BATALHA DE CANAS – O DIA MAIS SANGRENTO DA HISTÓRIA

Em 02 de agosto de 216 A.C., quando o sol se pôs detrás do rio Aufidus, na fértil planície da região da Apúlia, próximo à cidadezinha de Canas (Cannae), no sul da península italiana, 80 mil cadáveres jaziam sem vida.

Eram os corpos de cerca de 70 mil soldados e aliados romanos, aos quais se somavam pouco mais de 6 mil soldados africanos, celtiberos e gauleses, estes integrantes da força expedicionária comandada pelo grande general cartaginês Aníbal Barca.

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(Acredita-se que este busto antigo, encontrado em Cápua, seja de Aníbal)

Para se ter uma ideia do tamanho dessa carnificina- talvez a maior jamais ocorrida em um único dia em qualquer guerra- estima-se, por exemplo, que 50 mil civis e soldados alemães morreram no Bombardeio de Dresden, em abril de 1945, realizado por mil bombardeiros ingleses. Já em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, a estimativa do número de mortos varia entre 22 mil e 80 mil vítimas, e o maior número de pessoas mortas proposto para Nagasaki, três dias depois também devastada por uma bomba atômica norte-americana, é de 70 mil vítimas. No primeiro dia da sangrenta Batalha do Somme, na 1ª Guerra Mundial, em 1916, o número estimado de soldados mortos é de 35 mil. E, por sua vez, na Batalha de Borodino, travada entre o exército de Napoleão e a Rússia Czarista, o maior número estimado de baixas é de 45 mil, entre mortos e feridos.

Prelúdio

Após a Primeira Guerra Púnica, que durou de 264 A.C a 241 A.C., Roma havia conseguido deter a expansão de Cartago pela Sicília e pelo sul da Itália, triunfo em boa parte conseguido após ela construir, pela primeira vez em sua história, uma marinha, derrotando a rival no mar. Os mais de 20 anos de conflito, e o tratado de paz assinado com os romanos, contudo, não impediram que Cartago continuasse a prosperar, expandir suas colônias e aumentar sua esfera de influência pela Península Ibérica, levando a atritos com aliados de Roma, especialmente a cidade ibérica de Sagunto, que, em 219 A.C., acabou sendo alvo de um ataque, o qual deflagraria um novo conflito.

O grande general Aníbal Barca, filho de Amílcar Barca, o comandante cartaginês durante a Primeira Guerra Púnica, então, imaginou a estratégia de atacar diretamente Roma no coração do território que ela controlava na Itália, ao invés de combater os exércitos romanos que se encontravam na Espanha, foco das presentes disputas.

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(Shekel, moeda cartaginesa, com a efígie de Amílcar Barca)

Em uma manobra surpreendente e ousada, Aníbal conseguiu evadir as tropas romanas que se dirigiam à Espanha, cruzando a França e, com seu exército de cartagineses e aliados celtiberos e celtas, incluindo uma verdadeira unidade móvel “blindada” integrada por elefantes treinados para a guerra, que cruzou as escarpadas montanhas dos Alpes, invadindo a Itália por terra, com uma rapidez inesperada, sendo que muitos supunham que o ataque se daria por via marítima.

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Mestre na Arte da Guerra, Aníbal derrotou os exércitos consulares que os romanos confiantemente enviaram para derrotá-lo no norte da Itália, na Batalha de Trébia e na Batalha do Lago Trasimeno, sendo que esta foi uma emboscada terrível na qual os romanos sofreram 30 mil baixas, entre mortos e capturados.

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A gravidade da situação militar levou o Senado Romano a acionar um dispositivo constitucional que, em circunstâncias extremas, permitia a nomeação de um Ditador com poderes extraordinários, tendo sido designado o Cônsul Quinto Fábio Máximo.

O Ditador Fábio entendeu que o melhor para os romanos, diante da posição estratégica em que eles se encontravam, era adotar uma tática de guerrilha, evitando engajamentos decisivos em batalhas campais, com o objetivo de consumir, paulatinamente, os efetivos de Aníbal, considerando o contingente mais reduzido de que, então, os romanos dispunham na Itália, depois da perda de vários exércitos consulares, e, sobretudo, o fato de Aníbal estar distante de suas bases de suprimentos na Espanha e na África. Essa estratégia, que, aliás, seria repetida com sucesso pelos russos contra Napoleão e contra Hitler, até hoje é chamada de “Estratégia Fabiana” e valeu a Fábio o cognome, isto é, o apelido, de Fábio Cuntator, ou seja, o “Contemporizador”.

