ANTÍNOO – O FAVORITO DE ADRIANO QUE VIROU DEUS

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Segundo as fontes, Antínoo (Antinous) nasceu no mês de novembro (no dia 27, dia do festival em sua honra, segundo uma inscrição),  provavelmente por volta do ano de 111 ou 112 D.C., na cidade de Claudiopolis (atual Bolu no noroeste da Turquia), na província romana da Bitínia. Embora a cidade fosse bem antiga e tivesse feito parte do Império Hitita, ela foi helenizada e reconstruída por colonos gregos vindos da cidade de Mantinea (antes da conquista romana, a cidade chamava-se Bithynium).

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(Lago Abant, em Bolu, foto de Azplanlos)

Em junho de 123 D.C., o imperador Adriano, então com 47 anos de idade, que se notabilizou por viajar por todo o Império Romano, chegou à cidade de Claudiopolis e, em algum momento de sua estadia, notou o ainda pré-adolescente Antínoo, atraído pela beleza do menino.

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Deixando Claudiopolis, Adriano continuou seu tour pelas províncias orientais do Império, mas deve ter providenciado para que Antínoo fosse enviado para Roma, provavelmente para ser educado no Paedagogium, a escola existente no Palácio de Domiciano, no monte Palatino, destinada à instrução dos pajens imperiais.

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(Ruínas do Peadagogium, no Palatino, em Roma)

Adriano voltou para Roma em setembro de 125 D.C., e, em algum momento nos anos seguintes, ele reencontrou Antínoo e ambos tornaram-se amantes. Três anos depois, quando Adriano partiu para nova viagem para a Grécia, Antínoo acompanhou-o, integrando a comitiva imperial.

Os historiadores concordam que Adriano tinha nítida inclinação homossexual e que o casamento dele com a imperatriz Sabina seria apenas por conveniências políticas e manutenção de uma imagem pública.

De qualquer forma, os costumes gregos estavam disseminados pela elite romana e o fato do imperador ter como amante um garoto inseria-se dentro da prática helênica da “pederastia“, onde se admitia que o mestre, mais velho (erastes), iniciasse sexualmente o discípulo (eromenos), aceitando-se que mantivessem relações sexuais até que o segundo saísse da puberdade e entrasse na idade adulta. Portanto, a opinião pública não deve ter dado muita importância ao relacionamento sexual entre o imperador e seu jovem pajem.

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(Busto da imperatriz Sabina, cujo casamento com Adriano foi notoriamente infeliz)

Consta que Adriano elogiava a inteligência de Antínoo. Ele escreveu poemas em homenagem ao amante, que infelizmente, não chegaram até os nossos dias. Por sua vez, não há nenhum indício de que Antínoo tenha se valido de sua privilegiada posição para obter algum ganho pessoal ou influência política.

Não se sabem muitos detalhes do relacionamento entre Adriano e Antínoo, mas é certo que as caçadas eram um dos divertimentos que eles faziam juntos, de acordo com o relato de um incidente, ocorrido em setembro de 130 D.C., durante uma viagem pelo norte da África, na Líbia, no qual os dois decidiram caçar um leão que estava atacando a população da região. Nessa caçada, Adriano teria salvo a vida de Antínoo e o incidente foi também imortalizado em um relevo circular (tondo), que sobreviveu até nossos dias, por ter sido posteriormente afixado no Arco de Constantino, em Roma (à esquerda, abaixo,  foto de Radomil).

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No decorrer dessa viagem pela África, Adriano e Antínoo chegaram ao Egito, por volta do início de outubro de 130 D.C., parando na  antiquíssima cidade sagrada de Heliopolis, de onde eles partiram para um cruzeiro pelo Nilo, navegando até a cidade de Hermopolis Magna. Nas proximidades da referida cidade, as fontes, sem entrar em detalhes, contam que Antínoo caiu no Nilo e morreu, ao que tudo indica, afogado, no dia em que se celebravam antigos festivais em homenagem ao deus egípcio Osíris.

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(Vista das ruínas de Hermopolis, foto de Roland Unger)

 

As principais fontes antigas assim relatam a  morte de Antínoo:

 

Dião Cássio

“Antinous era de Bithynium, uma cidade da Bitínia, a qual nós também chamamos Claudiopolis; ele foi um favorito do imperador e morreu no Egito, seja por ter caído no Nilo, como escreve Adriano, ou,  mais verdadeiro, por ter sido oferecido em sacrifício. Pois Adriano, como eu sempre afirmei, sempre se interessou por adivinhações e encantamentos de todo o tipo.  Então, Adriano homenageou Antinous – seja devido ao amor que sentia por ele, ou porque o jovem voluntariamente aceitou morrer (sendo necessário que uma vida fosse livremente oferecida para atingir os fins que Adriano tinha em vista) -com a construção de uma cidade no local onde ele sofreu o seu destino, dando-lhe o seu nome; e Adriano também ergueu estátuas, ou  imagens sagradas, dele, praticamente por todo o mundo. Finalmente, Adriano declarou que ele tinha avistado uma estrela que ele entendeu ser de Antinous, e alegremente emprestou seus ouvidos a estórias fictícas tecidas por seus adeptos no sentido de que a estrela havia nascido do espírito de Antinous e, assim, tinha aparecido pela primeira vez. No que se refere a isso, então, ele se tornou objeto de certo ridículo, e também porque, quando a sua irmã Paulina morreu, ele, na oportunidade, não fizera nenhuma homenagem.”

