeu, em 6 A.C., o “Poder Tribunício” (que conferia ao magistrado o poder de vetar todos os atos dos demais magistrados e foi retirado do cargo de Tribuno da Plebe e conferido ao Imperador já no principado de Augusto). Este ato começava a se tornar praticamente um reconhecimento da posição do seu receptor como a pessoa mais importante no Império, depois do Imperador).

Com os despojos obtidos na guerra contra os Germanos, Tibério encarregou-se de restaurar o Templo da Concórdia, no Fórum Romano, que só seria completado em 10 D.C.

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(Reconstrução do Templo da Concórdia, no Fórum, restaurado por Tibério – autor Lasha Tskhondia)

TIBÉRIO NA BERLINDA

Porém, foi após receber essas honrarias e liderar outra bem-sucedida campanha, contra os Marcomanos, que Tibério, em 6 A.C, inusitadamente auto-exilou-se na ilha de Rodes. Há muitos debates sobre este misterioso exílio:

Em primeiro lugar, parece claro que Augusto nunca simpatizou muito com o reservado e frio Tibério, somente tendo-o favorecido por instigação da mãe dele, a sua influente esposa Lívia, e pela necessidade de ter um sucessor da família à mão, em caso de imprevisto.

Em segundo lugar, mas talvez mais importante, Caio César e Lúcio César, os já mencionados netos de Augusto, estavam crescendo. O primeiro, inclusive, já havia sido designado, naquele ano, para ser cônsul quando alcançasse os 20 anos, embora ele ainda tivesse apenas 14 anos na ocasião.

Assim, Tibério provavelmente deve ter sentido a sua posição na sucessão imperial enfraquecida e decidiu retirar-se voluntariamente das intrigas pela sucessão do já quase sexagenário Augusto. Segundo Suetônio, essa explicação teria sido dada, posteriormente, pelo próprio Tibério, porém atribuindo-a ao nobre propósito de não ofuscar e deixar o terreno livre para os dois rapazes.

Outro motivo que se cogita para o auto-exílio de Tibério em Rodes é o fato de que ele poderia estar se sentindo humilhado pela notória infidelidade da sua esposa Júlia, a quem se atribuía publicamente a participação em vários episódios de adultério e até de orgias.

Consta que Augusto, sincera ou fingidamente, tentou impedir Tibério de partir, somente permitindo a viagem após uma curta greve de fome do genro.  Entretanto, depois da chegada de Tibério à ilha, o imperador passou a preferir que ele permanecesse longe de Roma e a situação de Tibério passou a ser a de um exilado de facto. Há até relatos de que ele chegou a ser hostilizado por algumas pessoas, que percebiam a situação dele como a de alguém que havia caído em desgraça.

Para piorar, Augusto baniu Júlia de Roma, por causa dos adultérios, e decretou, em nome de Tibério, o divórcio de ambos.

Mas o destino, que, segundo a suspeita de muitos, de vez em quando recebia uma mãozinha de sua mãe Lívia, parecia sorrir para Tibério, uma vez que Caio César e Lúcio César morreriam no curto espaço de dois anos, entre 2 e 4 D.C.: Lúcio, por doença, aos 18 anos de idade, e Caio, por ferimentos recebidos em batalha, na Armênia, aos 23 anos.

Com efeito, segundo as fontes, pouco depois da morte de Lúcio César, ocorrida em 20 de agosto de 2 D.C., Augusto acabou cedendo aos apelos da imperatriz Lívia, e os do próprio Tibério, e, depois de oito anos de exílio, autorizou a volta do seu enteado para Roma, onde, após o retorno, ele se manteve como um cidadão privado, afastado de qualquer função pública.

Segundo uma passagem citada por Cássio Dião, em Rodes, Tibério estava acompanhado do famoso astrólogo Trasyllas, que, ao ver no horizonte um navio, teria previsto que ele trazia a mensagem de Augusto e Lívia chamando Tibério de volta à Roma. Prestigiado com o acerto da sua previsão, Trasyllas acompanharia Tibério – que acreditava piamente nos seus poderes de adivinhação – durante boa parte da existência dele.

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(Cabeça de Lúcio César)

Assim, como já mencionado, em 21 de fevereiro de 4 D.C., Caio César morreu na província romana da Lícia, no Oriente, após um prolongado agravamento de sua saúde decorrente de um ferimento sofrido no final do ano 2 D.C., em um ataque traiçoeiro na Armênia, quando ele liderava uma campanha visando pacificar o referido reino-cliente de Roma.

Porém, alguns historiadores, como Tácito e Dião Cássio, suspeitam de que Lívia estaria por trás da morte dos dois rapazes, com o objetivo de afastá-lo do caminho de seu filho Tibério ao trono.

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(cabeça de Caio César)

HERDEIRO DO TRONO

Agora sem os seus dois herdeiros consanguíneos mais próximos, Augusto, naquele mesmo ano de 4 D.C., no dia 26 de junho, adotou formalmente Tibério como herdeiro e sucessor, juntamente com seu último neto vivo, Agripa Póstumo, que era o irmão mais novo dos falecidos e tinha 16 anos de idade. E Tibério também recebeu, mais uma vez, o Poder Tribunício.

Augusto, contudo, ainda não havia abandonado totalmente a esperança de que um parente de sangue da gens Julia viesse a herdar o trono, pois o imperador exigiu, ao adotar Tibério, que este, por sua vez, adotasse o jovem Germânico, que era neto de sua irmã, Otávia, a Jovem, fruto do casamento desta com o Triúnviro Marco Antônio.

Todavia, em uma clara demonstração de que a posição de Tibério agora era inconteste, em 7 D.C., Augusto ordenou o banimento de Agripa Póstumo, que foi exilado para a remota ilha de Planásia, na costa italiana. Vale citar que, de acordo com alguns relatos, o rapaz tinha o temperamento inconstante e era dado a ataques de fúria, um indício de que ele não estava apto para ser imperador.

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(Cabeça de bronze de Agripa Póstumo, Louvre, foto de Mbzt)

Depois disso, Tibério recebeu comandos militares proconsulares (imperium) para combater os inimigos do império na Panônia e na Germânia (ele teve que lutar contra os bárbaros germânicos que haviam destruído as 3 legiões de Varo). Em 13 D.C., Tibério recebeu poder consular compartilhado com Augusto, tornando-se, na prática, coimperador.

TIBÉRIO IMPERADOR

Desse modo, com a morte de Augusto, em 19 de agosto de 14 D.C, um mês antes dele completar a avançada idade de 76 anos, a sucessão do trono em favor de Tibério foi praticamente “automática”.

Mesmo assim, algumas fontes relatam que Lívia teria escondido do público a morte de Augusto, mantendo-a em segredo até que Tibério, que estaria na Dalmácia, chegasse à Roma. Já outras fontes, ao contrário, segundo o relato de Cássio Dião, contam que Tibério chegou a receber pessoalmente algumas instruções e conselhos para o seu governo do próprio Augusto, em seu leito de morte.

De qualquer modo, concomitantemente ou logo depois da morte de Augusto, Agripa Póstumo foi prontamente assassinado em Planásia. Tibério foi acusado de ser o mandante, mas negou veementemente essa acusação no Senado. Até hoje há discussão se ele de fato foi o responsável, ou se isso ocorreu por alguma ordem anterior de Augusto. Seja como for, esta medida extrema logo demonstrou não ter sido inteiramente despropositada, pois, pouco tempo depois do fato, apareceu no Império um impostor fazendo-se passar por Póstumo, e o tratante chegou até a angariar algum apoio entre o populacho, causando algum tumulto público, até ele ser capturado e executado.

Vale observar que não havia precedentes para regular as relações do Príncipe com o Senado, já que Augusto, em seu longo reinado de quarenta anos, sem contar o tempo em que ele esteve à frente da República como Triúnviro, e, depois, em disputa contra Marco Antonio (cerca de 56 anos), ele sempre fizera questão de se apresentar como um magistrado da antiga República, que somente estava ocupando a sua posição excepcional na República em decorrência de crises e guerras civis.

E o fato é que o já citado temperamento frio, desconfiado, introvertido e orgulhoso de Tibério não facilitou em nada a tarefa de conciliar o novo regime que, na prática, era uma monarquia, com a existência de uma assembleia representativa de uma elite aristocrática que acreditava ter direito a administrar o Estado.

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Um episódio, relatado pelo historiador Tácito, já demonstra boa parte dessas dificuldades:

Em uma das primeiras sessões do Senado após a sucessão, quando os senadores discutiam quais os cargos, títulos, poderes e províncias, entre todos aqueles que Augusto tinha paulatinamente reunido sob o seu cetro, iriam ser conferidos a Tibério, o futuro imperador fingia não querer tamanho fardo sobre suas costas, de maneira não muito convincente recusando alguns deles, os quais sugeria que fossem conferidos ao Senado. Porém, essa relutância de Tibério, que foi considerada por muitos como apenas um gesto teatral, alongou-se por tanto tempo, que o senador Asínio Galo, já impaciente com a interminável encenação, perguntou, com ironia:

“Que parte do Império, então, ó César, vós quereis que vos seja confiada?”

E esse impasse durou praticamente um mês. Somente na sessão do dia 18 de setembro de 14 D.C., Tibério enfim seria oficialmente aclamado imperador, sendo, assim, essa demora devida não à resistência do Senado, mas à inesperada relutância do próprio imperador. Ele, por exemplo, recusou os títulos de “Augusto” e de “Pai da Pátria“.

