MASADA – A FORTALEZA QUE NUNCA SE RENDEU

Masada

Em 16 de abril de 73 D.C. (ou de 74 D.C, segundo alguns estudiosos), os legionários da X Legião Fretensis, após três meses de um difícil cerco, conseguiram penetrar nas muralhas da Fortaleza de Masada, no Deserto da Judéia.

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Masada era o  último foco de resistência da Grande Revolta Judaica contra a dominação romana, iniciada em 66 D.C., sendo controlada por um grupo de rebeldes chamados Sicários.

Dentre as várias facções que compunham o movimento nacionalista dos judeus, a mais fanática era a dos Sicários  e eles conseguiram tomar a Fortaleza de Masada, situada em um platô que ficava em cima de um escarpado monte de cerca de 400 metros de altura. Noventa anos antes, o local tinha sido transformado pelo rei Herodes, o Grande, em um luxuoso palácio fortificado, entre 37 e 31 A.C.

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*Reconstituição do palácio de Herodes, em Masada)

Após a queda de Jerusalém, em função do grande cerco comandado pelo futuro imperador Tito, em 70 D.C., que resultou na destruição do Segundo Templo, também erigido por Herodes, restavam alguns poucos focos de resistência na Judéia, sendo o mais importante deles a Fortaleza de Masada, controlada pelos Sicários.

Os Sicários provavelmente eram um subgrupo ou uma facção extremista dos nacionalistas judeus Zelotes, que haviam liderado a revolta contra os romanos. O nome do grupo deriva da palavra “sicae“, que significa “adaga” – a arma característica do grupo, a qual era escondida sob as vestes deles para cometer assassinatos políticos. Assim, os Sicários podem ser considerados precursores da seita dos hashshin islâmicos (de onde deriva a palavra “assassino”) e, muito remotamente, de grupos extremistas modernos, como a Al-Qaeda e o Hizbollah.

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Quando a X Legião Fretensis chegou a Masada, reforçada por algumas unidades auxiliares e prisoneiros judeus, totalizando 15 mil homens, o número de Sicários e de suas famílias entrincheirados na Fortaleza era de 960 pessoas.

Os romanos eram comandados pelo general  Lucius Flavius Silva (Flávio Silva), comandante da X Legião e governador da Judéia, que ordenou que todo o perímetro fosse cercado por uma circunvalação (fosso), para evitar que os revoltosos conseguissem abastecimento ou fugissem.  Em vários pontos, foram construídos acampamentos de legionários os quais, juntamente com o fosso, sobreviveram até os nossos dias (vide foto abaixo).

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Porém, não havia como a tropa toda subir a montanha pelos estreitos e sinuosos caminhos que levavam até o topo, ainda mais levando máquinas de assédio. Por isso, Flávio Silva ordenou a construção de uma impressionante rampa, feita de pedras e terra batida(que também ainda existe – cf. na foto abaixo). Quando a rampa ficou pronta, os legionários começaram a subir, empurrando uma enorme torre de assédio munida de um poderoso aríete.

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Finalmente, quando chegaram até as muralhas no topo, os Romanos não tiveram muita dificuldade em abrir uma brecha e os soldados invadiram o interior da cidadela.

Para a surpresa dos Romanos, que esperavam que se repetisse o tipo de resistência encarniçada que eles enfrentaram no Cerco a Jerusalém e a outras cidades judaicas, ao atravessarem as muralhas de Masada eles não encontraram nenhum rebelde,  mas apenas a fumaça e o fogo de várias construções incendiadas pelos revoltosos, tudo em completo e inquietante silêncio…

Os romanos, intrigados, gritaram exortações para que os rebeldes se rendessem, as quais ecoaram pelo platô deserto, até que 2 mulheres e cinco crianças apareceram. Interrogadas, as mulheres disseram que o pequeno grupo era tudo o que restava dos rebeldes.

Mas a explicação dada pelas mulheres para o acontecido parecia absurda demais e os romanos, com todo o cuidado necessário de quem esperava alguma armadilha, adentraram o Palácio situado na outra extremidade do platô.

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Quando o portão foi transposto, já no átrio, os Romanos depararam-se com uma cena macabra, que confirmava o relato das mulheres: centenas de corpos ensanguentados jaziam sem vida:  a conclusão era óbvia – os Sicários tinham se matado uns aos outros.

Segundo o relato do historiador Flávio Josefo, ele mesmo originalmente um participante da Grande Revolta Judaica que durante a revolta aderiu aos romanos, os Sicários, na noite anterior, fizeram um pacto pelo suicídio coletivo como ato de derradeira resistência aos Romanos.

Como a religião judaica repudia o suicídio, os Sicários resolveram então sortear dez companheiros para que executassem todo o resto, e, feito isso, os outros, divididos em grupos de dois, se matariam, até que restasse somente um, que seria o único suicida.

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(Os cacos de cerâmica, costumeiramente utilizados na Antiguidade para fazer sorteios, inscritos com os nomes dos Sicários, enconrados em Masada pela arqueólogo israelense Ygael Yadin)

Flávio Josefo, em sua obra, “A Guerra dos Judeus“, transcreve o último discurso do líder dos Sicários, Eleazar ben Ya’ir, antes do dramático desfecho, que teria sido contado aos romanos por uma das mulheres sobreviventes:

Desde que nós, há muito tempo atrás, resolvemos jamais sermos escravos dos Romanos, e nem de quaisquer outros,  a não ser do próprio Deus, quem, somente ele, é o verdadeiro e justo Senhor da humanidade, chegou o momento que nos obriga a transformar aquela decisão em verdade prática. Nós fomos os primeiros que se revoltaram e somos os últimos a lutar contra eles; e eu não posso senão apreciar isto como um favor que Deus nos concedeu: o de que ainda podemos morrer bravamente e na condição de homens livres.

Hoje, Masada é um dos pontos turísticos mais visitados de Israel e palco de cerimônias anuais, sendo considerada parte importante do sentimento de identidade  nacional israelense.

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A BATALHA DE MUNDA

No dia 17 de março de 45 A.C, na planície de Munda, próximo ao atual vilarejo de Lantejuela, na Andaluzia, os exércitos liderados pelo Ditador de Roma, Caio  Júlio César, e pelos líderes da facção senatorial dos Optimates, Cneu Pompeu e Publius Attius Varus, bem como pelo general ex-partidário de César, Tito  Labieno, se enfrentaram em uma terrível batalha, que seria a última travada no contexto da Guerra Civil.

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Após a morte de Pompeu Magno, no Egito, os Optimates (os defensores dos privilégios da aristocracia senatorial )resolveram continuar a guerra contra César. Assim, eles conseguiram reunir, na África, um exército de 40 mil soldados liderado pelos velhos inimigos de César: Catão, o Jovem e Metelo Cipião, e pelo inimigo mais recente, Tito Labieno, que, surpreendentemente, abandonara seu antigo líder e se bandeara para o lado dos Optimates. Foram se juntar a eles,  na atual Tunísia, os dois filhos de Pompeu, Cneu Pompeu e Sexto Pompeu. E os adversários de César ainda contariam com a ajuda do rei Juba, da Numídia.

César deixou Roma e partiu para a África, conseguindo sitiar os Optimates na cidade de Tapsos.  Na batalha que se seguiu, em 06 de abril de 46 A.C, os Optimates foram derrotados e, em decorrência, Catão, o Jovem e Metelo Cipião cometeram suicídio.

Enquanto isso, Cneu e Sexto Pompeu conseguiram fugir para a Espanha, para onde também escapou Labieno. Na Espanha, os três conseguiram formar um novo exército, incluindo duas legiões que tinham desertado do exército de César e eram formadas por veteranos das campanhas de Pompeu Magno. Vários outros veteranos de Pompeu tinham sido assentados na Espanha e, demonstrando fidelidade a seu falecido comandante, juntaram-se aos Optimates. Com esse exército, totalizando treze legiões, eles tomaram boa parte da Espanha, forçando os dois comandantes das forças leias a César, Quintus Pedius e Quintus Fabius Maximus, a se refugiarem na cidade de Oculbo (distante cerca de 50 km da atual Córdoba). De lá, os sitiados pediram ajuda a César.

