(Solidus do imperador Avito, foto de
Em 9 de julho de 455 D.C, na cidade de Ugernum, na província romana da Gália Lugdunense, o senador galo-romano Marcus Maecilius Flavius Eparchius Avitus (Avito) foi aclamado imperador por uma assembleia de notáveis da aristocracia galo-romana.
Avito, que deve ter nascido por volta de 395 D.C, era membro de uma família ilustre da nobreza galo-romana, classe que, já a partir dos tempos de Júlio César, assimilou profundamente a cultura clássica romana. Vale notar que a Gália era a maior e mais produtiva província da metade ocidental do Império Romano. Apesar disso, o Senado Romano continuou a ser controlado pelas famílias tradicionais da nobreza italiana.
Além de Avito, que nasceu na cidade de Clermont (atual Clermont-Ferrand), vários outros influentes aristocratas galo-romanos nasceram na região gaulesa do Auvergne, tais como o seu genro, o poeta, diplomata e político Sidônio Apolinário e, após a Queda do Império Romano do Ocidente, o historiador Gregório de Tours.
(Panorama da atual Clermont-Ferrand)
Após a derrota na Batalha de Adrianópolis, em 378 D.C., para os invasores Godos, e o profundo enfraquecimento militar romano que se seguiu, a Gália, que já tinha sido a principal vítima das invasões germânicas durante a crise de meados do século III D.C, passou a ser o alvo principal da nova onda de incursões bárbaras, que culminou com a grande invasão dos Vândalos, Alanos e Suevos no inverno de 406 D.C, que atravessaram o Reno e, após devastar a referida província, alojaram-se na vizinha Hispânia. Para piorar, após o saque de Roma, em 410 D.C, os Godos também escolheram a rica Gália como presa.
Consequentemente, o Imperador Honório, em 418 D.C, visando apaziguar a ameaça mais premente representada pelos Godos, acabou assinando com eles um tratado em que reconhecia aos bárbaros a condição de “foederati” (povo aliado governado por seus próprios chefes), concedendo-lhes o direito de se assentarem na Gália Aquitânia, em um arranjo que, ainda que precariamente, funcionou por algum tempo.
Observe-se que, ainda durante as invasões dos Alamanos, na chamada Crise do Século III D.C, a insegurança dos galo-romanos levou-os a apoiar os usurpadores Póstumo e Tétrico, que chegaram a governar durante alguns anos a Gália, a Hispânia e a Britânia como integrantes do chamado “Império Gálico” (ou “Império das Gálias“), que durou, no total, de 260 a 274 D.C.
Com a recuperação econômica e militar do Império Romano, a partir do reinado de Diocleciano, a Prefeitura da Gália foi criada, na reestruturação administrativa do Império continuada por Constantino, e compreendia, além da Gália e dos territórios que tinham sido controlados pelo malfadado Império Gálico, a Germânia e parte da África, ficando subordinada ao Imperador do Ocidente.
Em algum momento entre o final do século IV e o início do século V, provavelmente em função das demandas da aristocracia galo-romana, notadamente no que tange ao agravamento da segurança da fronteira, estabeleceu-se uma “Assembleia” da Gália (“Concilium Septem Provinciarum“), com periodicidade anual, que era integrada pelos membros da aristocracia senatorial galo-romana. O Prefeito Pretoriano Julius Agricola, que, acredita-se, era parente, ou, até mesmo, o próprio pai de Avito, presidiu esta “Assembleia dos Gauleses“, em 418 D.C.
Sabe-se que Avito, como se esperava de um jovem de sua estirpe, estudou Direito Romano, tendo provavelmente destacando-se como advogado, pois, pouco antes de 421 D.C, ele foi enviado pelos seus compatriotas para apresentar uma petição ao general Flávio Constâncio (o futuro imperador Constâncio III) na Itália, solicitando uma redução de impostos para a sua Província natal. Avito foi bem sucedido, obtendo a redução pedida (nota: Flávio Constâncio era o homem forte durante o reinado do Imperador do Ocidente, Honório, e pouco tempo antes da viagem de Avito, o general tinha estado na Gália para negociar o Tratado com os Visigodos, onde havia obtido também a libertação de Galla Placidia, irmã do Imperador, que depois disso, casou-se com ele).