 

 

História Augusta

“Ele (Adriano) perdeu Antinous, seu favorito, durante uma viagem pelo Nilo, e por este jovem ele chorou como uma mulher. Com relação a este incidente, houve vários rumores:  alguns defendem que ele teria se entregado à morte por Adriano, e outros,  aquilo que a sua própria beleza, e a sensualidade de Adriano, sugerem…”

 

Aurelius Victor

“Outros defendem que este sacrifício de Antinous foi pio e religioso, pois, quando Adriano estava desejoso de prolongar a sua vida, e os feiticeiros demandaram que uma vítima voluntária fosse dedicada, diz-se que, após todos recusarem, Antinous ofereceu a si próprio”

 

Obviamente que não podemos excluir a hipótese de que a morte de Antínoo tenha sido acidental, segundo a versão dada pelo próprio Adriano, nem provar que os outros motivos alegados pelos autores antigos são inverídicos, muito embora tenham se registrado muitos episódios nos quais o o referido imperador mostrou-se explicitamente contrário à prática de sacrifícios humanos. Também não é impossível que, conforme a última passagem da História Augusta acima transcrita alude, a morte do rapaz tenha involuntariamente resultado de algum ato sexual, ou que a queda no rio tenha sido decorrente da embriaguez de ambos os amantes.

Entretanto, é fato que Antínoo estava no limiar de atingir a idade em que o seu relacionamento amoroso com Adriano (que estava com 54 anos de idade) tornaria-se extremamente embaraçoso para o imperador, pois o mesmo não mais poderia se dar sob o manto da pederastia.  O relacionamento sexual entre homens adultos livres não era admissível segundo a moral romana, e a chegada da maturidade sexual de Antínoo, que já estava com 18 ou 19 anos de idade, poderia expor o imperador à execração por parte da sociedade romana, especialmente na Itália, e, mais importante, a perda do seu prestígio entre os militares.

Desse modo, ainda que não se possa acusar Adriano, ou seus cortesãos, pelo assassinato de Antínoo, o fato é que a morte dele foi muito conveniente para o trono.

O que ninguém contesta é que Adriano ficou devastado com a morte de Antínoo e ordenou que homenagens inauditas fossem conferidas ao seu falecido amante.

Assim, ainda em outubro de 130 D.C., Adriano proclamou que Antínoo era um deus. A “deificação” já tinha se tornado comum para os imperadores falecidos e até algumas imperatrizes ou pessoas da família imperial já tinha sido tornados divinos, mas era a primeira vez que um simples pajem recebia essa distinção.

Adriano também fundou, no local onde Antínoo morreu, a cidade de Antinopolis, em 30 de outubro de 130 D.C..

O imperador também ordenou a construção de um santuário dedicado a Antínoo no interior de sua fabulosa Villa Adriana, em Tívoli, onde é provável que o falecido amante tenha sido enterrado (talvez depois de ser mumificado no Egito), conforme sugere o texto em hieróglifos no obelisco que  foi erguido ali e hoje encontra-se no Monte Pinciano, em Roma (vide https://followinghadrian.com/2016/10/02/the-obelisk-of-antinous/)

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A deificação de Antínoo foi seguida pela organização formal de seu culto, patrocinado pelo Estado, em diversas cidades, construindo-se templos e nomeando-se sacerdotes.

Embora, inicialmente, a criação e a adesão ao culto a Antínoo decorresse amplamente do patrocínio imperial e do desejo de adular Adriano (ou, igualmente, do temor em desagradá-lo), certamente a extraordinária beleza do rapaz, bem como as circunstâncias trágicas de sua morte e, principalmente, a similitude da forma e do lugar onde ele morreu com o mito de Osíris (que também morreu afogado no Nilo e depois foi ressuscitado pela mulher, Ísis), contribuíram para a popularização do novo deus, que no Egito, passou a ser associado a Osíris, recebendo o nome de Osirantinous.

Em algumas outras regiões, Antínoo foi considerado um herói mítico, como Hércules, um humano que superou a morte e pode transitar entre o mundo dos mortos e o dos vivos.

 

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(Antínoo retratado como Osíris, foto de DS)

Estátuas de Antínoo foram espalhadas por todo o Império Romano, aparentemente baseadas em modelos produzidos em Roma, por ordem de Adriano, uma vez que todas observam os mesmos padrões e contribuíram para popularizar o seu culto..

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Foram identificados até hoje 28 templos dedicados a Antínoo e encontrados vestígios de seu culto em pelos menos 70 cidades ao longo do Império Romano. No mundo grego, Antínoo também foi associado aos deuses Hermes e Dionísio. Os centros do culto eram as cidades de Antinopolis, Claudiopolis (local de nascimento de Antínoo) e Mantinea (De onde os seus ancestrais, fundadores de Claudiopolis, teriam vindo). Nessas cidades, também eram celebrados jogos em homenagem ao novo deus, o que ocorreu pelo menos até o início do século III, que também ocorriam em Atenas e Eleusis, tendo estes durado pelo menos até  267 D.C.

De fato, o culto a Antínoo perdurou por séculos após a morte de Adriano. Um papiro do final do século III preserva um poema em homenagem a Antínoo, mencionado a famosa caçada,, o Nilo, sua apoteose e a fundação da cidade em sua honra.

Os bispos e doutores da nascente Igreja também sentiram a necessidade de fazer invectivas contra o culto a Antínoo, No final do século II, Clemente de Alexandria escreveu:

“Outra nova divindade foi criada no Egito – e muito próxima aos Gregos também – que foi solenemente elevada pelo imperador à categoria de deus – o seu favorito cuja beleza era inigualável, Antinous. Ele consagrou Antinous da mesma maneira que Zeus consagrou Ganimedes. Pois a luxúria não é facilmente contida, quando não há medo, e mesmo agora o povo observa as noites sagradas de Antinous, que são realmente vergonhosas, como o amante que as passava junto com ele bem sabia. Por que, eu pergunto, vocês consideram um deus alguém que foi homenageado pela fornicação? Por que vocês ordenaram que ele fosse pranteado como um filho? Por que, igualmente, vocês narram as estórias da beleza dele? A beleza é algo vergonhoso quando manchada pelo ultraje. Não sejam tiranos da beleza, nem ultrajem aquele que está na flor de sua juventude. Guarde-a na pureza, para que permaneça bela. Tornem-se reis da beleza, não tiranos. Deixem-na livre. Quando vocês deixarem a imagem dela pura, então eu reconhecerei a vossa beleza. Então eu irei reverenciar a beleza, quando for o verdadeiro arquétipo das coisas belas. Agora nós temos uma tumba do amante, um templo e uma cidade de Antinous. (Exortação ao Gregos, 4.49.1-3)

O supracitado texto de Clemente de Alexandria também sugere que o culto de Antínoo poderia incluir alguma celebração orgiástica.