César, cuja qualidade mais impressionante como general talvez fosse a velocidade com que conseguia que suas tropas se deslocassem, marchou os 2.400 km que separavam Roma de Oculbo em apenas 27 dias, e, com essa aparição súbita, conseguiu levantar o sítio.

A rapidez com que decidiu agir somente permitiu que César trouxesse consigo as legiões  nas quais ele mais confiava; a X Equestris e a V Alaudae (esta era uma legião formada por gauleses e é considerada a primeira legião romana formada por não-cidadãos), além de duas legiões recém formadas, a III Gallica e a VI Ferrata . Ele também recrutou, entre os cidadãos romanos que viviam na Espanha, mais quatro legiões.

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O exército de César tentou sitiar a importante cidade de Corduba (atual Córdoba) sem sucesso, e Cneu e Sexto Pompeu, aconselhados por Labieno, decidiram adotar uma estratégia defensiva, o que obrigou César a se preparar para passar o inverno na região, o que lhe obrigou a procurar os mantimentos necessários.

Porém, ainda durante o inverno, o exército de César conseguiu capturar a importante cidade de Ategua, obtendo suprimentos e infligindo uma derrota que enfraqueceu o moral do exército dos Optimates, que começou a experimentar deserções.

Assim, com a chegada do fim do inverno, pressionados pela queda do moral de suas tropas, os Optimates resolveram finalmente enfrentar o exército de César em uma batalha campal, em uma planície situada a uma milha das muralhas da cidade de Munda.

O exército dos dos Pompeianos tendo se desdobrado primeiro em ordem de batalha, escolheu uma elevação suave na planície, dando-lhe uma posição mais favorável. Eles comandavam uma força de treze legiões, mais seis mil auxiliares, além de seis mil cavaleiros, em um total de cerca de 70 mil homens.

César comandava oito legiões, com mais oito mil cavaleiros, totalizando cerca de 40 mil homens, sendo que no seu flanco direito, ele posicionou, como de costume, a sua estimada X Legião.

César ordenou que o seu exército parasse a uma certa distância da planície, tentando atrair o inimigo e fazê-lo descer a colina, sem sucesso, já que eles apenas avançaram um pouco, sem deixar a sua posição vantajosa. Suas próprias tropas não gostaram dessa pausa no seu avanço, achando que isso atrasaria a fácil vitória que eles pensavam que iriam obter.

Então, César deu o comando para o ataque, utilizando a senha “Vênus” (a deusa de quem a sua família julgava descender) e suas legiões avançaram soltando um grito de guerra.

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Dessa vez, os Pompeianos estavam dispostos a tudo para vencer, afinal muitos dos seus soldados já tinham sido perdoados por César e, por voltarem a combatê-lo, acreditavam que desta vez não teriam clemência.

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 No calor dos furiosos combates, César teve que desmontar e lutar ao lado da infantaria. Em dado momento, indo para um ponto onde as suas tropas começavam a fraquejar, ele retirou o seu elmo para que os soldados pudessem vê-lo e se sentirem encorajados ou envergonhados por ele ser obrigado a combater junto deles. Não surtindo muito efeito isso, consta que César tirou um escudo das mãos de um legionário e falou para os seus oficiais:

Isto será o fim da minha vida e também das suas carreiras militares“.

Então, César avançou para a frente de batalha, chegando a ficar a apenas três metros do inimigo, que atirou cerca de duzentas lanças em sua direção,  tendo César conseguido desviar da maioria e os outros cravando-se no seu escudo. Nesse momento, todos os tribunos correram para ele, colocando-se ao seu redor e todo o exército avançou.

Mais tarde,  César diria:

Inúmeras vezes, eu lutei pela vitória; em Munda, eu lutei pela minha vida !

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A encarniçada luta se estenderia por oito horas, até que a X Legião começou a prevalecer sobre a ala esquerda do exército dos Pompeianos. Cneu Pompeu, percebendo o perigo, retirou uma legião da sua ala direita para reforçar a sua ala esquerda ameaçada. Porém, o rei Bogud, da Mauritânia, que comandava a cavalaria de César, percebendo o consequente enfraquecimento da ala direita inimiga, ordenou uma carga contra a retaguarda de Pompeu.

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Labieno viu o ataque da cavalaria de César e deslocou várias unidades para contê-lo, todavia o movimento foi mal interpretado pelo seu exército, que pensou, equivocadamente, que se tratava de uma retirada. O exército pompeiano já estava sob forte pressão em ambos os flancos e quando eles viram várias da suas unidades recuando para fazer a manobra ordenada por Labieno, o pânico se instalou e as suas linhas começaram a se dissolver devido a debandada dos soldados pompeianos apavorados.

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Como era frequente nas batalhas da antiguidade, a grande matança se dava após uma debandada. Assim, morreram trinta mil soldados do exército pompeiano, contra apenas mil mortos das tropas de César.

Labieno tombou na Batalha de Munda, recebendo de César o devido funeral, mas Cneu e Sexto Pompeu conseguiram escapar. Porém, um mês depois, o primeiro  na Batalha de Lauro, onde lutou até a morte. Já Sexto Pompeu ainda lideraria, anos mais tarde, uma rebelião na Sicília,  depois do assassinato de César. Ele somente seria morto por Marco Antônio, em 35 A.C.

14 mil soldados pompeianos ainda conseguiram fugir para Munda, sendo sitiados pelo legado de César, Quintus Fabius Maximus. Córdoba já havia caído e Munda acabou se rendendo.

Este foi o último conflito da Guerra Civil iniciada quando César cruzou o rio Rubicão, quatro anos antes. Deve ter parecido a muitos que César e os Populares tinham derrotado completamente os Optimates e que uma nova era iria começar.

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Porém, havia, em Roma, um núcleo duro da facção dos Optimates que ainda estava disposto a resistir, mesmo sem exércitos…

 

 

 

 

POR QUE ASSASSINARAM CÉSAR?

Para os conspiradores que esfaquearam César no Senado, a resposta para essa pergunta seria muito simples: “Porque ele era um tirano que planejava tornar-se rei e acabar com a República”. Eles inclusive chegaram a alegar que agiram com base em uma antiga lei grega que não apenas autorizava, mas até exigia,  que qualquer um que tivesse a oportunidade deveria matar o tirano, não sendo, assim, o tiranicídio, um crime, mas, em verdade, um ato em defesa da Democracia.

O estudo da História de Roma, porém, demonstra que a morte violenta de César era uma questão muito mais complexa do que um tiranicídio…

Nosso artigo, escrito nos dias que precedem  o dia 15 de março – os Idos de março de acordo com o calendário romano – e o mais célebre de todos, o dia 15 de março de 44 A.C., quando o Ditador Caio Júlio César foi morto na Cúria do Teatro de Pompeu, em Roma, é tentar contextualizar o assassinato na História da República Romana.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Desde a sua fundação, surge, em Roma, uma acirrada luta pelo poder,  opondo o restrito grupo de clãs familiares aristocráticos (gens), cujos integrantes foram inicialmente chamados de “patrícios” contra a maioria da população livre que não fazia parte daquele grupo, compreendendo pequenos proprietários de terras, comerciantes e proletários (pessoas que vendiam sua força de trabalho a empregadores), que constituíam a “Plebe”.  Os patrícios julgavam-se os responsáveis pela Fundação da Cidade, pela sua posterior libertação do domínio etrusco e pela expulsão dos reis, ou seja, eles consideravam-se os fundadores da “Respublica Romana“.