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Ao contrário de Augusto, que, sabia muito bem manobrar seus apoiadores no Senado para que a vontade dele fosse imposta sob uma aparência de naturalidade e de preservação das tradições republicanas, Tibério demonstrou não ter tato nem astúcia para as sutilezas da política. De fato, ele quase sempre se mostrava ambíguo e enigmático para os senadores, parecendo esperar que os mesmos adivinhassem o que ele realmente queria. Todavia, a verdade é que Tibério não aceitava bem quando os senadores manifestavam oposição aos seus desígnios e isso, pouco a pouco, foi criando uma atmosfera de intrigas e de suspeita.

Uma passagem de Tácito exemplifica o desconforto e o desprezo que Tibério parecia sentir com relação ao cargo de imperador e às maneiras dos senadores. Certa vez, ao deixar um evento, ele foi cercado por senadores, que começaram a fazer reverências e pedidos. Tibério, então, teria comentado com um de seus acompanhantes:

“Que homens tão bem apropriados para serem escravos!”

MOTIM NA GERMÂNIA

Logo no início do reinado, estourou uma séria revolta entre as legiões da Germânia e da Panônia, as tropas mais numerosas e mais bem preparadas do Império, que estavam ocupadas lutando contra os bárbaros germânicos. Os soldados cobravam uma gratificação que tinha sido prometida por Augusto e não havia ainda sido paga por Tibério.

Germânico e o filho do imperador, Druso, o Jovem, foram enviados para lidar com os revoltosos e o primeiro, que chegou a correr risco à sua integridade física, conseguiu debelar a revolta. Em seguida, Germânico liderou essas tropas contra a coalizão de tribos germânicas que havia massacrado as legiões de Varo, invadiu a Germânia e conseguiu várias vitórias, recuperando duas das três águias-estandarte perdidas, até ser chamado de volta à Roma por Tibério para celebrar um grande triunfo, em 17 D.C. Para o historiador Tácito, o temor em relação ao grande prestígio popular que essas vitórias deram a Germânico foi o verdadeiro motivo para que Tibério ordenasse a interrupção da campanha.

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Depois do triunfo, Tibério conferiu à Germânico autoridade sobre as províncias orientais do Império Romano, com objetivo de organizá-las e estabelecer as relações com diversos reinos-clientes, e nomeou-o Cônsul para o ano de 18 D.C., ao lado do próprio imperador. Tais medidas pareciam uma demonstração, ao menos publicamente, de que Tibério prestigiava a posição de Germânico como seu sucessor.

MORTE DE GERMÂNICO

No Oriente, contudo, Germânico entrou em atrito com o governador da Síria designado por Tibério, Caio Calpúrnio Pisão. Além de visitar o Egito sem a permissão expressa de Tibério (esta província estava sob a autoridade direta do imperador e, com base em uma lei de Augusto, nenhum senador podia visitá-la sem autorização imperial), Germânico demitiu Pisão e ordenou que este se apresentasse em Roma.

Todavia, enquanto ainda estava em Antióquia, Germânico adoeceu sem causa aparente. Desconfiado de que tivesse sido vítima de feitiçaria ou veneno por parte do governador, Germânico enviou uma carta a Pisão, renunciando formalmente à amizade entre ambos. Logo em seguida, Germânico faleceu, em 10 de outubro de 19 D.C.

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Quando a notícia da morte de Germânico chegou à Roma, houve comoção popular e muitos suspeitaram de que Tibério, ou sua mãe, Lívia, que era amiga de Plancina, a esposa de Pisão, poderiam estar por trás do suposto envenenamento. Tibério ordenou uma breve investigação e Pisão foi preso e enviado para ser julgado pelo Senado. A acusação de envenenamento foi logo arquivada, mas a de traição foi mantida. Durante o julgamento, Pisão foi encontrado morto em sua cela, supostamente tendo cometido suicídio. Obviamente, o fato contribuiu para aumentar as suspeitas sobre Tibério e muitos consideraram que a morte de Pisão teria sido uma “queima de arquivo”.

Apesar do suicídio de Pisão, o julgamento dele prosseguiu e o veredito foi a sua condenação pelo crime de “maiestas“, em 20 D.C., que, pela primeira vez em Roma, foi considerado como abrangendo o imperador e a casa imperial, já que Germânico, enquanto membro desta, teria tido a autoridade desobedecida por Pisão. Essa mudança mostra que a transição da República para a Monarquia estava bem avançada, apesar das aparências que Augusto e Tibério procuraram manter.

O caso da morte de Germânico mobilizou tanto a opinião pública romana- segundo Suetônio, vários muros foram pichados com a frase: “Dê-nos Germânico de volta!” – que Tibério foi obrigado a tornar públicas as atas do julgamento de Pisão, o que hoje sabemos graças à descoberta, nos anos 80 do século XX, próximo à Sevilha, na atual Espanha, de tábuas de bronze contendo o texto do Senatus Consultum de Gn. Pisone Patre, que, basicamente, vem a ser um decreto do Senado Romano contendo a versão oficial sobre o assunto (cf. https://scholar.princeton.edu/sites/default/files/SCCPP_0.pdf). Entre outras coisas, o texto confirma o relato de Tácito de que a imperatriz Lívia intercedeu para que sua amiga Plancina fosse perdoada.

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Apesar das suspeitas de que Tibério estaria implicado na morte de Germânico, até este evento as ações do imperador tinham sido marcantemente em favor da manutenção do status do falecido como o primeiro na linha de sucessão imperial. Porém, a viúva de Germânico, Agripina, a Velha, não escondia de ninguém que suspeitava de Tibério e Lívia. Sintomaticamente, os dois não compareceram ao funeral de Germânico.

Consta, inclusive que, certa vez, Tibério, ouvindo Agripina queixar-se do assassinato do marido, teria recitado, em grego, para ela o seguinte verso de um então famoso poema clássico:

Porque não és rainha, eu te fiz algum mal?

Morto Germânico, Tibério passou a investir somente em seu único filho natural, Druso, o Jovem, que era cerca de um ano mais novo do que o falecido, e cuja carreira pública progredia junto com a do irmão adotivo (parece que Tibério copiou Augusto e planejou a sua sucessão de modo semelhante que o seu antecessor havia tentado em relação a Caio e Lúcio César: ou que ambos reinassem em conjunto, ou que um servisse como substituto no caso do outro morrer antes da sucessão).

Assim, em 22 D.C., Druso recebeu o Poder Tribunício, demonstrando que ele estava sendo preparado para suceder o pai.

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(Busto de Druso, o Jovem)

Enquanto isso, aparentemente Tibério ressentiu-se com o aumento de sua impopularidade causada pela morte de Germânico e começou, paulatinamente, a se ausentar mais e mais de Roma, passando temporadas no litoral da Campânia, região que, desde a República, era considerada como um balneário de luxo para a elite romana.

SEJANO E MORTE DE DRUSO

Na época em que Germânico morreu, já se notava o grande poder que o Comandante da Guarda Pretoriana, Lúcio Élio Sejano exercia em Roma. Ele expandiu a guarnição dos pretorianos para um efetivo de cerca de nove mil homens, os quais, durante o reinado de Augusto, estavam espalhados em várias cidades nos arredores de Roma, e que por iniciativa de Sejano foram centralizados em um grande quartel fortificado, adjunto às muralhas da cidade, por volta de 18 D.C.

Sejano era membro da classe equestre, e sucedera o seu pai, Lucius Seius Strabo, como comandante dos pretorianos. A família de Sejano era bem relacionada com a classe senatorial, seu avô paterno foi casado com a filha de Caio Mecenas, o rico e influente amigo de Augusto, e o próprio Sejano foi adotado por Caio Élio Galo, que foi governador do Egito no reinado de Augusto. Acredita-se que a esposa de Sejano, Apicata, era filha do rico e famoso gourmet Marcus Gavius Apicius (Apício). Segundo as más línguas, antes de se casar com Apicata, Sejano havia funcionado como amante do sogro. Não obstante, Sejano tornou-se amigo íntimo de Caio César, o neto de Augusto, e, portanto, apesar de ocupar uma posição social inferior à da alta aristocracia, ele acabou ficando próximo da casa imperial.

O poder de Sejano tornou-se tão destacado que Tibério, certa vez, referiu-se a ele como meu sócio de trabalho” (socius laborum). E Sejano, de fato, tinha altas pretensões. Em 20 D.C., ele arranjou uma promessa de casamento de sua filha, Junilla,  com o filho do sobrinho do imperador, Cláudio, quando as duas crianças tinham apenas quatro anos de idade. Porém, os planos de Sejano ingressar na família imperial iriam por água baixo, porque, poucos dias depois do arranjo, o menino morreria engasgado com uma pera.

Porém, Druso, o Jovem não tinha boas relações com Sejano e certa vez, segundo Tácito, ele chegou a dar um soco no Prefeito Pretoriano, sendo que, em outra ocasião, o rapaz teria reclamado que:

“Um estranho tenha sido convidado para auxiliar no governo enquanto o filho do imperador estava vivo” 

Mais grave do que tudo isso foi o fato de Sejano ter seduzido Livilla, a esposa de Druso, de quem ele havia se tornado amante.

Porém, em 14 de setembro de 23 D.C., Druso, o Jovem morreu, aos 36 anos de idade, de causa ignorada. Para alguns historiadores antigos, como Tácito e Dião CássioSejano foi o responsável pela morte de Druso por envenenamento, empresa na qual ele teria sido auxiliado por Livilla, que também era irmã do finado Germãnico.

