CONSTÂNCIO III – O ÚLTIMO IMPERADOR-SOLDADO DO OCIDENTE

Em 8 de fevereiro de 421 D.C., o Comandante em Chefe do Exército do Império Romano do Ocidente, Flávio Constâncio, foi coroado Augusto pelo Imperador Honório, tornando-se, assim, ele também, Imperador Romano do Ocidente, com o nome de Flavius Constantius Augustus, tendo passado à História como Constâncio III.

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(Solidus, moeda romana de Constâncio III, foto de http://www.cngcoins.com)

Flávio Constâncio foi um militar de carreira no Exército Romano, e, como tantos outros colegas seus que ingressaram na carreira militar na segunda metade do  século IV, ele nasceu nos Bálcãs, mais especificamente em Naissus (atual Nîs, na Sérvia), cidade natal do imperador Constantino, o Grande, em honra de quem, provavelmente, ele foi batizado. Constâncio devia ser de origem Trácia e/ou Ilíria.

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(Ruínas do Palácio de Constantino, nos arredores de Naissus, foto de J tomic m )

Não se sabe a data do nascimento de Flávio Constâncio, mas as fontes nos contam que, durante o reinado do Imperador Romano do Ocidente, Honório, ele alcançou o posto de Magister Militum (Marechal do Exército), por volta de 410 D.C (ou talvez até um pouco antes disso), ocasião em que ele deveria possuir uma idade entre 40 e 50 anos,  aproximadamente. Portanto, Flávio Constâncio deve ter nascido na década de 350/360 D.C., em uma época na qual, provavelmente pela última vez, o Império do Ocidente conseguiu reunir um exército composto de um núcleo principal de romanos,  e não de bárbaros, até a desastrosa Batalha de Adrianópolis, em 378 D.C,  que foi vencida pelos Godos.

Ele é descrito como sendo um homem de olhos grandes, cabeça larga e pescoço comprido, que, em público, mantinha uma expressão sisuda, mas em particular tinha um comportamento afável.

No início do seu longo (393 a 423 D.C), mas fraco, reinado, Honório (que aos 9 anos de idade, havia sido elevado a  co-imperador, cerca de dois anos antes da morte de seu pai, Teodósio), teve como tutor – e homem-forte do governo – o general de ascendência vândala (por parte de pai) Estilicão (Stilicho), o comandante-em-chefe do Exército Romano do Ocidente, e maior responsável pela estratégia defensiva da metade ocidental do Império, no período.

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(um dos dois painéis de um díptico de marfim, representando o general Estilicão)

O maior desafio enfrentado por Estilicão foi a crescente ameaça dos Godos, que após serem assentados em terras romanas e apaziguados por Teodósio, voltaram a agir militarmente contra o Império. Porém, para ser combater essa ameaça com eficiência, ele necessitava da cooperação entre as metades ocidental e oriental do Império Romano, o que Estilicão, que era visto com suspeitas em Constantinopla, não conseguiu lograr, tanto devido à rejeição de sua origem semi-bárbara, como também por causa das suas reiteradas tentativas de intervenção nos assuntos da corte oriental.

O fato é que Estilicão falhou nas duas oportunidades que teve para liquidar os Godos no campo de batalha, deixando –  intencionalmente ou não, ninguém pode afirmar –  o rei deles, Alarico, escapar.

Para piorar a situação, depois que os Godos invadiram a Itália, Estilicão, sabedor da precariedade da situação militar ocidental, defendeu que as vultosas exigências que os Godos estavam fazendo para deixarem a península italiana fossem atendidas. Daí, os adversários políticos de Estilicão no Senado, integrantes da tradicional nobreza romana, pretextando indignação, aproveitaram a contemporização defendida pelo general para estimular um motim do Exército da Itália, razão pela qual  Estilicão acabou sendo deposto e executado ordens de Honório, em 408 D.C.  Contudo, a execução de Estílicão teve como único resultado prático fazer minguar as fileiras do exército ocidental, majoritariamente compostas de mercenários bárbaros, que ele tinha reunido em razão do seu prestígio militar e político.