Por volta do ano 250 D.C., outro doutor da Igreja, Orígenes, em sua obra “Contra Celso”, refuta os argumentos do filósofo Celso contra  a fé cristã (que comparou, entre outros, Jesus Cristo a Antínoo). Nesse texto, Orígenes chega a reconhecer a existência de prodígios atribuídos a Antínoo, mas considera-os obra de um daimon (espírito) ou de mágicos.

Somente com o triunfo do Cristianismo, após a proibição das cerimônias públicas pagãs por Teodósio e a destruição de incontáveis templos, o culto a Antínoo desaparece da História, tendo o culto durado pelo menos uns duzentos e cinquenta anos.

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LEGADO

No século XIX, a revalorização do classicismo elegeu as estátuas de Antínoo como o último suspiro da arte clássica greco-romana e símbolo de beleza masculina. Ele também acabou inspirando vários escritores como Oscar Wilde, Fernando Pessoa e Marguerite Yourcenar.

Para saber mais: Lambert, Royston (1984). Beloved and God: The Story of Hadrian and Antinous. George Weidenfeld & Nicolson

 

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ELAGÁBALO – MENINO TRAVESTIDO DE IMPERADOR

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(Busto de Elagábalo, foto de Giovanni Dall’orto)

Em 11 de março de 222 D.C, no Quartel da Guarda Pretoriana (Castra Pretoria) em Roma, os soldados da Guarda Pretoriana atacaram e mataram o Imperador Romano Elagábalo (Elagabalus, nome às vezes também grafado como Heliogábalo) e a mãe dele, Júlia Soêmia, aclamando o seu primo, Severo Alexandre, presente no local, como novo imperador. Em seguida, os assassinos decapitaram os cadáveres e jogaram os corpos de Elagábalo e de Júlia no rio Tibre.

Nascido com o nome de Varius Avitus Bassianus, na Síria, em 203 D.C, Elagábalo era filho de Sextus Varius Marcellus e de Julia Soemias Bassiana (Júlia Soêmia).

Julia_Soemias_2.jpg(Detalhe de estátua de Júlia Soêmia, mãe de Elagábalo, foto de Wolfgang Sauber )

O pai de Elagábalo era membro de uma família da classe Equestre, originária da cidade grega de Apamea, na Síria, e  que ascendeu durante o reinado do imperador Septímio Severo, período no qual Sextus Varius Marcellus ocupou vários cargos importantes, como Procurador dos Aquedutos em Roma, Procurador Romano da Britânia, Prefeito da Urbe e Prefeito Pretoriano.

Como evidência do seu status na corte de Severo, Sextus Varius Marcellus casou-se com Júlia Soêmia, sobrinha da poderosa imperatriz Júlia Domna, irmã da mãe dela, Júlia Maesa.

ulia_Domna_Glyptothek_Munich_354(A poderosa, bela e inteligente imperatriz Júlia Domna era tia-avó de Elagábalo)

As duas irmãs, a imperatriz Júlia Domna e a avó de Elagábalo, Júlia Maesa, eram filhas de Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus Elagábalo (El-Gabal ou Ilāh hag-Gabal, literalmente, “O Deus da Montanha”, em aramaico), situado em Emesa (a moderna Homs), na Síria, e membro da dinastia dos Sempseramidas, os governantes ancestrais daquela cidade, a qual, durante muito tempo, havia sido a capital de um reino-cliente de Roma, até aquela ser anexada pelo Imperador Caracala. O posto de sumo-sacerdote de El-Gabal era hereditário, e foi assumido por Elagábalo.

Emesa era uma cidade próspera e o culto ao Deus-sol se espalhava pelo império romano no século III. O Templo de Elagábalo guardava uma pedra negra cônica sagrada, que muitos acreditavam ter caído do céu,  a qual  atraía peregrinos e doações de toda a região, Consequentemente, os sumo-sacerdotes de El-Gabal eram riquíssimos.

homs03a(Homs, antiga Emesa, no início do século XX)

Vale observar que o culto a El-Gabal não seria primeira, e nem a última, religião oriental a cultuar uma pedra negra supostamente caída do céu…Com efeito, os muçulmanos veneram uma pedra negra chamada de al-Hajar al-Aswad, que se encontra no interior da Caaba, uma construção quadrada em pedra cuja construção é atribuída ao patriarca Abraão, em Meca.

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(A Pedra Negra e o Templo de El-Gabal são retratados nessa moeda cunhada por um governante Sempseramida de Emesa, em meados do século III D.C.),

Quando Septímio Severo morreu, em 211 D.C, ele foi imediatamente sucedido por seus dois filhos Caracala e Geta. Porém, no mesmo ano, Caracala matou o seu irmão Geta e assumiu o trono sozinho. A imperatriz viúva, Julia Domna, porém, continuou muito influente na Corte. Após seis anos de um reinado turbulento, Caracala foi assassinado, em 8 de abril de 217 D.C. por um guarda-costas, em uma estada próxima à Carras, na Turquia, onde ele se encontrava em preparativos para uma campanha contra a Pérsia, crime cometido provavelmente à mando do Prefeito Pretoriano Macrino, que, em seguida, assumiu o trono.

Abalada com o fratricídio, Júlia Domna, mãe do imperador assassinado e do assassino, que estava gravemente doente devido a um câncer de mama, suicidou-se, recusando-se a comer.

Então, Macrino exilou o restante da família de Caracala, agora chefiada por sua tia Júlia Maesa, para a sua nativa Emesa. Contudo, esta decisão revelou-se um grande equívoco de Macrino, pois, valendo-se de seu imenso poder e riqueza na região, a influente matriarca síria e suas parentes iniciaram uma conspiração para derrubar Macrino.

Inicialmente, Júlia Soêmia declarou publicamente que seu filho Varius Avitus Bassianus (Elagábalo) era filho ilegítimo de Caracala (consta que, de fato, ambos eram muito parecidos) e, portanto, o legítimo herdeiro do imperador falecido.