Efetivamente, de acordo com o relato de Cássio Dião, oito anos após a morte de Druso, a esposa de Sejano, Apicata, teria enviado uma carta a Tibério, revelando que o marido e Livilla tinham envenenado o herdeiro. A acusação não parece muito plausível e o fato é que, se o adultério de Sejano e Livilla realmente ocorreu, e se a morte de Druso alguma vez lhe pareceu suspeita, Tibério continuou, durante muitos anos, a confiar em Sejano, e não demonstrou suspeitar da participação do auxiliar na morte do filho.

Seja como for, em 25 D.C., Sejano pediu formalmente a Tibério permissão para se casar com Livilla, o que foi recusado pelo velho imperador, que, após exaltar os méritos do subordinado, ressaltou, delicadamente, que ele, tendo nascido na classe Equestre, estava abaixo da posição social de Livilla, uma integrante da família imperial.

Com a morte de Druso, o Jovem, os jovens filhos de GermânicoAgripina, a Velha: Nero Julius Caesar Germanicus e Drusus Julius Caesar Germanicus, foram adotados por Tibério e adquiriram a condição de sucessores naturais dele, o que colocaria todos na alça de mira de Sejano.

AUTO-EXÍLIO EM CAPRI 

No ano seguinte, 26 D.C.Tibério foi viver na Ilha de Capri, em um novo auto-exílio voluntário que, desta vez, duraria onze anos, deixando, informalmente, o governo imperial nas mãos de Sejano, aparentemente a pessoa em quem ele mais confiava. A confiança que o imperador depositava em Sejano aumentou ainda mais após o incidente no qual o teto da gruta (grotto) da Villa de Tibério, em Sperlonga, adornada por primorosas esculturas, onde ele costumava fazer banquetes, desabou e Sejano protegeu Tibério com o próprio corpo, das rochas que caíam.

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(1- Grotto da Villa de Tibério, em Sperlonga, e 2- parte das esculturas restauradas, foto: Carole Radatto)

Não obstante, durante algum tempo, Tibério chegou a deixar Capri e ele viajou até as cercanias de Roma, talvez, quem sabe, com a intenção de deixar os senadores em suspense, pois ele, em certas ocasiões, enviava despachos informando que estava vindo à Cidade.

Certamente, a conhecida misantropia do imperador foi um dos motivos que o levou a se retirar de Roma e ir viver na maravilhosa Villa Jovis, que ele mandou construir em Capri. O outro teria sido a tristeza causada pela morte do filho.

Em Capri, o avanço da senilidade – ele tinha 68 anos de idade – e uma misteriosa doença que lhe cobria o rosto e o corpo de feridas (alguns a comparam à sífilis, e, embora a ciência tradicional considere que essa doença não era conhecida na Europa naquela época, estudos recentes parecem indicar que ela ali já circulava durante o Império Romano) aos poucos deram vazão a uma personalidade paranoica, cruel e devassa. Se for verdade o que Suetônio conta, em Capri aconteceram atos os mais tenebrosos de depravação sexual e assassinatos.

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villa jovisUnknown_d_0_0_800.20170804192902(Villa Jovis, Capri, 1- maquete e 2- estado atual)

MORTE DE LÍVIA

Em 29 de setembro de 29 D.C., com a provecta idade de 87 anos, morreu Lívia Drusila. a mãe de Tibério, que, por disposição testamentária de Augusto, recebera o nome de Júlia Augusta. Lívia permaneceu detentora de grande poder durante boa parte do reinado de Tibério, que passou a se ressentir da ascendência pessoal e da influência excessiva da mãe nos negócios do Estado. Houve até quem dissesse que o principal motivo da ida de Tibério para Capri foi o fato dele não suportar mais a personalidade dominadora da mãe.

Consta que, ao ser informado da morte de Lívia e dos preparativos para o funeral, Tibério não viajou, permanecendo em Capri por vários dias, até que os encarregados da cerimônia desistiram de esperar a chegada dele, tendo em vista que o corpo da falecida já estava apodrecendo. Então, Tibério acabou enviando seu sobrinho-neto, Gaius Julius Caesar Germanicus, apelidado Calígula”, o filho mais novo de Germânico e Agripina, a Velha, para fazer a oração fúnebre. E o imperador também vetou que o Senado divinizasse a mãe.

Livia_y_Tiberio_M.A.N._01 foto Miguel Hermoso Cuesta

(Estátuas de Lívia e de Tibério, lado a lado)

“REGÊNCIA” DE SEJANO

Enquanto isso, Sejano, que controlava toda informação entre Roma e Capri, agia como virtual governante de Roma, ainda mais agora que a intimidadora presença de Lívia desaparecera, e começou a eliminar os seus desafetos e adversários políticos. Um alvo preferencial de Sejano foi Agripina, a Velha, a esposa do falecido Germânico, que foi exilada em 30 D.C. Ela vinha acusando publicamente Tibério e Lívia de serem os mandantes da morte do esposo e reuniu em torno de si um grupo de senadores que faziam oposição a Sejano.

Sejano parece ter instigado Tibério para que este escrevesse uma carta ao Senado denunciando Agripina e seu filho primogênito, Nero Julius Caesar Germanicus (não confundir com o futuro imperador Nero), de conspiração. Após bastante relutância (Tibério teve que renovar as acusações), o Senado acabou banindo os dois, declarando-os “inimigos públicos”.

(Cabeças de Agripina, a Velha e de seu filho Nero Julius Caesar Germânico, National Archaeological Museum of Tarragona)

Agripina foi exilada para a ilha de Pandatária e lá, após sofrer maus-tratos, morreu de inanição voluntária, em 33 D.C.. Nero Julius Caesar Germanicus também foi exilado, no mesmo ano que a mãe, para a ilha de Pontia, e lá ele morreria no ano seguinte, compelido a se suicidar, em 31 D.C.

Por sua vez, o filho do meio de Agripina, Drusus Julius Caesar Germanicus, foi acusado por um senador de estar tramando contra Tibério. Consta que foi Amelia, a esposa de Drusus, quem o denunciou para Sejano, que a teria seduzido. Ele foi preso e confinado a uma cela no Palatino, também em 30 D.C.

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(Possível estátua de Drusus Julius Caesar, foto Sailko)

Em 31 D.CCalígula, que estava morando junto com sua avó Antônia, foi residir com Tibério na Villa Jovis em Capri.

A julgar pelo relato de SuetônioCalígula habilmente soube fingir ser inofensivo e servil a Tibério e, graças a isso teria conseguido sobreviver ao destino da sua família. Se os chocantes relatos do citado historiador forem verdadeiros, em Capri, Calígula deve ter sofrido a influência maléfica dos inúmeros atos de perversão sexual e crueldade relatados na “Vida de Tibério”, livro integrante da coletânea de biografias conhecida como “Os doze Césares”.

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(Cabeça de Calígula, com as cores originais que recobriam o mármore)

QUEDA DE SEJANO

Parecia que Sejano nessa época estava no auge de seu poder: o aniversário dele foi incluído no calendário como uma data a ser comemorada e várias estátuas foram erguidas em sua homenagem. E, em 30 D.C., ele conseguiu finalmente a tão almejada conexão familiar com a família imperial, obtendo a autorização para o casamento com Livilla, Nesta toada, no ano seguinte, Sejano foi designado Cônsul, na companhia de Tibério. Nas palavras de Dião Cássio,

parecia que Sejano era o Imperador, e Tibério, o governante de uma ilha.

Mas, então, naquele mesmo ano, Tibério começou a tomar atitudes ambíguas em relação à Sejano. Ele nomeou seu sobrinho Calígula para um prestigioso posto de sacerdote, gesto que foi recebido com entusiasmo pela Plebe, e insinuou que o rapaz poderia ser o seu sucessor.

Sejano chegou a ficar desconfiado de que talvez suas pretensões poderiam fracassar até que o Senado Romano recebeu um despacho oficial de Tibério convocando uma sessão para o dia 18 de outubro de 31 D.C., na qual  Sejano receberia o Poder Tribunício, acompanhado de uma carta de Tibério que deveria ser lida na sessão, ambos entregues por Névio Sutório Macro, que até pouco tempo era chefe dos Vigiles, o corpo de guardas-bombeiros criado por Augusto. Seguindo as ordens de Tibério, Macro informou o teor da carta a Memmius Regulus, que havia sucedido Sejano como Cônsul (Tibério pouco tempos antes havia renunciado ao cargo, forçando Sejano a segui-lo).

No dia designado, Sejano compareceu ao Templo de Apolo Palatino, onde, naquela ocasião, o Senado estava se reunindo, lotado de Senadores, que imediatamente o cercaram com bajulações. Enquanto a longa carta era lida, contendo uma introdução sobre assuntos variados e algumas menções lacônicas de Tibério ao seu “sócio“, o edifício foi cercado pelos vigiles, comandados por Graecinus Laco

A leitura da carta prosseguiu e, para a surpresa de todos, o tom inicialmente amistoso de Tibério, transformou-se na acusação de vários crimes contra Sejano, terminando por ordenar a sua prisão.

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(Templo de Apolo Palatino, acima à esquerda, nesta reconstrução do complexo de palácios e prédios imperiais, a maioria construídos posteriormente na Colina do Palatino)

O espanto logo se transformou em comoção, e os senadores que estavam sentados próximos a Sejano, afastaram-se dele correndo. Sejano continuou sentado, imóvel -ele somente levantou-se quando Regulus, pela terceira vez, ordenou que ele ficasse de frente para a assembléia.

Quando a carta terminou de ser lida, Regulus perguntou se algum senador se opunha à prisão de Sejano, mas ninguém teve coragem de se manifestar contra. Ele, então, foi levado para a prisão por Laco.