Essa distinção Patrício x Plebeu era sobretudo censitária: plebeu era todo aquele que não fora arrolado como patrício pelo Censor, o magistrado encarregado de fazer o censo, naturalmente um patrício.

E assim, a República Romana não tinha ainda 15 anos, quando, em 495 A.C, os plebeus, insatisfeitos com os privilégios dos patrícios, ameaçaram abandonar Roma e fundar outra cidade. Conflitos como esses se repetiriam várias vezes, e, ao final deles, os plebeus conseguiram expandir seus direitos e limitar as prerrogativas dos patrícios, como por exemplo, quando eles impuseram a obrigação de publicação escrita das leis,  ao obterem os direitos de elegerem magistrados com poder de veto (Tribunos da Plebe) e de serem eleitos para todas as magistraturas, e,  finalmente, isso após prolongada luta, conquistarem o reconhecimento da força legislativa das votações de suas assembleias (“Concilium Plebis“, isto é Conselho ou Concílio da Plebe), em 287 A.C.

Comitium_Kontext-601x338(O”Comitium” era o local no Fórum Romano, em frente à Cúria do Senado, onde se realizava o Concilium Plebis, a assembleia dos plebeus. Sua aparência em meados do período republicano devia ser a da reconstrução acima, que foi extraída de http://www.digitales-forum-romanum.de/gebaeude/comitium/?lang=en )

Durante o crescimento e a expansão de Roma pela Península Italiana e pelo Mediterrâneo, houve a incorporação de vários povos italianos e inúmeras cidades e a fundação de colônias, não só na Itália, mas, também no sul da França e na Espanha, assentando-se nas mesmas soldados veteranos e povoando-as com cidadãos romanos que para lá migravam em busca de oportunidades. Aumentou, também, em decorrência dessa expansão,  o influxo de produtos e riquezas para Roma, enriquecendo muitos plebeus.

Esse processo de criação de uma nova classe de plebeus ricos, levou, ao longo de dois séculos, a uma reformulação da classe dos patrícios: O influxo de plebeus “novos ricos” foi absorvido,  ou melhor poderíamos dizer, cooptado, pela antiga elite patrícia, passando todos a fazer parte de uma nova classe informal, porque não reconhecida então pela legislação romana, chamada de “Nobilitas” (nobreza),  a qual incluía os antigos patrícios e vários plebeus muito ricos.

A ascensão social do plebeu rico era possibilitada pela própria evolução democrática da República Romana, fruto da luta secular da Plebe. Com a conquista do direito de serem votados para ocupar quaisquer cargos, eles podiam percorrer integralmente e em ordem crescente todas as magistraturas (ou cargos públicos), carreira que recebia o nome de “Cursus Honorum“, até chegarem ao Senado Romano. O plebeu que conseguisse chegar ao cargo de Cônsul, automaticamente ingressava no Senado e passava a integrar a nobreza (apelidava-se, então, a esses senadores “sem pedigree”, de “Novus Homo” – um “homem novo”).

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Teoricamente, os plebeus, desde o século III A.C, haviam adquirido a proeminência política em Roma, já que somente eles poderiam eleger os Tribunos da Plebe,  os quais tinham o poder de vetar qualquer leis, inclusive as emanadas do Senado (Senatus Consultus) e qualquer ato dos demais magistrados e, também,  de intercederem em qualquer ato em favor dos plebeus (“intercessio“). Porém, os atos do Tribuno da Plebe, ao contrário, não podiam ser objeto de veto. Aos Tribunos da Plebe era conferida a sacrossantidade, significando não podendo serem presos e nem seus passos impedidos, nem seus atos obstaculizados. Para completar, eles podiam convocar um Conselho da Plebe, onde somente os plebeus tinham direito a voto, com o poder de promulgar leis (“plebiscita” ou plebiscito).

Não obstante, todo esse poder conferido aos Tribunos e Concílios da Plebe raramente era usado. Eram tempos em que Roma se achava em quase permanente estado de guerra, os magistrados no front de batalha e a administração e a política eram conduzidas, quase que exclusivamente, pelo Senado, ao qual todos reconheciam o patriotismo e a abnegação pela causa romana.Esse regime, teoricamente democrático, na prática começou a ser erodido pelo Senado Romano, dominado pela nobreza, da seguinte forma: os Senadores, uma vez ingressados naquele Corpo, eram vitalícios e invioláveis. Os demais magistrados, porém, exerciam um mandato temporário, normalmente de um ano. Assim, ao deixarem o cargo,  eles podiam ser processados. Essa vulnerabilidade, ao longo do tempo, acarretou que todos os magistrados evitassem agir em desacordo com o Senado, procurando sempre consultá-lo antes de qualquer ato importante, para se garantir contra eventuais questionamentos futuros.

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(A Cúria Júlia, onde se reunia o Senado Romano, foi erguida por Júlio César e reconstruída diversas vezes durante o Império Romano. O prédio atual data do reinado do imperador Diocleciano)

Considerando que as eleições para as magistraturas exigiam campanhas que eram  bem custosas para a esmagadora maioria dos plebeus, frequentemente os candidatos, inclusive para o cargo de Tribuno da Plebe, endividavam-se, ou, quando exerciam outros cargos públicos, desviavam recursos públicos para as suas campanhas, ficando passíveis de serem processados pelos inimigos ao término de seus mandatos.

O que acontecia, então, era que majoritariamente apenas plebeus ricos ou aristocratas supostamente simpáticos à causa da Plebe concorriam ao cargo de Tribuno da Plebe. As poderosas prerrogativas do cargo eram disputadas em concorridas eleições, onde homens ambiciosos despejavam dinheiro para comprar votos dos eleitores plebeus. Os candidatos também frequentemente recorriam a bandos armados, com o objetivo de intimidar os adversários pela violência.

Logo, o Senado percebeu que poderia controlar os comícios da plebe se controlasse os Tribunos, já que eram eles que convocavam e presidiam essa assembleia popular.  E, não poucas vezes, na História de Roma constata-se que houve Tribunos que,  na realidade, atuavam em favor dos interesses da elite, como se fossem verdadeiros “pelegos“.

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A aparente constituição democrática de Roma, assim, na prática, degenerara em uma disputa parecida com as que hoje vemos em nações do chamado “3º Mundo”, temperada por aspectos de uma guerra entre “famiglias” da Máfia Italiana,  cenário aliás muito bem retratado nos primeiros episódios da minissérie “Roma”.

Enquanto isso, a expansão de Roma exasperava as contradições políticas, econômicas e sociais internas. Era necessário dar participação política às elites das inúmeras cidades incorporadas ou fundadas não só na Itália, mas também no Sul da França, Espanha, Norte da África e na Grécia.

Mais importante, havia a questão da grande extensão de terras agriculturáveis anexadas ao “Ager publicus” e que eram cedidas para um grupo seleto de nobres senadores ou para ricos integrantes da classe equestre. Essas terras eram exploradas em sistema de latifúndios, cultivados em larga escala com o emprego da grande massa de escravos que resultava das vitórias militares. Tal fenômeno expulsava do campo o pequeno agricultor livre, outrora o esteio do poder militar romano, incapaz de competir com os latifúndios operados em grande escala comercial. Esses pequenos agricultores falidos migravam para a Cidade, à procura de trabalho, engrossando as fileiras do Proletariado. Assim, a fenda entre os aristocratas ricos e o resto não parava de aumentar…

Ademais, essa massa de proletários para sobreviver procurava a proteção de nobres poderosos, que assumiam o seu patrocínio, aumentando a sua clientela (sendo o Clientelismo uma instituição particularmente romana,  na qual se instituíam deveres entre Patrão e Cliente). Não demorou para que a aumentada clientela corrompesse o sistema eleitoral, sob a fórmula “distribua uma esmola e reclame um voto“.