(Moeda de Constâncio III)
Enquanto isso, após a súbita morte de Constâncio III, o poder passou a ser exercido pela Imperatriz Galla Placidia, em nome de seu filho Valentiniano III, ocasião em que o general Flávio Aécio alcançou o o posto de Comandante Militar da Gália.
Por volta de 425 D.C., Avito foi para a cidade de Tolosa (atual Toulouse), então capital do Reino dos Visigodos na Aquitânia, tentar negociar a libertação de seu parente Theodorus junto ao rei Teodorico I. No tempo em que passou entre os Visigodos, Avito fez vários contatos, chegando até a frequentar o círculo mais íntimo da corte de Teodorico.
Alguns anos depois, ocorreu um novo grande revés para os romanos : a travessia dos Vândalos para a África do Norte, em 429 D.C. Após prolongada guerra, os bárbaros conseguiram conquistar a grande cidade romana de Cartago, em 439 D.C., e se apropriar da parte mais rica e próspera da Província da África. Isso representou uma perda considerável de receita para o Imperador do Ocidente, além da perspectiva da interrupção do vital suprimento de trigo para a cidade de Roma, e, certamente, o encarecimento daquele produto, já que, como bem observa J.Bury:
“o que antes era enviado como tributo, agora era produto de exportação”.
Aécio, a quem a História concederia o título de “O Último dos Romanos“, tornou-se, em 432 D.C., Comandante-em-chefe do Exército Romano do Ocidente e foi, entre 433 e 451 D.C., o homem mais poderoso do Império. Um fator importante para a ascensão de Aécio foi a rede de contatos que ele estabeleceu com os Hunos, após ter vivido entre eles como refém. Os Hunos naquele momento eram a força militar mais poderosa da Europa.
A estratégia militar seguida por Aécio visava proteger preferencialmente a Gália, a maior e mais rica província do Ocidente, já bem devastada pelas invasões bárbaras. Ele, de fato, conseguiu derrotar os Burgúndios e conter os chamados Bagaudas, na Gália (Acredita-se que os Bagaudas eram habitantes da própria província que, fartos de serem atacados pelos bárbaros e também do pagamento dos impostos, formaram bandos criminosos que controlavam áreas fora-da-lei).
Após uma série de derrotas e vitórias contra os Visigodos, Aécio conseguiu firmar com eles um novo tratado delimitando a área que seria destinada aos Germânicos. Com efeito, sem ter tropas suficientes para subjugar todos os bárbaros, Aécio passou a se valer da tática de usar as tribos bárbaras que tivessem sido derrotadas ou apaziguadas e assentá-las para conter as outras que fossem julgadas mais perigosas para Roma.
Sabemos que Avito exerceu diversos postos militares sob o comando de Aécio, culminando com sua nomeação para um importante cargo de comando, provavelmente o de “Magister Militum per Gallias”, em 437 D.C.
Avito, vale mencionar, teve participação decisiva na renegociação do Tratado de Amizade com os Visigodos que Aécio pretendeu fazer. Em 439 D.C., já na condição de Prefeito Pretoriano da Gália, foi ele quem viajou a Toulouse para encontrar-se com Teodorico, Lá, ele conheceu o filho do rei, o futuro rei Teodorico II, e chegou a incentivar o jovem a estudar os poetas latinos.
Depois desse relevante serviço público, Avito retirou-se para a vida privada, retornando para sua grande propriedade de Avitacum, nas cercanias de Clermont. Muito provavelmente, em Avitacum, Avito deve ter gozado as delícias da vida de um aristocrata romano em sua adorada villa, que foi tão bem descrita por seu genro Sidônio Apolinário em suas cartas. Sidônio era casado com Papianilla, filha de Avito, que, inclusive, foi quem herdou a propriedade após a morte do pai. É muito conhecida a carta de Sidônio em que ele descreve para um amigo a enorme propriedade, enfatizando a excelência de suas termas privadas e as belezas do lago – vide: http://www.tertullian.org/fathers/sidonius_letters_02book2.ht)
(Avitacum, a villa de Avito, tinha vista para o Lago Aydat, in Puy-de-Dome, próximo a Clermont)
Porém, em 451 D.C, uma ameaça ainda maior do que a dos Visigodos e das outras tribos germânicas pairou sobre a Gália: Átila, que tinha se tornado rei dos Hunos em 435 D.C, resolveu atacar o Império do Ocidente…O irresistível avanço da horda huna rapidamente tomou Metz, Reims, Mogúncia, Estrasburgo, Colônia, Worms e Trier, que foram impiedosamente saqueadas e incendiadas.
