Esta é uma tradução minha de um artigo de J. E. Lendon, publicado originalmente na Weekly Standard Magazine, uma crítica do livro “Hannibal: A Hellenistic Life”, de Eve Macdonald, que pode ser lida no original no link abaixo. Gostei do artigo, que na minha opinião, oferece uma boa apreciação de um dos principais motivos pelos quais Roma triunfou sobre Cartago na Segunda Guerra Púnica. Boa leitura!
https://www.washingtonexaminer.com/weekly-standard/why-carthage-failed-and-rome-succeeded
É um sintoma do estado deplorável da vida intelectual nos dias de hoje que os leitores desta revista possam intuir os traços da estória contada em “Hannibal” no instante em que eles leem, logo no início de suas páginas, que a Cartago clássica – a cidade em nome da qual o grande comandante do título lutou contra Roma – era “diversificada” e “multicultural”.
A despeito de qual fosse o grau que os tendenciosos observadores contemporâneos considerassem Cartago como sendo: brutal na sua política e religião, opressora de seus súditos, agressiva com seus vizinhos, e dissimulada nas suas relações com as potências estrangeiras, uma cidade que ostentasse estas duas brilhantes qualidades, hoje quase divinizadas pelos nossos educadores, deve ter sido, ao contrário: amigável e escrupulosa em suas relações estrangeiras e domésticas, e vitimada em sua inocência por nações menos politicamente corretas.
Os incontáveis recém-nascidos e crianças pequenas que os Cartagineses sacrificaram aos seus deuses– os restos de mais de 20 mil deles já foram encontrados apenas em Cartago – se esvanece em não mais do que uma simples faceta do glorioso mosaico cultural que era Cartago. E nada disso precisa ser provado, ou mesmo, discutido pela autora, que também é livre para cometer não poucos erros factuais: já que, por definição, os caras legais devem ser um povo diversificado e multicultural, e uma escritora que canta as suas virtudes é liberada de maçante labuta da precisão histórica pela pureza dos seus ideais.
A Antiga Cartago era, provavelmente, tão diversa e multicultural como a Arábia Saudita de hoje: Um Estado rico com uma população pequena, Cartago empregava estrangeiros para fazer o trabalho sujo e dependia mais de mercenários estrangeiros do que dos seus cidadãos para lutar as suas guerras. Os mercenários que Cartago contratava certamente não tinham nenhum sentimento de fazer parte da nação cartaginesa: Quando os Cartagineses, após a sua derrota na Primeira Guerra Púnica (264-241 A.C), não foram capazes de pagá-los, os mercenários iniciaram uma guerra de inigualável brutalidade – a chamada “Guerra Sem Trégua” – contra seus ex-empregadores (240-238 A.C). Autores antigos descrevem os Cartagineses como sendo soberanos implacáveis, e praticamente todas as comunidades que eles dominavam na Espanha e no Norte da África alegremente abandonaram seus antigos mestres quando lhes foi oferecida proteção pelos Romanos. Poucos participaram voluntariamente no diverso e multicultural paraíso cartaginês imaginado pela nossa autora.
Na verdade, no Mundo Mediterrâneo posterior a Alexandre, o Grande, onde as incontáveis cidades gregas tornaram-se mais e mais liberais do que já tinham sido anteriormente em conceder cidadania a imigrantes, Cartago pode ter sido extraordinariamente excludente, enfeitada (como todos os Estados não-gregos) com uma pátina de cultura grega, mas somente aceitando, em seu corpo de cidadãos, imigrantes da região que originalmente fundou-a como colônia: a Fenícia, no Levante.
Na outra extremidade, positiva, dos Estados antigos que recebiam imigrantes e seus costumes estava Roma. Tendo saudado Cartago como “diversa e multicultural”, o autor de Hannibal inconscientemente imagina a sua grande adversária como sendo monolítica em raça, credo e aparência, tanto quanto um grande escritório de advogados brancos protestantes anglo-saxões da Nova York dos anos 50 e, consequentemente (por uma lógica implícita inevitável), como sendo gananciosa, pérfida e beligerante. Porém, os Romanos reais imaginavam que a cidade deles havia sido fundada por um bando de renegados, exilados e falidos. E, leal a essas origens, Roma energicamente dividiu a sua cidadania em direitos e classes, e concedeu partes dela aos seus aliados, que poderiam ultimamente aspirar ao seu todo.
Na época em que Roma começou a lutar contra Cartago, não apenas a mais numerosa nação dos Latinos, que eram culturalmente similares à Roma, mas também os Sabinos, Volscos, Marsos, Etruscos, Úmbrios, Samnitas, Gregos, e muitos outros, que falavam línguas estranhas e tinham costumes diferentes, haviam sido admitidos, em maior ou menor grau, nesse sistema generoso.
Consequentemente, para qualquer um que se sinta atraído à tarefa de pontuar as potências da Antiguidade em termos de sua diversidade e multiculturalismo, a Roma do século III A.C é um candidato muito melhor para obter esse dúbio certificado do que a Cartago do século III A.C. Mas, se tal questão for mesmo de interesse histórico, ela tem um significado bem oposto ao que o autor de Hannibal assevera, porque, em vez de fator de força, durante a Segunda Guerra Púnica de Aníbal (218-201 A.C), diversidade e multiculturalismo foram fraquezas – ainda que não fraquezas decisivas – para ambos os adversários.