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(Na imagem, clientes comparecem ao ritual conhecido como “salutatio”, o comparecimento matinal da clientela à residência do patrono para demonstrar consideração, aproveitando para pedir algum benefício ou oferecer seus préstimos)

O problema atingiu tal dimensão que provocou o surgimento, dentro da própria nobreza senatorial, de um grupo que defendia uma profunda reforma no sistema político e na estrutura socioeconômica romanos. O estreito contato com a cultura grega propiciado pela anexação das cidades fundadas pelos gregos no sul da Itália e, posteriormente, com a anexação da própria Grécia, permitiu a difusão das mais avançadas teorias políticas e filosóficas gregas no seio da elite romana.

Surgiu, consequentemente, na elite romana, uma corrente que percebia que o sistema político de Roma apodrecia, exemplificando o famoso conceito grego sobre os ciclos de degeneração das formas de organização política dos Estados: monarquia/tirania-aristocracia/oligarquia-democracia/demagogia.

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(O denário de prata mostra um eleitor romano depositando o voto na urna)

O primeiro político romano a seriamente propor e executar uma ação visando a reformar esse Sistema foi Tibério Semprônio Graco

Tibério Graco era um jovem político que trilhava a tradicional carreira das magistraturas mas que havia se decepcionado bastante com o Senado, pois este repudiara um tratado que ele havia negociado como Questor na Espanha.

Consta que no trajeto de volta da Espanha, Tibério Graco teria constatado o abandono das pequenas propriedades rurais na Etrúria, substituídas por grandes fazendas escravistas. Ele resolveu concorrer ao cargo de Tribuno da Plebe e ganhou a eleição, em 133 A.C.

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Para lidar com o problema, Tibério Graco propôs a “Lex Sempronia Agraria” – que pode ser considerada  a primeira lei de reforma agrária – prevendo a distribuição das terras devolutas, inicialmente aos soldados veteranos e, depois, ao proletariado romano. As terras que tivessem sido ilegalmente distribuídas aos ricos, em contrariedade à antiga Lex Licínia, que previa uma quantidade máxima de terra pública passível de ser cedida a particulares (mas que era largamente ignorada), deveriam também, segundo a Lex Sempronia, serem redistribuídas para os pobres, mediante o pagamento de uma indenização aos seus atuais possuidores, que, no entanto, ainda poderiam ficar com uma determinada fração delas.

A maioria conservadora do Senado se aglutinou e se opôs à Lex Sempronia, alegando que a medida abalava os fundamentos da República e fomentava a revolução social. Essa oposição cresceu,  sobretudo depois que  Tibério Graco, passando por cima do Senado, apelou ao Conselho da Plebe para aprovar a nova lei,  uma medida que,  apesar de estar de acordo com o Direito Romano, era incomum.

O Senado conseguiu convencer o outro Tribuno da Plebe, Otávio, a vetar a Lex Sempronia. Tibério Graco, entendendo que o veto de Otávio contrariava a própria finalidade do cargo de Tribuno – a de defender a Plebe contra a opressão dos nobres – submeteu  à questão ao Conselho da Plebe, pedindo que votasse pela deposição do colega. Após a votação ter começado, Otávio vetou o próprio ato que determinara a votação de seu afastamento. Graco, então, teria mandado retirar Otávio à força da assembléia e a votação prosseguiu, decidindo pelo seu afastamento.

Segundo outra versão, do historiador Apiano, quando a 18ª Tribo de Plebeus, de um total de 35, votou pela deposição do seu colega, Tibério Graco apenas cumpriu a decisão, removendo Otávio porque ele não era mais Tribuno. A diferença entre as versões é relevante, pois, como vimos, um Tribuno da Plebe era sacrossanto, e, portanto, a ação de Graco teria sido formalmente ilegal, caso a primeira delas seja a verdadeira.

O povo saudou Tibério Graco como um verdadeiro herói e, pressionado, o Senado autorizou a formação de uma comissão agrária para implementar a Lex Sempronia. Porém, desde o início, os senadores conservadores tentaram sabotar a execução da lei, liberando apenas uma pequena verba para a instalação dos trabalhos da comissão, alegando a insuficiência de fundos no Tesouro.

Entretanto, naquele mesmo ano de 133 A.C, o Rei Átalo III, de Pérgamo, aliado romano, morreu sem herdeiros, legando toda a sua vasta fortuna (e o próprio reino) à Roma.Tibério Graco viu nisso uma chance de executar seus planos e, invadindo a competência que o costume conferira ao Senado de deliberar sobre o orçamento e os assuntos estrangeiros, determinou que parte da herança de Átalo fosse usada para financiar a implementação de sua lei agrária, valendo-se dos seus poderes tribunícios.

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(Átalo III admirava os romanos e deixou o Reino de Pérgamo como herança para Roma)

O acirramento do confronto entre a maioria conservadora do Senado e Tibério Graco atingiu uma proporção incontornável. Ele foi acusado por Quinto Pompeu, um senador que era seu vizinho, o qual alegava que, nesta condição, soube que Graco havia recebido de presente de um certo Eudemus, de Pérgamo, um manto púrpura e uma coroa de ouro, devido ao fato de este pensar que Graco iria se tornar o Rei de Roma.

Aproximando-se o fim do seu mandato, aumentavam as evidências de que Tibério Graco seria processado pelo crime de violar a sacrossantidade de seu colega Otávio. Assim, Graco decidiu concorrer à reeleição, defendendo a popular plataforma de redução do tempo de serviço militar e de concessão da cidadania romana a povos aliados. Havia rumores de que um amigo seu havia sido envenenado e, por isso, temendo pela sua vida e de sua família, Graco apelou ao povo reunido em assembleia por proteção, e, de fato,  uma multidão passou a acampar em frente a sua casa com o objetivo de protegê-lo, o que lhe granjeou ainda mais simpatia popular.

Tibério Graco foi reeleito. Pouco antes do seu mandato encerrar, ele foi a um comício, apesar de advertido da existência de vários presságios desfavoráveis, estando o povo reunido no Capitólio. Lá ele recebeu a notícia de que os senadores planejavam mata-lo. Seus partidários armaram-se de porretes. Os senadores, já mal dispostos contra Tibério, interpretaram esse gesto como uma insurreição na qual seus partidários pretendiam coroá-lo rei, e exigiram que o cônsul enviasse as tropas para reprimi-la. Com a recusa deste, os próprios senadores, acompanhados de sua clientela, armaram-se de porretes e foram atacar o grupo de Tibério.

Na confrontação que se seguiu,,Tibério Graco e 300 de seus seguidores foram mortos a porretadas e pedradas e seus corpos jogados no Rio Tibre. Consta que o primeiro golpe contra a cabeça de Tibério Graco foi dado por seu novo colega, o Tribuno Publius Satyreius. Segundo Plutarco, esta foi a primeira vez que um conflito político entre cidadãos em Roma degenerou em um banho de sangue. Em seguida, vários partidários de Graco foram exilados, presos e até executados sem julgamento.

Temendo a reação do povo indignado, o Senado informou que iria implementar a Lex Sempronia, mas na prática, ele continuou impondo várias dificuldades para a sua execução.

As tensões e contradições políticas e sociais que Tibério Graco tentou solucionar não morreram com ele. Uma década mais tarde, seu irmão, Caio Graco tentou aprovar um programa ainda mais radical do que o de Tibério. Considerado então o melhor orador de Roma,  Caio foi eleito Tribuno da Plebe em 123 A.C. Em uma trajetória parecida a do seu falecido irmão, ele também acabou sendo falsamente acusado de crimes e morto em um conflito sangrento entre facções.

