AS LUPERCAIS

Entre os diversos festivais religiosos celebrados pelos romanos, as Lupercais (ou Lupercalia) incluem-se entre os mais primitivos, misteriosos e, não obstante, duradouros.

Lupercalian_Festival_in_Rome
Circle of Adam Elsheimer (1578-1610), Public domain, via Wikimedia Commons

O festival durava três dias, a partir dos Idos de fevereiro (dia 13) e terminava no dia 15.

A maior parte do que se sabe acerca da Lupercalia nos foi transmitido pelo historiador romano Tito Lívio. Vale observar, contudo, que é bem provável que o festival seja anterior à fundação de Roma, fazendo parte dos costumes dos povos itálicos ancestrais. O seu nome indica uma associação com o animal lobo (lupus, em latim) e acredita-se que ele pode ter surgido como um ritual para afastar os lobos, que no passado remoto infestavam as florestas do Lácio, dos rebanhos dos pastores. Posteriormente, os Romanos associaram o ritual com a lenda da Fundação de Roma, em que os gêmeos recém-nascidos Rômulo e Remo, filhos de Reia Sílvia, filha do rei deposto de Alba Longa, Numitor, engravidada pelo deus Marte, após serem jogados no Rio Tibre, sobrevivem e são amamentados por uma loba, em uma caverna.

Fragmentos do relevo reconstituído da fachada da Ara Pacis, mostrando cena relacionadas com lenda de Rômulo e Remo, que estão sendo amamentados pela loba na Lupercal. Foto: Amphipolis, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Depois de dois dias de festa e procissões, no dia 15 de fevereiro, dois grupos de rapazes, que recebiam o nome de “Luperci“, membros das famílias patrícias da Cidade, partiam para a entrada de uma caverna na colina do Palatino, chamada de “Lupercal“, que, acreditava-se, seria a referida caverna onde a loba cuidou dos lendários fundadores de Roma, Rômulo e Remo. Neste local, eles sacrificavam bodes e um cachorro (que era uma vítima inusitada para os romanos).

Teto decorado da caverna Lupercal, no Palatino, em Roma, descoberta em 2007, em http://news.nationalgeographic.com/news/2007/11/071120-rome-grotto.html

O sangue que ficava na faca devia ser passado na testa de dois dos Luperci, bem como em pedaços de lã encharcados de leite. Nesse momento, ambos deveriam rir, ainda que não soubessem o motivo.

Então, os dois rapazes deveriam entrar na caverna e fazer um banquete, acompanhado de bastante vinho. Ao saírem da caverna, nus, a não ser por um cinto de couro de cabra, apesar de estarem no frio inverno de fevereiro, os rapazes carregavam tiras, também de couro de cabra, e passavam no meio da multidão reunida para o evento, que os assistia correr ao longo de um percurso marcado no sopé do Palatino, correspondendo a um dos primitivos ajuntamentos romanos.


Durante a corrida, os jovens açoitavam as pessoas da multidão com as tiras de couro, mirando especialmente as mulheres, porque acreditava-se que essas chicotadas tornariam as mulheres mais férteis e curariam as que fossem estéreis. A finalidade da corrida em torno do Palatino também era a de afastar os maus espíritos dos antigos limites sagrados da cidade de Roma (Pomerium).

Andrea Camassei, (1635) Public domain, via Wikimedia Commons


É bem possível que os romanos, já no final da República e durante o Império, nem soubessem mais exatamente a origem da cerimônia, mas as Lupercais estavam tão arraigadas na memória coletiva que elas continuaram sendo celebradas, inclusive mesmo depois da Queda do Império Romano do Ocidente, somente tendo sido proibidas por um decreto do Papa Gelásio, que cujo pontificado durou de 492 a 496 D.C.


Para alguns, as Lupercais teriam sido o embrião do nosso moderno Carnaval.

Em um episódio célebre da História de Roma, o triúnviro Marco Antônio, quando já era um homem público, uma vez participou da celebração, nu como um Lupercal, sendo muito criticado por isso e inclusive sendo ridicularizado por Cícero. Foi, aliás, nesta Lupercalia que Antônio ofereceu uma tiara de ouro ao Ditador Júlio César, por três vezes, tendo esta sido recusada pelo Ditador em todas as oportunidades, encenação que teria sido um dos pretextos para a conspiração senatorial que resultou no seu assassinato, com o objetivo de evitar que ele se tornasse rei.

John Clark Ridpath (1894), Public domain, via Wikimedia Commons

O episódio foi eternizado por Shakespeare, no começo da peça “Júlio César“, quando o Ditador pede a Marco Antônio que chicoteie sua esposa Calpúrnia, com o fim de livrá-la da infertilidade.

Anunciou-se, em 2007, que a caverna Lupercal foi redescoberta em Roma, na colina do Palatino, exatamente sob as ruínas da residência erguida no local pelo imperador Augusto, que provavelmente pretendeu com isso ligar o seu nome ao de Rômulo, o mítico fundador de Roma (vide link abaixo).

http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7104330.stm