No caminho para a prisão, Sejano foi hostilizado pelo populacho, que zombou acerbamente das suas supostas pretensões ao trono. Naquele mesmo dia, o Senado, ao saber da reação da Plebe e perceber que nenhum soldado pretoriano aparecera para defender o chefe, votou pela condenação de Sejano à morte, decretando também a damnatio memoriae (destruição de todas as estátuas e supressão do seu nome dos registros públicos).

O que muitos senadores ainda ignoravam, enquanto hesitavam temendo alguma reação de soldados fiéis a Sejano, é que Tibério havia dado à Macro um documento nomeando-o novo comandante da Guarda Pretoriana, quando despachou-o para Roma para convocar o Senado. Assim, enquanto Laco cercava o Senado e a carta era lida, Macro já havia assumido o comando no quartel da Guarda Pretoriana.

Sejano foi executado e seu corpo atirado para rolar pelas “Escadas Gemônias“, onde ficou por três dias sendo vilipendiado pela turba (Parece que essa forma de punição foi inaugurada no reinado do próprio Tibério).  Os filhos de Sejano: Lúcio Seio Estrabão, Capito Elano e Junilla, também seriam executados, o primeiro em 24 de outubro, e os outros em dezembro de 31 D.C., pelo simples fato de serem filhos dele. Como se não bastasse, a ainda adolescente Junilla, antes de ser estrangulada, foi estuprada pelo carrasco, pois o costume proibia executar uma virgem.

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(Escadaria que leva ao Capitólio, em Roma, talvez construída sobre as Escadarias Gemônias)

De acordo com o historiador Flávio Josefo, foi Antônia, a Jovem, cunhada de Tibério e mãe do falecido Germânico, quem denunciou Sejano a Tibério. Ela teria enviado uma carta ao imperador, que estava em Capri, e, supostamente, ignorava as ações do subordinado, contando dos planos dele para tomar o poder, nos quais estaria sendo auxiliado pela amante, Livilla, filha da própria Antônia.

Livilla foi poupada de ser executada, mas foi entregue à mãe, em cuja casa ficou em prisão domiciliar, segundo consta, trancada em um quarto sem receber alimentação, até morrer de inanição.

Quando Apicata, a viúva de Sejano, soube da execução do filho, ela enviou, antes de se suicidar, uma carta a Tibério, acusando Livilla de ter envenenado o próprio marido, e filho do imperador, Druso, o Jovem, em conluio com seu amante Sejano. Muitos historiadores não dão crédito a essa acusação de Apicata, atribuindo-a à vingança de uma esposa traída contra a amante que estava em vias de substituí-la como esposa.

O fato é que a descoberta da conspiração instaurou um frenesi persecutório em Roma e vários senadores que tinham relacionamento com Sejano foram executados.

Tibério mais tarde declararia ao Senado que decidiu remover Sejano quando soube da participação dele na perseguição à Agripina e na morte do filho dela, mas essa explicação não convenceu nem os contemporâneos, nem os historiadores modernos, uma vez que Agripina continuou exilada, até morrer, em 33 D.C, de inanição. quase dois anos após a execução de Sejano, o mesmo ocorrendo com o filho dela, Drusus Julius Caesar, que também morreu de inanição, em sua cela no Palatino, em 33 D.C., igualmente de inanição (consta que ele, famélico, chegou a comer o colchão em que dormia). A coincidência no ano e forma das mortes é um forte indício de que as mortes deles foram ordenadas por Tibério.

TIBÉRIO COMO GOVERNANTE

Tibério era estóico e, durante a juventude e parte da sua vida adulta, ele parece ter se conduzido pelos rígidos padrões morais dessa corrente filosófica. Talvez por isso, a marca do seu reinado tenha sido a de uma austeridade nos gastos públicos, política que acarretou um grande superávit no tesouro do Estado. Consequentemente, em termos econômicos, houve grande prosperidade no Império. Assim, quando morreu, Tibério deixou nos cofres do Tesouro a formidável quantia de três bilhões e setecentos milhões de sestércios.

Aureus_à_l'effigie_de_Tibère

(Aureus de Tibério, c. 27/30 D.C., foto cgb)

Por outro lado, a falta de espetáculos públicos e de outras formas de propaganda tornou-o antipático para a plebe romana.

Procurou-se controlar os excessos dos governadores das províncias e nomear homens capazes e de boa reputação para administrá-las. Ficou famoso o episódio em que o governador do Egito, Aemilius Rectus, enviou à Roma um volume de tributos maior do que o normal, e recebeu de Tibério a seguinte advertência:

“Eu quero minhas ovelhas tosquiadas, mas não depiladas!”

A cidade de Tiberias, na Galiléia, um reino-cliente de Roma, foi fundada pelo tetrarca Herodes Antipas, em 20 D.C., e foi assim batizada em homenagem a Tibério.

Outro motivo que contribuiu para a grande prosperidade econômica experimentada durante o reinado de Tibério foi o fato dele ter evitado travar campanhas militares, após as campanhas de Germânico, valendo-se precipuamente da diplomacia nas questões de interesse do Estado. Entre as poucas ocorrências bélicas estão a supressão de uma revolta gaulesa liderada por Julius Sacrovir, em 21 D.C., a vitória final contra uma rebelião berbere na Numídia, comandada pelo chefe Tacfarinas, que, após dez anos, foi finalmente derrotado, em 24 D.C., e uma vitória contra tribos montanhesas insubmissas na Trácia, em 26 D.C.

Em 28 D.C., um forte romano foi cercado pela tribo germânica dos Frísios, na Floresta Baduhenna, na atual Holanda. Os Frísios estavam insatisfeitos com o tributo que pagavam como clientes de Roma e mataram os coletores de impostos romanos. Destacamentos da V Legião, após um duro combate, conseguiram repelir os bárbaros, mas 900 soldados romanos morreram. Seguindo política de Tibério de evitar guerras custosas, não houve nenhuma represália e, de acordo com Tácito, o assunto foi deixado de lado.

Politicamente, o reinado de Tibério foi um reinado de perseguições e de julgamentos de senadores por traição (maiestas), instalando-se uma cultura de delações e do uso de informantes.

Segundo Dião Cássio, Tibério também baniu praticantes de religiões estrangeiras que residiam em Roma, inclusive muitos judeus, no caso destes, supostamente motivado pelo fato de que eles estariam fazendo muitas conversões entre os habitantes da cidade. Curiosamente, muitos estudiosos acreditam que provavelmente, foi o seu braço-direito Sejano quem nomeou Pôncio Pilatos governador da Judéia, entre 26 e 36 D.C, sendo que Jesus Cristo foi crucificado por volta do ano 30 D.C.

FINAL DO REINADO E MORTE DE TIBÉRIO

Após a queda de Sejano, parece que Tibério desiludiu-se e desinteressou-se por completo do cargo de imperador e permaneceu em Capri, deixando a administração do Império por conta dos funcionários da casa imperial e dos governadores das províncias. Segundo os relatos, ele sequer deu-se ao trabalho de preencher os cargos que iam ficando vagos, e o Senado, por temor de desagradá-lo, ficava de mãos atadas.

Em 33 D.C., Tibério nomeou seu sobrinho, Gaius Julius Ceasar Germanicus (Calígula), Questor honorário, e, cerca de dois anos depois, em 35 D.C., ele fez um testamento no qual Calígula, então com 23 anos de idade, junto com e seu neto, Tibério Gemelo, filho de Druso, o Jovem, que tinha apenas 15 ou 16 anos, eram designados como herdeiros de suas propriedades. Segundo Tácito, nessa ocasião, quando os dois rapazes estavam em Capri, Tibério abraçou Gemelo e, em lágrimas, disse para Calígula:

“Você o matará, e um outro irá te matar”

Tiberius_Gemellus

(Raríssima moeda com a efígie de Tiberius Gemellus, cunhada em 37 D.C., foto Classical Numismatic Group)

Tibério nunca mais voltou à Roma e a sua reclusão em Capri aumentou os boatos sobre o que ele fazia na ilha. A sua saúde foi dando sinais de que estava indo embora, mas o velho imperador, temendo, talvez, que a sua fraqueza física incentivasse alguma tentativa de assassinato, fazia o possível para não a demonstrar em público, e até evitava que o seu médico lhe medisse o pulso na frente dos outros.

Em 16 de março de 37 D.C., Tibério agonizava em sua outra Villa, em Misenum, e a sua morte era iminente. Em certo momento, ele parou de respirar e os presentes logo foram congratular Calígula como o novo imperador. Porém, segundo Tácito, o imperador moribundo voltou a respirar, o que deixou a todos aterrorizados. Então, naquele mesmo dia, Macro teria entrado no quarto e sufocado Tibério, usando a a colcha e os lençóis. No relato de Dião Cássio, Macro teria sido ajudado por Calígula. Já Suetônio, embora narre fatos semelhantes, adiciona que antes Calígula teria envenenado Tibério e que, aquele, ao tentar tirar o anel com o selo do imperador do dedo do tio, ao perceber que esse resistia, sufocou-o com o travesseiro.

Assim morreu Tibério, aos 78 anos de idade. O Senado e Povo Romano (pelo menos o povo de Roma e de parte da Itália) comemoraram a morte do antipático imperador e consta que, quando o cortejo fúnebre trazendo o cadáver de Tibério chegou à Cidade, a plebe nas ruas, ameaçando jogar o corpo dele nas águas do rio, gritava:

“Tibério ao Tibre!”

O Senado recusou-se a divinizar Tibério, mas ele foi sepultado no Mausoléu de Augusto, tendo um funeral apropriado e com seu sucessor, Calígula, fazendo a oração fúnebre (eulogia).

