VESTA E A VESTALIA

Foto Acediscovery, CC BY 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0, via Wikimedia Commons

Entre os dias 7  (ante dies VII idus junias) e 15 de junho (ante dies XVII Kalendas Iulias ou, antes do Calendário Juliano, ante dies XVI Kalendas Quinctilis), ocorria a Vestalia, que  era a nundina (período  de 9 dias que no calendário romano tradicional tinha a mesma função da atual semana)  de festejos e cerimônias em honra à deusa Vesta, uma das divindades mais antigas e tradicionais do Panteão romano, tão ancestral que inicialmente não era personalizada e nem antropomorfizada, de acordo com o regular padrão evolutivo  da religiosidade humana. Mais tarde, e com a crescente influência da cultura grega em Roma, Vesta foi incluída entre os doze “Deuses Consentes“, como filha de Saturno e Ops, e irmã de Júpiter, Netuno, Plutão, Juno e Ceres.

Vesta era uma divindade originalmente ligada ao lar e à família, sendo que o lugar mais importante da casa romana ancestral era a lareira (focus), que protegia os moradores do frio e permitia cozinhar os alimentos, e de onde se originou não só a nossa palavra “fogo”, mas também a palavra “foco” (ponto central). Próximo à lareira, na casa romana, ficava um armário ou dispensa, chamado de “penus“. Os romanos acreditavam que esses armários eram guardados por espíritos, que recebiam o nome de “Penates” que ajudavam outros espíritos que cuidavam da totalidade do lar (os “Lares“), e eram cultuados em um altar próprio dentro da casa, chamado de lararium (e que, curiosamente, deram origem a nossa palavra “lareira”, pois ambas as divindades se tornaram, desde tempos ancestrais, associadas).

Vale mencionar que, segundo uma lenda, já no início do período monárquico de Roma, o rei Sérvio Túlio seria filho de um desses “Lares”, que, transformado em pênis “(phallus), escondeu-se entre os carvões da lareira da casa do rei Tarquínio e teve relações sexuais com Ocresia, escrava (serva) da rainha Tanaquil.

Acredito, com base na filologia linguística, que Vesta pode ser uma das divindades ancestrais de um hipotético panteão proto indo-europeu, e portanto, muito anterior à fundação de Roma. De fato, segundo o filólogo francês Georges Dumézil, o nome da deusa Vesta deriva da raiz da língua proto-indoeuropeia *h₁eu-, através do derivativo *h₁eu-s- ou *h₁w-es-, que evoluiu para os radicais  εὕειν heuein,, em grego,  ustio, no latim e no védico osathi  todos com o significado de queima, sendo que o vocábulo latino está presente em Vesta. Na língua gaulesa, havia a palabra visc, que significa “fogo”.

Havia também uma divindade similar à Vesta entre os gregos, chamada Hestia, que, segundo Cícero, teria originado o nome Vesta.

Segundo a tradição, quando Roma foi fundada, Vesta já era cultuada na cidade de Lavinium, no Lácio, que segundo a lenda teria sido fundada pelo próprio Enéias, herói troiano mítico que, fugindo da queda de Tróia, teria trazido com ele para a Itália o culto aos Penates, entre os quais se incluía Vesta (conforme mencionado por Virgílio na Eneida, II, 293) e por Macrobius, na Saturnalia, III, 4). Posteriormente, Ascânio que seria filho de Enéias e Lavínia (em nome de quem Enéias batizou Lavinium), filha do rei Latinus, fundou a cidade de Alba Longa, levando para lá o culto a Vesta.

Séculos após a fundação de Alba Longa, segundo as narrativas em boa parte míticas preservadas pelo historiador Tito Lívio, depois da morte do rei albano, Proca, o seu filho mais velho, Numitor, que seria o seu sucessor, foi deposto pelo irmão mais novo, Amulius, que mandou matar os sobrinhos do sexo masculino. Já a filha de Numitor, Rhea Silvia, foi poupada pelo tio e nomeada Virgem Vestal, que era o nome e condição das sacerdotisas que cuidavam do culto a Vesta.