Assim, sem dúvida, nossa autora o admite, quando ela aponta para a notável habilidade de Aníbal em manter unido o seu “multicultural” e “diverso” exército mercenário “colcha de retalhos” devido à força de seu carisma, à sua identificação com Hércules, e aos seus crescentes sucessos militares (Como se fosse uma professora de faculdade contemporânea, nossa autora acha que o verdadeiro gênio de Aníbal reside em – hein? – administrar a diversidade).
Mas a notável destreza de Aníbal sugere uma ânsia extraordinária, uma ânsia, suspeita-se, que o Cartaginês ficaria satisfeito em não ter. Apesar das heroicas qualidades pessoas de Aníbal, o seu exército padecia de deserções individuais e em massa.
No que se refere aos Romanos, a estratégia de Aníbal era derrotá-los em batalha (como ele fez, habilmente, em 218, 217 e na sangrenta Canas em 216 A.C) e então separar os aliados italianos que tanto contribuíam tanto para o poder militar de Roma. E alguns deles ele realmente ele conseguiu separar, especialmente após Canas, sobretudo no sul da Itália. Porém aqueles que abandonaram Roma, quase todos Gregos ou Oscos, eram os aliados de Roma culturalmente mais alienígenas, enquanto uma vasta porção da Itália, 160 km ao norte e 120 km ao sul de Roma (sem falar na maioria das cidades ainda mais ao sul), permaneceu leal aos Romanos, apesar das vitórias de Aníbal, e dos seus agrados, tentativas de suborno para encorajar traição e, finalmente, cercos e devastação coercitiva das terras deles.
O coração dessa resoluta região era composto de povos que sempre tinham sido (ou tinham se desenvolvido) similares em seus costumes aos Romanos. Mas muitos aliados romanos alhures, que não eram culturalmente similares aos Romanos também se mantiveram fiéis, e foram eles os que mais sofreram por isso, estando localizados em áreas onde os seus vizinhos tinham desertado para o lado de Aníbal. Esses amigos de Roma, conquanto achassem os costumes romanos esquisitos, sabiam ao menos uma coisa sobre eles: os Romanos, ao contrário de Aníbal, mantinham a sua palavra quanto a socorrer aliados cercados, recompensavam os que se mantinham leais e puniam com terrível crueldade aqueles que os traíam.
A fidelidade contínua aos Romanos, tanto a de seus parentes italianos, como a de seus outros aliados, não importa o quanto fossem diferentes os seus costumes, é o decisivo fator da guerra de Aníbal na Itália. Essa história é contada (juntamente com aquelas da Primeira e Terceira Guerra Púnicas), livre de modismos de posições políticas, no livro de Dexter Hoyos, “Mastering the West: Roma and Carthage at War” – sendo ele mesmo o reconhecido mestre deste assunto na atual geração. O cálculo é este: Nas suas vitórias entre 218 e 216 A.C., Aníbal matou ou capturou talvez 15 por cento da totalidade da população masculina das partes da Itália leais à Roma. Nunca nenhum Estado moderno jamais sofreu algo que se aproximasse de tais perdas (mesmo a França e a Alemanha perderam menos que 9 por cento na 1ª Guerra Mundial).
Ainda assim, contra a expectativa geral daqueles que não a conheciam bem, Roma não pediu a paz, e, um ano após Canas, colocava 75 mil homens no campo de batalha. Em 212 e 211 A.C., 200 mil homens serviam na terra ou no mar, algo como um terço de todos os homens em idade militar na Itália. A capacidade de Roma de recrutar tais números dentre seus próprios homens e os aliados dela é a razão pela qual ela finalmente venceu a guerra. Aníbal foi mantido sob controle na Itália, outras possessões romanas foram fortemente guarnecidas e o aliado de Cartago, Filipe V da Macedônia foi bloqueado na Grécia, enquanto os Romanos ainda possuíam amplas forças para derrotar os Cartagineses na Espanha, capturar a poderosa aliada de Cartago, Siracusa, na Sicília, e, ao final, invadir o Norte da África, obrigando Cartago a chamar Aníbal de volta para defender a terra natal.
Durante os 16 anos que Aníbal permaneceu na Itália, Cartago fez esporádicas tentativas de reforçá-lo com mercenários recém-contratados e reluzentes novos elefantes. Mas a necessidade de ter que fazer isso mostra que Aníbal, apesar das suas vitórias e carisma, simplesmente não pôde – ao contrário dos Romanos – recrutar em larga escala entre os habitantes da Itália. Ao longo do tempo, as suas forças diminuíam e minguavam, e os Romanos cada vez mais restringiam os movimentos dele. Nos últimos anos anteriores à sua volta, Aníbal foi essencialmente um chefe de um bando confinado ao árido Brútio, a ponta do pé da península italiana.
Aparentemente, o exército diverso e multicultural de Aníbal não exerceu sobre os potenciais recrutas na antiga Itália o mesmo apelo que exerce sobre a autora de Hannibal, confortavelmente à vontade na câmara de eco intelectualmente monocultural da universidade atual.
J.E. Lendon, professor of history at the University of Virginia, is the author of Soldiers and Ghosts: A History of Battle in Classical Antiquity and Song of Wrath: The Peloponnesian War Begins.