Tiberius-as-Jupiter

CONCLUSÃO

Na opinião dos historiadores romanos antigos, com exceção de Veleio Patérculo, não há dúvida de que Tibério faz parte do time dos “maus imperadores”.

Porém, a leitura dos textos desses membros da classe senatorial, não permite um julgamento tão fácil.

Só o fato de Tibério ter reinado durante quase 23 anos já foi um feito importante. O seu reinado serviu para consolidar a maior parte das instituições e práticas político-administrativas forjadas por Augusto.

Em seus primeiros anos, parece que Tibério efetivamente procurou dividir o poder com o Senado, participando ativamente das sessões desta assembleia e tentando fazer com que os senadores assumissem diversas tarefas. Ele escolheu bons administradores para as províncias e a manutenção da paz, e a parcimônia com os gastos públicos assegurou uma grande prosperidade econômica, com grande valorização da moeda.

Porém, a personalidade fria e distante e a falta de tato político de Tibério não criaram empatia com a classe senatorial. Talvez a sua relutância em assumir totalmente os poderes de Augusto fosse fruto da consciência de sua incapacidade para o jogo político. Mas pode também ter sido apenas uma maneira desastrada e inábil de imitar o primeiro imperador. De qualquer modo, a postura de Tibério contribuiu para agravar o grande problema enfrentado durante boa parte do período imperial: o não-reconhecimento do caráter monárquico do regime pela sua própria cúpula e elite política, com a consequente ambiguidade na delimitação dos papéis do imperador e do Senado.

O grande divisor de águas no reinado de Tibério parece ter sido a morte de Germânico, que, designado como seu sucessor ainda durante a vida de Augusto (que obrigou Tibério a adotá-lo), sempre foi uma sombra capaz de ofuscá-lo e uma opção de governante muito mais querida pela população. Diga-se, como atenuante da suposta responsabilidade de Tibério pela morte do filho adotivo, que, em vários episódios da vida de Germânico, transparece que este realmente cortejava a população e os senadores e agia com demasiada independência em relação a Tibério.

A forma como Tibério lidou com a hostilidade da viúva de Germânico, Agripina, a Velha, que sem dúvida reuniu em torno de si um núcleo de oposição ao imperador, também parece excessiva, já que isso importou na destruição quase que total da própria dinastia, somente deixando vivo Calígula e as irmãs dele, logo ele que, em seguida, se tornaria o pior de todos os imperadores Júlio-Cláudios, e cuja personalidade doentia pode muito bem ter sido agravada pelo clima de terror que a sua família viveu sob Tibério.

A ida de Tibério para Capri pode denotar um traço de misantropia em sua personalidade, mas também pode ter sido uma maneira de lidar com a desilusão e o desânimo que ele sentia pela função de monarca. É difícil compreender como Tibério pôde ter deixado que Sejano concentrasse tanto poder e porque ele depositou em Sejano tanta confiança. Isso tanto aparenta ter sido um sinal de fraqueza psicológica após a morte do filho, mas também pode ter sido uma forma maquiavélica de instaurar um reinado de terror, usando Sejano como instrumento, colocando a culpa no subordinado. Se é que houve mesmo tal “reinado de terror”, pois, em 23 anos de governo, as execuções registradas foram em número menor comparadas com as que ocorreriam em alguns reinados posteriores. De qualquer forma, Tibério fica com a má distinção de ter sido o primeiro imperador a recorrer aos processos de lesa-majestade (maiestas).

Porém, a facilidade com que Tibério prendeu e executou Sejano mostra que o Principado estava consolidado como instituição, e ainda era grande o prestígio que a dinastia dos Júlio-Cláudios gozava entre a população civil e o Exército, mesmo quando o seu representante era antipático e pouco querido.

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AURELIANO, O RESTAURADOR DO MUNDO

Moeda de Aureliano, como “Restaurador do Mundo”

1- Origem e início da carreira

Em 9 de setembro de 214 D.C nasceu, em Sirmium, na província romana da Panônia, Lucius Domitius Aurelianus, o imperador romano Aureliano (OBS: algumas fontes também mencionam que ele teria nascido na província da Dacia Ripensis).

Maquete de Sirmium, foto mediaportal.vojvodina.gov.rs, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons

Aureliano era filho de um humilde colono romano, provavelmente um soldado veterano assentado nas terras de um certo senador de nome Aurelius, com cuja filha seu pai acabou casando-se, tendo ele nascido dessa união, recebendo, portanto, o seu sobrenome pela parte da mãe. Esta é a versão da frequentemente fantasiosa História Augusta, que também menciona que a mãe dele seria sacerdotisa no templo do Deus-Sol.

Mas alguns historiadores acreditam que Aureliano era apenas o filho de um soldado ilírio que deve ter recebido a cidadania romana no reinado de Caracala, que a estendeu a todos os homens livres do Império, em 212 D.C. Em gratidão, sabe-se que boa parte deles adotou o sobrenome de “Aurelius”, em homenagem àquele imperador, cujo nome oficial era “Marcus Aurelius Antoninus”.

Busto do Imperador Caracala

Como tantos outros soldados de origem Ilíria durante o século III, Aureliano alistou-se no exército romano, seguindo a carreira do pai, e ele foi sendo promovido graças a seus méritos militares. A História Augusta conta que Aureliano tinha uma boa aparência, era alto e forte, e que ele costumava se exercitar com as armas, sendo muito hábil com a espada, mas muito severo em relação à disciplina dos seus comandados:

“(…) ele era um homem atraente, belo de se olhar devido a sua graça varonil, bem alto de estatura, e de musculatura muito forte; ele era um tanto dado ao vinho e a comida, porém ele raramente se entregava à suas paixões; ele era muito severo e aplicava uma disciplina que não tinha igual, estando extremamente pronto para desembainhar a sua espada. E de fato, como havia no Exército dois tribunos, ambos chamados Aureliano: ele e um outro, que posteriormente foi capturado junto com Valeriano, os soldados deram-lhe o apelido de “Espada â mão”, de modo que, se alguém perguntasse qual dos dois Aurelianos tinha feito algo ou praticado qualquer ação, a resposta seria “Aureliano Espada à Mão”, e aí saberiam que foi ele.”

História Augusta, Vida de Aureliano, 6

 

Há dúvida se esta cabeça de estátua de imperador retrata Aureliano ou Cláudio Gótico

Segundo a História Augusta, o desempenho de Aureliano chamou a atenção de um certo comandante (Dux) chamado Ulpius Crinitus, que o nomeou para comandar como Legado a III Legião. Comandando esta unidade, Aureliano derrotou uma força de Godos. Agradecido, Ulpius Crinitus adotou Aureliano como herdeiro, cerimônia da qual participou o próprio imperador Valeriano. É possível que a esposa de Aureliano, Úlpia Severina, fosse filha deste Úlpio Crinitus. Cumpre observar que a real existência de Ulpius Crinitus, que seria da família do imperador Trajano, não é inconteste.

Aureliano e Úlpia Severina tiveram uma filha, cujo nome não foi preservado.

Após a humilhante captura de Valeriano pelos persas, em 260 D.C, seu filho, Galieno, passou a reinar sozinho. Esta derrota para a Pérsia lançou o império romano no caos, e, naquele mesmo ano, visando proteger-se melhor das crescentes invasões germânicas, a Gália, juntamente com a Germânia e a Britânia, se separaram na prática do Império Romano, quando o legado imperial, o usurpador Póstumo, estabeleceu o que seria chamado de “Império Gaulês”.

território controlado pelo Império Gaulês, em vermelho e roxo, foto Aurelian272, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons.

Durante o reinado de Galieno, o sucesso de Aureliano fez com que ele fosse designado para integrar a cavalaria de elite que foi instituída por aquele Imperador (Comitatus), da qual ele acabou se tornando comandante. Esta força, baseada em Milão, atuava como o núcleo de um exército central móvel e, para alguns, representava uma transição de uma estratégia de defesa estática, adotada desde o principado de Augusto, para uma focada na defesa em profundidade.

2- Ascensão

No reinado de Cláudio II “Gótico, sucessor de Galieno, assassinado em setembro de 268 D.C, ele também um ilírio nativo de Sirmium, Aureliano foi nomeado Comandante-em-chefe da Cavalaria do Exército Romano, e, liderando um grande ataque montado, ele participou decisivamente da grande vitória obtida pelo novo imperador contra os Godos, na Batalha de Naissus, em 268 ou 269 D.C. Observe-se que alguns historiadores acreditam que Aureliano pode ter participado da conspiração que resultou no assassinato de Galieno.

Em seguida, juntos, na Batalha do Lago Benacus (Lago de Garda), ocorrida provavelmente no início de 269 D.C., Cláudio Gótico e Aureliano derrotaram uma crítica invasão da Itália pelos Alamanos, que tinham se aproveitado da rebelião de Aureolus, um general que se rebelara contra Galieno, para invadir a Península.

A cavalaria romana de elite, em período anterior a Aureliano. foto I, Adsek, CC BY-SA 3.0 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/, via Wikimedia Commons

Porém novamente os Godos, agora aliados com os Hérulos, Gépidas e Bastarnae, voltaram a atacar o Império nos Bálcãs e Aureliano teve participação vital em combater essa incursão com sua cavalaria dálmata. Porém, os bárbaros resistiram duramente até 270 D.C, quando uma peste irrompeu na Península afetando ambos os exércitos.

O imperador Cláudio Gótico acabou contraindo a peste e teve que abandonar as operações, que foram concluídas com sucesso por Aureliano, a quem coube o comando das tropas.