Eugene_Guillaume_-_the_Gracchi(Escultura “Os Gracos”, de Eugene_Guillaume)

Com a morte de Caio Graco, em 121 A.C, torna-se explícita a divisão da política e do Senado romanos em duas facções: a maioria conservadora aglutinou-se em um grupo que foi batizado de “Optimates” (literalmente, os “Muito Bons” ou “Melhores”), que entendiam que a República deveria ser conduzida pelo Senado, mantendo-se as leis e costumes tradicionais (mos maiorum) em benefício dos cidadãos romanos tradicionais, sobretudo os Nobres; Por sua vez, aqueles que defendiam que o poder deveria emanar dos Concílios da Plebe, limitando o poder do Senado, que a cidadania deveria ser estendida aos povos aliados e que a maior parte dos recursos do Estado deveria ser empregada em benefício dos cidadãos mais pobres, foram chamados de “Populares“. Optimates e Populares não devem, entretanto, ser considerados partidos políticos no sentido moderno.

Death_of_Gaius_Gracchus(A morte de Caio Graco, pintada em 1792. Por François Topino-Lebrun )

A partir de então, a oposição entre Optimates e Populares, quase sempre degenerando em violência e guerra civil, marcaria a política romana até o fim da Guerra Civil do 2º Triunvirato e a ascensão de Augusto como primeiro imperador, em 27 A.C.

Quinze anos depois da morte de Caio Graco, a questão social, segundo Plutarco, havia piorado ainda mais e as reformas dos Gracos tinham sido abandonadas pelo Senado. Aumentava sem parar a massa de proletários expulsos de suas terras e cada vez mais o número de cidades e territórios controlados pelo Estado Romano, sem que os aliados tivessem qualquer participação política e gozassem dos inúmeros direitos conferidos aos cidadãos romanos.

Esse período é marcado pela ascensão de Gaius Marius (Caio Mário), um brilhante general sem estirpe que conseguiu ser eleito Cônsul, tornando-se um “Homem Novo” (Novus Homo). Mário era hostil ao Senado e  também é considerado um integrante da facção dos Populares.

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A principal reforma de Mário, fundamental na História de Roma, foi reorganização do Exército Romano. Até então, somente cidadãos livres que fossem proprietários de terras podiam ser recrutados como soldados, já que eles deveriam pagar o seu próprio uniforme e equipamento. Porém, o aumento demasiado dos latifúndios cultivados por escravos levou a uma grande diminuição do número de pequenos proprietários rurais (proletarização), prejudicando o recrutamento militar. Mário instituiu que o Estado deveria pagar um salário e fornecer armas e vestuário para os soldados, criando um exército permanente que recrutaria, basicamente, os proletários urbanos de Roma e das cidades italianas. Terminava, assim, a era da milícia de cidadãos e inaugurava-se a era do primeiro exército profissional moderno da História.

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( Um típico legionário romano após as Reformas de Mário. Os soldados ficariam conhecidos como “Mulas de Mário” por terem que carregar todo o seu equipamento)

Mário era casado com Júlia, irmã do pai de Caio Júlio César, e portanto, era tio deste. Ele seria cônsul por 7 vezes, entre 107 A.C. e 86 A.C., frequentemente entrando em atrito com a maioria conservadora do Senado Romano. Mário seguiu uma linha de atuação política que pode ser descrita como “populista”.

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(Denário de Mário. Difícil não associar a imagem do agricultor lavrando o solco com as políticas defendidas pelos Populares)

Os Optimates encontraram seu campeão na pessoa do ultraconservador e tradicionalista Lucius Cornelius Sulla (Lúcio Cornélio Sila), membro de uma antiga família patrícia, ele também um prestigiado general.

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O conflito entre Mário e Sila ecoava a disputa entre os Populares e os Optimates. No momento em que ambos disputaram importantes comandos militares, Mário, ilegalmente, ignorou a designação de Sila pelo Senado, levando este a se insurgir militarmente.

Após derrotar as forças de Mário em combate, Sila marchou contra a própria Roma e entrou, à testa de suas forças, no “Pomerium” (fronteiras sagradas da cidade de Roma), o que era expressamente proibido pela lei romana. Ele foi o primeiro general romano a ousar praticar esse fato, considerado como um grande sacrilégio. Sila perseguiu os partidários de Mário e revogou a maior parte dos seus atos. Mas Mário conseguiu escapar e se exilou na África.

Entretanto, Sila foi obrigado a deixar Roma e ir combater Mitridates, poderoso Rei do Ponto, na atual Turquia, que havia ordenado o massacre de milhares de civis romanos naquela região (as fontes relatam que 80 mil romanos foram mortos).

Aproveitando a situação, Mário voltou da África e conseguiu assumir de novo o governo, sendo eleito para o seu sétimo consulado. Mas,  sendo ele já velho e estando muito doente, Mário acabou morrendo no meio do primeiro mês de seu mandato, em 86 A.C., aos 70 anos de idade, deixando no poder seu colega de consulado, Cina, um correligionário político que apoiava a facção dos Populares. Deve-se observar que esta última volta ao poder de Mário também foi marcada pela perseguição sangrenta aos seus inimigos políticos.

Com a morte de Mário, Cina ficou no poder, ocupando sucessivos consulados até 84 A.C,. Nesse período, ele adotou medidas que faziam parte do ideário dos Populares, como por exemplo, a concessão de cidadania aos italianos, até ele ser morto pelas suas próprias tropas quando elas se preparavam para ir lutar contra Sila.

Neste mesmo ano de 84 A.C., Caio Júlio César casou-se com Cornélia, filha de Cina, o que demonstra a plena inserção do jovem sobrinho de Mário na facção dos Populares.

Quando Sila retornou à Itália e assumiu o governo, sendo nomeado Ditador, ele desencadeou uma grande perseguição aos simpatizantes de Mário e da facção dos Populares, chegando a executar 1.500 nobres e 9 mil pessoas no total, além de exilar outros tantos. E um dos que tiveram que fugir para preservar a vida foi o jovem Júlio César. Logo, familiares e conhecidos do rapaz apelaram a Sila para que ele fosse poupado. Porém, quando o Ditador exigiu que César se divorciasse de Cornélia,  aquele galantemente recusou-se. Sila, mesmo assim, vencido pela insistência dos pedidos, concordou em poupar o rapaz, não sem antes advertir aos senadores:

Há vários Mários em César“…

Como Ditador, as leis e decretos instituídos por Sila ordenaram a restauração dos privilégios do Senado e a restrição do poder legislativo dos Concílios e dos Tribunos da Plebe, que foram transformados praticamente em meros defensores públicos de indivíduos de condição humilde. Ele também regulamentou o Cursus Honorum e o número das magistraturas, aumentando em consequência o número de senadores de 300 para 600 membros, com a finalidade de cimentar a coesão da elite e proporcionar que o Senado pudesse executar mais funções administrativas. Por fim, ele também declarou MárioInimigo do Estado“, mandando banir quaisquer referências à sua memória (damnatio memoriae).

Surpreendentemente, acreditando ter restaurado o poder do Senado, Sila decidiu voluntariamente se retirar da vida pública e voltar para suas propriedades, em 81 A.C, falecendo, provavelmente de cirrose ou úlcera gástrica, em 78 A.C.

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Mesmo que essa não fosse a intenção deles, na prática, Mário e Sila implodiram as fundações da República Romana, pois as ações de ambos demonstraram que as assembleias políticas, tanto a dos plebeus (Concílios), quanto a dos nobres (Senado), não tinham mais o poder de solucionar e arbitrar os conflitos de interesses entre os grupos políticos e as classes sociais.

Agora, o palco estava montado para um tipo diferente de espetáculo e para  que os atores pudessem atuar nos papéis principais,  não bastava que eles tivessem talento político, mas, além disso,  deveriam também ser bons generais…

De fato, após Mário e Sila,  seria aos generais ambiciosos que as duas facções políticas do Senado iriam recorrer, e as disputas políticas  agora seriam resolvidas no campo de batalha.