Porém, ainda segunda a lenda da fundação de Roma, Rhea Silvia foi estuprada pelo deus Marte, engravidou dele e deu à luz aos gêmeos Rômulo e Remo, que, tendo a sua morte ordenada por Amulius, foram abandonados nas margens do rio Tibre, sendo salvos e alimentados por um loba. Mais tarde, os irmãos cresceram, e, após matar Amulius e instalar Numitor no trono de Alba Longa, eles deixaram esta cidade e saíram para fundar a cidade de Roma. o que seria feito por Rômulo, após matar o seu irmão, em 21 de abril de 753 A.C.

Segundo Macrobius, os primeiros magistrados de Roma, ao serem empossados, deviam ir até Lavinium e fazer um sacrifício a Vesta.

Por sua vez, de acordo com Dioníso de Helicarnasso (Antiguidades Romanas, II, 66), o segundo rei de Roma, Numa Pompílio (tradicionalmente, ele teria reinado de 715 A.C. a 673 A.C), o primeiro monarca romano que se dedicou a organizar e consolidar a religião romana, decidiu estabelecer um altar a Vesta na Cidade, comum para todo o povo, situado entre as colinas do Capitólio e de Palatino, ou seja, na área que se tornaria o Fórum Romano. Este altar ou Templo de Vesta, tinha de fato o propósito de ser o “focus” comum de toda Roma e do povo romano, e, por isso Cícero se referia a ele como “focum urbis” e “focum publicus“.

Sendo Vesta uma divindade ligada ao lar, nada mais natural que, na sociedade patriarcal latina, as mulheres fossem as principais responsáveis pelo seu culto. E, em sendo verdadeiras as lendas, mesmo antes da fundação de Roma, já existiam sacerdotisas encarregadas do culto a Vesta, das quais se exigia serem virgens, como mostra a fábula de Rhea Silvia.

Entretanto, a criação do Colégio das Virgens Vestais, em Roma, é atribuída, igualmente, ao rei Numa Pompílio. Foi providenciada uma habitação custeada pelo Estado (Casa das Vestais), que também deveria sustentar as sacerdotisas, que eram escolhidas pelo próprio rei, na condição de chefe da religião romana, talvez, inicialmente entre as suas próprias filhas (atribuição que, depois, no período republicano, passou a ser do Pontifex Maximus, cargo que, mais tarde, já durante o Império, passou a ser privativo do Imperador).

A principal tarefa das Virgens Vestais era cuidar para que o fogo sagrado de Vesta, mantido no interior do seu respectivo Templo, jamais se apagasse, e os romanos acreditavam que quando isso acontecia, grandes tragédias se abatiam sobre a cidade e sobre o Estado.

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(Estátua de uma Virgem Vestal, encontrada na Casa das Vestais, em Roma)

Acredita-se que a exigência da virgindade como condição inerente às Vestais estava ligada à pureza que os romanos atribuíam ao fogo sagrado de Vesta e à própria deusa, que, naturalmente também era virgem. Assim, dentro dessa concepção romana, para garantir que as encarregadas de velar pelo fogo sagrado não conspurcassem a pureza do mesmo, somente meninas entre seis e dez anos de idade poderiam ser escolhidas para serem Virgens Vestais e, obviamente, elas deveriam permanecer virgens e celibatárias enquanto estivessem a serviço do deus, sendo que a Vestal que violasse o dever de castidade com a perda da virgindade era punida com a terrível pena de ser enterrada viva.

Ainda ligado ao desejo de assegurar pureza ou perfeição, as escolhidas não podiam ser filhas de pais divorciados, de libertos ou escravos, ou daqueles que tivessem profissões consideradas inferiores ou degradantes. E também não podiam ter defeitos físicos ou problemas mentais.

Essa extrema preocupação com a pureza do fogo de Vesta era tal que, de acordo com Plutarco (Vidas Paralelas”, “Vida de Numa”, IX, 6–7), caso a chama guardada no seu templo se extinguisse por algum motivo, ela não poderia ser acesa por outro fogo iniciado diretamente pela mão do homem, mas somente por meio de espelhos especiais, amplificando a fonte impoluta vinda do próprio sol:

E, se por alguma eventualidade ele (o fogo sagrado) se apague, como ocorreu em Atenas, durante a tirania de Ariston, como contam que a lâmpada sagrada foi apagada, e em Delfos, quando o templo foi incendiado pelos Persas, e também durante as Guerras contra Mitridates e as Guerras Civis Romanas, quando o altar foi demolido e o fogo extinto, então eles afirmam que o fogo não deverá ser aceso novamente com outro fogo, mas sim criado fresco e novo, pelo acendimento de uma chama pura e não poluída vinda dos raios do Sol. E isso eles geralmente conseguem por meio de espelhos metálicos, a concavidade dos quais é feita seguindo os lados de um triângulo isósceles retangular e que convergem da sua circunferência até um único ponto no centro. Quando, por conseguinte, aqueles são colocados contra o Sol, de modo que os raios dele, enquanto eles incidem sobre eles de todos os lados, são coletados e concentrados no centro, o próprio ar fica ali rarefeito, e substâncias muito leves e secas ali colocadas rapidamente inflamam-se – os raios solares adquirindo a forma e a substância do fogo“.