Depois, usando seus vastos recursos financeiros, Júlia Maesa conseguiu convencer a III Legião “Gallica, baseada na Jordânia, e o seu comandante, Publius Valerius Comazon, a aclamarem Elagábalo  imperador, em 16 de maio de 218 D.C.

Para piorar, o prestígio de Macrino já estava abalado pelo resultado desfavorável da guerra que ele vinha movendo contra a Pérsia, onde Roma teve que pagar uma indenização para terminar a guerra.

Macrino tentou combater a insurreição, mas as tropas enviadas para suprimi-la aderiram à revolta. Quando ele mesmo entrou em batalha, foi derrotado, em Antióquia, em 8 de junho de 218 D.C e tentou fugir para a Itália, sendo, por´me, interceptado e executado na Capadócia.

O Senado Romano, sem nenhuma alternativa viável, acabou reconhecendo formalmente Elagábalo e ele assumiu o nome oficial de Marco Aurélio Antonino Augusto,  nome que representou uma tentativa de legitimar a sua suposta condição de descendente de Caracala (que, por sua vez, também procurara difundir a crença, altamente improvável, de que ele era descendente do imperador Marco Aurélio).

Embora o fato não fosse inédito, tendo-se inaugurado,  com Trajano,  cidadão romano nativo da Espanha, a possibilidade de que cidadãos nativos de outras províncias que não a Itália assumissem o trono imperial, com certeza a ascensão de Elagábalo deve ter espantado Roma.

Afinal, Elagábalo era sacerdote de uma religião estrangeira de origem semítica (o povo de Emesa falava aramaico, a mesma língua falada por Jesus Cristo). Embora os romanos cultuassem vários deuses estrangeiros, tais como, por exemplo, a egípcia Ísis, estas eram divindades que não entravam em choque com as integrantes do Panteão Romano, não sendo difícil de serem assimiladas ou associadas aos deuses tradicionais.

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Antes mesmo que a comitiva de Elagábalo chegasse a Roma, a mãe dele, Júlia Soêmia, já havia mandado para a capital um grande retrato pintado de Elagábalo vestido com os trajes de sumo-sacerdote,  o qual foi pendurado em cima do Altar da deusa Vitória, na Cúria do Senado Romano (cujo prédio ainda existe, no Fórum Romano). para que os romanos fossem se acostumando com o fato de serem governados por um sacerdote estrangeiro…

Enquanto isso, a comitiva imperial parou em Nicomédia para passar o inverno. E lá, segundo as fontes, Elagábalo entregou-se à prática de vários rituais orgiásticos característicos de sua religião, os quais desagradaram às tropas, chegando a ocasionar início de uma revolta, que acabou suprimida.

Entretanto, o poder agora baseava-se na riqueza e influência dos sírios, que foram instalados nos postos chaves. Comazon,  o correligionário de primeira hora, recebeu o posto de Prefeito Pretoriano e ela ainda seria duas vezes cônsul. A mãe do novo imperador, Júlia Soêmia, e  a sua tia, Júlia Maesa, foram declaradas “Augustas”. Mais surpreendente, as duas seriam, um pouco mais tarde, as primeiras e únicas mulheres a serem admitidas no Senado Romano. E Júlia Maesa ainda receberia o título de “Mãe do Senado”.

Elagábalo também trouxe junto com ele da Síria a Pedra Negra do Templo de El-Gabal, transferida de Emesa para Roma, onde, para guardá-la, ele mandou construir um templo, chamado de “Elagabalium“, na colina do Palatino (foram cunhadas moedas mostrando a pedra). Ele também mandou retirar várias relíquias de templos ancestrais da Cidade Eterna e transferi-los para o Elagabalium.

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(Ruínas do terraço do Elagabalium, em Roma, e maquete mostrando sua provável aparência)

Para facilitar a sua aceitação pelos Romanos, o deus Elagábalo foi associado ao “Deus Solis Invictus“, identificando-o como o Deus-Sol, cujo culto vinha crescendo desde a virada do século III.

Todavia, em uma grande demonstração de falta de respeito para com a tradicional religião romana, Elagábalo se casou a virgem vestal Aquília Severa, o que muito escandalizou os romanos, já que essas sacerdotisas deveriam permanecer virgens durante os seus 30 anos de serviço. Mais grave ainda, a lei romana previa a pena de morte, tanto para aquele que tivesse deflorado uma virgem vestal, como para esta própria.

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(Denário cunhado durante o reinado de Elagábalo, com a efígie de Aquília Severa)

Pressionado pelo escândalo,  Elagábalo se divorciou de Aquília e se casou com Anna Aurelia Faustina, uma descendente do imperador Marco Aurélio. E ele teria cinco esposas no total, em sua curta vida (sua primeira esposa foi a aristocrata Júlia Cornélia Paula, um casamento arranjado por sua mãe, após a sua ascensão ao trono, tendo dela se divorciado para se casar com a vestal Aquília).

Entretanto, segundo as fontes,  a maior paixão de  Elagábalo foi o seu escravo Hierócles, um condutor de carruagens a quem ele chamava de marido. Consta que Elagábalo, certa vez, teria dito, a respeito do rapaz:

Embora alguns historiadores modernos sustentem que as fontes antigas exageraram os relatos acerca dos imperadores romanos, especialmente de Elagábalo, o fato é que Cassius Dio, a História Augusta e Herodiano (os dois últimos, de fato, fontes frequentemente não confiáveis), que são as três fontes principais sobre o seu reinado, convergem para afirmar a ocorrência desses comportamentos de Elagábalo.

Narra-se, por exemplo, que Elagábalo se apresentaria em público vestido de mulher, maquiado e com os olhos pintados. E ele teria também mandado depilar o seu corpo inteiro e até procurado um médico para fazer uma espécie de operação de mudança de sexo, visando fazer um órgão genital feminino em si mesmo, o que o tornaria, até onde se sabe, o primeiro governante transexual da História.

