MARCO TÚLIO CÍCERO – O PODER DA PALAVRA

Em 3 de janeiro de 106 A.C, nascia em Arpinum (atual Arpino, no Lácio), a cerca de 100 km de Roma, Marcus Tullius Cicerus (Cícero), filho de um próspero membro da ordem equestre, e de Helvia, uma dedicada dona de casa.

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(Restos de pavimento romano, em Arpino, foto de Pietro Scerrato)

O nome Cícero, segundo o historiador Plutarco,  vem da palavra romana “cicer“, que significa “grão-de-bico”, aludindo, provavelmente, ao formato da ponta do nariz de um ancestral. Plutarco conta que esse nome era alvo de algumas gozações, mas que o próprio Cícero não dava muita trela para isso, e, mais tarde, quando Questor na Sicília, certa vez, ao fazer uma oferenda de uma baixela de prata a um templo, mandou gravar nela o nome “Marco Túlio”, acompanhado do desenho de um grão-de-bico.

A família de Cícero não fazia parte da aristocracia romana tradicional e nem das gens plebeias romanas ilustres, algo que ele nunca se cansaria de lamentar em seus escritos.  Mas ela tinha recursos suficientes para proporcionar ao menino uma excelente educação e Cícero, ainda durante a infância e adolescência, demonstrou ter um invulgar talento para as letras e para a oratória, bem como para a Poesia.

Admirado pela sua eloquência e pelo profundo conhecimento da língua e filosofia gregas, capacidade que lhe abriu as portas dos círculos da aristocracia romana, Cícero aproximou-se de homens importantes, como, por exemplo, Quintus Mucius Scaevola (Múcio Cévola), ex-Cônsul (no ano de 95 A.C.) e afamado jurista (ele escreveu um tratado sobre o direito civil romano, em 18 volumes, tão importante que, quase 600 anos depois, teve trechos citados no Digesto, publicado pelo imperador Justiniano I).

Tendo Múcio Cévola como mestre, Cícero estudou Direito,  em companhia de jovens aristocratas e filhos de pessoas ricas ou importantes, como Servius Sulpicius Rufus, Titus Pomponius e Caio Mário, o Jovem, sendo que a amizade com os dois primeiros teria longa duração.

Em seguida, Cícero fez o serviço militar, lutando na chamada “Guerra Social“, travada contra os povos aliados italianos de Roma (socii) que demandavam mais direitos. A experiência militar ocorreu especificamente na campanha contra os Marsos, servindo sob as ordens de Cneu Pompeu Estrabão, pai de Pompeu, o Grande (Pompeu)., por volta de 88 A.C.

Finda a campanha contra os Marsos, e tendo muito mais vocação para os estudos do que para a carreira das armas, Cícero buscou enriquecer a sua formação e foi estudar com o filósofo cético Philo (Filão) de Larissa, professor da Academia de Atenas,  fundada por Platão, e que havia se mudado para Roma,  em 87 A.C., durante a Guerra contra Mitridates.

Durante esses anos de estudos, a situação política em Roma complicara-se bastante. O sucesso de Publius Cornelius Sulla (Sila) como comandante na Guerra Social estimulou os conservadores no Senado Romano a nomeá-lo Cônsul para o ano de 88 A.C., visando contrabalançar a influência de Caio Mário, que era apoiado pela facção senatorial dos Populares.  Simultaneamente, o rei Mitridates, do rico reino helenístico do Ponto, decidiu conter a expansão romana no Mediterrâneo Oriental e invadiu a Grécia e massacrou 80 mil cidadãos romanos e italianos que viviam na região.

O comando da Guerra contra Mitridates era o mais importante dos últimos tempos e, por isso, o seu comandante seria o detentor de um grande poder militar, sem falar na perspectiva de polpudos saques. O Senado escolheu Sila para a tarefa, porém  um Tribuno da Plebe, partidário de Mário conseguiu anular a decisão. Enfurecido, Sila invadiu Roma, assumiu o poder e decretou que Mário e os Populares eram “Inimigos do Estado”.

Contudo, quando Sila já estava no Oriente, comandando a Guerra Contra Mitridates, os partidários de Mário conseguiram retomar o poder em Roma e ele foi eleito Cônsul, em 87 A.C., contudo, já velho e doente, este morreu pouco tempo depois e Roma ficou sendo governada pelos partidários de Mário, liderados por Lúcio Cornélio Cina.

Porém, quando Mitridates foi derrotado, Sila marchou novamente sobre a Itália, derrotou as forças dos Populares e foi eleito Ditador, em 81 A.C., iniciando uma grande perseguição contra os adversários políticos, conhecida como “Proscrições”.

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Sila encarregou o seu secretário, o liberto Lucius Cornelius Chrysogonus, de coordenar os processos contra os partidários de Mário, tratando das execuções, exílios e confiscos. Segundo Plutarco, o próprio Chrysogonus adquiriu, em leilão, uma propriedade de um homem que havia sido assassinado e figurava na lista de proscrições ordenadas por Sila, pagando um preço bem abaixo do valor do imóvel. O filho e herdeiro do proscrito, Sextus Roscius, indignado, resolveu contestar o valor nos Tribunais. Sila, porém, quando soube do fato, ficou furioso, e, em retaliação, Chrysogonus, valendo-se de provas falsas, acusou Roscius de ter assassinado o próprio pai.

Desesperado, Roscius procurou um advogado para se defender no processo criminal,  mas nenhum profissional se atrevia a patrocinar a causa, com medo da reação de Sila. Até que ele procurou Cícero, que, incentivado por seus amigos,  aceitou o caso, entre outros motivos, porque eles enfatizaram que, se ele ganhasse o processo, ficaria conhecido do público. Cícero desmontou a tese acusatória com brilhantismo e Roscius foi absolvido, por volta de 80 A.C.