A situação militar do Ocidente se deteriorava rapidamente, valendo lembrar que, em 406 D.C., os bárbaros Vândalos, Alanos e Suevos aproveitaram o congelamento do Reno para invadir a Gália em grande número. O fato de Ravenna não ter sido capaz de organizar nenhuma ação militar em resposta, levou o governador da Britânia, Flavius Claudius Constantinus (Constantino III) a se autoproclamar imperador romano, para, em seguida, atravessar o Canal da Mancha, levando consigo todo o exército romano da Britânia e desembarcando na Gália, em 407 D.C., sendo que, no ano seguinte, ele conseguiu estabelecer a sua capital na cidade de Arles.

Flávio Constantino conseguiu guarnecer durante algum tempo a fronteira da Gália e exercer autoridade sobre a Hispânia,  mas ali teve que lidar com uma incursão de Visigodos liderados por Sarus,  agindo a serviço do imperador Honório, e, apesar de ter sido sitiado por Sarus em Valência, os bárbaros foram obrigados a se retirar ante a chegada de um contingente comandado por Gerontius e Edobichus, dois generais subordinados a Flávio Constantino. Não possuindo outras alternativas militares para combater o usurpador, Honório, ao receber os emissários enviados por Flávio Constantino, em 409 D.C. reconheceu-o como “Augusto” e, portanto, seu colega imperial,  ficando ele conhecido como Constantino III. Este, em seguida,  também elevou seu próprio filho à condição de Augusto, que reinou com ele adotando o nome de Constante II (não confundir com o imperador bizantino do mesmo nome)

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(Solidus de Constantino III, foto de Classical Numismatic Group)

Entretanto, Constantino III,  logo  em seguida, teve que enfrentar uma rebelião do seu próprio subordinado, o general Gerontius, que, provavelmente insatisfeito o envio de Constante II para a Hispânia, ali aclamou o usurpador Maximus como imperador. Desse modo, os reduzidos domínios de Constantino III ficaram sob ataque por todos os lados, pois, Gerontius, após derrotar as tropas de Constante II, na cidade de Vienne, em 410 D.C, matando este, sitiou o próprio Constantino, em Arles. Simultaneamente, uma nova horda de bárbaros cruzou o Reno, enquanto a Britânia, que havia ficado indefesa, estava sob ataque dos Saxões. A ilha nunca mais voltaria ao controle do Império e, em resposta a uma petição dos cidadãos romanos locais, suplicando por tropas para a sua defesa, Honório respondeu que eles deveriam procurar se defender valendo-se dos próprios meios…

Enquanto isso, depois de saquearem Roma, também em 410 D.C, os Godos permaneceram ao largo na Itália, levando com eles, como refém, a irmã de Honório, a princesa Gala Placídia, sem, contudo, serem capazes de tomar a capital ocidental, Ravenna.

Foi nesse quadro que Flávio Constâncio surgiu em cena como o Comandante em Chefe (Magister Militum) do Exército Romano do Ocidente e, liderando as tropas da Itália, em 411 D.C., ele entrou na Gália e alcançou Arles, onde, ao constatarem a sua chegada, a maior parte das tropas de Gerontius desertou e se juntou a ele, obrigando Gerontius a fugir para a Espanha, onde mais tarde ele seria cercado e cometeria suicídio. Contudo, Constantino III, não se beneficiou em nada da desgraça de Gerontius, pois, imediatamente, Flávio Constâncio passou a sitiar Constantino III, em Arles. Após Flávio Constâncio derrotar um contingente liderado por Edobichus, que tentou inutilmente levantar o cerco, Constantino III, constatando que era inútil a resistência, acabou se rendendo e, inicialmente, ele recebeu salvo-conduto para se retirar da cidade, sob a condição de se ordenar padre. Porém, pouco depois,  ele acabou sendo executado por ordens de Honório, quando já se encontrava próximo à Ravenna.

Os bárbaros Burgúndios e Alanos, aproveitando a divisão entre os Romanos, juntaram-se a alguns nobres galo-romanos que apoiaram Constantino III e aclamaram Jovinus, um senador da Gália, como imperador. Com isso, os Burgúndios, liderados pelo rei Gundahar (ou Gunther), conseguiram se estabelecer também na margem ocidental do rio Reno (eles já controlavam um trecho do outro lado do rio), na região onde ficavam as cidades de Vormatia (atual Worms), Noviomagus (atual Speyer) e Argentorarum (atual Estrasburgo), que posteriormente ficaria conhecida como Borgonha, em função do nome da tribo,  fundando o Reino da Borgonha, que seria incorporado pelo Reino dos Francos, em 534 D.C.