Outro companheiro de Elagábalo teria sido Aurelius Zoticus, no colo de quem, reclinado, o imperador chegava até a fazer as refeições. Todavia, consta que Hierócles, ciumento do rival, conseguiu, através de um médico, um tipo de medicamento que  causava impotência, fazendo com que, diluído em alguma bebida, fosse servido a Zoticus, que, sem poder mais satisfazer os desejos do imperador, foi mandado embora do Palácio.

E Elagábalo de fato, segundo as fontes, apreciava ser surpreendido por Hierócles enquanto mantinha relações sexuais com outros homens, ocasião em que se comprazia ao ser castigado fisicamente pelo seu companheiro traído.

Outra prática escandalosa de Elagábalo, relatada pelos historiadores antigos, era o seu costume de se prostituir no próprio Palácio, colocando-se nu atrás de uma cortina, cobrando para praticar sexo com os homens que se deitavam com ele (relato que talvez expresse uma errônea compreensão de um ritual da religião de El-Gabal, pois vários cultos semíticos incluíam a prostituição sagrada).

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(Representação artística do rosto de Elagábalo com base nos seus retratos que sobreviveram)

Em algum momento, Júlia Maesa percebeu que a crescente rejeição a Elagábalo pela sociedade romana, e, sobretudo, pelos militares romanos, colocava em perigo a própria posição da dinastia. A matriarca também concluiu que os reiterados excessos sexuais do neto eram encorajados pelo fervor religioso dele e de sua filha, Júlia Soêmia, a mãe do imperador, no culto a El-Gabal.

Júlia Maesa então aproximou-se de sua outra filha, Júlia Maméia, que também tinha um filho, Severo Alexandre, então com 13 anos de idade. A influente Júlia Maesa conseguiu persuadir Elagábalo a nomear seu primo Severo como seu herdeiro, dando-lhe o título de “César”. Naquele mesmo ano, 221 D.C, Elagábalo e Severo exerceram o consulado.

Contudo, percebendo o entusiasmo que a nomeação de  Severo Alexandre provocou nos soldados da Guarda Pretoriana, há muito incomodados com os seus excessos, Elagábalo resolveu anular sua decisão e revogar os títulos concedidos ao seu primo. Contudo, essa decisão fez o  público e as tropas se alvoraçarem temendo pela vida do menino.

Os Pretorianos demandaram a presença de Elagábalo e Severo no Castra Pretoria, devido aos rumores de que Severo pudesse ter sido assassinado. É possível que o motim tenha sido instigado por Júlia Maesa e Júlia Maméia.

Quando o imperador e seu primo apareceram, os guardas começaram a saudar Severo Alexandre, ignorando Elagábalo, que furioso, teria ordenado a prisão dos simpatizantes do primo. Essa ordem, por sua vez,  irritou ainda mais a tropa, que imediatamente atacou o palanque e perseguiu Elagábalo e sua mãe, os quais tentaram fugir. Júlia Soêmia tentou proteger o filho, abraçando-o, mas ambos acabaram mortos e decapitados.

Então, os corpos dos dois foram arrastados pelas ruas, tendo o de Elagábalo sido jogado no Rio Tibre. Nos dias seguintes, várias pessoas associadas a Elagábalo foram mortas, incluindo Hierócles. Seu primo, Severo Alexandre, que ainda não havia completado 14 anos de idade, foi oficialmente reconhecido como imperador em 13 de março de 222 D.C.

A Pedra Negra foi imediatamente mandada de volta para Emesa, e provavelmente ela só não foi destruída porque os romanos eram notadamente um povo supersticioso, e também para não causar desnecessário descontentamento entre os fiéis de El-Gabal e a população da cidade síria.

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(Severo Alexandre, primo de Elagábalo e seu sucessor no trono imperial)
CONCLUSÃO

Elagábalo morreu com a idade de dezoito anos. Com apenas cerca de quinze anos ele fora feito imperador pela mãe e pela avó. Ele é descrito pelos historiadores como travesti, transexual ou mesmo transgênero.

Entendemos que é difícil avaliar o comportamento sexual e a moral dos antigos pelos padrões modernos, e nem devemos utilizar exemplos da antiguidade para justificar ou condenar aspectos das sociedades atuais. Certamente, o que era considerado comportamento “normal” ou padrão socialmente aceito pelos romanos é diferente do vigente nos dias de hoje.

Heterossexualidade e homossexualidade para os romanos eram conceitos vagos comparados com as nossas definições atuais. Imperadores considerados “bons” pelos historiadores romanos, como Trajano e Adriano, notoriamente sentiam atração e tinham relações sexuais com jovens rapazes, sem que isso tenha comprometido a sua reputação. No máximo, como lemos em Cássio Dião sobre Trajano, o fato era mencionado de passagem, como uma curiosidade e uma ponta muito sutil de ironia.

A censura moral dos autores antigos aos imperadores sobre este tema, é feita muito mais ao desregramento ou à luxúria desenfreada, ou, ainda, à efeminação caricatural, pois eles esperavam de um imperador uma aparência marcial e um comportamento masculino, característica essa que não era manchada pelo fato deles fazerem sexo com rapazes, desde que eles assumissem a posição ativa.

É provável que muitas das passagens sexualmente escandalosas do reinado de Elagábalo,  mencionadas nas fontes antigas, estejam relacionadas ao culto de El-Gabal, divindade frequentemente associada à Baal, religião que parece ter incluído ritos de prostituição sagrada masculina (como os kadesh, citados na Bíblia Judaica) e também castração de sacerdotes. Note-se que isso se parece um pouco com os vícios aos quais os autores romanos aludem em suas obras e poderia explicar também a aparência feminina de Elagábalo.

O grande erro que poderia ser imputado a Elagábalo é não ter percebido o choque cultural que a reunião, em uma mesma pessoa, dos papéis de imperador e sumo-sacerdote de uma religião tão estranha aos costumes italianos como era a sua causou na sociedade romana. Convenhamos que esperar essa consciência de um menino sírio que foi feito imperador aos quinze anos pelas manobras da mãe e da avó seria demasiado,  mesmo nos tempos atuais.