Em 79 A.C., Cícero casou-se com Terentia (Terência), que pertencia a uma rica família de plebeus, mas cujos antepassados tinham conseguido ingressar no Senado Romano (um dos precursores foi o senador e novus homo, Caio Terêncio Varrão, que comandou as tropas romanas na Batalha de Canas). É também possível que Terência fosse parente de Marco Terêncio Varrão, homem de letras considerado o romano mais culto de seu tempo e que era dono de uma propriedade próxima a Arpinum.

No ano seguinte, nasceu Tullia (Túlia), a  filha a quem Cícero seria muito apegado durante toda a vida.

Agora um advogado famoso, ainda em 79 A.C.Cícero resolveu aprofundar os estudos de Filosofia na Grécia, sendo que, de acordo com a narrativa de Plutarco, a viagem também poderia ajudá-lo a ficar longe de uma eventual retaliação de Sila. Em Atenas, Cícero assistiu as aulas do filósofo Antíoco de Ascalon, um filósofo da Academia, ex-discípulo de Filão de Larissa, mas que adotava o Ecleticismo.

A morte de Sila, em 78 A.C., deve ter encorajado Cícero a voltar à advocacia e tentar a carreira pública, em Roma. Mas antes, ele decidiu preparar-se e foi estudar Oratória em Rodes, que era uma espécie de centro de excelência daquela disciplina no Mundo Mediterrâneo. Ali, ele foi estudar com Apolônio Molon, que, alguns anos mais tarde, seria também professor de Júlio César.

O fato é que Terência herdou uma grande fortuna, e o dinheiro da mulher ajudaria Cícero a iniciar sua carreira pública, mas foi o indiscutível brilho dele nos tribunais e nas letras que o fez famoso e o possibilitou progredir  na carreira do serviço público, ocupando as sucessivas magistraturas romanas (o “cursus honorum“).

Assim, Cícero foi Questor na Sicília, em 75 A.C., onde ele chamou a atenção dos locais pela honestidade e integridade  (que por isso, mais tarde o escolheriam para advogar a causa dos provinciais contra Caio Verres, o corrupto governador da Sicília, em 70 A.C., um sucesso retumbante que catapultou a fama de Cícero), Edil em 69 A.C., e Pretor, em 66 A.C., culminando com a sua eleição como Cônsul para o ano de 63 A.C., aos 43 anos de idade.

Cícero, assim, chegou ao Senado como um “novus homo” (homem novo), ou seja, um senador que não provinha de nenhuma das famílias tradicionais da nobreza romana cujos integrantes já tinham sido senadores.

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Marcus Tullius Cicerus Minor (Marco Túlio Cícero, o  Jovem), o único filho homem de Cícero, nasceu em 65 A.C.

No ano de 63 A.C., o grande momento de Cícero como Cônsul  foi expor e debelar uma conspiração para a tomada do poder e derrubada do Senado, liderada pelo também senador e partidário da facção dos  Populares, Lucius Sergius Catilina, que foi denunciada em uma série de discursos que ficariam célebres, conhecidos como “As Catilinárias“. Até hoje, passagens desses discursos são estudadas, e algumas delas até ficaram populares, como, por exemplo:

“Quosque tandem, Catilina, abutere patientia mostra?” (Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?”

“O tempora, O mores” (Ó Tempos, Ó costumes)

Nesse episódio, após a prisão dos conspiradores, ocorreu o primeiro embate entre Cícero e o jovem senador Júlio César, que defendia uma punição mais branda para os acusados – a prisão. Cícero, porém, conseguiu convencer o Senado a condená-los à morte, embora esta Assembleia não fosse um tribunal judiciário, enfatizando motivos ligado à “segurança do Estado”, desenvolvendo, naquele tempo, uma argumentação que soaria familiar aos tempos atuais…

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(Cícero denuncia Catilina,  quadro de Cesare Maccari, 1882)

Com a destruição da conspiração de Catilina (que talvez não tenha sido tão crucial como Cícero fez parecer nos seus escritos), Cícero atingiu o ápice do seu prestígio entre os nobres (Optimates), recebendo o título honorífico de “Pai da Pátria“.

Em 62 A.C., Cícero teve atuação destacada na investigação do escândalo político ocorrida na cerimônia da Bona Dea, um festejo religioso exclusivo para mulheres que estava sendo celebrado na casa de Júlio César,  que então ocupava o cargo de chefe da religião romana, como Pontífice Máximo.

Na festa da Bona Dea, o jovem e ambicioso político demagogo da facção dos Populares, Publius Clodius Pulcher (Clódio), penetrou na festa disfarçado de mulher, aparentemente com a intenção de seduzir Pompeia, a mulher de César, mas ele logo foi descoberto, aparentemente antes de conseguir o seu suposto intento.

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Mesmo assim, César, com o prestígio político ameaçado pelo caso, acabou divorciando-se da esposa, apesar de ter afirmado que nada tinha acontecido, aceitando as escusas de Clódio.

Todavia, os adversários políticos de Clódio, entre os quais estava Cícero, conseguiram abrir um processo contra ele, sob a acusação de incestum e diversas testemunhas foram ouvidas. Clódio tentou alegar um álibi, mas foi contestado por Cícero, que testemunhou que aquele estava em Roma no dia do fato e, ainda, criticou-o muito duramente, como se vê no trecho abaixo:

“Ó, pródigio extraordinário! Ó, seu monstro! Não estás tu envergonhado pela visão deste templo, e desta cidade, nem por tua vida, nem pela luz do dia? Tu, que estavas vestido de mulher e cuja infame luxúria e adultério, unidos com a impiedade, não foram, nem na ocasião, impedidos por testemunhas obstinadas, atreves-te a assumir uma voz máscula para defender a tua absolvição?”

Mas Clódio acabou sendo absolvido, segundo algumas fontes, após subornar os juízes.