3- Aureliano imperador

Ainda no 1º quadrimestre de 270 D.C, chegou a notícia de que Cláudio Gótico morreu em Sirmium, da doença que havia contraído. O Senado imediatamente reconheceu o irmão do imperador falecido, Quintilo, como sucessor. Porém, em maio, o exército sob o comando de Aureliano também o aclamou imperador.

Rapidamente, as tropas de Aureliano derrotaram o exército de Quintilo e este foi assassinado ou cometeu suicídio.

Aureliano assumiu um Império Romano em grave crise e em processo de desagregação. Após a derrota de Valeriano para a Pérsia Sassânida, as províncias romanas da Síria, da Arábia e do Egito procuraram a proteção da cidade autônoma de Palmira, governada pelo vigoroso líder Odenato, que conseguiu repelir os Persas.

Palmira era uma cidade habitada por uma mescla de povos semitas, em sua grande maioria Arameus (ou Aramaicos) e Árabes. Localizada ao redor de um oásis no meio de um vasto deserto ela fica entre 150 e 200 km dos rios perenes mais próximos, dependendo do oásis e de cisternas para uma agricultura viável. Entretanto, a cidade prosperou como importante centro na rota de caravanas comerciais que ligavam o Mediterrâneo ao Império Persa e à Índia.

Encorajado pelo sucesso e pelo declínio romano, Odenato proclamou-se “Rei dos Reis”, mas ainda mantendo-se formalmente subordinado à Roma. Porém, após ser assassinado, em 267 D.C., ele foi sucedido por seu filho pequeno, Vaballathus, e o poder passou a ser exercido por sua viúva, Zenóbia, como regente. Em seguida, embora ainda sob o pretexto de agir em nome do Império Romano, Zenóbia invadiu o Egito, em outubro de 270 D.C. Aliás, vale citar que a rainha reivindicava ser descendente direta da célebre rainha do Egito, Cleópatra.

Contudo, em 271 D.C, Zenóbia assumiu para si e para o filho os títulos de Augustos, criando o que ficaria conhecido como “Império de Palmira” (ou também Império Palmirense. ou Palmireno).

O Império de Palmira,, em 271, em amarelo. Em verde, o Império Gaulês. Foto User:Pomalee, User:Игорь Васильев, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

4- Invasões e revoltas

Inicialmente, quando a notícia da incorporação das províncias orientais pelo Império de Palmira chegou ao seu conhecimento, Aureliano estava impossibilitado de atacá-lo pelo fato de estar envolvido com invasões dos Iutungos, Vândalos e Sármatas no norte da Itália, as quais ele conseguiu derrotar.

Ademais no ano seguinte, uma nova invasão bárbara, dos Alamanos ou dos Iutungos, obrigou Aureliano a ir combatê-los no norte da Itália, e finalmente conseguiu derrotá-los na Batalha de Fano, no Rio Metauro, vitórias pelas quais ele recebeu o título de “Germanicus Maximus”.

As fontes também relatam três revoltas lideradas respectivamente por Septimius, Urbanus e Domitianus, personagens obscuros, que provavelmente eram comandantes de tropas nas províncias afetadas pelas invasões bárbaras, cujas rebeliões devem ter tido breve duração.

De volta à Roma, percebendo que a ameaça dos bárbaros ao coração do Império passaria a ser uma constante, Aureliano ordenou a construção do grande sistema de muralhas defensivas da Cidade, protegendo uma área de 1.400 hectares e que ficariam conhecidas como as “Muralhas Aurelianas”. As obras durariam 5 anos e somente seriam completadas pelo imperador Probo.

Muralhas Aurelianas, foto Lalupa, Public domain, via Wikimedia Commons

Em Roma, Aureliano ainda teve que enfrentar uma feroz revolta armada dos cunhadores de moedas, liderados por Felicissimus, o Secretário do Tesouro Imperial, que provavelmente estavam insatisfeitos com alguma medida dele coibindo o desvio dos metais, o que acarretava a cunhagem de moedas de qualidade inferior. Inclusive, durante o seu reinado, Aureliano fez uma reforma monetária, aumentando a quantidade de prata contida no Antoninianus (moeda que substituiu o denário) para 5%, o que demonstra o quanto a moeda estava desvalorizada. Se os relatos forem verídicos, a revolta dos cunhadores foi tão séria que resultou no massacre deles, sendo que a repressão teria custado a vida de sete mil soldados!

Antoninianus de Aureliano, No verso da medalha, celebra-se a concórdia entre o imperador e os militares. Foto Copyrighted free use, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=348653

Novamente, mais uma incursão dos Godos nas fronteiras do Danúbio obrigou Aureliano a marchar para dar-lhes combate, ocasião em que, atravessando o Rio, as tropas comandadas pelo imperador derrotaram e mataram o chefe Godo Cannobaudes, recebendo, em homenagem a esta vitória, do Senado o título de “Gothicus“. Entretanto, a constante pressão bárbara nesta fronteira, levou Aureliano a decidir abandonar a província romana da Dácia, na margem norte do Danúbio, pela dificuldade em defendê-la. Ele reassentou os habitantes romanos da província abandonada ao sul do Danúbio, em uma parte da Mésia, que foi rebatizada de “Dacia Aureliana“, com a cidade de Serdica (atual Sofia, na Bulgária), como capital.

5- Guerra contra o Império de Palmira e reconquista das províncias orientais

Finalmente, em 272 D.C, Aureliano teve condições de enfrentar o grave problema da perda das províncias orientais para o Império de Palmira, que agora controlava o Egito, a Síria, a Palestina e até partes da Ásia Menor. Vale observar que a perda do Egito estava afetando o vital suprimento de trigo para a cidade de Roma.

Moeda de Zenóbia Augusta. Foto Classical Numismatic Group, Inc. http://www.cngcoins.com, Public domain, via Wikimedia Commons

Interessante observar, antes de falarmos sobre a campanha de Aureliano contra o Império de Palmira, que recentemente cientistas da Universidade Aarhus e da Universidade de Bergen conduziram uma pesquisa e publicaram um artigo que trouxe uma nova perspectiva sobre os motivos que teriam levado os Palmirenses a anexarem territórios controlados pelo Império Romano.

No estudo, os cientistas, examinando dados paleo-climáticos e as culturas e técnicas agrícolas empregadas pelos Palmirenses, concluíram que as mudanças climáticas prejudiciais que ocorreram exatamente na época dos reinados de Odenato e Zenóbia, bem como o rápido crescimento populacional da cidade, decorrente da prosperidade experimentada nos séculos II e III D.C (Palmira chegou a ter mais de 200 mil habitantes), comprometeram a segurança alimentar da cidade, levando seus líderes a embarcarem em um processo de militarização e expansão territorial que levou ao conflito final com Roma.

Feito o parêntese acima, na ofensiva romana contra os Palmirenses, Aureliano reconquistou com facilidade os territórios romanos que aqueles ocupavam na Anatólia, havendo apenas resistência nas cidades de Bizâncio (prenunciando a excepcional posição defensiva que caracterizaria a futura capital, Constantinopla) e Tiana (que teria sido poupada graças à aparição do espírito do filósofo e suposto paranormal Apolônio de Tiana, que rogou por sua cidade ao imperador). Enquanto isso, o general Marco Aurélio Probo (o futuro imperador Probo) reconquistou o Egito, ocasião em que o Quarteirão Real de Alexandria, onde ficava o remanescente da Biblioteca de Alexandria, foi queimado.

Batalha de Imas

Então, o exército de Aureliano chegou aos arredores da grande cidade síria de Antióquia, para onde Zenóbia e o general palmirense Zabdas esperavam os romanos com um grande exército. A Batalha de Imas, que se seguiu, é assim narrada pelo historiador romano Zósimo:

“Observando que a cavalaria palmirena depositava grande confiança na armadura deles, que era muito forte e segura, e que eles eram melhores cavaleiros do que os seus soldados, ele (Aureliano), ele posicionou sua infantaria do outro lado do rio Orontes. Ele ordenou que a sua cavalaria não engajasse imediatamente a vigorosa cavalaria dos Palmirenos, mas que esperassem pelo ataque deles, e, então, fingindo fugir, continuassem galopando até que eles fatigassem tanto os homens quanto os seus cavalos devido ao excesso de calor e o peso das armaduras, de modo que eles não pudessem mais persegui-los.

Este plano foi bem-sucedido e assim que a cavalaria do imperador viu que seus inimigos estavam cansados, e que as montarias deles eram praticamente incapazes de ficar em pé sob eles, ou mesmo de se mover, os romanos puxaram as rédeas dos seus cavalos, e, voltando-se rapidamente, carregaram contra os inimigos, atropelando-os enquanto caíam dos seus cavalos. Dessa forma, o massacre foi generalizado, alguns morrendo pela espada e outros pisoteados pelos seus próprios cavalos ou pelos dos romanos”

Zozimus, New History, Livro 1

Os sobreviventes do exército de Zenóbia foram tentar se refugiar dentro dos muros da cidade de Antióquia e o relato de Zósimo infere que, para entrar na cidade, que já estava em vias de se amotinar contra seus conquistadores palmirenses, Zabdas foi obrigado a usar o artifício de conduzir preso um soldado que se parecia com Aureliano, vestindo-o com trajes semelhantes aos usados pelo imperador, como se este tivesse sido capturado pelos Palmirenos. Mesmo assim, durante a noite, Zabdas e Zenóbia partiram com seu exército para Emesa.

Então, quando amanheceu, Aureliano, ao partir para engajar novamente os remanescentes do exército de Palmira, recebeu a notícia da fuga de Zenóbia e entrou em Antioquia, sendo recebido festivamente pelos habitantes. Ao saber que muitos cidadãos tinham fugido da cidade pelo temor da punição de terem apoiado Zenóbia, Aureliano publicou decretos perdoando-os e conclamando-os a retornar à Antioquia, tendo multidões atendido a este chamado.