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VALENTINIANO I – O ÚLTIMO GRANDE IMPERADOR

Em 17 de novembro de 375 D.C, ao receber uma delegação de emissários bárbaros, o imperador romano Valentiniano I, enfureceu-se com a insolência das demandas que lhe eram apresentadas, sofreu um derrame e morreu em seguida, na cidade de Brigetio, situada na atual Hungria.

(Solidus de Valentiniano I, foto de Siren-Com )

Flávio Valentiniano nasceu em 321 D.C, no sul da Província Romana da Panônia, na cidade de Cibalae (hoje Vinkovci, na atual Croácia), filho de um humilde camponês chamado Gratianus (não confundir com o imperador homônimo, filho do nosso Valentiniano).

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(Atual cidade de Vinkovci, foto: Frane Lovošević, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons)

O pai de Valentiniano entrou para o Exército Romano e foi galgando postos até ingressar na unidade de elite dos “Protectores domestici“, que eram os guarda-costas do Imperador Constantino I. A partir daí, Gratianus foi promovido a general e conseguiu ser nomeado Conde da África, local onde ele foi acusado de enriquecimento ilícito, sendo, por causa disso, afastado. Não obstante, algum tempo depois,  Gratianus foi reabilitado, chamado de volta e nomeado Conde da Britânia. Finalmente, depois de exercer esse cargo, Gratianus retirou-se da vida pública e voltou para suas propriedades em sua terra natal, na Panônia.

Entretanto, o tempo das boas graças de  Gratianus duraria pouco, pois o Imperador Constâncio II, alegando que  Gratianus teria hospedado o usurpador Magnêncio quando este esteve na região da Panônia, mandou confiscar as terras dele.

Durante os anos de serviço do pai, Valentiniano entrou para o exército, provavelmente também como “Protector domesticus” e, do mesmo modo que seu genitor foi sendo paulatinamente promovido.

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No reinado de Constâncio II, os bárbaros Alamanos ameaçaram seriamente a Gália, e, aproveitando-se da guerra civil então travada entre o imperador e Magnêncio, cruzaram o Reno e atacaram várias cidades. Valentiniano, agora servindo como tribuno, sob as ordens do César (príncipe-herdeiro) Juliano, foi encarregado de interceptar um bando de Alamanos que havia atacado Lyon, em 355 D.C.

Todavia, para poder cumprir aquela missão com eficiência, Valentiniano dependia do auxílio de Barbatio, um general que estava envolvido em uma conspiração para prejudicar Juliano. E, naturalmente, o conspirador não tinha nenhuma intenção em ajudar Juliano…Assim, sem o apoio de Barbatio, as tropas comandadas por Valentiniano acabaram sendo derrotadas pelos Alamanos, com grandes perdas.

Valentiniano foi, injustamente, considerado responsável pelo fracasso e afastado do Exército, acabando por ter que ir viver em suas terras em Sirmium, cerca de 55 km da atual Belgrado. Nesse período, nasceu seu filho, que recebeu o nome do avô, Graciano (e que também, futuramente, se tornaria imperador).

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(Mapa da Prefeitura de Illyricum, mostrando a localização da cidade de Sirmium)

Para piorar a sua situação, quando Juliano tornou-se imperador, a carreira de Valentiniano correu sério risco, pois o novo monarca, que até então vinha ocultando o seu apreço pelas religiões pagãs tradicionais, rapidamente colocou em prática medidas para enfraquecer o Cristianismo e recolocar o paganismo em proeminência no Estado Romano. Valentiniano, entretanto, era um notório católico devoto,

Não se mostra surpreendente, portanto, o relato de que Valentiniano, após se recusar a assistir ou fazer um sacrifício em uma cerimônia pagã da qual estava obrigado a participar, tenha sido exilado (ou, em uma versão mais branda do caso, ele tenha sido designado para servir numa província distante, talvez o Egito ou a Armênia).

Foi somente quando Juliano, o último integrante da dinastia inaugurada por Constantino I, morreu, dos ferimentos recebidos em um combate na retirada de mais uma campanha romana fracassada na Pérsia (363 D.C), e o novo imperador romano cristão Joviano assumiu, que a sorte voltou a sorrir para Valentiniano. Ele conseguiu ser nomeado comandante dos Scuttari e, consequentemente, agora chefiava uma das mais importantes unidades de elite da Guarda Imperial (Scholae Palatinae).

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(Um scutarii deveria se parecer com este soldado do Baixo Império Romano, em 1º plano)

Para salvar a própria pele e conseguir retirar o remanescente do Exército Romano da Pérsia, Joviano teve que assinar com os Persas um humilhante tratado de paz, entregando aos inimigos as cinco províncias orientais que haviam sido conquistadas pelo imperador Diocleciano, quase um século antes, além das estratégicas cidades de Nísibis e Síngara, duas praças-fortes que pertenciam a Roma desde o reinado de Septímio Severo, ainda no início do século III D.C.

Contudo, enquanto Joviano e sua comitiva deslocavam-se de Ancyra para Nicéia, seguindo a rota para levá-los até a capital Constantinopla, o recém-aclamado imperador faleceu subitamente.

A morte inesperada de Joviano, forçou a cúpula cívico-militar romana, pela primeira vez na História de Roma, a optar pela realização de um inusitado e inaudito conclave para se escolher o seu sucessor.

Assim, ao invés de se resolver a  sucessão pela forma mais usual – a vitória militar de um general contra os seus rivais – os chefes militares decidiram convocar uma reunião dos mais importantes funcionários civis e militares do Império. E, após a análise de várias opções, os participantes escolheram Flávio Valentiniano, o comandante do regimento de infantaria de elite dos “Scuttarii“, a tropa de elite que fazia parte do séquito pessoal do imperador.

Em 26 de fevereiro de 364 D.C, Flavius Valentinianus (Valentiniano I), que contava com 43 anos de idade, foi proclamado Augusto (Imperador) por uma assembléia da qual participaram os mais importantes ministros e governadores do Império Romano, reunidos em Nicéia, na Província Romana da Bitínia, na Ásia Menor.