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Cícero procurou, em seguida, restaurar a velha ordem republicana, propondo regras para o estabelecimento da harmonia entre as diversas instâncias de poder da nobreza (concordia ordinum), sem, contudo, obter sucesso, sendo que as incessantes disputas políticas entre os políticos partidários da nobreza e da plebe (chamados didaticamente de “partido aristocrático”, ou Optimates, e “partido democrático”, ou “Populares“) desaguaram na aguda crise que resultaria na formação do Primeiro Triunvirato, em 59 A.C., formado por Pompeu, Crasso e César (retratados abaixo, da direita para a esquerda).

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Era um quadro político que não favorecia os políticos tradicionais, mas, ao contrário, beneficiava aqueles que tinham comandos militares. Os Triúnviros não gozavam da simpatia dos Optimates e Cícero, politicamente, alinhava-se com eles.

Já, Clódio, que aliara-se aos Triúnviros, agora era Tribuno da Plebe, tendo sido eleito em 59 A.C., com o apoio de César. No ano seguinte, ele conseguiu aprovar, em plebiscito, uma série de leis no interesse da plataforma dos Populares, entre elas a Lex Clodia de Civibus Romanis Interemptis, uma lei determinando o exílio de todos aqueles que tivessem executado cidadãos romanos sem o devido julgamento. Embora a lei fosse genérica e abstrata, era óbvio que Cícero era o principal alvo da medida, por causa da sua ação contra os partidários de Catilina.

Assim, Cícero, bem que tentou, mas não conseguiu obter o suporte dos Triúnviros para escapar da aplicação da Lex Clodia e ele acabou sendo exilado para a Grécia, em 58 A.C., onde chegou em 23 de maio daquele ano, indo viver na cidade de Tessalonica, local, onde, deprimido, chegou a cogitar o suicídio.

Enquanto isso, Clódio aproveitou para confiscar a magnífica casa que Cícero comprara no Palatino, com vista para o Fórum Romano, a qual foi demolida, e o respectivo terreno consagrado para a construção de um “Templo para a Liberdade”.

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(A casa de Cícero devia ficar em algum lugar do canto superior esquerdo nessa foto da colina do Palatino, que foi totalmente remodelada no período imperial com a construção de diversos palácios – a própria palavra deriva do nome do morro – pelos imperadores)

Todavia, as relações entre os Triúnviros começavam a se esgarçar. Insatisfeito com algumas ações de Clódio, Pompeu aproximou-se de Cícero e, assim, o Tribuno da Plebe Titus Annius Milo (Milão), que era aliado de Pompeu, conseguiu fazer o Senado revogar o exílio de Cícero, em uma eleição cujo único voto contrário foi o de Clódio

Em 5 de agosto de 57 A.C., Cícero retornou à Itália, sendo recebido por uma entusiástica multidão que tinha ido lhe dar as boas-vindas no porto de Brundisium, junto com sua adorada Túlia.

Uma das primeiras ações de Cícero após o retorno do exílio, foi tentar reaver a sua propriedade no Palatino, que havia sido confiscada por Clódio. Para isso, ele precisava obter a revogação da decisão do Colégio dos Pontífices que havia consagrado o terreno. Em sua “Oração por sua Casa aos Pontífices” (Oratio De Domo Sua Ad Pontices), Cícero assim defendeu o seu caso, sem deixar de, en passant,  criticar os Triúnviros:

“A Vós lhes foi dado decidir hoje se vós preferis entrar para a posteridade retirando de magistrados fora-de-si e devassos a condição de cidadãos malvados e sem princípios, ou até mesmo armando-os com o manto da religião e do respeito que é devido aos deuses imortais. Porque, se esta peste e  flagelo da República tiver sucesso em defender o seu próprio tribunato – malicioso e mortîfero, apelando à divina religião, quando ele não consegue sustenta-lo por quaisquer considerações de equidade humana, então nós teremos que procurar outras cerimônias, outros ministros dos deuses imortais, outros intérpretes dos requisitos da religião… Mas, se estas coisas, que a loucura de homens malvados obrou na República, nos tempos em que ela estava oprimida por uma parte, abandonada por outra e traída por uma terceira, forem anuladas pela vossa autoridade e pela vossa sabedoria, Ó Pontífices, então nós teremos motivo para devida e merecidamente saudar a sabedoria de nossos ancestrais em escolher os homens mais ilustres do Estado para o sacerdócio”.

O terreno foi desconsagrado e restituído a Cícero, que reconstruiu nele a sua casa com a ajuda de doações de simpatizantes e de particulares  que  tinham achado a ação de Clódio injusta.

Mas a aproximação com Pompeu e a reafirmação do Primeiro Triunvirato após a Conferência de Lucca, em 56 A.C., que havia sido convocada por César para resolver as diferenças entre os Triúnviros, tornaram qualquer oposição de Cícero inviável e isso forçou-o a  deixar a política em segundo plano, passando a se dedicar mais às obras literárias e à vida intelectual.

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Porém, após a morte de Júlia, esposa de Pompeu e filha de César, em 54 A.C.,  e com a morte de Crasso na Batalha de Carras, contra os Partas, no ano seguinte, o Primeiro Triunvirato terminou, colocando César e Pompeu em rota de colisão. Os Optimates perceberam que, para os interesses da nobreza, Pompeu seria um melhor candidato ao poder supremo do que César  e começaram a se aglutinar  em torno do primeiro.

A situação política deteriorara-se muito, e os bandos armados partidários dos políticos Optimates e Populares enfrentavam-se nas ruas. Inclusive em função da violência, a eleição para o Consulado de 52 A.C. teve que ser adiada. Um dos cargos era disputado por Clódio e Milão (o outro, ninguém tinha dúvida, seria de Pompeu). Em 18 de janeiro de 52 A.C., em mais um desses confrontos, o grupo de gladiadores contratado por Milão para escolta-lo assassinou Clódio, quando ambas as comitivas se cruzaram na Via Ápia, nos arredores de Roma. Como um dos resultados, o Senado resolveu designar Pompeu como único Cônsul para aquele ano.