Enquanto isso, de volta à Itália, após derrotar Gerontius, Flávio Constâncio aumentou a pressão militar sobre os Godos, que foram obrigados a deixar a Itália, possivelmente com o incentivo de alguma quantidade de ouro, e foram se instalar no sul da Gália, em 412 D.C.

Não obstante, Jovinus seria derrotado pelos Visigodos liderados pelo rei Ataulfo,  que chegou na Gália, tencionando, a princípio, aliar-se a Jovinus. Porém, concomitantemente, seu inimigo mortal,  o Godo Sarus, que havia rompido com Honório, também ingressara na Gália, com o mesmo propósito.  Na primeira oportunidade que teve de alcançar o inimigo, Ataulfo atacou e matou Sarus.  Nâo se sabe ao certo, mas a ação de Ataulfo de alguma forma deve ter contribuído para atrapalhar sua aproximação com Jovinus. Quando este nomeou seu próprio irmão, Sebastianus, como Augusto, Ataulfo, que provavelmente estava de olho no posto para ali colocar algum fantoche, entrou em contato com Dardanus,  o Prefeito Pretoriano da Gàlia, que ainda se mantinha fiel a Honório, e este enviou uma mensagem ao seu imperador, informando que Ataulfo propunha uma aliança contra Jovinus, mediante certos termos. Aceita a proposta, Ataulfo atacou e derrotou Sebastianus e Jovinus fugiu para Valência, mas foi capturado e enviado a Dardanus, em Narbonne, onde foi executado e decapitado, em 413 D.C. As cabeças dele e de Sebastianus foram enviadas à Ravenna. Honório depois as mandou para Cartago, para advertir outros usurpadores, como veremos a seguir.

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(Relevo em marfim, retratando Flávio Constâncio (Constâncio III), como Cônsul)

Em recompensa aos seus bons serviços, Flávio Constâncio foi nomeado Cônsul para o ano de 413 D.C.

O motivo pelo qual Constâncio não enfrentou diretamente a rebelião de Jovinus foi devido ao fato de que, em 412 D.C, outro usurpador, Heraclianus, o Conde da África, insatisfeito com a nomeação de Flávio Constâncio como Magister Militum, revoltou-se e declarou-se imperador. Em seguida, ele suspendeu o envio de grãos da África para Roma (como o Egito fazia parte do Império Romano do Oriente, a província era a principal fonte de trigo para a cidade de Roma) e armou uma frota, com a qual desembarcou na Itália, no comando de seu exército.

Provavelmente, Heraclianus agiu dessa forma por acreditar que Honório não dispunha mais de tropas suficientes, pois as fontes relatam que ele ficou espantado quando percebeu o tamanho do exército comandado por Flávio Constâncio, que o interceptou em Utriculum, possivelmente na Úmbria. Seguiu-se uma encarniçada batalha, onde Heraclianus foi derrotado e fugiu de volta para a África, onde, no entanto, foi preso e executado no Templo da Memória, em Cartago.

Na Gália, após uma breve trégua com Honório, que foi selada pelo casamento do rei visigodo Ataulfo com Gala Placídia (aparentemente, não contra a sua vontade), em 414 D.C., Flávio Constâncio, inteligentemente, submeteu a costa da Gália a um bloqueio naval, causando a ocorrência de fome entre os Godos, que, enfraquecidos, foram obrigados a deixar a Gália e ir para a Espanha, onde o seu rei Ataulfo acabaria sendo assassinado por um desafeto, em 415 D.C.

Em função da inteligente estratégia de Constâncio, o sucessor de Ataulfo, Wallia, teve que celebrar uma paz em termos mais favoráveis ao Império Romano, assumindo o compromisso de, em troca de comida,  os Godos voltarem ao status de foederati, o que implicava na obrigação de prestar serviço militar ao Império, além de terem que devolver a princesa Gala Placídia  à Corte de Ravenna.

Em razão de mais este sucesso, Flávio Constâncio foi novamente recompensado, em 416 D.C., agora com o título de “Patrício”, distinção que, no Baixo Império Romano do Ocidente, significava algo parecido a “Grão-Vizir”, ou seja, uma espécie de misto entre primeiro-ministro e comandante supremo do Exército, e que era, sem dúvida, a pessoa mais importante depois do Imperador.

