Em 22 de março de 238 D.C., na pequena, mas próspera, cidade de Thysdrus (atual El-Djem, na Tunísia), na província romana da África Proconsularis, uma multidão armada com machados e porretes invadiu a residência do Procônsul da África, o velho senador Marcus Antonius Gordianus Sempronianus (Gordiano I).
(Anfiteatro romano de El-Djem, na Tunísia, o maior depois do Coliseu, acomodava 35 mil espectadores)
A turba enfurecida tinha acabado de assassinar, poucas horas antes, um dos Procuradores do Imperador, exasperada pela cobrança de impostos e confiscos de propriedades, que tinham sido ordenados para atender a necessidade do imperador Maximino Trácio (foto de seu busto abaixo) em financiar a guerra contra as tribos germânicas no Danúbio (OBS: o reinado de Maximino Trácio será objeto de um artigo próprio).
Se o velho Procônsul Gordiano, em seus avançados 79 anos de idade, certamente ficou perplexo com a súbita invasão de sua casa, provavelmente mais apavorado ainda ele ficou quando ouviu os chefes da multidão aclamarem-no imperador, dando-lhe, aos gritos, o título de “Africanus“.
Gordiano tentou desesperadamente recusar o título e até chegou a se prostrar no chão implorando que os revoltosos fossem embora, dizendo-lhes que ele era apenas um velho cansado, que nunca lhes fizera mal, mas os chefes, com armas em riste, disseram que seria melhor para ele arriscar uma futura e incerta punição de Maximino do que a certeza da morte que lhe esperava, caso ele não aceitasse a púrpura imperial naquele exato momento.
Sem alternivas, Gordiano I cedeu, e, dias depois, acompanhou os revoltosos até Cartago. Não obstante, em algum momento entre a sua aclamação e a entrada em Cartago, Gordiano, lembrando que ele era um homem idoso, entendeu que era conveniente que o seu filho, que também se chamava Gordiano (Gordiano II), igualmente fosse aclamado Augusto e, portanto, co-imperador.
Ao chegar a Cartago, uma grande cidade que, naquela época, no Ocidente, só perdia em tamanho para Roma, e, ainda, disputava com Alexandria o título de cidade mais importante da África, os Gordianos foram entusiasticamente recebidos pela população local e pelos líderes da cidade.
Imediatamente, emissários levando cartas de Gordiano foram despachados para Roma, tendo eles sido bem recebidos pelo presidente do Senado (Princeps Senatus), o senador Públio Licínio Valeriano (que, anos mais tarde, tornaria-se também imperador).
De fato, um grande número de senadores, e também parte do contingente da Guarda Pretoriana, que nunca tinham se conformado com a ascensão de Maximino, cognominado, o Trácio, que era considerado nada mais que um bárbaro que havia assassinado o seu antecessor, Severo Alexandre, apoiaram a revolta e, por conseguinte, assim que a notícia da rebelião na África chegou em Roma, Vitalianus, o Prefeito Pretoriano nomeado por Maximino, foi assassinado.
Em seguida, o populacho de Roma, acreditando nos boatos de que Maximino teria sido assassinado, perseguiu pelas ruas a maior parte dos funcionários e magistrados que ele havia nomeado e destruiu as estátuas do odiado imperador.
Assim, em 2 de abril de 238 D.C., o Senado confirmou a aclamação de Gordiano I e de Gordiano II como imperadores romanos. Cartas foram enviadas aos governadores das demais províncias anunciando a coroação dos novos imperadores. E, de fato, muitos aderiram ao novo governo; contudo, alguns governadores, com medo da conhecida ferocidade de Maximino, preferiram executar os mensageiros.
No ato de sua elevação ao trono imperial, Gordiano I adotou o nome de Caesar Marcus Antonius Gordianus Sempronianus Romanus Africanus Augustus .
Nascido no ano de 159 D.C., com o nome de Marcus Antonius Gordianus Sempronianus, Gordiano I era supostamente filho de um senador romano, cujo nome, segundo a História Augusta, seria Maecius Marullus (um nome que os historiadores modernos acreditam ser fictício). e de Ulpia Gordiana.
A família da mãe de Gordiano I provavelmente era radicada na Ásia Menor, o que explicaria a origem do nome “Gordianus“. Por sua vez, o prenome feminino “Ulpia” pode indicar algum parentesco com a família do imperador Trajano, ou, mais provavelmente, que a família recebeu a cidadania romana no reinado deste imperador.