Seguindo o relato de Zósimo, Aureliano então partiu para Daphne, um subúrbio de Antióquia, onde uma parte do exército de Palmira tinha ocupado uma colina que interceptava a estrada para Emesa Nesta passagem, fica claro que Aureliano ordenou que os soldados atacassem os Palmirenses entrincheirados no alto da colina, em formação de “tartaruga” (testudo), demonstrando que, no final do século III, o exército romano ainda era capaz de utilizar esta célebre tática:

“Imaginando que a inclinação dela (da colina) lhes permitiria obstruir a passagem do inimigo, ele ordenou a seus soldados que marchassem com seus escudos tão próximos uns aos outros, e em forma tão compacta, para que eles não fossem atingidos por quaisquer dardos ou pedras que fossem atirados contra eles”.

Zózimo, New History, Book 1
Legionários em formação tartaruga, Coluna de Trajano, Roma, foto: National Museum of Romanian History, CC BY-SA 3.0 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/, via Wikimedia Commons

Batalha de Emesa

Após reconquistar a grande cidade síria de Antióquia para o Império Romano, Aureliano subiu o curso do rio Orontes e entrou sem contestação nas cidades de Apamea, Larissa e Arethusa, percorrendo o caminho em direção à cidade de Emesa (atual Homs, na Síria), também cortada pelo referido rio. Então, ao se aproximar das muralhas desta Cidade, os romanos observaram o exército de Palmira em formação em frente às mesmas. Segundo o relato de Zósimo:

“Encontrando o Exército Palmireno formado ante Emesa, totalizando setenta mil homens, entre Palmirense e seus aliados, Aureliano opôs a eles a cavalaria dálmata, os Mésios e os Panônios, e as Legiões célticas de Noricum e Rétia, e atrás destas os mais seletos regimentos imperiais, escolhidos homem a homem, a cavalaria da Mauritânia, os Tianenses, os Mesopotâmicos, os Sírios, os Fenícios e os Palestinos, todos homens de reconhecido valor; os Palestinos ao lado de outras armas, brandindo porretes e cajados. No começo do engajamento, a cavalaria romana recuou, a fim de que os Palmirenses, que os excediam em número, e eram melhores cavaleiros, valendo-se de algum estratagema, não cercassem o exército romano. Mas a cavalaria palmirena os perseguiu tão ferozmente, embora as suas fileiras estivessem desfeitas, que o evento ocorreu muito contrariamente ao que esperava a cavalaria romana. Porque eles foram perseguidos por um inimigo cuja força lhes era muito superior, e consequentemente muitos deles foram derrubados. A infantaria então teve que suportar o peso da ação. Observando que os Palmirenses tinham quebrado as suas linhas quando a cavalaria iniciou a perseguição, ela deu meia-volta e atacou quando eles estavam espalhados e em desordem. Nesta ocasião, muitos deles foram mortos, porque um lado lutou com as armas costumeiras, enquanto os Palestinos empregaram clavas e cajados contra cotas de malha feitas de ferro e latão. Consequentemente, os Palmirenses debandaram com a maior precipitação, e em sua fuga eles pisotearam uns aos outros, ficando em pedaços, como se o inimigo já não os tivesse massacrado suficientemente; O campo ficou coalhado de homens e cavalos mortos, enquanto os poucos que escaparam refugiaram-se na cidade.”

Zózimo, New History, Book 1

A derrota abalou o espírito de Zenóbia, que, após consultar seus auxiliares, decidiu abandonar Emesa e entrincheirar-se em Palmira, tendo em vista que os habitantes da cidade já manifestavam a sua insatisfação com a rainha e davam mostras de simpatia aos Romanos. Com a partida de Zenóbia, Aureliano entrou em Emesa, onde efetivamente ele foi bem recebido pelos cidadãos e capturou uma parte do tesouro que a rainha não havia conseguido levar consigo. Na cidade, segundo a História Augusta, o imperador fez oferendas no Templo de Elagabalus, divindade solar introduzida em Roma pelo imperador Elagábalo (ou Heliogábalo). Aureliano, tudo indica, atribuiu a vitória que lhe valeu a conquista de Emesa à divindade e, mais tarde, dedicaria um templo ao Sol Invicto, em Roma.

Aureliano, então, marchou em direção à Palmira, afastando-se do rio Orontes e rumando para o deserto sírio. Lá chegando, cercou-a por todos os lados, valendo-se da ajuda dos Beduínos, que haviam passado para o lado dos Romanos, para assegurar suas linhas de suprimentos (segundo o relato da História Augusta, essa marcha foi hostilizada pelos locais, tendo, inclusive, Aureliano sido ferido por uma flechada).

Cerco a Palmira

Inicialmente, os Palmirenses, aparentemente, não se sentiram muito intimidados com o cerco inimigo e chegaram até a zombar dos Romanos, acreditando que estes logo ficariam sem provisões, ignorando o efeito da aliança daqueles com os Beduínos. Porém. com o passar do tempo, foram os sitiados que começaram a ficar privados de alimentos, e, então, de acordo com Zósimo, um conselho de guerra decidiu que seria melhor Zenóbia fugir da cidade em direção ao rio Eufrates, com o fim de pedir auxílio aos Persas, montando um camelo (fêmea) veloz.

Ruínas da cidade de Palmira, Síria. Foto: James Gordon from Los Angeles, California, USA, CC BY 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by/2.0, via Wikimedia Commons

Todavia, a fuga foi percebida pelos Romanos, e Aureliano enviou sua cavalaria em perseguição à Zenóbia, que foi interceptada, enquanto tentava cruzar o rio Eufrates em um barco, capturada, e levada à presença do Imperador.

Diante disso, os Palmirenses resolveram render-se. Aureliano foi magnânimo e não puniu a cidade, mas apropriou-se do tesouro de Palmira. Ele também deixou na cidade uma guarnição de 600 arqueiros, comandada por um certo Sandario. Então, segundo Zósimo, o imperador retornou para Emesa, onde Zenóbia e seus auxiliares próximos foram submetidos a um julgamento (em sendo verdadeiro esse relato, isso, a nosso ver, demonstra que Zenóbia e seus assessores, provavelmente, gozavam de cidadania romana. De fato, o sobrenome de Zenóbia em inscrições existentes em Palmira é “Septimia“, que deve ser proveniente de seu marido, Odenato, que era cidadão romano com status de “consularis“, e, portanto, integrante da classe senatorial, no topo da sociedade romana). No julgamento, segundo Zósimo e a História Augusta, o filósofo Longino foi condenado à morte e executado, de acordo com o primeiro, pelo fato dele ter sido acusado por Zenóbia, sua aluna, de tê-la induzido a embarcar na aventura contra Roma, ou, mais especificamente, na versão da segunda, pelo fato de ter redigido uma carta ofensiva a Aureliano quando do cerco à Palmira. Nesta carta, transcrita na História Augusta, Zenóbia, ao recusar a proposta de rendição oferecida por Aureliano, teria mencionado o exemplo de Cleópatra, em que esta preferiu morrer a ser um troféu para Otaviano. Após o julgamento, outros membros do conselho de Zenóbia também foram executados.

Em seguida, Aureliano derrotou um destacamento de soldados que o Império da Pérsia Sassânida havia enviado em auxílio aos Palmirenses.

Aureliano, em seguida, rumou de volta para Europa, levando consigo, como cativos, Zenóbia e o filho dela, Vaballathus. Aqui as fontes divergem, Zósimo contando que na viagem, a rainha teria morrido de doença, ou inanição, e os demais cativos se afogado no Estreito de Bósforo. Porém, os demais autores narram que os dois foram levados até Roma, onde adornaram o magnífico Triunfo de Aureliano, que veremos adiante. Algumas fontes relatam que após ser exibida na procissão, Zenóbia foi libertada e acabou indo morar na Vila de Adriano, em Tívoli e casou-se com um senador romano, com quem teria tido outros filhos.

“A Rainha Zenóbia olhando Palmira pela ùltima Vez”, tela de Herbert Gustave Schmalz, (1888) Public domain, via Wikimedia Commons

Ao chegar à Europa, Aureliano teve que enfrentar uma invasão dos Carpi, um povo aparentado aos Dácios, no Danúbio, vitória que teria lhe valido o título de “Carpicus“. Porém, logo após, já em 273 D.C., enquanto ainda estava na região da Trácia, o imperador recebeu do Prefeito da Província da Mesopotâmia e Corrector do Oriente, Marcellinus, a notícia de que os Palmirenos tinham novamente se revoltado, sob a liderança de um certo Septimius Apsicos (ou Apseus), matando Sandario e a guarnição de 600 arqueiros. Em seguida, Apsicos havia tentado cooptar Marcellinus, oferecendo apoio caso este se rebelasse contra Aureliano, reclamando o trono. Marcellinus, entretanto, fingiu considerar a proposta, enquanto relatava os fatos ao imperador.

Percebendo que seus esforços estavam sendo infrutíferos, os líderes da revolta, então, proclamaram Septimius Antiochus, um parente de Zenóbia, como Augusto. Todavia, Aureliano, imediatamente após receber a mensagem de Marcellinus, pôs-se em marcha com seu exército e, com rapidez inesperada, chegou a Antióquia, e dali, partiu para Palmira, que foi tomada com facilidade. Dessa vez, Aureliano não teve clemência e, após derrotar a nova insurreição, ordenou que a cidade fosse saqueada e arrasada. No entanto, a vida de Septimius Antiochus, que, tudo indica, era apenas uma criança, foi poupada.