Durante dois anos, a estratégia fabiana foi adotada com bons resultados pelos romanos. Porém, quando Aníbal chegou ao sul da Itália, algumas cidades aliadas começaram a desertar para o lado dos cartagineses, fato que, como ele tencionava, acabaria por obrigar os romanos a uma batalha campal.

A estratégia de Fábio era eficiente, mas não era popular…Os romanos se orgulhavam do seu exército, com o qual haviam anexado praticamente a Itália inteira, e a questão virou política. Nas eleições de 216 A.C., foram eleitos os cônsules Caio Terêncio Varrão (Varro) e Lúcio Emílio Paulo. Varrão era de uma família importante, mas de origem plebeia, e Emílio Paulo era um aristocrata da tradicional elite senatorial. O primeiro, era um ardoroso crítico da estratégia fabiana, e defendia um ataque direto ao exército de Aníbal; já o outro, um pouco mais cauteloso, propunha apenas um pouco mais de ousadia, sem abandonar o que vinha dando certo.

Por outro lado, Aníbal não conseguiu convencer as cidades mais importantes do sul, como Cápua, a abandonarem a aliança com Roma, como ele pretendia, visando deixar os romanos isolados e conseguir, ele mesmo, uma base mais estável na Península. Ele então, planejou uma ação mais contundente para atrair os romanos: tomar o importante depósito romano de suprimentos na cidade de Canas, algo que dificultaria muito as ações do exército romano no sul da Itália.

Quando a notícia da perda de Canas chegou a Roma, os Cônsules decidiram que era chegada a hora de um ataque combinado ao exército cartaginês. O Senado autorizou o recrutamento de forças que dobravam os exércitos consulares, totalizando uma força entre 90 e 100 mil homens, configurando, até então, o maior exército já reunido pelos romanos em toda a sua história!

Comandados por Varrão e Paulo, que se revezavam periodicamente no comando, o enorme exército, após uma marcha de 2 dias, chegou até as vizinhanças de Canas, acampando a uns 10 km do acampamento cartaginês (e, no final desta marcha, os romanos chegaram a derrotar em uma escaramuça alguns cartagineses). Consta que, admirado ao ver o tamanho do exército romano, Gisco, um oficial cartaginês, teria ,, receoso, comentado com Aníbal que o exército romano era muito mais numeroso do que o cartaginês, ao que o grande general, sarcasticamente, teria respondido:

Paulo, nos dois dias em que ele foi o comandante-em-chefe do exército combinado, manteve-se acampado. Os romanos haviam decidido estabelecer um pequeno acampamento suplementar na outra margem do rio Aufidus, para assegurar o suprimento de água. No terceiro dia, 02 de agosto de 216 A.C., Varrão assumiu o comando e Aníbal, percebendo a oportunidade (parece que ele tinha sido informado da divergência de opiniões entre os dois romanos), mandou um destacamento de cavalaria atacar o acampamento menor.

A Batalha

Varrão mordeu a isca e ordenou que o exército saísse do acampamento para a planície, desdobrando-se em ordem de batalha. Ele certamente estava confiante, pois em suas vitórias anteriores, Aníbal tinha se aproveitado ou de emboscadas ou de um terreno difícil. Mas, desta vez, a batalha ocorreria em campo aberto, onde os romanos se julgavam imbatíveis…

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(Os soldados de uma legião romana, da esquerda para a direita: 1- Hastati, 2-Velites, 3-Triarii, 4- Principes)

Ocorre que Aníbal, como todo grande general, já tinha estudado completamente o terreno onde escolhera oferecer batalha. Ele escolheu uma posição na qual, ao longo da luta, os romanos ficariam de frente para o sol escaldante do verão italiano, e contra o vento, que poderia jogar poeira e atrapalhar o avanço inimigo. Além disso, ele sabia como os romanos lutavam, que, aliás, não diferia muito da tática padrão dos exércitos helenísticos: tentar quebrar a linha do adversário e, então, envolver as formações desconjuntadas.

(Nota: As batalhas de infantaria da Antiguidade, sobretudo as dos gregos e macedônios, até então ( as quais influenciaram o resto do mundo mediterrâneo), caracterizavam-se pelo choque de linhas cerradas de infantaria, armadas com escudos e lanças, variando a profundidade e a extensão dessas linhas de soldados, sempre visando a empurrar o adversário para trás, até que essa linha cedesse em algum ponto, onde então se dava uma penetração que levaria ao esfacelamento dessa linha e ao consequente envolvimento dos pedaços cercados. Somente aí é que se começava a infligir as maiores baixas, já que, por si só, a pressão frontal contra centenas ou milhares soldados de capacete e armadura, protegidos por uma barreira de escudos, lado a lado, causava muito poucas mortes. Os massacres só ocorriam quando um exército era completamente cercado e, sobretudo, quando os soldados debandavam, dando as costas para o inimigo.)