Já o prenome “Marco Antônio”, que parece ter sido um nome de família, pode indicar que a família do pai de Gordiano recebeu a cidadania romana durante o triunvirato de Marco Antônio, que governou o Oriente na 2ª metade do século I A.C. Inscrições funerárias encontradas em Ancyra (atual Ancara, capital da Turquia) demonstram que uma certa Sempronia Romana, filha de um certo Sempronius Aquila , Secretário da Correspondência Imperial em Grego do Imperador (Secretarius ab epistulis Graecis), que podem ter sido a avó e o bisavô maternas de Gordiano I, ergueu o monumento em honra de seu marido, um Pretor, cujo nome, contudo, não aparece.
Inicialmente, durante a sua juventude e idade adulta, os interesses e atividades de Gordiano parecem ter se limitado à Literatura e Retórica. Ele, segundo a História Augusta, teria escrito poemas e até as biografias dos imperadores Antonino Pio e Marco Aurélio, embora nenhuma obra dele tenha sido citada por algum historiador antigo.
As atividades literárias de Gordiano podem ser a explicação para a dedicatória feita a “Antonius Gordianus“, na obra “Vidas dos Sofistas”, escrita por Filóstrato, poucos anos antes de Gordiano ser nomeado imperador. Na dedicatória, Filóstrato menciona que esse Antonius Gordianus era descendente de Herodes Ático, uma aristocrata grego que também foi filósofo sofista e chegou a ser Cônsul Ordinário para o ano de 143 D.C., sendo o primeiro grego a atingir este importante posto.
Herodes Ático ( foto do seu busto abaixo) era amigo do imperador Antonino Pio e foi professor do imperador Marco Aurélio. A conexão com Gordiano é reforçada pelo fato da já mencionada Sempronia Romana ser filha de Titus Flavius Sempronius Aquila, que foi Secretarius ab epistulis Graecis do Imperador. Mas, como a idade de Gordiano II, que tinha o mesmo nome do pai, encaixa-se melhor nessa cronologia, é bem possível que a homenagem tenha sido feita a este, e não a Gordiano I. De qualquer forma, a genealogia proposta por Cristian Settipani, com base na Prosopografia se mantém plausível.
Quando resolveu entrar na carreira pública, Gordiano se destacou como Edil, Questor e Pretor pela magnificência dos espetáculos que financiou e apresentou ao Povo. Disto conclui-se que Gordiano deveria ser muito rico, o que é corroborado pelo fato de ele ser proprietário da “Casa dos Bicos”, uma mansão que pertenceu a Pompeu, o Grande. Seguindo o tradicional Cursus Honorum romano (carreira das magistraturas), o exercicio desses cargos possibilitou a entrada de Gordiano no Senado Romano.
Inscrições sobreviventes indicam que Gordiano serviu como Governador da Britânia Inferior em 216 D.C. e, posteriormente, como Governador da Síria Coele, ou Comandante da Legião IV Scythica, estacionada nesta última Província. Ele ainda foi Governador da Província da Acaia. E em algum momento, durante o reinado do imperador Elagábalo, Gordiano foi nomeado Cônsul Suffectus.
Em 237 D.C., o cargo de governador da importante província senatorial da África Proconsularis, uma das que cabia ao Senado Romano, coube a Gordiano mediante sorteio. E assim, voltamos para os dramáticos eventos que se seguiram após a aclamação dele como Imperador, em Cartago, que narramos na abertura deste artigo.
As notícias da revolta na África e da decisão do Senado chegaram aos ouvidos de Maximino, que se encontrava em Sirmium, na Ilíria. No início, o imperador até manifestou desprezo pelo fato, considerando tratar-se de uma insignificante revolta de provinciais da África e cidadãos de Cartago, os quais não eram muito considerados, naqueles dias, pelo valor militar, e que, além do mais, tinham aclamado um senador quase octogenário, e o filho deste, cujo estilo de vida não era muito respeitável. Porém, quando soube da chancela do Senado à aclamação dos Gordianos, o imperador ficou realmente furioso e preparou-se para marchar contra Roma.
Enquanto isso, os Gordianos resolveram livrar-se de um velho desafeto, Capelianus, que era o governador da Província da Numídia, vizinha à África Proconsularis, e que tinha sido nomeado por Maximino, substituindo-o por um novo governador.
Porém Capelianus, quando soube do propósito dos Gordianos, reuniu uma tropa de auxiliares Mouros e declarou fidelidade ao imperador Maximino, partindo em direção a Cartago, disposto a depor os usurpadores.
A população de Cartago, ao ver a chegada das forças de Capelianus, resolveu armar-se e resistir aos atacantes, liderada por Gordiano II. Porém, sem treinamento militar, os civis foram facilmente derrotados, na chamada Batalha de Cartago. O massacre foi tão grande que o corpo de Gordiano II, soterrado por uma montanha de cadáveres, jamais foi encontrado.
Quando a notícia da derrota do filho chegou ao seu conhecimento, Gordiano I recolheu-se ao seu quarto e matou-se, enforcando=se com a faixa que lhe cingia a túnica, em 12 de abril de 238 D.C. O seu reinado durara apenas 21 dias.