Observe-se que não há consenso, mesmo entre os autores antigos, de que essa forma de acender o fogo fosse a única ou mesmo que ela fosse a utilizada no Templo de Vesta. Outros relatos referem-se ao uso do método ancestral de esfregar um pedaço de madeira em outro. Portanto, parte do treinamento das Virgens Vestais era destinado a aprender as técnicas de acender e manter o fogo sagrado. E, de fato, todo dia 1º de março – primeiro dia do ano do primitivo calendário romano – o fogo deveria ser renovado.

A escolha das “noviças” que se tornariam Virgens Vestais, feita pelo rei ou pelo Pontífice Máximo, era compulsória, ou seja, em caso de recusa, estes tinham o poder de capturar a virgem escolhida e levá-la para a Casa das Vestais, mas, felizmente, raramente isso se mostrou necessário.

Como reconhecimento do fardo pessoal que a condição de Virgem Vestal acarretava às escolhidas, o período de sacerdócio obrigatório era de trinta anos, após o que a mulher poderia voltar à vida normal, casando e tendo filhos. Não obstante, inúmeras Vestais optavam por continuar servindo como tal pelo resto de suas vidas, muitas certamente incentivadas pelos privilégios legais que lhes eram concedidos, como ter os seus próprios litores, que lhes abriam caminhos pelas ruas, e de se sentarem em lugares de honra nas cerimônias e espetáculos públicos (e muitas também por devoção religiosa).

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(Ruínas da Casa das Vestais, no fórum romano)

Os relatos preservaram o nome das primeiras 4 virgens vestais encarregadas de velar pelo fogo sagrado de Vesta no Templo: Gegânia, Verênia, Canuleia e Tarpeia. Posteriormente, o número de quatro virgens (parece que inicialmente eram duas às quais o próprio Numa Pompílio acresceu mais duas) foi aumentado para seis, durante o reinado de Sérvio Túlio.

O Templo de Vesta

Ao contrário dos outros templos etruscos ou romanos, que eram quadrados ou retangulares, o Templo de Vesta era redondo. Para muitos estudiosos, a explicação para isso é que o formato do templo imitava o desenho das habitações primitivas dos latinos, que era circular, como demonstram, inclusive, os achados arqueológicos no Palatino, onde foram encontrados os buracos em que foram fincados os postes de madeira das cabanas, dispostos em círculo (tugurium romuli).

Como as cabanas primitivas, o templo tinha uma abertura circular no teto, para permitir que a fumaça do fogo sagrado, que ficava queimando no centro, saísse e a luz solar entrasse. Além do fogo, que provavelmente ficava em uma espécie de dispositivo à guisa de braseiro no chão, e não em uma lâmpada suspensa, havia no interior do templo um armário fechado (penus Vestae) e umas estátuas ou efígies, uma delas o célebre Palladium, uma estátua de madeira da deusa Pallas Athena, que teria sido trazida de Tróia para a Itália pelo próprio Enéias.

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(Afresco da Casa de Menandro, em Pompéia, retratando a cena em que Ajax arrasta Cassandra que se agarra ao Palladium)

Não obstante, passagens no poema de Ovídio, no livro de Plutarco, sobre a vida de Numa Pompílio e. ainda, passagens de Dionísio de Helicarnasso, associam Vesta, bem como o fogo que a representa, ou no qual ela mesma consiste, à própria Terra, ou ao menos, ao fogo que existe no interior do planeta (uma associação que não chega a surpreender vinda de um povo que vivia em uma península onde o vulcanismo era bem presente e visível, sobretudo no sul) e, assim, o formato do templo evocaria a do próprio planeta.