Obrigado a sair do seu retiro dourado, Avito, valendo-se de seus contatos com Teodorico, colaborou na vital aliança entre os Romanos e os Visigodos, que incluiu também os Alanos, Francos e outros bárbaros, em menor escala. Na Batalha de Châlons, ainda em 451 D.C. as tropas combinadas dos aliados, lideradas por Aécio e Teodorico conseguiram derrotar os Hunos, que foram obrigados a se retirar. Teodorico, porém, foi morto durante a batalha e os Godos voltaram para a Aquitânia. Assim, Teodorico foi inicialmente sucedido por seu filho Torismundo, que era hostil aos romanos e pretendia quebrar o Tratado de Paz anteriormente assinado pelo pai.
Átila, recuperado da derrota em Châlons, no ano seguinte invadiu a Itália, que foi devastada. Valentiniano III e a Corte se protegeram atrás dos pântanos de Ravenna. Aécio, sem tropas romanas suficientes para oferecer batalha campal, adotou uma estratégia de atrasar o avanço huno, evitando confrontos diretos. As fontes não dizem se as táticas de Aécio tiveram algum resultado, mas o fato é que, após receber uma delegação romana integrada pelo Papa Leão I, Átila resolveu dar meia-volta e abandonar a Itália. Muitos historiadores acreditam que essa decisão de Atila deveu-se a existência de uma grave epidemia de peste na Itália.
O prestígio de Aécio, porém, ficou abalado com a devastação causada pelos Hunos na Itália. Os senadores italianos ressentiam-se do fato de que a Gália tinha sido poupada, em função do sucesso da estratégia de Aécio no ano anterior.
Seguiram-se intrigas palacianas que incentivaram o Imperador Valentiniano III a tomar a iniciativa de, pessoalmente, matar o velho general. Porém, pouco depois da morte de Aécio, seus antigos guarda-costas resolveram vingar a morte do chefe e, por sua vez, em 455 D.C, dois dele assassinaram Valentiniano III, segundo consta, instigados pelo ambicioso senador Petrônio Máximo.
Com a morte de Aécio, boa parte das forças recrutadas por ele, basicamente mercenários bárbaros, dispersaram-se. Os inimigos de Roma, que tinham aprendido a respeitar Aécio, tais como os Visigodos, Francos e Alamano, sentiram-se estimulados a atacar o que restava do Império.
Assim, foi provavelmente a falta de tropas para a defesa da Gália, e o renovado medo da ameaça bárbara, que fez o imperador Petrônio Máximo, o ambicioso sucessor de Valentiniano III, chamar Avito de volta à ativa, nomeando-lhe “Magister Militum Praesentalis” e enviá-lo em uma embaixada à Teodorico II, que havia se tornado o rei visigodo após o assassinar o irmão Torismundo, tendo em vista a proximidade que Avito tinha com o novo rei.
(Solidus de Petrônio Máximo)
Quando Avito estava na Corte de Teodorico II, em Toulouse, chegou a notícia de que Petrônio Máximo havia sido linchado, em 31 de maio de 455 D.C., por uma turba revoltada com sua tentativa de fugir de Roma, decorrente da invasão da Itália pelos Vândalos do rei Geiserico. O pretexto para a invasão era o fato de Eudocia, filha de Valentiniano III, que, desde a infância tinha sido prometida ao herdeiro do trono vândalo, Hunerico, tinha se casado com o filho de Petrônio.
O Saque de Roma pelos Vândalos durou de 02 a 16 de junho de 455 D.C. Eles levaram para Cartago tudo o que puderam, incluindo as telhas de bronze dourado do Templo de Júpiter Capitolino, e até mesmo o candelabro de ouro do Templo de Jerusalém, que, por sua vez, tinha sido levado para Roma pelo imperador Tito, quase 400 anos antes. Junto com os tesouros, os Vândalos levaram para Cartago a imperatriz Licínia Eudóxia, que tinha sido a viúva de Valentiniano III e, agora, era a de Petrônio Máximo e, obviamente, também a filha dela, Eudocia.