Com a notícia da morte dos Gordianos, não restava nenhuma opção aos senadores romanos senão continuar a revolta contra Maximino Trácio, pois eles tinham certeza que assim que o implacável imperador chegasse a Roma mandaria executar a todos.
Assim, o Senado escolheu dois novos imperadores no lugar dos Gordianos, selecionando-os das suas próprias fileiras., aclamando, em 22 de abril de 238 D.C, os senadores Marcus Clodius Pupienus (Pupieno) e Decimus Caelius Calvinus Balbinus Pius (Balbino). Ambos faziam parte de um comitê de 20 senadores criado pelo Senado para supervisionar os preparativos militares para a defesa contra Maximino ainda durante o reinado dos Gordianos.
O Senado também conferiu ao neto de Gordiano I, Marcus Antonius Gordianus Pius, um menino de 13 anos de idade, o título de “César”, tornando-o herdeiro do trono.
Pupieno, segundo a História Augusta, era um filho de um ferreiro, e ele ingressou na carreira militar, onde obteve sucesso, chegando a primeiro centurião (Primus Pilus) e, de modo incomum para a época, e foi promovido depois a general e, depois, nomeado Pretor. Depois, Pupieno exerceu cargos de Procônsul em várias províncias, culminando com a sua nomeação para Cônsul Suffectus em 207 D.C. e Cônsul Ordinário, em 234 D.C. O mais provável, contudo, para alguns historiadores, é que Pupieno fosse da pequena nobreza equestre e tenha escolhido a carreira militar. (muitos equestres serviam como centuriões no exército romano).
De qualquer modo, o fato de Pupieno (foto de seu busto abaixo) ter sido escolhido imperador por seus pares senadores, na iminência da chegada das tropas de Maximino, com certeza deve-se ao fato dele ter experiência militar, não obstante ele já ter entre 68 e 73 anos de idade, na data de sua elevação ao trono.
Já Balbino (foto de seu busto abaixo) era de uma família da nobreza senatorial e ele ocupou vários postos de governador de província, culminando com sua nomeação para dois consulados, um deles em companhia do imperador Caracala.
Enquanto Pupieno se encarregou de partir para Ravena no norte da Itália para preparar a defesa e recrutar tropas contra Maximino, Balbino ficou em Roma para cuidar da administração civil e da ordem pública na Cidade.
As perspectivas para Pupieno eram as piores possíveis, pois ele teria que enfrentar o experimentado exército de Maximino, que estava em campanha contra os Sármatas, no Danúbio, após derrotar os Alamanos. mas ele fez o melhor que pode reunindo uma tropa de auxiliares germânicos com os quais ele tinha servido quando fora legado imperial na Germânia.
Porém, quando Maximino chegou ao norte da Itália, necessitando de suprimentos em razão da rapidez com que saíra de Sirmium, a cidade de Aquiléia, na rota para Roma, fechou os portões das suas muralhas, tomando o partido de Pupieno e Balbino.
As tropas já famintas de Maximino ficaram irritadas durante o inesperado cerco à Aquiléia. Em maio de 238 D.C., soldados da Legião II Parthica invadiram o acampamento de Maximino e o assassinaram, juntamente com seu filho e seus auxiliares, decapitando-os e enviando as cabeças de todos para Roma. O reinado de Maximino havia durado pouco mais de três anos.
Parecia, naquele momento, que Pupieno tinha conseguido vencer o seu maior desafio sem sequer precisar ter lutado.
Entretanto, em Roma, as coisas degeneraram para Balbino. A plebe se enfureceu com a execução de dois soldados desarmados, e tumultos se espalharam pelas ruas. Parece que alguns senadores insuflaram os protestos, sustentando que o neto de Gordiano I, o César Marcus Antonius Gordianus Pius (Gordiano III) deveria ser o imperador. Para piorar o quadro, em junho de 238 D.C, um grande incêndio irrompeu em Roma.
Como se tudo isso não bastasse, quando Pupieno chegou a Roma, com uma guarda de soldados germânicos, Balbino ficou receoso e as relações entre os dois esfriaram.
Por outro lado, a Guarda Pretoriana, já acostumada em várias oportunidades a fazer e desafazer imperadores, não estava nada satisfeita com o incomum protagonismo do Senado na nomeação de Pupieno e Balbino.
Desse modo, quando os Pretorianos perceberam que Pupieno e Balbino não gozavam da aprovação geral, a sorte de ambos estava decidida. Assim, no dia 29 de julho de 238 D.C., um grupo de Pretorianos invadiu o Palácio e capturou os dois imperadores. Pupieno e Balbino foram arrastados para o Quartel da Guarda Pretoriana, torturados e executados. Eles tinham reinado por apenas três meses.