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(“Il Colosso” de Barletta, estátua de bronze de um imperador romano, provavelmente trazida para a Itália pelos Cruzados proveniente do Saque de Constantinopla, e que se acredita retratar Valentiniano I). Foto: User:Marcok, CC BY-SA 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5, via Wikimedia Commons

Porém, a situação do Império Romano naquele momento era nada menos do que dramática: No front militar, à derrota na Pérsia e à perda de territórios estratégicos, que colocavam pressão sobre as cruciais províncias da Síria e do Egito, no Oriente, somava-se a crescente ameaça das tribos germânicas no Reno e no Danúbio, no Ocidente, as quais, oportunisticamente, sempre aproveitavam qualquer insucesso militar romano para tentar incursões no território do Império, em busca de saques, ou, alternativamente, extorquir algum pagamento em troca de paz.

E o quadro político interno também não era animador. O breve reinado de Juliano contribuíra para aumentar a intolerância religiosa do Cristianismo triunfante. Começava, assim, a aumentar uma fenda entre a elite de Constantinopla, marcadamente cristã ortodoxa, e a elite tradicional romana pagã, ainda muito influente no Ocidente, sobretudo no Senado Romano.

Eram tempos conturbados,  que imploravam por um líder enérgico, resoluto e incansável, mas também consciencioso, e essas seriam justamente as características mais marcantes de Valentiniano I, em seu reinado.

Não obstante, logo em seguida à proclamação de Valentiniano I, o Exército Romano demandou que ele escolhesse um co-imperador. Tendo em vista que, desde Diocleciano, estabelecera-se um quase consenso de que o Império Romano era extenso e complexo demais para ser governado apenas por um imperador em Roma, e, ainda, a premência da situação militar no Ocidente e no Oriente, dificilmente este comportamento dos generais deve ser visto como uma rejeição a Valentiniano, e sim, mais como o requerimento por uma providência julgada indispensável.

Porém, eu também acredito que, provavelmente, essa reivindicação para que Valentiniano I escolhesse um colega deve ser entendida como uma pretensão daqueles que, em Constantinopla, temiam perder poder com uma reunificação administrativa do Império. O fato é que, um mês depois, Valentiniano I nomeou seu irmão, Valente, como Imperador Romano do Oriente.

Valens_medal,_375-78_ADmedalhão de ouro, de Valente, foto de Sandstein

Valente logo teve que lidar com a revolta de Procopius, um parente de Juliano, a qual, porém, foi rapidamente debelada. Depois, ele conduziu algumas campanhas no Danúbio contra os Visigodos, do rei Atanarico, obtendo uma paz em termos favoráveis aos romanos, inclusive parando de pagar o subsídio anual que o Império vinha pagando aos visigodos para não ser atacado.

Valentiniano foi dar combate aos Alamanos que, em 365 D.C,  invadiram novamente a Gália. Ele estabeleceu-se em Augusta Treverorum (atual Trier, na Alemanha) para conduzir a guerra. De lá, Valentiniano comandou a formação de um grande exército para guerrear contra os referidos bárbaros.

O Autor em frente à chamada “Porta Nigra”, em Trier, antiga Augusta Treverorum, em 2009, onde alguns imperadores do Baixo Império Romano estabeleceram-se para lutar contra os Germanos. Era o portão principal das muralhas da cidade e já tinha mais de 200 anos quando Valentiniano o cruzou

Em 367 D.C, Valentiniano e seu exército cruzaram os rios Meno e Reno e invadiram o território inimigo, inicialmente quase sem encontrar resistência, queimando tudo que encontraram em seu caminho. Os Alamanos então resolveram lutar e travou-se a Batalha de Solicinium, provavelmente ocorrida onde hoje fica a cidade de Hechingem (no atual Estado alemão de Baden-Wurttemburg). Essa região tinha sido abandonada pelos romanos fazia cerca de um século antes, tendo sido parte dos chamados “Agri Decumates” (ou, literalmente, “campos que pagam o dízimo”, um território germânico que havia sido anexado pelos romanos ainda no século I)

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(Provável lugar da Batalha de Solicinium. No reinado de Valentiniano I, os romanos ainda eram capazes de atacar os Germanos à leste do Reno)

A Batalha de Solicinium foi duríssima, com pesadas perdas romanas, mas os Alamanos foram derrotados. Foi a última vez que um imperador comandou um grande exército romano e conduziu com sucesso uma campanha além da margem direita do Reno.

Nesta campanha, Valentiniano fez-se acompanhar do filho Graciano, com apenas 8 anos de idade. Claramente, portanto, o imperador já demonstrava que o queria para sucessor, pois, naquele ano, o menino foi proclamado Augusto, ou seja, co-imperador.

Valentiniano, entrementes, ainda em 367 D.C, também teve que enfrentar uma grande rebelião na Britânia – um ataque combinado das tribos dos Pictos e Escotos, em conjunto com os invasores saxões que assolavam o litoral leste da Ilha (fato que já havia levado os próprios romanos a batizarem aquele trecho como “Costa Saxã“). Essa ameaça só foi derrotada com muito custo, após a chegada do Conde Teodósio, nomeado por Valentiniano para comandar as forças romanas.

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(Portus Adurni, atualmente Portchester Castle, no porto de Portsmouth, na costa oriental da Inglaterra, fortaleza integrante do sistema romano de fortificações da Saxon Shore (Costa Saxã), Foto: ale speeder, CC BY 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by/2.0, via Wikimedia Commons

Valentiniano também conduziu um grande programa de reparo e construção de fortificações ao longo da fronteira Reno/Danúbio, o que irritou os bárbaros germanos, dando-lhes o pretexto para novas agressões.

Outra importante iniciativa de Valentiniano foi recompor os efetivos do Exército Romano, não só preenchendo as lacunas decorrentes das recentes derrotas sofridas, mas até aumentando o seu número, procurando cumprir estritamente o recrutamento anual.

Aliás, um fato notável, que demonstra a dificuldade que constituía o recrutamento naquele período turbulento do Império, bem como a medida da determinação de Valentiniano em restaurar o poderio militar romano, foi a redução da altura mínima exigida para os recrutas: de 1,77m para 1,70m, aumentando, deste modo, a massa da população recrutável.