Ao tomar conhecimento da morte de Petrônio Máximo, Teodorico II tomou a iniciativa de aclamar Avito como novo Imperador Romano, pois certamente, era do interesse dos Visigodos ter no trono um romano que sempre lhes parecera confiável e simpático.
Desse modo, foi graças ao apoio dos Visigodos que Avito foi aclamado Imperador Romano do Ocidente, em Ugernium (atual Beaucaire), localidade nas proximidades de Arelate (atual Arles), por uma assembleia de senadores galo-romanos e também pelos soldados presentes (provavelmente remanescentes das tropas de “limitanei” ou guarda fronteiriça da Gália), em 9 de julho de 455 D.C, valendo notar que uma fonte relata a presença de Teodorico II no evento. Também é interessante observar que, segundo um relato, na cerimônia, Avito, além das insígnias imperiais e de uma coroa, ostentava um “torque“, que era uma espécie de colar de ouro, em formato trançado, que costumava ser usado pelos antigos gauleses e pelas tribos celtas em geral, o que, na opinião de muitos, denota um componente nativista, senão patriótico, na coroação de Avito como sendo um imperador nascido na Gália.
(vista de Beaucaire, antiga Ugernum, onde Avito foi aclamado imperador)
Antes de chegar à Roma, em 21 de setembro de 455 D.C., ocasião em que estava acompanhado do genro Sidônio Apolinário, Avito foi oficialmente reconhecido pelo Senado Romano como Imperador, o que, segundo uma fonte, ocorreu em 5 de agosto daquele ano. O fato de nenhum pretendente italiano ao trono ter surgido indica que, provavelmente, o Senado Romano entendia que ninguém possuía no momento melhores credenciais do que Avito para assumir a Púrpura Imperial.
(solidus de Avito, foto de
Certamente Avito, nos dois meses que decorreram entre a sua aclamação na Gália, e a sua entrada em Roma, deve ter recebido um reforço de tropas visigodas, que vieram se juntar a outras tropas que ele conseguiu reunir na Gália. No caminho, parece que Avito, aproveitando o fato de que ninguém controlava a região do Danúbio vizinha à Itália, devido ao recente falecimento de Átila e a derrota dos Hunos para seus antigos vassalos germânicos, conseguiu temporariamente restaurar algum grau de autoridade romana na região.
Em Ravenna, Avito nomeou o Visigodo Remistus como “Magister Militum“, cargo anteriormente ocupado por Aécio e que desde a morte dele estava vago. Remistus foi o primeiro bárbaro sem qualquer gota de sangue romano a ser nomeado para o posto.
A primeira medida de Avito em Roma foi tentar obter o reconhecimento de seu imperial colega, o Imperador Romano do Oriente, Marciano. As fontes são dúbias sobre se Avito obteve ou não a chancela de Marciano. Um indício de que não houve um reconhecimento é o fato de que, em 456 D.C, Avito exerceu o consulado sozinho (Normalmente, o Imperador de cada metade do Império nomeava um Cônsul, do total de dois que, desde o inicio da República Romana, em 509 A.C, serviam a cada ano), sendo que, para o ano em questão, Marciano nomeou os dois Cônsules, Johannes e Varanes, demonstrando não reconhecer o consulado “sine collega” (sem colega) de Avito.
Era vital para a viabilidade do reinado de Avito, ainda, obter a simpatia do Senado Romano e das tropas italianas; porém, neste particular, muitos consideram que Avito cometeu um grave erro: Ele preferiu nomear para os cargos mais altos apenas os seus conterrâneos galo-romanos. E ignorar o bairrismo da aristocracia italiana que, desde ainda os tempos de Júlio César, sempre demonstrou acreditar ter direito manifesto a ocupara os cargos mais importantes e sempre se julgou credora das maiores honrarias. Portanto, essa foi, no mínimo, uma decisão imprudente…
(Os senadores nunca deixaram de ter influência, e, no final do Império, quando o poder imperial se enfraqueceu, a classe senatorial até recuperou parte do protagonismo nos destinos do Império)
Com efeito, os senadores romanos da Itália podiam não ter, diretamente, nenhum poder militar, mas eram, como já demonstrou A.H.M. Jones, incomensuravelmente ricos, muito mais abastados do que os galo-romanos, ou que os seus colegas orientais, em Constantinopla, onde, aliás, eles continuavam a ter muitos contatos, quando não parentes. O Senado Romano tinha meios para aliciar generais ambiciosos e se aproveitar de quaisquer insatisfações com a política do Imperador e, assim, urdir conspirações para derrubar os monarcas que fossem seus desafetos.