Percebendo que os romanos planejavam fazer uso do seu número muito maior de tropas, Aníbal escolheu um terreno onde o exército romano não poderia se espalhar muito, já que as suas linhas, caso inteiramente desdobradas, tinham a capacidade de ficar muito mais extensas do que as dos cartagineses. Por isso, ele colocou o exército cartaginês perto do rio, cobrindo o seu flanco esquerdo, sendo que, no lado direito, um terreno mais elevado dificultava que ele fosse atacado por ali.

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(O sítio da Batalha de Canas, com a coluna in memoriam que foi erguida já antiguidade. O rio Aufidus (atual Ofanto) mudou o seu curso ao longo de 2 milênios, mas a elevação é a mesma descrita pelos historiadores. Na coluna foi gravada uma citação de Tito Lívio sobre a Batalha: “Nenhuma outra nação poderia ter sofrido tamanhos desastres sem ter sido destruída.“)

Por outro lado, Aníbal optou por adelgaçar (tornar mais fina) a profundidade da sua linha, que era a única maneira pela qual ele poderia desdobrar a sua linha de frente em uma extensão igual dos romanos. Aníbal compreendia que os romanos também não esgarçariam demais a linha deles, já que, pela lógica das táticas vigentes, acima explicadas, eles deveriam concentrar o seu peso no centro da linha dos Cartagineses.

Além disso, Aníbal sabia que os romanos eram tradicionalmente fracos em cavalaria – enquanto que ele dispunha de dez mil cavaleiros africanos, ibéricos e gauleses, os romanos somente contavam com quatro mil cavaleiros. Assim, ele poderia proteger melhor os seus flancos com a sua cavalaria, e impedir que os romanos o envolvessem valendo-se de sua infantaria bem maior, ou, melhor ainda, ao dispersar a cavalaria romana, Aníbal poderia, com a sua própria, tentar atacar a infantaria romana pelos flancos e pela retaguarda. No comando da cavalaria númida, no flanco direito da linha cartaginesa, estava Asdrúbal, irmão de Aníbal, acompanhado de Maharbal, e, no esquerdo, o cartaginês Hanno.

Seguindo o seu plano, e, aí, mais do que em todo resto, reside o brilhantismo de Aníbal, ele calculou que o centro do seu exército iria ceder terreno aos atacantes inimigos, embora não a ponto de se dissolver com a pressão exercida pelo avanço romano. Para isso, Aníbal cuidadosamente escolheu a posição que cada grupo do seu exército multinacional deveria ocupar: na vanguarda, com a função de causar o máximo de estrago possível, antes do contato com o inimigo, ficaram os fundibulários das ilhas baleares, mestres no uso da funda. No centro da formação, ele colocou os ibéricos e os gauleses, teoricamente os integrantes menos confiáveis das tropas e, portanto, para melhor poder comandar e vigiar esse sensível setor, Aníbal escolheu para si mesmo esta posição na ordem de batalha. Já nas alas esquerda e direita do seu exército, Aníbal posicionou a leal infantaria recrutada no norte da África, território de Cartago, já experimentada em batalha,  e em quem ele tinha inteira confiança..

Era, portanto, um plano totalmente não convencional para a época, em que as melhores tropas estavam nos flancos, e não no centro da formação.

O historiador grego Políbio assim descreve  o início da batalha:

Observe-se que, para alguns estudiosos que fazem uma ressalva à descrição de Políbio, inicialmente, a intenção de Aníbal seria apenas a de segurar o avanço dos romanos ao máximo, a fim de aguardar que sua cavalaria subjugasse a romana e viesse em seu auxílio. Por isso, os flancos de infantaria africana teriam sido dispostos diagonalmente, em formação de esquadrão.

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Seja como for, o fato é que Aníbal controlou magistralmente o desenvolvimento da luta no centro da linha do seu exército, comandando os celtas e ibéricos em um recuo ordenado. Devido a isso, o centro romano começou a avançar mais e mais para o centro da meia-lua cartaginesa, sem que, provavelmente atrapalhados pelo sol e pelo vento que soprava a poeira no rosto dos romanos, estes percebessem que, na verdade estavam sendo cercados pelas alas esquerda e direita da infantaria africana de Aníbal. Na verdade, Varrão, vendo o recuo do centro cartaginês, realmente acreditou que os inimigos estavam prestes a serem derrotados e ordenou que o avanço romano se intensificasse.