De Palmira, Aureliano teve que rumar para Alexandria, pois estourara ali uma revolta comandada por um certo Firmus, um rico aliado de Zenóbia no tempo em que o Egito fez parte do Império de Palmira, aliado a grupos de Árabes e Blemmyes (povo que habitava terras ao sul do Egito). Embora seja incluído em algumas fontes como usurpador, consta que Firmus na verdade não se proclamou imperador, sendo o seu objetivo tornar o Egito independente. Porém, Firmus cortou o vital suprimento do trigo do Egito para a Cidade de Roma, algo que nem a poderosa Zenóbia ousara fazer. De qualquer modo, Aureliano submeteu Alexandria com facilidade, executou Firmus e restaurou o fornecimento do trigo egípcio.

Em decorrência dessas vitórias no Oriente, que reincorporaram ao Império Romano as províncias conquistadas por Palmira, Aureliano recebeu os títulos de “Parthicus Maximus” e de “Restaurador do Oriente”.

Chegou então a oportunidade para Aureliano lidar com o “Império Gaulês”, que já estava bem enfraquecido pelas derrotas sofridas para Cláudio Gótico.

6- Guerra contra o Império Gaulês e reconquista das províncias ocidentais

Em 274 D.C, Aureliano marchou contra Tétrico, o usurpador que ocupava o trono da Gália e os exércitos encontraram-se em Chalons-en-Champagne, no nordeste da Gália. Os combates foram duros, mas as tropas de Aureliano levaram a melhor. Tétrico foi poupado e posteriormente até nomeado para o cargo de Corrector da Lucânia. Algumas fontes mencionam que Tétrico teria feito um acordo prévio de rendição com Aureliano e abandonado suas tropas antes ou durante os combates.

Com a reincorporação das províncias controladas pelo Império das Gálias ao Império Romano, que foi reunificado e restituído ao seu tamanho tradicional, Aureliano celebrou seu grande triunfo, que incluiu a exibição de Tétrico e Zenóbia pelas ruas de Roma, e recebeu do Senado o título de “Restaurador do Mundo” (Restitutor Orbis). A História Augusta nos deixou um relato muito interessante da referida procissão triunfal, a qual transcrevemos abaixo:

“Vale a pena saber como foi o triunfo de Aureliano, porque este foi um espetáculo sobremaneira brilhante: Houve três carros imperiais, o primeiro dos quais, esmeradamente forjado e adornado com ouro, prata e joias, tinha pertencido a Odenato, o segundo, forjado com igual esmero, foi dado a Aureliano pelo rei dos Persas, e o terceiro Zenóbia mandou fazer para si mesma, esperando visitar a cidade de Roma nele. E esta esperança não deixou de ser satisfeita, porque, de fato, foi com ele que ela entrou na cidade, porém derrotada e levada em triunfo. Havia também outro carro, puxado por quatro cervos e que se dizia ter pertencido ao rei dos Godos. Neste carro, de acordo com a memória de muitos, Aureliano foi conduzido até o Capitólio, planejando sacrificar lá os cervos, que ele tinha capturado junto com este carro e então dedicou-os, diz-se, a Jupiter Optimus Maximus. Ali avançaram vinte elefantes, e duzentas bestas domesticadas de diversos tipos, da Síria e da Palestina, que certa vez havia presenteado a cidadãos particulares, pelo fato de que o orçamento pessoal do imperador (Fiscus) não fosse sobrecarregado com o custo de sua alimentação; além disso, junto eram conduzidos em ordem quatro tigres e também girafas, alces e outros animais, e também oitocentos pares de gladiadores ao lado dos cativos das tribos bárbaras. Havia Blemmyes, Axumitas (povo da Etiópia), Árabes da Arábia Feliz, Indianos, Báctrios, Iberos (da Ibéria, na atual Geórgia), Sarracenos e Persas, todos carregando seus presentes; Havia Godos, Alanos, Roxolanos, Sármatas, Francos, Suevos, Vândalos e Germanos, todos cativos, com suas mãos acorrentadas. Também caminhavam entre eles certos homens de Palmira, que tinham sobrevivido à sua queda, os mais principais do governo, e também Egípcios, por causa da sua rebelião.

Junto a eles também foram conduzidas dez mulheres, que, lutando com trajes masculinos, tinham sido capturadas entre os Godos, depois de muitos deles terem sido mortos: Quanto a estas, uma tabuleta declarava que pertenciam a raça das Amazonas”.

7- Outras iniciativas de Aureliano

Aureliano era devoto do “Sol Invicto”, que ele procurou tornar a divindade máxima do Império e a principal do Panteão Romano. Há até quem diga que o imperador tencionava, com isso, instaurar o Monoteísmo no Império. No dia consagrado ao “Nascimento do Sol Invicto” (Dies Natalis Solis Invicti), em 25 de dezembro de 274 D.C, Aureliano inaugurou em Roma o templo dedicado ao Deus (construído e adornado com o espólio de Palmira). Aliás, o imperador instituiu para si o tratamento de “Nascido Deus e Senhor”.

Outro indício de que o reinado de Aureliano prenunciava o período do Dominado, em contraste com o Principado instituído por Augusto, encontra-se na Epitome de Caesaribus, do historiador romano Sextus Aurelius Victor:

“Este homem foi o primeiro a introduzir entre os Romanos um diadema para a cabeça, e ele usava ouro e pedras preciosas em cada item de vestuário, em uma escala praticamente desconhecida para os costumes romanos”.

Epitome de Cesaribus, Aurelius Victor, 35,5

Aureliano incrementou a distribuição de alimentos objeto da Anona, acrescentando à porção de pão uma quantidade de azeite, de sal e de toucinho ou salame.

8- Morte de Aureliano

Em 275 D.C, Aureliano partiu para o Oriente visando derrotar o último grande inimigo de Roma que ele ainda não havia vencido: o Império Persa.

Todavia, no final de setembro ou início de outubro de 275 D.C. quando Aureliano, ainda no início da expedição, chegou na cidade de Caenophrurium, na Trácia (na atual Turquia europeia ou na Bulgária), um secretário que estava ameaçado de ser punido por uma transgressão (segundo Zózimo, este se chamaria Eros, e segundo a História Augusta, o nome dele seria Mnestheus), forjou uma lista de oficiais da Guarda Pretoriana que também seriam punidos e estes, temerosos, acabaram assassinando o imperador, aproveitando uma ocasião em que Aureliano deixou a cidade acompanhado de um pequeno séquito. Seus próprios assassinos construíram no local uma tumba para seus restos mortais e um templo em sua homenagem.

9- Epílogo

A História Augusta e Sexto Aurélio Victor relatam que o Império Romano ficou sem um imperador por um intervalo de até seis ou sete meses, e alguns historiadores consideram, com base na numismática, que a imperatriz-viúva Ulpia Severina pode ter governado o Império até o Senado Romano escolher, a pedido do Exército, o velho senador Tácito como novo imperador, período que constituiu, então, um “interregnum“. Mas, este, de acordo com outras fontes, teria durado apenas algumas semanas. Pode ser que a explicação para esta discrepância esteja na versão constante da História Augusta: O Senado, relutante em escolher um imperador que não tivesse o apoio dos militares, devolveu a questão para o Exército, e este impasse teria durado cerca de seis meses.

Acreditamos, portanto, que há alguma verossimilhança no relato das circunstâncias que levaram ao assassinato de Aureliano, uma vez que aparentemente nenhum general reclamou o trono logo após a morte dele, e os líderes do Exército, provavelmente surpreendidos pelo seu desaparecimento, em decisão incomum, solicitaram ao Senado que um novo imperador fosse escolhido entre os senadores. O escolhido foi Marco Cláudio Tácito, supostamente um riquíssimo senador, que também parece ter relutado algum tempo até aceitar a escolha. Mas alguns historiadores defendem outra possibilidade, como aventado acima: que o Senado tenha devolvido o assunto para o Exército e Tácito fosse um general que foi escolhido por seus colegas, após algum tempo de deliberação.

O Senado Romano deificou Aureliano, no período do interregno, ou já durante o reinado de Tácito.

Aureus de (Úlpia) Severina Augusta. Foto: By Sailko – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=31986856

10 – Conclusão

Aureliano passou à História como um dos “imperadores-soldados” oriundos da Ilíria que mais contribuiu para a sobrevivência de Roma durante a “Crise do Século III”, contribuindo decisivamente para colocar um fim nela, estabilizando o Império Romano.

FIM

Fontes:

a) Antigas;

1-Historia Augusta, “Life of Aurelian“, livros I e II, disponível em https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Historia_Augusta/Aurelian

2-Zósimo, “New History“, Livro I, disponível em https://www.tertullian.org/fathers/zosimus01_book1.htm

3-Eutropius, “Abridgment of Roman History“, livro 9, disponível em https://www.forumromanum.org/literature/eutropius/trans9.html

4- Sextus Aurelius Victor, “The Style of Life and the Manners of the Imperatores“, disponível em http://www.roman-emperors.org/epitome.htm

b) Modernas:

5- Diana Bowder, “Quem foi Quem na Roma Antiga“, Art Editora S.A

6- Ross Cowan, “Roman Battle Tactics” 109 BC-AD 313″, Osprey

7- Wikipedia, “Aurelian“, verbete em inglês

c) Artigo:

8-“Food security in Roman Palmyra (Syria) in light of paleoclimatological evidence and its historical implications“, Joan Campmany Jiménez, Iza Romanowska , Rubina Raja  e Eivind H. Seland, disponível em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0273241