Mário de fato criara as condições para isso, ao conceber um exército de soldados profissionais recrutado entre proletários desempregados que deviam seu emprego e sua lealdade ao Cônsul que os recrutara. E fora Sila o primeiro a se valer de um exército como esse para entrar em Roma à força com o objetivo de derrubar o governo, realmente criando o precedente, e também inaugurando o costume de recompensar regiamente os seus veteranos com as terras confiscadas dos adversários políticos proscritos.

Um desses generais ambiciosos foi Gnaeus Pompeius (Cneu Pompeu). O Senado, sem dispor de meios militares, já tinha se valido do jovem e talentoso general para derrotar as forças contrárias a Sila , na Sicília e na África, e depois as de Lépido, que pretendia restaurar o poder dos Tribunos e realizar outras reformas de interesse dos Populares.

Pompey the Great. Marble. Beginning of the 1st century A.D. Inv. No. 733. Copenhagen, New Carlsberg Glyptotek.(Cabeça de mármore de Pompeu, o Grande)

Em um indício de que a ordem tradicional estava com os dias contados, o Senado, quebrando todos os precedentes, concedeu a Pompeu a honra de celebrar dois triunfos, apesar de ele  sequer ser um magistrado e, em 70 A.C, ignorando todas as normas, ele foi nomeado Cônsul, embora não fosse um senador.

Ironicamente, Pompeu conseguiu compelir o Senado a fazer isso aliando-se com ninguém menos do que os Populares, os quais, até então, ele havia perseguido. Para obter o apoio deles, Pompeu comprometeu-se a revogar os decretos de Sila que retiraram os poderes dos Tribunos da Plebe e dos Concílios.

Foi nessa época que Caio Júlio César entrou oficialmente na política, e a sua adesão à causa dos Populares ficou explícita quando, em 69 A.C, ele, no funeral de sua tia Júlia, a viúva de Mário, pronunciou um discurso fúnebre, onde exaltou a memória de seu tio Mário, discursando a frente de uma imagem do grande general falecido, coisa que não era vista em Roma desde o governo de Sila,  por força da damnatio memoriae.

E foi, de fato, como integrante da facção dos Populares que César seguiu a carreira política, em um período de acirramento da oposição entre eles e os Optimates. O astuto César, contudo, também procurou mostrar-se palatável para os conservadores, como ilustra o fato dele, tendo recém ficado viúvo de Cornélia, ter se casado com Pompéia, que era neta de ninguém menos do que Sila, o inimigo figadal dos Populares, sendo que o casamento ocorreu em 67 A.C.

Contudo, para ganhar eleições e atingir os cargos mais altos, César, como todos os demais políticos romanos, precisava de muito dinheiro, e ele já tinha se endividado bastante para se eleger para o cargo de Questor. Portanto, de muita utilidade tornou-se a sua recente amizade com o aristocrata Marco Licínio Crasso, um dos homens mais ricos de Roma, que disputava a primazia política com Pompeu (eles tinham sido colegas de consulado, em 70 A.C.). Note-se que Crasso também apoiara, como Cônsul, a restauração dos poderes dos Tribunos da Plebe, apoio este que o afastou da facção dos Optimates, aproximando-o dos Populares.

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(Cabeça de mármore de Crasso, foto de Gautier Poupeau )

Com o apoio financeiro de Crasso, César conseguiu se eleger para o cargo de Edil, em 65 A.C. Os Edis eram magistrados encarregados de vários serviços urbanos em Roma, incluindo a promoção de jogos públicos, e César aproveitou este cargo para agradar a Plebe promovendo espetáculos suntuosos, o que obviamente tornou-o muito popular. Começava, assim, a nascer a política do “Pão e Circo” (“Panem et Circensis“)…

Depois de exercer a edilidade, César gastou rios de dinheiro na eleição para o prestigioso posto de “Pontifex Maximus“, o chefe dos cultos oficiais do Estado e, apesar dele não ser o favorito, César venceu o certame, em 63 A.C.

Então, a política em Roma tinha-se tornado altamente violenta e corrupta, e a República em frangalhos convidava os homens ambiciosos a tentarem a sorte na disputa pelo poder supremo, o que, obviamente, encontrava obstáculo no tradicionalismo da elite senatorial. Para ocupar os cargos mais importantes, contudo, os sequiosos de poder ainda precisavam de votos.

O aristocrata Lúcio Sérgio Catilina foi um desses políticos que, através da demagogia e dos subornos, atraía uma grande clientela e seguidores. Como ele não conseguira ser Cônsul, por ter sido barrado por Marco Túlio Cícero (ele também um “Novus Homo“), Catilina uniu-se à facção dos Populares e passou a defender uma nova lei agrária ampliando a Lex Sempronia .

Cicero_(1st-cent._BC)_-_Palazzo_Nuovo_-_Musei_Capitolini_-_Rome_2016(Busto de Cícero, nos Museus Capitolinos, foto de José Luiz Bernardes Ribeiro)

Contudo, não obtendo sucesso nas eleições de 63 A.C, apesar de apoiado por Crasso e César, Catilina arquitetou uma conspiração visando suprimir o próprio Senado Romano, em uma trama que foi descoberta e denunciada publicamente por Cícero em sessão do Senado, em suas famosas “Catilinárias“. Desse modo, Catilina foi facilmente derrotado e morto pelas tropas legalistas.

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César, embora fosse aliado de Catilina, não teve participação na conspiração, chegando até a informar Cícero da trama, Não obstante,  César defendeu, nos debates no Senado, que os conspiradores presos não deviam ser executados, como queriam Cícero e o senador ultraconservador Catão, uma vez que a lei não previa nem a pena de morte, nem que a competência para o julgamento fosse do Senado, para aquele tipo de caso. Mesmo assim, os conspiradores foram executados, por ordem ou instigação de Cícero, alegando-se motivos de “Segurança do Estado“.

Apesar da conspiração de Catilina ter colocado em risco a sua carreira política, César conseguiu se eleger para o cargo de Pretor, em 62 A.C. E, segundo a lei romana, após cumprir este mandato, ele fazia jus a ser indicado para governar uma das províncias romanas, no seu caso, a Hispânia, como Propretor. Os costumes romanos admitiam que o governador ficasse com uma parte dos tributos arrecadados dos súditos provinciais, sem falar do produto do que fosse saqueado das tribos ainda rebeldes, desde que não houvesse muitos exageros no processo. Assim, após assumir o governo da província, César, após derrotar várias tribos celtiberas, aproveitou esta oportunidade para conseguir o dinheiro necessário para pagar a sua legião de credores em Roma.

Entrementes, naquele ano, após uma prolongada e vitoriosa campanha militar no Oriente, Pompeu voltou à Roma, e, para a surpresa geral de todos, ele entrou na Cidade como um simples cidadão e sem exército. Provavelmente, foi um gesto politicamente calculado para obter o apoio do Senado e do povo, demonstrando ser ele, Pompeu, um cidadão cumpridor da lei e dos costumes tradicionais.

Contudo, Pompeu não gozava nem da simpatia dos conservadores, devido à revogação das leis de Sila que restringiam o poder tribunício, nem dos Populares, dado o seu histórico de lutas contra os mesmos. Assim,  o Senado decidiu não recompensar os soldados veteranos de Pompeu com terras, deixando-o muito contrariado.

Assim, quando César voltou à Roma, no ano 60 A.C, ele viu a oportunidade de conjugar sua ambição com as dos dois homens mais poderosos de Roma: Pompeu e Crasso, pois ambos estavam insatisfeitos com os Optimates que controlavam o Senado. Eles, então, formaram a aliança política que ficou conhecida como o “Primeiro Triunvirato”.