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Enquanto isso, a ala esquerda das cavalarias ibérica e celta cartaginesa conseguiu fazer a romana fugir e se dirigiu para apoiar a sua ala direita, formada pela cavalaria númida, que ainda lutava contra sua contraparte inimiga romana. Em pouco tempo, a cavalaria romana inteira debandou, sendo perseguida pela cartaginesa.

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Naquele momento, o avanço romano no centro tinha tal intensidade, que os soldados romanos da frente começaram a ser espremidos pelos de trás, faltando-lhes espaço até para desembainhar seus gládios. Por sua vez, os flancos romanos vulneráveis começaram a ser atacados pelas alas direita e esquerda da infantaria africana, obedecendo às ordens de Aníbal. E, para piorar a situação dos romanos, algum tempo depois, a vitoriosa cavalaria cartaginesa retornou para o campo de batalha e começou a atacá-los pela retaguarda. Como resultado, os romanos ficaram completamente cercados, tendo a infantaria ibérica e celta pela frente, os africanos pelos lados e a cavalaria inimiga por trás…

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Foi um clássico movimento de pinças, também conhecido como “duplo envelopamento” que até hoje, dois mil e duzentos anos depois, é obrigatoriamente estudado em qualquer academia militar que se preze no planeta.

Ainda segundo a descrição de Políbio, o desfecho da batalha foi assim:

E foi dessa forma que o historiador romano Tito Lívio descreveu o estado do campo de batalha, em seus momentos finais:

Dos cerca de 86 mil romanos, somente entre 10 mil e 14 mil romanos conseguiram escapar. Paulo morreu na batalha, mas Varrão conseguiu fugir. Do exército de Aníbal, estimado em cerca de 50 mil homens, entre 8 mil e 5700 morreram. Apesar dos historiadores romanos posteriormente terem acusado Varrão de ser o responsável pela tragédia romana, mesmo assim ele foi recebido com respeito pelo Senado, que inclusive renovou o seu comando.

Epílogo

Após a batalha, muitos esperavam que Aníbal iria imediatamente marchar contra Roma. Segundo Tito Lívio, Maharbal teria chegado a demandar que o general fizesse exatamente isso, tendo Aníbal dito que iria ponderar o assunto e, segundo consta, Maharbal teria afirmado:

Em verdade, contudo, fazendo-se, a posteriori, uma análise fria, Aníbal tomou a decisão militarmente mais correta: Roma era uma cidade que na época deveria ter cerca de 250 mil habitantes, cercada de muralhas. E, ao contrário de Cartago, ela não era mais apenas uma cidade-estado, mas liderava o que, praticamente, era uma confederação de cidades italianas, cujo poder de recrutamento não estava esgotado. Além do mais, ainda havia um exército romano na Sicília, e outro na Espanha, além dos 12 mil romanos que haviam sobrevivido à batalha, o que correspondia a cerca de duas legiões. Portanto, um cerco a Roma não seria nada fácil, e o exército de Aníbal se veria na perigosa situação de atacar uma cidade murada com tropas inimigas às suas costas. Ele preferiu, assim, mandar uma embaixada à Roma,  que foi liderada por Carthalo, para negociar um tratado de paz com termos moderados.

Ao contrário do que Aníbal esperava, o Senado, apesar da consternação geral com a esmagadora derrota em Canas, recusou a paz e determinou medidas extremas para lidar com a catástrofe: decretou-se a mobilização total de todos os cidadãos, incluindo, excepcionalmente, o recrutamento de camponeses sem terra, e, em um ato extremo, até de milhares de escravos. Foi proibida a utilização da palavra “paz” e, segundo consta, temporariamente, até alguns sacrifícios humanos, que eram abominados pela opinião pública romana, teriam sido admitidos para obter a boa vontade dos deuses.

Na verdade, com a vitória em Canas, Aníbal efetivamente esteve muito perto de obter o seu maior ganho estratégico planejado: separar Roma de seus aliados italianos. Por exemplo, as importantes cidades de Cumas e Tarento mudaram de lado e aderiram aos cartagineses. E o importante reino de Siracusa, na Sicília, também aliou-se a Cartago. O resultado de Canas também encorajou o rei Filipe V, da Macedônia a atacar os romanos na Ilíria, abrindo um front que colocava Roma em uma péssima situação estratégica (Primeira Guerra Macedônica, da qual tratamos em nosso post sobre a Batalha de Pydna).

Concluindo, agora, somente a vontade férrea do Senado, o patriotismo dos romanos, e a futura emergência de uma nova liderança militar romana, – Públio Cornélio Cipião–  cujo gênio era comparável ao de Aníbal, salvariam Roma da derrota total.

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