Selando a  ascensão de Flávio Constâncio, em 1º de janeiro de 417 D.C,  o general e Gala Placídia casaram-se, a princesa, tudo indica, contra a vontade dela.Provavelmente o motivo da insatisfação era o fato de Gala Placídia ser irmã de Honório, filha de Teodósio, o Grande, e neta de Valentiniano I – o último realmente grande imperador do Ocidente, e, portanto, naquele momento, a mulher de nobreza mais ilustre do Império Romano, obrigada a se casar com um general de origem obscura.

Ainda em 417 D.C. nasceu a primeira filha do casal, Grata Justa Honoria. Assim, Flávio Constâncio era, formalmente, um membro da família imperial, e da prestigiada Casa de Teodósio e ele foi, novamente, nomeado para um Consulado.

O sucesso da estratégia empregada contra os Godos, permitiu que Flávio Constâncio conseguisse, em 417 D.C.,  por fim à prolongada Revolta dos Bagaudas, a qual durava desde 409 D.C. Tratava-se de um conflito ocasionado pelo colapso da autoridade romana na Gália após a invasão bárbara de 406 D.C, em que uma grande quantidade de habitantes da província, forçados pela violência e miséria, tornaram-se foras-da-lei, formando verdadeiras milícias que, inicialmente orientadas para o combate aos bárbaros, reverteram ao banditismo, voltando-se contra as autoridades romanas.

Em 2 de julho de 419 D.C., nasceu, em Ravena, capital do Império Romano do Ocidente, Flavius Placidius Valentinianus, o primeiro filho varão de Flávio Constâncio e de Gala Placídia., que, futuramente se tornaria o imperador Valentiniano III.

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(Tradicionalmente, embora não haja evidências concretas, acredita-se que este medalhão de vidro pintado ostente os retratos de Gala Placídia e seus filhos Valentiniano III e Justa Honória)

Novamente, em 420 D.C, Constâncio foi nomeado Cônsul, pela terceira vez, juntamente com o imperador do Oriente, Teodósio II, no que parecia um testemunho de que sua pessoa, e, sobretudo, a sua política, deviam estar sendo aprovadas pela Corte de Constantinopla.

Finalmente, em 8 de fevereiro de 421 D.C, viria o justo reconhecimento do papel crucial que Flávio Constâncio vinha desempenhando no Ocidente: ele recebeu de Honório o título de “Augusto“, o que significa que ele reinaria junto com Honório, como co-imperador, passando à História como Constâncio III. Entretanto, Teodósio II, em Constantinopla não reconheceu a nomeação dele.

Narra uma fonte que Constâncio III, na época de sua aclamação, teria manifestado pesar pela perda de liberdade pessoal, entendendo que  aquilo era um dos fardos que o título de imperador acarretava.

Entretanto, Constâncio III somente reinaria por 7 meses, vindo a falecer de causas desconhecidas, em 2 de setembro daquele ano de 421. Ele, então,  já devia ter entre 50 e 60 anos, ou talvez até mais. Há um relato de que ele planejava uma expedição contra o Oriente para forçar o seu reconhecimento.

Gala Placídia e seu ainda bebê Valentiniano, inclusive, tiveram que se asilar em Constantinopla, devido aos tumultos que se seguiram à morte de Constâncio III. Uma fonte alega que o motivo teria sido o repúdio da massa de Ravenna ao boato de que ela e seu irmão Honório mantivessem uma suposta relação incestuosa. Vale citar, no entanto, que o historiador Edward Gibbon menciona que os soldados godos, nessa ocasião, ficaram do lado de Placídia.

Diante dessa informação de  que houve manifestações públicas contra a morte do imperador e hostilidade contra a imperatriz-viúva, pode-se especular que Placídia tenha tido alguma participação na morte de seu marido Constâncio III (não se olvidando que este foi um casamento forçado), ou, pelo menos,  o povo pode ter pensado assim, já que a massa realmente poderia ter motivos para suspeitar de uma imperatriz que, antes do casamento com Constâncio III, tinha  primeiro sido esposa de um rei Godo…

Seja como for, a verdade é  que, naquele momento, o que Roma mais precisava  era de um imperardor-soldado, e de um com talento militar. Por isso, a morte de Constâncio III veio se somar a uma série de infortúnios que se abateram sobre o Império Romano do Ocidente, em um momento decisivo para a sua sobrevivência.

FIM