Os correligionários de Clódio, indignados, protestaram violentamente pelas ruas, chegando a queimar a Cúria Hostília, o prédio do Senado Romano, e Pompeu acabou sendo obrigado a determinar que Milão fosse a julgamento pela morte do rival. No julgamento, que transcorreu sob um clima de tensão e ameaça, Milão foi defendido por Cícero, que, entretanto, intimidado pela turba de aliados de Clódio, não conseguiu fazer o seu discurso de acusação direito, chegando a até a ter a voz comprometida. Milão acabou sendo condenado por 38 votos a 13, a ser exilado em Massilia (Marselha) e a ter os bens confiscados.

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(O prédio da Curia Hostilia, que foi destruído e reconstruído diversas vezes durante a História de Roma. O prédio atual data do reinado do imperador Diocleciano).

Pompeu, em 52 A.C.,  nomeou Cícero para ser Proconsul (Governador) da província romana da Cilícia. para entrar em exercício em 51 A.C. Na Cilícia, onde ele ficou de maio de 51 A.C. a novembro de 50 A.C., consta que Cícero fez uma boa administração, aplicando os princípios ensinados por seu antigo mestre, Múcio Cévola. Ele, por exemplo, restituiu terras e imóveis públicos apropriados indevidamente pelos seus antecessores e foi austero nos gastos.

Cícero também agiu vigorosamente para proteger militarmente a região de um ataque dos partas e marchou à testa de um exército romano de 15 mil homens para socorrer o governador da Síria, Caio Cássio Longino, que estava cercado em Antioquia. obrigando Pacorus, o príncipe parta, a retroceder. Cícero, então, deixou a província a cargo de seu irmão, Quintus Tullius Cicero, já que a situação política na Itália estava se agravando. Mas, antes de retornar para a Itália, aproveitou para parar em Rodes e, depois, em Atenas, onde ficou algum tempo encontrando-se com filósofos de renome.

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Mal Cícero retornara à Roma, eclodiu a Guerra Civil entre César e Pompeu, após o primeiro cruzar o Rio Rubicão e invadir a Itália, em 10 de janeiro de 49 A.C.

Os Optimates já haviam escolhido Pompeu como o campeão dos seus interesses e muitos fugiram com ele para a Grécia, mas Cícero ainda ficou, durante pouco tempo em Roma, aparentemente indeciso sobre o que deveria fazer. Porém, quando César, após alguns dias, resolver ir combater as forças senatoriais na Espanha,  Cícero decidiu fugir de Roma e unir-se às forças de Pompeu na Grécia.

Na Batalha de Dirráquio, e, depois, na Batalha de Farsália, em  9 de agosto de 48 A.C., da qual Cícero não participou alegando estar doente, os Optimates foram derrotados. Após a fuga de Pompeu, cujo último destino seria o Egito, Cícero recusou o comando das forças remanescentes dos Optimates em Dirráquio, que lhe foi oferecido por Catão, o Jovem, o líder moral da facção. Segundo Plutarco, Pompeu, o Jovem, acompanhado de alguns amigos, indignados com o que chamaram de traição, chegaram a desembainhar as espadas para atacar Cícero, mas Catão interveio e mandou Cícero embora, ileso.

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(Busto de Catão, o Jovem, da cidade de Volubilis, foto de Prioryman)

Cícero então voltou para Roma, aceitando o perdão de César, que já havia sido nomeado Ditador e tratou-o de modo cortês e respeitoso. Novamente, sem espaço para atividade política, ele voltou a se dedicar à produção literária, especialmente às obras de Filosofia. Datam desse período (46 a 44 A.C.) as obras  Paradoxa Stoicorum (Paradoxos Estóicos), Hortensius, Lucullus or Academica Priora , Varro or Academica Posteriora, Consolatio (Consolação),  De Finibus Bonorum et Malorum (Sobre os fins do Bem e do Mal),  Tusculanae Quaestiones (Questões Tusculanas),  De Natura Deorum (Sobre a Natureza dos Deuses),  De Divinatione (Sobre a Divinação), De Fato (Sobre o Destino), Cato Maior de Senectute (Catão, o Velho, sobre a Velhice), Laelius de Amicitia (Laelius sobre a Amizade) e  De Officiis (Sobre os Deveres).

Durante esses anos, Cícero e Terência divorciaram-se. Segundo as fontes, o motivo principal para o divórcio foi a insatisfação de Cícero com a forma com que a esposa vinha administrando a economia doméstica, sendo que Terência teria até deixado de lhe enviar dinheiro enquanto ele esteve fora de Roma, além de ter deixado Túlia sem uma escolta apropriada e até mesmo sem meios de subsistência adequados quando esta foi visitar o pai, em Brundisium, durante a Guerra Civil. De qualquer forma, as cartas que Cícero enviou para Terência alguns anos antes já indicavam um esfriamento na relação e um afastamento afetivo do casal.

Em seguida, Cícero, que já tinha, então, sessenta anos de idade, casou-se com uma jovem de apenas 15 anos, Publilia, de quem ele era tutor. Publilia era muito rica, e tudo indica que Cícero estava mesmo era de olho no dote da menina, já que naquela época ele estaria afundado em dívidas, incluindo a obrigação legal de ter que devolver o dote que tinha recebido de Terência.

Pouco tempo depois do divórcio e do novo casamento, Cícero sofreu a grande perda de sua amada filha Túlia, que morreu, em fevereiro de 45 A.C.,  das complicações de um parto, de seu casamento com Públio Cornélio Dolabela, de quem ela havia se divorciado apenas três meses antes. (Dolabela era um partidário de Pompeu que havia aderido a César, que o indicou para ser Cônsul). Em uma carta a um amigo, AtticusCícero desabafou:

Perdi a única coisa que ainda me prendia à vida“.