Gordiano III, de apenas 13 anos de idade, foi imediatamente aclamado imperador pelos Pretorianos. Ele nasceu em 20 de janeiro de 225 D.C e era filho de Antonia Gordiana, filha de Gordiano I e de um senador cujo nome é desconhecido, mas que para alguns estudiosos poderia se chamar Junius Balbus.
Entretanto, o controle do governo de fato de Roma, no início, ficou nas mãos do Senado Romano, tendo em vista a menoridade do imperador.
Em 241 D.C, com apenas 16 anos, Gordiano III casou-se com Furia Sabinia Tranquillina, filha de Gaius Furius Sabinius Aquila Timesitheus, um integrante da classe equestre que teve uma carreira de sucesso e exerceu vários cargos militares e civis importantes até ser nomeado Prefeito Pretoriano, tornando-se a eminência parda do Reinado de Gordiano III.
O reinado de Gordiano III também não seria tranquilo. Inicialmente, o governo teve que enfrentar a revolta do governador da África, Marcus Asinius Sabinianus (Sabiniano), que se declarou imperador mas logo foi derrotado pelo governador da província vizinha da Mauretania.
O próximo contratempo foi a invasão do renovado Império Persa Sassânida, sobre a liderança do belicoso Xá Ardashir e seu filho Sapor I, que invadiu o Império Romano e tomou as estratégicas cidades de Hatra, Carras, Singara e Nísibis.
Como muitas vezes se repetiu na História Romana, a partir do século III, quando os romanos deslocavam tropas para a fronteira oriental para combater os Partas ou Persas, os bárbaros germânicos aproveitavam para atacar a fronteira Reno-Danubio, e nesta ocasião, não foi diferente: a tribo dos Carpi aproveitou a oportunidade e fez uma incursão no Baixo Danúbio, mas eles foram derrotados na Trácia por tropas destacadas por Thimesiteus.
O contra-ataque romano aos Sassânidas foi liderado por Thimesiteus e Gordiano III em pessoa e foi bem-sucedido, com a vitória romana na Batalha de Reasena, em 243 D.C e a reconquista das cidades tomadas pelos Persas. Em comemoração, foi celebrado um Triunfo em Roma.
Porém, enquanto o imperador preparava a invasão do Império Persa, seu sogro Thimesiteus morreu em circunstâncias ignoradas. Agora privado do auxílio do sogro, um militar experiente e que era o homem-forte do seu governo, Gordiano III foi obrigado a prosseguir na campanha.
Assim, Thimesiteus foi substituído pelo irmão de Gaius Julius Priscus, o outro Prefeito Pretoriano, de nome Marcus Julius Philipus, mais conhecido como Filipe, o Árabe, devido à sua origem.
Em seguida, o exército romano invadiu a Pérsia, e, repetindo o desenrolar de campanhas militares anteriores e futuras contra o mesmo inimigo, rumou em direção à capital Ctesifonte.
Porém, os romanos foram derrotados na Batalha de Misiche, próximo à Fallujah, no atual Iraque, conforme mencionado nas inscrições persas existentes nos monumentos persas em Naqsh-e Rustam.
Gordiano III morreu em 11 de fevereiro de 244 D.C, por volta do do mês em que ocorreu a Batalha de Misiche, sem que exista, contudo, uma fonte confiável que possa dizer que se o imperador pereceu em combate, como alegam as fontes persas, ou se ele foi assasinado por seus oficiais, antes, durante ou logo após a referida Batalha.
O imperador Gordiano III (foto de seu busto abaixo) foi sucedido por Filipe, o Árabe, que enterrou o corpo do antecessor na cidade de Zaitha e providenciou a sua deificação.
Conclusão
Por tudo isso, o ano de 238 D.C. ficaria conhecido como “O Ano dos Seis Imperadores” e ele traça com fidelidade um grande retrato dos problemas que o Império Romano estava começando a enfrentar, em meio à chamada “Crise do Século III“, marcada pela instabilidade interna e crescente pressão militar externa nas fronteiras.
O período dos reinados dos Gordianos e de Pupieno e Balbino também ilustra o início da transição do período do Principado inaugurado por Augusto, que era caracterizado ainda por uma predominância da elite senatorial tradicional romana entre os aspirantes ao trono, bem como no exercício dos principais comandos militares e governos de províncias (elite esta que, após a Crise do Século III teria suas fileiras muito diminuídas e seria praticamente afastada do Exército, que passaria a ser também o principal ator político e praticamente o único caminho de acesso para os cargos públicos mais importantes) em direção ao Dominado, que seria implantado com as reformas introduzidas por Diocleciano nas últimas décadas do século III.
FIM