Durante o reinado de Avito, o exército da Itália era controlado por dois generais: Majoriano, um romano de família originária da Ilíria, o tradicional esteio militar de Roma durante o Baixo Império Romano; e Ricimer, que era um guerreiro germânico de estirpe nobre, pois era filho de Rechila, rei dos Suevos, e neto de Wallia, que tinha sido rei dos Visigodos. Após a morte de Wallia, Ricimer teve que deixar a corte, e ele foi se asilar em Roma, onde passou a servir o exército e foi, ainda que parcialmente, “romanizado”.
Enquanto isso, na Lusitânia, os Suevos estavam fazendo incursões nas terras ainda controladas por Roma. Para lidar com essa agressão, Avitus acionou seu amigo Teodorico II, que, agindo nominalmente em nome do Imperador Romano do Ocidente, combateu os Suevos e conseguiu matar o rei deles, Rechila, em Portocale (atual cidade do Porto).
Militarmente, porém, o problema mais grave era a ameaça dos Vândalos, que, desrespeitando o Tratado de 442 D.C, avançavam sobre o diminuído território romano que restava na África. Avito enviou uma embaixada ao rei Geiserico, advertindo para que este se mantivesse fiel ao Tratado, sob pena de sofrer retaliação militar, uma ameaça que, dificilmente , o imperador romano poderia fazer valer…
Os Vândalos, obviamente, não se intimidaram e, afrontando a advertência romana, ainda submeteram a Sicília a uma onda de ataques; porém, o general Ricimer obteve uma vitória naval próximo à Ilha da Córsega, estancando momentaneamente a agressão.
A QUEDA DE AVITO
A retaliação vândala ao ultimato de Avito provavelmente veio também na forma da interrupção do suprimento de grãos da África, já que, antes mesmo da vitória na Córsega, a população começou a protestar contra a ameaça premente da fome (note-se que, ainda naquele tempo, talvez mais de 100 mil habitantes de Roma dependiam, para comer, do suprimento de trigo gratuito provido pela instituição da “anonna‘).
Premido pelos protestos, Avito acabou tendo que dispensar seus soldados godos, além de seus aliados galo-romanos, para que estes não sobrecarregassem os já escassos estoques de alimentos. Mais importante, a situação acabou por exaurir completamente as já bem desfalcadas finanças do Estado.
Sem ter dinheiro para pagar as tropas godas pelos relevantes serviços prestados à sua causa, Avito resolveu mandar retirar muitas das várias estátuas de bronze que adornavam os logradouros públicos, as quais eram um dos orgulhos dos romanos, e as vendeu para negociantes de metais, visando obter os recursos necessários para fazer face às despesas mais prementes.
A população se revoltou com a situação e Majoriano e Ricimer, encorajados pela retirada dos Godos de Avito, apoiaram os protestos. Avito, percebendo o perigo que sua posição e a sua própria vida corriam, fugiu de Roma em direção à Arles, capital de sua fiel Gàlia, onde certamente julgava poder encontrar suporte e reagrupar suas forças. Nesse meio tempo, antes ou depois de Avito ter alcançado Arles, se é que ele conseguiu mesmo sair da Itália, Remistus, o seu Magister Militum, foi derrotado e morto em Ravenna, em 17 de setembro de 456 D.C.
Nesse ponto, as fontes variam: uma chega a relatar que Avito de fato conseguiu chegar à Arles, de onde ele até conseguiu enviar um pedido de ajuda a Teodorico II, e depois ele teria voltado para a Itália, onde ele foi cercado e derrotado nas cercanias de Piacenza. Porém, ao invés de ser executado, como era costumeiro, Avito teria sido obrigado a se ordenar Bispo da cidade, em 17 de outubro de 456 D.C. (numa prática que, posteriormente, se tornaria comum nos conflitos subsequentes até durante a Idade Média). Segundo Gregório de Tours, após ser Avito ordenado Bispo de Piacenza, ao saber que o Senado tencionava mandar executá-lo, ele fez uma viagem até o túmulo de São Juliano, na cidade de Brioude, em sua nativa Auvergne, levando oferendas, mas acabou morrendo no caminho, terminando por ser enterrado aos pés do relicário do referido mártir cristão, na Basílica de Saint Julien, na referida cidade.