A aliança política foi cimentada pelo casamento de Pompeu com Júlia, filha única de César. Vale ressaltar que, mesmo se tratando de um casamento arranjado, e apesar da diferença de idade entre os noivos (ele tinha 47 anos e ela, 24), os esposos acabariam se apaixonando, e,  anos mais tarde, Pompeu sofreria muito com a morte prematura de Júlia, no parto de uma menina que também não sobreviveu).

Com a eleição de César para Cônsul, em 59 A.C. o Triunvirato assumiu o poder de fato em Roma. Apesar da violenta oposição dos Optimates, liderados por Catão, o Jovem, e do seu colega de consulado, Bíbulo, também integrante da facção, César conseguiu aprovar uma legislação dando terras na Campânia para os veteranos de Pompeu. Ele também conseguiu perdoar um terço das dívidas de impostos dos agricultores. Por sua vez, o seu correligionário Clódio conseguiu aprovar uma lei especial determinando o exílio de Cícero, como punição pela execução dos conspiradores de Catilina sem julgamento. Essa mesma lei também designou o adversário Catão para governar a distante Chipre, o que equivalia, na prática, a um exílio, afastando-o do Senado. Contudo, muitas dessas iniciativas de César foram executadas em desacordo com a lei romana, algo que o deixaria vulnerável à retaliação dos adversários, em tempos futuros.

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(O chamado “Busto de Tusculum” é considerado pelos especialistas o único busto existente que foi produzido durante a vida de César)

Os Triúnviros também decidiram dividir o governo das províncias romanas entre si e, então, César escolheu controlar as Gálias Cisalpina e Narbonense, além da Ilíria, autonomeando-se Procônsul, com mandato de 5 anos, a partir de 58 A.C.

A escolha da Gália tinha um motivo: César constatara que lhe faltavam as glórias militares de Pompeu , que já havia derrotado Sertório, na Espanha, a rebelião do gladiador Espártaco (junto com Crasso), na Itália, os piratas do Mediterrâneo e o rei Mitridates, anexando o Reino do Ponto à Roma, entre outras vitórias, as quais lhe valeram o apelido de Magno, ou “o Grande” e, ainda, em menor escala, os louros de Crasso.

Assumir o governo da Gália permitiu a César arquitetar o plano que lhe colocaria no mesmo plano dos seus colegas: A anexação da Gália Transalpina, povoada pelos temidos gauleses, que, séculos atrás, em 390 A.C, tinham até saqueado e incendiado Roma. O pretexto foi a necessidade de fazer um ataque preventivo, devido ao fato de tribos aliadas dos romanos terem sido atacadas por gauleses e germânicos que, supostamente, pretendiam migrar para a Gália Cisalpina, ou seja, a parte da Itália que fica ao sul dos Alpes.

Em nove anos de guerra, César derrotou completamente os gauleses e anexou toda a Gália. Para alguns, essa teria sido a maior contribuição de César à História, pois, sem isso, não existiria a França e, consequentemente, a Europa e sua civilização seriam completamente diferentes.

A vitória na Gália deu a César não somente uma aura de herói nacional e de general brilhante, mas também o exército mais disciplinado e bem treinado de Roma, além de muito dinheiro proveniente dos saques, afinal os gauleses eram um povo muito próspero.

Mas, enquanto César lutava na Gália, ele certamente mantinha um olho nos assuntos domésticos…

Com efeito, em Roma, o cimento que mantinha unido o Triunvirato começava a amolecer…Pompeu, aparentemente se ressentia do brilho das conquistas militares de César, as quais ameaçavam ofuscar as suas próprias. Talvez por isso, ele manobrou para trazer Cícero de volta à Roma e os dois acabaram se aproximando.

Em 57 A.C., Pompeu recebeu poderes extraordinários do Senado para cuidar do abastecimento de cereais de Roma, o que o colocava em uma excepcional posição em relação aos outros dois colegas, no que tange a capacidade de angariar as simpatias da Plebe. Já as relações entre Crasso e Pompeu, que nunca tinham sido boas, também iam de mal a pior.

Os nobres conservadores aproveitaram as dissensões entre os Triúnviros e conseguiram eleger um dos seus integrantes como Cônsul para o ano de 56 A.C. Por sua vez, Cícero questionou a legalidade da nomeação de César para o governo da Gália.

Percebendo o risco ao Triunvirato e a si mesmo, César deixou o comando da campanha da Gália com seus lugares-tenentes e convocou Pompeu e Crasso para uma reunião em Lucca, cidade romana na fronteira da Itália com a Gália Cisalpina, em abril de 56 A.C.

Nesse encontro, que passaria à História como a “Conferência de Lucca“, César, Pompeu e Crasso resolveram as suas diferenças, estabelecendo que os dois últimos seriam candidatos a Cônsul no ano seguinte, com o apoio de César. Assegurada a eleição, os novos cônsules promulgariam uma lei prorrogando o mandato do proconsulado de César na Gália por mais 5 anos, sendo que, após o término do consulado de Pompeu e Crasso, eles seriam designados procônsules, respectivamente da Hispânia e da Síria, também pelo prazo de 5 anos.

O adversário de Crasso e Pompeu na eleição para o consulado de 55 A.C, era Lúcio Domício Enobarbo, um fervoroso membro da facção dos Optimates, casado com a irmã do líder Catão, o Jovem. Ele prometeu proibir a prática de compra de votos dos eleitores e revogar o comando de César na Gália. Porém, no dia da eleição, ele foi expulso à força do Campo de Marte pelos partidários dos Triúnviros, com o reforço de mil soldados enviados por César, uma ação que garantiu a vitória de Crasso e Pompeu.

Os novos cônsules executaram os termos do acordo da Conferência de Lucca, através da “Lex Pompeia Licinia“, garantindo a recondução de César para a Gália e o proconsulado da Síria e da Hispânia para Crasso e Pompeu, respectivamente.

O destino, porém, abalaria a recém obtida estabilidade do 1º Triunvirato: no ano de 54 A.C, Júlia, a filha de César e esposa de Pompeu, morreria no parto e, em 53 A.C, Crasso, também ele sedento de obter a glória militar contra os Partos, seria capturado e morto por estes, após a desastrosa Batalha de Carras, no que foi a pior derrota militar sofrida pelos romanos desde a 2ª Guerra Púnica, 150 anos antes…

O Triunvirato estava, assim acabado, antes de tudo, matematicamente, pela simples eliminação de Crasso. Agora, só restavam César e Pompeu. E não havia também mais a doce Júlia, a quem  o seu pai e o seu esposo eram muito devotados e a quem eles deviam muito a existência de uma relação cordial entre ambos.

Enquanto isso, desde 55 A.C, em campanha na Gália, César realizava algumas das maiores façanhas militares que Roma já vira. Ele havia derrotado um enorme horda de tribos germânicas, os Usipetes e Tencteris, e, na fuga, os sobreviventes derrotados, inclusive mulheres e crianças, totalizando cerca de meio milhão de bárbaros, foram aniquilados, a maioria, acredita-se, afogados, após tentarem cruzar a confluência entre os rios Reno e Mosela. Depois, César mandou construir uma espetacular ponte de madeira sobre o largo Reno e cruzou, pela primeira vez na História de Roma, aquele largo rio, marchando, também de forma inédita, por dezoito dias na margem oriental. Ainda naquele ano, César cruzou o Canal da Mancha e invadiu, também pela primeira vez na História, a Britânia, ficando lá também por  18 dias. E ele ainda voltaria àquela Ilha no ano seguinte.

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Pompeu, apesar de ser governador da Hispânia, permanecera todo esse tempo em Roma, recebendo as notícias das façanhas de César e sendo assediado pelos partidários da nobreza conservadora no Senado, sobretudo após a morte de Crasso, em 53 A.C. Ele certamente não se opôs que o ferrenho opositor de César, Lúcio Domício Enobarbo conseguisse se eleger Cônsul no ano anterior.