As cartas denotam que após a morte da filha, Cícero ficou realmente bem deprimido. Os amigos tentaram de várias formas consolá-lo, porém ele só parecia se preocupar em como homenagear a memória de Túlia. Em poucas semanas, ele se divorciou de Publilia, alegando que a esposa teria demonstrado satisfação ou feito pouco caso do falecimento de Túlia.

Em 44 A.C., Cícero foi surpreendido pela ação dos conspiradores no Senado que assassinaram Caio Júlio César, nos idos de Março (dia 15 de março), integrada por cerca de 60 senadores liderados por Marco Júnio Bruto (Bruto) e Caio Cássio Longino (Cássio). Embora ele não tenha participado da trama,  Cícero apoiou publicamente os autodenominados “Libertadores” (Liberatores), os quais também buscavam a sua ilustre aprovação, e ele até conseguiu que o Senado votasse pela anistia deles em uma sessão convocada por Marco Antônio, que, naquele momento, ainda aturdido e amedrontado pelo assassinato do Ditador (No primeiro momento ele chegou a fugir de Roma), visava compor-se com os “Libertadores” e o Senado, em troca da revalidação dos atos praticados por César.

Porém, em poucos dias, essas ações seriam submersas pela maré de indignação popular desencadeada pelo velório de César, quando Antônio exibiu a toga ensanguentada do falecido à multidão. Nos violentos tumultos que imediatamente se seguiram, os conspiradores foram obrigados a fugir de Roma.

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Não obstante, no período que se seguiu à morte de César, Cícero era, indiscutivelmente, o líder do Senado, visto como alguém cujo prestígio pessoal talvez fosse capaz de manter a ordem institucional e confrontar Marco Antônio, o braço-direito do Ditador falecido, que se apresentava como o chefe militar e político dos que apoiaram César, e em quem os Optimates não confiavam, sobretudo depois do seu discurso no Fórum, apesar das tentativas dele de entrar em acordo com os assassinos de César.

Entretanto, quando o testamento de César foi aberto, descobriu-se que o herdeiro escolhido por ele foi o seu sobrinho-neto, Caio Otávio, a quem César adotou postumamente e legou a maior parte da sua  imensa fortuna.  Caio Júlio César Otaviano, como o rapaz, de apenas dezoito anos, passou a ser conhecido,  audaciosamente abandonou seus estudos em Apolônia, na Grécia, e desembarcou na Itália, sendo calorosamente acolhido pelos soldados de César que serviam no porto de Brundisium.

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(Busto de Otaviano jovem, foto de Wolfgang Sauber)

Otaviano chegou em Roma no dia 6 de maio de 44 A.C. Durante os meses que se seguiram, ele procurou se aproximar dos senadores. Enquanto isso, os Optimates e os simpatizantes dos “Libertadores” no Senado tinham-se aglutinado em torno de Cícero contra a crescente truculência e revanchismo de Marco Antônio. A velha raposa política e o surpreendentemente astuto jovem herdeiro perceberam que ambos tinham a ganhar com essa aproximação. Cícero passou a elogiar Otaviano publicamente, reconhecendo a sua posição e parecendo mesmo acreditar que o rapaz se guiaria pelos princípios republicanos caros aos Optimates.

Bruto não concordou com a aproximação de Cícero e Otaviano,  e enviou ao primeiro uma carta, censurando-o por escolher um “tirano gentil” (Otaviano) a um “tirano inimigo” (Antônio).

Em setembro de 44 A.C., Cícero começou a despejar contra Marco Antônio a torrente de discursos históricos que ficaria conhecida como as “Filípicas” (porque inspirados nos discursos congêneres com que o célebre orador grego Demóstenes atacou o rei Filipe II, da Macedônia, que era visto por ele como um tirano).

Antônio,, em novembro de 44 A.C., havia partido para Brundisium para assumir o comando das 4 legiões que ele havia transferido da Macedônia, que iriam se somar a uma outra, que estava estacionada ao longo da Via Ápia, e que formariam um exército para combater Décimo Bruto e assumir o governo da Gália Cisalpina. Porém, as duas melhores dessas legiões, que tinham servido sob Júlio César, amotinaram-se e foram se juntar às forças que Otaviano estava reunindo, muito embora ele ainda fosse apenas um particular, sem autoridade legal para comandar tropas. Mesmo assim, em dezembro, Antônio decidiu marchar contra  Décimo Bruto e, chegando à Gália Cisalpina, cercou-o na cidade de Mutina (atual Modena).

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Cícero conseguiu articular uma votação do Senado para declarar AntônioInimigo Público“, motivada pelo fato dele estar tentando assumir o controle da província da Gália Cisalpina em detrimento do governador Décimo Júnio Bruto, cujo comando tinha sido ratificado pelo Senado, embora ele fosse um dos assassinos de César (não confundi-lo com o líder da conspiração,  Bruto). Mas o Tribuno da Plebe, Salvius, conseguiu adiar essa votação. Na sessão seguinte, os argumentos do senador Lucius Calpurnius Piso Caesoninus, sogro de César e antigo desafeto de Cícero, teriam convencido os senadores a não aprovar, naquele momento, a moção  contra Antônio.

Porém, no decorrer daquela crise, Cícero não teve dificuldade de reapresentar a moção contra o adversário no Senado, na primeira sessão do ano seguinte, em 1º de janeiro de 43 A.C., na qual Antônio foi declarado “Inimigo Público“. Na mesma oportunidade, os novos cônsules Aulus  Hirtius (Hírtio), amigo de Cícero, e  Gaius Vibius Pansa (Pansa), que tinham sido partidários moderados de César (que os havia escolhido para o posto no ano anterior) receberam ordens de partir para Mutina com um exército para levantar o cerco que Antônio estava fazendo contra Décimo Bruto. Finalmente, Otaviano teve reconhecido o comando militar sobre as legiões que lhe apoiavam, com o cargo de propretor e também partiu para Mutina, em apoio ao Senado, para combater Antônio.