Tudo indica que Avito tenha de fato sido forçado a abdicar em Piacenza por Majoriano e Ricimer, tendo ele sido poupado como um gesto de boa vontade para com a aristocracia galo-romana. Acredito que a informação de que Avito foi nomeado bispo da cidade é verdadeira, pois esse fato seria facilmente verificável nos registros da Igreja, pelos contemporâneos das fontes que assim relataram.
Gregório de Tours é bem específico sobre o fato de Avito ter morrido no caminho para Brioude, onde, certamente, ele deveria ter muitos partidários, como em toda a Auvergne, e Gregório, inclusive, relata onde o finado imperador foi enterrado. Porém, ao invés de uma peregrinação ao túmulo de Saint Julien, como o famoso historiador da Gália do século VI escreveu, eu acredito que o mais provável é que o objetivo da viagem de Avito tenha sido se refugiar em sua terra natal e, provavelmente, buscar apoio para recuperar o trono, e a citada peregrinação seria apenas um pretexto.
Inclusive, Sidônio Apolinário relata a existência de uma conspiração na Gália, chamada de Marcellana, da qual pouco se sabe, mas que pode ter tido o intuito de restaurar Avito no trono. Porém, na viagem para a Auvergne, Avito deve ter sido alcançado pelas tropas de Majoriano, o sucessor de Avito no posto de Imperador, e de Ricimer, o novo “Magister Militum” e eminência parda do Império pelas próximas duas décadas. Em 457 D.C, em data desconhecida, Avito deve ter sido executado e sepultado no local mencionado por Gregório de Tours.
A Igreja original de Saint Julien em Brioude onde Avito teria sido enterrado não existe mais. O rei visigodo Eurico construiu um basílica no local, por volta de 480 D.C. Esta, por sua vez, foi substituída por uma bela catedral em estilo românico, entre 1060 e 1180 e que ainda existe, onde estão as relíquias de São Juliano. Não há notícia acerca do túmulo de Avito.
CONCLUSÃO
Com o fim do reinado de Avito falhou a última estratégia coerente que o Império Romano do Ocidente tentou implementar: A aliança com os Visigodos poderia ter preservado, ainda que não integralmente, uma Gália romana, que, junto com a Itália, poderia ter constituído o núcleo de um Império Romano viável no Ocidente. É fato que faltou sensibilidade a Avito para seduzira aristocracia senatorial italiana para esse projeto e, para piorar as coisas, o favorecimento dos seus conterrâneos gauleses para a nomeação dos cargos teve o efeito contrário..
Mas, no final, o egoísmo e cegueira dos senadores italianos foram mais relevantes para a catástrofe. Eles sabotaram quase todos os bons comandantes do Exército do Ocidente, como Estílico e Aécio, não cooperaram com Constantinopla quando mais deviam tê-lo feito e, ao contrário de seus colegas galo-romanos, jamais se empenharam diretamente na defesa do Império.
No crepúsculo final do Império, foram os galo-romanos os últimos romanos a se renderem, protagonizando uma resistência heroica aos bárbaros. O filho de Avito, Eccidius Avitus combateu os novamente hostis Visigodos até o fim, chegando a, inclusive, levantar um cerco à Clermont comandando apenas 18 cavaleiros, por volta de 474 D.C.
Segundo Thomas Hodgkin, Avito
“foi a pedra fundamental de uma grande e importante combinação política, uma combinação que, tivesse ela durado, certamente teria mudado a face da Europa e poderia ter antecipado o Império de Carlos Magno, favorecendo uma nação mais nobre do que a dos Francos, e sem a interposição de três séculos de barbarismo”.
Em nosso próximo artigo, falaremos dos possíveis laços sanguíneos entre a atual nobreza europeia e os senadores galo-romanos, incluindo a família de Avito.