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Por sua vez, segundo Plutarco (“Vidas Paralelas“, “Vida de Numa“, VIII, 6-7), o Templo de Vesta foi construído por Numa Pompílio em forma circular para simbolizar o Universo, de acordo com a doutrina dos filósofos pitagóricos (não obstante o próprio historiador reconheça uma disparidade cronológica entre os períodos em que Numa e Pitágoras viveram):

“Além disso, conta-se que Numa construiu o Templo de Vesta, onde o fogo perpétuo era guardado, em forma circular, imitando não a forma da Terra, acreditando-se que Vesta seja a Terra, mas de todo Universo, no centro do qual os Pitagóricos colocam o elemento do fogo, e o chamam focus (Vesta?) ou ponto cardeal. E eles sustentam que a Terra não é imóvel, e nem se situa no centro do espaço circundante, mas que se move em círculo em torno do fogo central, não sendo ela nem o mais importante e nem mesmo um dos componentes principais do Universo. Este é o conceito, segundo nos foi contado, que também Platão, em sua velhice, tinha da Terra, nomeadamente, que ela está situada em um espaço secundário, e que a posição central e mais importante está reservada para outro corpo superior e mais nobre.”

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(Ruínas do Templo de Vesta, no Fórum Romano, foto de Wknight94 )

É, muito interessante constatar, portanto, observando toda essa simbologia contida no seu Templo, como uma divindade originalmente primitiva e animista como Vesta pode permitir uma sofisticada elaboração filosófica em seu culto: Substitua-se Vesta e seu fogo pelo Sol, ou pelo descomunal buraco negro existente no centro da Via Láctea, ou, até mesmo, pela singularidade nua que originou o “big-bang“, de acordo com a teoria da Física de que toda a matéria e energia que nos move aqui na Terra provêm deles, que, ainda nos dias atuais, aquela divindade poderia perfeitamente adquirir uma ressignificação.

Vestalia

O festival em honra a deusa Vesta – a Vestalia – começava no dia 9 de junho, com a abertura do penus Vestae, o armário e despensa do templo, evocando os que existiam em toda residência romana, e que, no caso dela ficava fechado o ano inteiro. Neste dia, as mães de família podiam vir ao templo descalças trazendo oferendas de comidas

Ainda no dia 9 de junho, um burro, animal consagrado à Vesta, era coroado com guirlandas de flores e colares contendo pedaços dos pães salgados que eram preparados pelas Virgens Vestais. Por isso, esse dia também era consagrado aos padeiros.

Para alguns, a presença do burro seria uma evidência de que o culto de Vesta teria origem nas populações mediterrâneas mais antigas, antes  da chegada dos indo-europeus à Itália (porque nas culturas indo-europeias o cavalo é o animal mais importante), mas não podemos esquecer que se a divindade Vesta tiver mesmo vindo da Anatólia para a Itália, como dizem as lendas, poderia ter sido trazida por povos indo-europeus que se assentaram originalmente no Levante, como é o caso dos Luvianos, povo indo-europeu que vivia  na esfera de influência dos Hititas e parece ter habitado a cidade de Willusa, que alguns estudiosos acreditam ser a Tróia mencionada na Ilíada de Homero. E nessa região, o burro já estava presente, inclusive sendo ela próxima a região onde a criação de burros estava mais desenvolvida no período que se estima que a Guerra de Tróia teria ocorrido – a Mesopotâmia. De qualquer forma, o burro já era conhecido dos gregos desde o segundo milênio A.C.

O dia 15 de junho era o último dia da Vestalia, ocasião em que as Virgens Vestais deveriam proceder à limpeza do penus Vestae e do recinto do templo, procedimento de purificação chamado de stercoratio. A sujeira era levada em procissão para ser jogada no rio Tibre. Feito isso, o penus Vestae e o sancta sanctorum do Templo – o recinto interior mais sagrado, onde ficavam o fogo, o armário e o Palladium, eram cerimonialmente fechados.

Fontes:

1- “On the Worship of Vesta, and the Holy Fire, in Ancient Rome, with an account of the Vestal Virgins“,  The Classical Journal, disponível em PDF, na internet).

2- “Gods and Miths of the Romans“, Mary Barnett, ed. Grange Books.

3- “Bibilioteca dos Grandes Mitos e Lendas Universais“, Roma, Stewart Perowne, Ed.Verbo.

4- Wikipédia, verbetes “Vestalia” e “Temple of Vesta“.