Em uma carta enviada a um dos conspiradores, Gaius Trebonius (ele abordou Antônio, impedindo que ele entrasse junto com César na sessão do Senado na qual ele foi assassinado), alguns meses depois do assassinato, e  que resume bem a sua posição no conflito, Cícero, após lamentar não ter sido chamado para se juntar à conspiração, reclama pelo fato deles também não terem matado Antônio em seguida a César (poupá-lo foi uma decisão de Bruto), e elogia Otaviano:

“Como eu queria que você tivesse me convidado para aquele tão glorioso banquete nos Idos de Março! Nós deveríamos não ter deixado restos! Ocorre que nós estamos tendo tantos problemas com eles que o magnífico serviço que vocês, cavalheiros, fizeram em prol do Estado, deixou espaço para algumas queixas.  De fato, por Antônio ter sido barrado no caminho por você – o melhor dos homens – e que tenha sido por sua bondade que essa peste ainda viva, eu algumas vezes me sinto, embora talvez eu não tenha nenhum direito para isso, um pouco zangado com você. Pois você deixou para trás uma quantidade de problema que é maior para mim do que para todos os outros juntos., 

(…)

O jovem César está se comportando de maneira excelente e eu espero que ele continuará assim. Você de qualquer modo, pode estar certo disso – que, se ele não tivesse as duas legiões que foram transferidas do exército de Antônio para o comando dele, e não tivesse Antônio sido confrontado por essa ameaça, não haveria crime ou crueldade que este não deixaria de praticar. (…)”.

Inicialmente, os desígnios de Cícero pareciam estar sendo atendidos: Em 14 de abril de 43 A.C.,  na Batalha de Forum Gallorum, após inicialmente levar vantagem contra as tropas de Pansa, que foi ferido mortalmente, o exército de Antônio foi duramente rechaçado por Hírtio, com a ajuda providencial de Otaviano (cujas tropas envolvidas foram chamadas por Cícero de “legiões celestiais”). Seis dias depois, na Batalha de Mutina, Hírtio e Otaviano atacaram o acampamento de Antônio, contando com a ajuda das forças sitiadas de Décimo Bruto, na cidade de Mutina.  Embora Hírtio tenha sido morto nos combates, Antônio acabou sendo obrigado a suspender o sítio e retirar suas forças, passando por Parma, Piacenza e Tortonia, até a costa da Ligúria, ao oeste de Gênova.

Em um incomum erro de avaliação, talvez motivado por ele ainda ignorar que os dois cônsules haviam morrido, levando-o a acreditar que Antônio estava decisivamente enfraquecido,  Cícero persuadiu o Senado a transferir o comando da guerra contra Antônio para Décimo Bruto, tendo os atos senatoriais imprudentementeminimizado o papel desempenhado por Otaviano na vitória, ainda que parcial. Com efeito, o Senado conferiu a Décimo a honra de celebrar o triunfo pela vitória contra Antônio.

Ademais, Otaviano recusou-se a qualquer tipo de cooperação com Décimo Bruto, um dos assassinos de seu pai adotivo, e que pediu o seu auxílio para interceptar as tropas do general  Públio Ventídio Basso que vinham do Piceno em auxílio de Antônio. Logo em seguida, as legiões de Décimo desertaram em favor de Otaviano. Décimo, então, resolveu fugir de Mutina em direção à Macedônia, visando juntar-se a Bruto e Cássio. Tempos depois, ele seria interceptado por um chefe gaulês aliado de Antônio e assassinado.

Enquanto isso, as três legiões de Ventídio Basso juntaram-se a Antônio, que também recebeu o apoio de Marco Antônio Lépido (Lépido), um dos principais subordinados de César e governador da Hispânia e da Gália Narbonense. Isso colocou sob o comando de Antônio um formidável exército de 17 legiões e 10 mil cavaleiros.

Na prática, após a Batalha de Mutina, após a morte dos cônsules e a fuga de Décimo, o Senado não tinha mais forças militares na Itália à sua disposição. Otaviano era agora o homem mais poderoso na Itália, com oito legiões, mas a sua posição poderia ser colocada em cheque por Antônio, secundado por Lépido, que comandavam forças bem maiores na vizinhança da península.

Neste ocasião, algumas fontes (Apiano e Plutarco) mencionam que Otaviano teria feito uma proposta a Cícero para que este convencesse o Senado a eleger ambos para os cargos de Cônsules, em substituição aos falecidos Hírtio e Pansa, instigando assim, astuciosamente, a conhecida vaidade do velho senador, que, animado, deu andamento à proposta.

O mais provável nessa súbita aliança é que ambos, a velha raposa política e o jovem herdeiro, estivessem tentando aproveitar-se um do outro.  Cícero provavelmente via Otaviano meramente como um instrumento descartável para neutralizar Antônio. E Otaviano sabia disso, mas também via como útil ter a seu lado a legitimá-lo um dos senadores mais ilustres.

Com efeito, os dois certamente sabiam que tratava-se de uma aliança precária e ao sabor das circunstâncias…Em uma carta de Décimo Bruto a Cícero, que sobreviveu, o primeiro escreve que:

“Minha afeição e dever para convosco compelem-me a sentir por vós o que eu nunca senti para comigo: medo. Refiro-me a um boato que eu ouvi várias vezes (e nunca fiz pouco caso), a última vez de Labeo Segullis, que me disse que esteve com Otávio, e que eles conversaram bastante sobre você. Otávio mesmo não reclamou de nada quanto a você, a não ser acerca de uma frase que ele falou que você teria pronunciado, especificamente: “laudandum adolescentem, ornandum, tollendum”. A força nessa sentença é encontrada na última palavra, que tem um duplo sentido, assim a frase pode significar: “o jovem deve ser louvado, homenageado e exaltado”, ou, “o jovem deve ser louvado, homenageado e removido”. Otávio então disse que não daria nenhuma oportunidade para a sua remoção”. (Ad Fam, XI, 21)

Seja como for, em julho de 43 A.C., Otaviano enviou uma delegação de centuriões ao Senado demandando o cargo de Cônsul. Porém, o Senado respondeu com questionamentos acerca da pouca idade de Otaviano para o cargo. Ele então decidiu marchar em direção a Roma com suas oito legiões, sem encontrar oposição. Segundo Apiano Cícero ainda conseguiu um encontro com Otaviano, onde enfatizou suas ações no Senado em apoio da candidatura dele, porém o rapaz apenas respondeu com ironia.