A maior fonte sobre o reinado de Valentiniano I é o historiador Amiano Marcelino, ele mesmo um ex-militar dos Protectores Domestici, e considerado por muitos como o autor romano que melhor escreveu sobre o Baixo Império Romano.

Segundo Amiano, o imperador Valentiniano:

Realmente, diversas passagens atestam que Valentiniano era dado a acessos de fúria, sobretudo quando se deparava com erros ou irregularidades praticados pelos subordinados. Mas quanto ao ódio às pessoas cultas, ainda que a acusação de Amiano possa ser verdadeira, o fato é que essa alegada antipatia do imperador não se estendia à cultura em si, pois, consta que Valentiniano mandou abrir várias escolas pelo Império Romano.

Sendo ou não exagerada a observação de Amiano acerca do ódio de Valentiniano às classes altas romanas, o fato é que ele foi reconhecido por várias medidas em favor dos mais pobres e inclusive procurou proteger os humildes das arbitrariedades cometidas pelos poderosos.

Neste particular, uma de suas medidas mais meritórias foi instituir em todo o Império o cargo de “Defensor Civitatis“, cuja principal função era ser um advogado público, em prol dos plebeus contra as injustiças dos poderosos. Portanto, atrevemo-nos a dizer que Valentiniano pode ser considerado um dos patronos da moderna Defensoria Pública.

Coube a Valente  implementar essa política de Valentiniano no Oriente. As palavras dele acerca do cargo de Defensor foram preservadas no preâmbulo de um édito:

Ao contrário de seus predecessores cristãos da dinastia constantiniana, Valentiniano adotou uma postura tolerante com o paganismo e as heresias cristãs. Ele continuou permitindo, por exemplo, a prática de sacrifícios noturnos, a antiga prática de adivinhações pelos harúspices e os antigos mistérios pagãos.

A.H.M Jones cita as seguintes palavras, escritas a esse respeito pelo próprio Valentiniano, em uma carta:

Uma política sábia que, infelizmente,  não seria seguida por seus sucessores, e que muitos governos ainda contrariam nos dias atuais…

Porém, em 374 D.C, chegou a notícia de que os Quados, o povo germânico que era um velho inimigo de Roma e habitava ao longo do Danúbio,  após aliarem-se aos bárbaros sármatas,  tinham derrotado duas legiões romanas. A causa principal do conflito foram as fortalezas romanas que, seguindo a política de Valentiniano, estavam sendo construídas em território bárbaro.

Valentiniano cruzou o Danúbio em Aquincum (localizada dentro da área da atual Budapeste) e devastou o território dos Quados, voltando para Savaria para passar o inverno.

No ano seguinte, Valentiniano recomeçou a campanha e dirigiu-se a Brigetio, também situada na atual Hungria. Lá, em 17 de novembro de 375 D.C, ele recebeu em audiência uma delegação dos Quados.

Durante a audiência, os Quados reclamaram que os romanos eram culpados da guerra, devido à construção dos fortes. Às condições estipuladas para o fim das hostilidades, que previam que eles deveriam fornecer recrutas para o Exército Romano, os Quados retrucaram que os grupos aliados que não estivessem presentes na audiência não estavam obrigadas a respeitá-las, sendo livres para atacar os romanos quando quisessem.

Furioso com a insolência dos embaixadores quados, Valentiniano I ergueu-se de sua cadeira e começou a gritar, censurando duramente os bárbaros. De repente, o rosto rubro do Imperador congelou-se em uma máscara terrível e a voz tonitruante dele sumiu…Uma artéria no seu crânio acabara de arrebentar e ele tinha sofrido um derrame, tendo que ser retirado do recinto,  completamente imobilizado, falecendo pouco depois.

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Brigetio, atual Komárom/Szőny, na Hungria, não esqueceu que foi palco da morte de um grande imperador romano, como mostra essa placa moderna em homenagem a Valentiniano I

O filho de Valentiniano I, o jovem Graciano, de apenas 16 anos, foi aclamado imperador do Ocidente, permanecendo seu irmão, Valente, como monarca da parte oriental, em Constantinopla.

No ano seguinte, 376 D.C, chegaria ao Danúbio uma grande e perigosa migração dos Godos.

Essa era uma ameça tremenda, mas que poderia ser enfrentada por um líder capaz, e determinado. Infelizmente, nem Graciano e, menos ainda, Valente, mostrariam-se à altura do desafio.

Assim, em 378 D.C, os Godos derrotariam os romanos na Batalha de Adrianópolis e o Império Romano começaria a longa, mas inexorável, trajetória de sua derrocada. Talvez, se Valentiniano I não tivesse se enfurecido tanto com os Quados em Brigetio, e sobrevivido até Adrianópolis, podemos cogitar que ele não cometeria os erros de Valente. Certamente,  Valentiniano I não teria permitido aos Godos cruzarem o Danúbio, e ele teria jogado contra os bárbaros todo o poder combinado do Exército Romano.

Epílogo

Na cidade de Barletta, na Itália, existe uma enorme estátua de bronze, da época romana, datada do século IV D.C, retratando um imperador em tradicional traje romano de general, segurando um crucifixo. Ela é chamada de “Il Colosso“.

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Não se tem certeza absoluta de quem é o Imperador representado, mas o candidato considerado como o mais provável pelos especialistas é Valentiniano I. A expressão dura, fechada, resoluta e de ar implacável daquele rosto de bronze é um perfeito retrato da personalidade e dos tempos de Valentiniano I.

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FIM

Fontes:

1- “Quem foi Quem na Roma Antiga“, Diana Bowder, 1980, Ed. Círculo do Livro

2- “Declínio e Queda do Império Romano“, Edward Gibbon, 1980, Ed. Círculo do Livro

3- “The Later Roman Empire (AD 354-378)“, Ammianus Marcellinus, 1986, Penguin Books

4- “The Later Roman Empire 284-602, vol. 1“, A.H.M. Jones, The John Hopkins Universitary Press, 1986