Cícero ainda convocou uma sessão noturna no Senado após circular um boato de que duas legiões de Otaviano tinham desertado e se unido à causa senatorial, mas quando a notícia foi desmentida, ele fugiu.

Como resultado, em 19 de agosto de 43 A.C. Otaviano foi eleito Cônsul, tendo apenas 19 anos de idade. Na ocasião, Cícero não foi visto em Roma.

Ainda no mês de julho, Cícero tinha escrito uma carta a Bruto, tentando explicar os fatos :

“Otávio, que até então vinha sendo governado pelos meus conselhos e mostrou a mais excelente disposição e uma firmeza admirável, foi pressionado por certas pessoas, mediante cartas das mais perversas e falsos relatos e mensagens, a uma expectativa absolutamente segura do Consulado. Tão logo eu soube disso, eu não cessei de adverti-lo, por cartas, quando não estava presente, e de acusar, na presença dos seus amigos, que parecem apoiar as reivindicações dele, nem hesitei em expor no Senado a fonte desses miseráveis desígnios. E eu não lembro de um assunto no qual o Senado tenha demonstrado um melhor espírito.  Porque, anteriormente,  nunca aconteceu, quando se tratasse do caso de conferir uma honraria extraordinária a um homem poderoso, ou melhor, a um homem todo-poderoso (visto que o poder agora reside na força e nas armas), que ninguém, seja Tribuno da Plebe, ou outro magistrado, ou mesmo um particular, erguesse a voz em favor disso. Ainda assim, no meio dessa firmeza e virtude, a Cidade está em um estado de angústia. Nós viramos joguete dos caprichos dos soldados e da insolência do general. Cada um demanda tanto poder na República quanto a força que ele tem para extorqui-lo. Razão, moderação, lei, costume, dever, não valem nada, e nem a consideração pela opinião pública ou a vergonha da posteridade têm qualquer serventia. Foi por ter previsto tudo isso muito tempo atrás que eu fugi da Itália, quando a notícia da vossa proclamação me chamou de volta”.

O fato é que agora Cícero é quem era o descartável. Otaviano estava muito mais preocupado com a aliança entre Antônio e Lépido e com o crescente número de tropas que Bruto e Cássio estavam reunindo na Grécia. Em outubro de 43 A.C.,  os três encontraram-se nos arredores de Bononia (atual Bolonha), onde resolveram formar a aliança política que ficou conhecida como Segundo Triunvirato, ou como eles mesmo batizaram: “Triúnviros com Poderes Consulares para confirmar a República“.

Nessa reunião, os Triúnviros dividiram entre si as províncias romanas e, emulando Sila, decidiram fazer uma lista de proscrições abrangendo mais de 200 cidadãos (Apiano fala em cerca de 300 senadores e 2 mil equestres), sujeitos à serem executados e terem suas propriedades confiscadas (os cofres do tesouro estavam vazios). Antes de publicar os decretos, eles resolveram enviar logo os executores para assassinarem doze ou dezessete (os números variam) desafetos, entre os quais estava Cícero. De acordo com Plutarco, Antônio, inclusive, queria que o nome de Cícero fosse o primeiro da lista, mas Otaviano teria sido contra a execução dele, resistindo em concordar durante dois dias, até que, no terceiro, ele acabou cedendo à vontade do colega. O Cônsul Quintus Pedius acabou, inadvertidamente, publicando a lista dos dezessete no dia seguinte.

Quando soube da sua proscrição, segundo o relato combinado de Plutarco e Apiano, Cícero estava com seu irmão, Quinto, em sua vila próximo à cidade de Tusculum. Eles decidiram fugir e pegar um navio que os levasse até Bruto, que estava resistindo na Macedônia.  Mas, Quinto acabou precisando voltar para a sua própria casa (onde ele e o filho foram mortos) e Cícero partiu sozinho em sua liteira com destino à Fórmia, onde ele tinha outra vila, próxima à costa. Dali, ele foi para o porto de Caieta, onde embarcou em um barco visando ir até a Macedônia. Porém, o mar estava agitado e Cícero ficou mareado, motivo pelo qual resolveu voltar para Fórmia.

Enquanto isso os soldados encarregados da execução de Cícero andavam pelos arredores, procurando-o, mas os locais, simpatizando com a sua causa, negavam saber do seu paradeiro, até que um sapateiro, que fora cliente de Clódio, o velho inimigo de Cícero, informou que ele estava na vila, apontando o caminho.

Em 7 de dezembro de 43 A.C., uma tropa de soldados chegou até o local, mas os escravos de Cícero conseguiram perceber com alguma antecedência a aproximação dos soldados que vinham atrás de seu amo e tentaram alcançar novamente o porto,  levando-o de liteira através de um caminho discreto pela mata.

Quando os soldados, liderados pelo tribuno Popillius Laena e pelo centurião Herennius chegaram na casa, não encontrando Cícero, começaram a interrogar os escravos, que disseram não saber o paradeiro do amo. Porém, um liberto, chamado Philologus, acabou revelando que Cícero tinha saído de liteira por uma trilha que levava ao mar.

Ao perceber a aproximação de Herennius e sua tropa, Cícero ordenou que os servos descessem a liteira, exclamando: “eu decerto fico aqui“,  e colocou a sua cabeça para fora, esticando o pescoço, dizendo:

“O que estás a fazer, soldado, não é nada correto; no entanto, mate-me corretamente”.

Na versão contada por Sêneca, o Velho (Suasoriae, I, 7), as últimas palavras de Cícero teriam sido:

“Vem, veterano, e se ao menos pode fazer isto certo, acerta o pescoço!”

Segundo o relato de Apiano, quem executou Cícero foi Popillius Laena, que por sinal não atendeu o desejo de Cícero, pois precisou de três golpes de espada para decepar a cabeça dele. Já de acordo com Plutarco, quem decepou a cabeça dele foi Herennius.

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(A chamada “Tumba de Cícero”, em um trecho da Via Ápia próximo à Fórmia. Acredita-se que se trata, na verdade, de um monumento erguido na Antiguidade,  no local onde Cícero foi assassinado).

De qualquer modo, os relatos concordam que a cabeça e as mãos de Cícero foram cortadas a mando de Antônio, que, ficou muito satisfeito quando as mesmas foram trazidas à sua presença no momento em que ele estava em um ato público no Fórum. Antônio, então, ordenou que as mesmas ficassem expostas durante vários dias nos Rostra (uma espécie de palanque no Fórum Romano, que tinha esse nome porque era adornado com os esporões dos navios inimigos capturados em batalha), um ato bárbaro que muito horrorizou os cidadãos da Urbs.

Consta que Fúlvia, a esposa de Marco Antônio, segundo o relato do historiador Cássio Dião, odiava tanto Cícero que, ao ver a cabeça decepada dele pregada nos Rostra, desceu de sua liteira, retirou o alfinete de ouro que prendia os seus cabelos e espetou-o na língua do grande Orador. Sem dúvida, esta foi uma abjeta vingança contra a arma mais poderosa do falecido inimigo…

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(Os Rostra, reconstrução virtual e estado atual)

CONCLUSÃO

Muitos anos após a morte de Cícero, de acordo com Plutarco, Otaviano, agora conhecido como o imperador Augusto, certa ocasião fez uma visita à casa de sua irmã Otávia, e encontrou um dos filhos dela lendo uma obra de Cícero. O menino, quando percebeu que Augusto tinha notado quem era o autor do livro, ficou amedrontado e tentou esconder o livro dentro da roupa. Augusto, porém, percebeu e pegou o livro das mãos do rapaz e, por alguns instantes ficou lendo-o. Depois, pensativo, o imperador devolveu o livro ao sobrinho,  dizendo:

“Um homem erudito, minha criança, um homem erudito…e que amava o seu país.”

Não obstante, o fato de Augusto não ter se oposto à decisão de Marco Antônio de incluir Cícero na lista de proscritos pesaria para sempre como um ponto negativo na biografia do primeiro imperador. Sabedor disso,  Augusto apontou Marco Túlio Cícero, o Jovem, filho de Cícero, como Cônsul Suffectus, para o ano de 30 A.C e foi ele quem anunciou ao Senado a derrota de Antônio na Batalha de Actium. Posteriormente, Augusto ainda nomeou-o Governador da Síria e da Ásia, e ali uma das medidas que o rapaz tomou foi ordenar a remoção de todas as estátuas de Antônio daquelas províncias.

A extensa obra literária e filosófica de Cícero é divida em: Poemas, Cartas (sobreviveram 931 cartas de Cícero), Discursos, Tratados de Retórica e de Oratória ( eu um deles, relaciona César como um dos maiores, senão o maior, orador romano) e Obras Filosóficas (entre as quais, “Sobre o Estado e as Leis”, “Sobre os deveres”, “Sobre as finalidades”, “Sobre a velhice”, “Questões Tusculanas”, “A Natureza dos Deuses” e “Sobre o Destino”).

Os autores antigos já reconheciam a importância de Cícero para a cultura latina. Plutarco,  por exemplo, em suas “Vidas Paralelas”, escreveu que:

“O trabalho e o assunto que ele escolheu for compor e traduzir os diálogos filosóficos e adaptar os termos da Lógica e da Física ( gregas) para o idioma romano. Pois, como se diz, ele foi quem primeiro deu nomes latinos para palavras como phantasia, syncatathesis, epokhe, catalepsis, atomon, ameres, kenon e outros termos científicos como esses, que, seja por metáforas ou outras formas de acomodação, ele teve sucesso em fazer inteligíveis e com significado para os Romanos”.

Assim, a influência do pensamento de Cícero perdurou séculos após a sua morte, sobretudo por introduzir os falantes de latim, mesmo após o fim do Império Romano, nos meandros da especulação filosófica grega, influenciando, por exemplo, até Santo Agostinho (o religioso admitiu que a leitura da obra de Cícero, Hortensius, hoje desparecida, foi fundamental para a sua conversão ao Cristianismo).

Com efeito, tamanho foi o volume da produção intelectual de Cícero que sobreviveu até os nossos dias, sobretudo em cartas e discursos, que muitos historiadores consideram que ele é a personalidade romana mais bem conhecida na intimidade, como por exemplo, afirmou a historiadora Mary Beard, da Universidade de Cambridge.

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(No livro SPQR, de Mary Beard, Cícero é o fio-condutor da narrativa sobre a História de Roma)

Até a recente operação da Polícia Federal brasileira, batizada de “Catilinária”, é um exemplo de quão longe chegou a influência da vida e do pensamento de Cícero.

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2 comentários em “MARCO TÚLIO CÍCERO – O PODER DA PALAVRA

  1. Uma alegria ver mais alguém fascinado pela História antiga, gostei muito, sou também um estudioso do Império Romano, também fiz um Blog, na realidade uma divulgação do “Museu” que fui formando ao longo dos anos, e que espero um dia abrir ao público, como não consegui até hoje ,abri-lo ao público, criei um ,digamos “Museu virtual” para os apreciadores da História Romana, poucos receio, será talvez o único Museu Romano do Brasil, acho eu, espero um dia realmente abri-lo ao público, é um sonho.Se interessar estou mandando o link: http://museudearqueologiaromana.blogspot.com/

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