Mais sintomaticamente ainda, Pompeu recusou a proposta de César para que ambos celebrassem uma nova aliança matrimonial, na qual Otávia, sobrinha-neta de César (e irmã do futuro imperador Otávio Augusto) lhe foi oferecida em casamento. Para reforçar ainda mais o distanciamento, Pompeu, expressando sua evidente oposição à proposta de renovação da aliança política com o seu colega, casou-se, em 52 A.C., com Cornélia Metela, filha de Quinto Cecílio Metelo Cipião, que era um dos mais empedernidos membros da facção dos Optimates e, portanto, um inimigo figadal de César.

Em 52 A.C, as lutas políticas na cidade de Roma degeneraram em anarquia, com repetidos motins nas ruas, culminando no assassinato do ex-Tribuno da Plebe e membro dos Populares, Clódio, violências que resultaram inclusive no incêndio do edifício da Cúria do Senado e impediram a eleição dos cônsules naquele ano (Clódio, a bem da verdade, era um dos políticos que mais se valeram do uso político da violência das verdadeiras gangues de rua em que os “collegia”- corporações de ofício de Roma, haviam se tornado).

A situação caótica em Roma obrigou o Senado à medida extrema de nomear Pompeu como único Cônsul para aquele ano. Imediatamente, Pompeu convocou seus soldados e restaurou a ordem na Cidade. Evidenciando ainda mais a sua aproximação com os Optimates, Pompeu nomeou seu sogro Metelo Cipião como seu colega para o Consulado de 52 A.C.

Embora Pompeu ainda resistisse a tomar a iniciativa do rompimento com César, qualquer um que tivesse o mínimo discernimento político perceberia que isso era apenas uma questão de tempo. Na verdade, o motivo pelo qual Pompeu e o Senado somente ainda não haviam tomado nenhuma medida mais efetiva contra César era porque, ainda naquele ano de 52 A.C, estourara uma rebelião geral das tribos gaulesas, recém conquistadas. Unidos e liderados por Vercingetórix, os gauleses preparavam-se para um confronto definitivo contra as legiões romanas na cidade fortificada de Alésia.

Alesia_8.jpg(Reconstrução das fortificações construídas por César em torno de Alésia, foto de Christophe.Finot )

Contudo, em um mês, César não apenas sitiou Alésia, defendida por 80 mil guerreiros, como ainda derrotou a força gaulesa de 100 mil homens que tentava furar a praça sitiada, que, por sua vez,  tinham cercado os romanos. Foi indubitavelmente uma vitória espetacular que levou o prestígio de César às alturas. Apesar da fonte original sobre a campanha ser os próprios “Comentários” de César, estes são geralmente aceitos como verídicos e acurados, sendo respaldados pelas escavações arqueológicas.

Finalmente, portanto, no final de 51 A.C, após quase 10 anos de luta, César havia submetido a Gália até o Reno, equivalendo à maior parte do território da atual França.

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Terminada a luta na Gália, a facção dos Optimates no Senado imediatamente tratou de tentar decretar o o fim do comando de César para aquela campanha. E tanto os senadores conservadores quanto o próprio César sabiam que, despido ele da condição de governador e sem cargo público, César perderia a sua imunidade, sendo muitos os pretextos para processá-lo e condená-lo, na mais suave das hipóteses, ao exílio.

map 1280px-Europe_-50.png(Terminada a conquista da Gália, o mapa mostra o território da República Romana, em amarelo. Mapa de Cristiano64 / Coldeel)

Com efeito, a iminente perda da imunidade tornava-se aflitiva para César. Assim, em 50 A.C, enquanto ainda na Gália, ele tentou, sem sucesso, concorrer ao cargo de Cônsul, mas sem, contudo, abandonar o Proconsulado da Gália e continuando a comandar seus exércitos na Província, o que era proibido por lei.

César, não obstante as manobras dos Optimates, contava com o apoio do Tribuno da Plebe Caio Escribônio Curião, que, segundo alegava-se, teria sido subornado  por ele mediante o pagamento de suas dívidas por César e, de fato, Curião vetava todos os projetos de lei que pretendiam substituir César na Gália ou terminar o seu mandato.

Curião inclusive propôs uma solução conciliatória entre os partidários de César e a facção dos Optimates: César renunciaria ao comando da Gália, desde que ele recebesse permissão para concorrer às eleições para o Consulado de 49 A.C., com a condição de que Pompeu também renunciasse ao seu comando militar. Essa proposta até encontrou alguma simpatia no grupo de senadores moderados, mas o núcleo conservador do Senado, liderado pelo Cônsul Caio Cláudio Marcelo, se opôs ferozmente a ela e obstruiu a votação de qualquer proposta no mesmo sentido.

Com certeza, os senadores mais sensatos perceberam o risco iminente de uma guerra civil e apoiavam uma solução de compromisso. Assim, quando, na Sessão do Senado do dia 1º de dezembro de 50 A.C., o Cônsul Cláudio Marcelo reapresentou a proposta de substituição de César na Gália, eles, que inicialmente haviam aprovado a remoção, acabaram aprovando, por 370 votos a favor e apenas 22 contra, a emenda substitutiva apresentada por Curião, a qual estabelecia que também o comando de Pompeu deveria ser encerrado.

Marcelo, porém, recusou-se a aceitar o resultado da votação da emenda de Curião e, alegando falsamente que César havia cruzado os Alpes com 10 legiões para invadir a Itália, declarou dissolvida a Sessão, antes da aprovação do texto. Em seguida, rompendo com a ordem institucional, Marcelo e alguns integrantes da facção conservadora partiram para a residência de Pompeu para tentar convencê-lo a assumir o comando de todas as tropas na Itália, implorando que o velho general fizesse o que fosse necessário para “salvar a República”. Pompeu concordou, mas ressalvando que ele faria isso, “a não ser que fosse encontrado um caminho melhor”.

Curião, cujo mandato de Tribuno e consequente inviolabilidade terminariam em poucos dias, prudentemente decidiu fugir de Roma e ir ao encontro de César, que se encontrava em Ravena, fora dos limites da Itália Romana, acompanhado apenas da XIII Legião. Apesar de instado por Curião a marchar sobre Roma, César decidiu fazer uma nova proposta de acordo: Ele seria nomeado governador da Ilíria e manteria sob seu comando apenas uma legião, até a eleição para o consulado de 49 A.C. No entanto, essa proposta foi terminantemente recusada pelos Cônsules.

No dia 1º de janeiro de 49 A.C., César tentou sua última cartada no Senado para manter a sua carreira política: Valendo-se do novo Tribuno da Plebe, Marco Antônio, que, da mesma forma que o seu colega, Longino, eram fiéis colaboradores de César, ele enviou, por Curião, uma carta ao Senado para ser lida em sessão por Antônio. Todavia, quando Antônio começou a ler a carta, após o trecho em que César reiterava a disposição de somente deixar a Gália e desmobilizar o seu exército caso Pompeu fizesse o mesmo, ele foi interrompido aos gritos pelos senadores conservadores, e não conseguiu continuar.

Roman male portrait bust, so-called Marcus Antonius. Fine-grained yellowish marble. Flavian age (69—96 A.D.). Rome, Vatican Museums, Chiaramonti Museum.(Busto de Marco Antônio)

Metelo Cipião, o sogro de Pompeu, propôs que fosse fixada uma data para que César fosse demitido do comando na Gália e dispensasse suas tropas, após o que ele seria considerado “Inimigo Público“. A moção foi aprovada, e os únicos votos contrários foram de Curião e do senador Célio. Muito provavelmente, a explicação para a diferença entre esta votação e aquela ocorrida um mês antes foi a maciça presença de tropas de Pompeu nas cercanias de Roma…

Mas o Tribuno Marco Antônio vetou a moção e apresentou nova proposta para que fosse incluído na lei que o comando de Pompeu também se encerraria na mesma data, sendo essa idéia novamente bem recebida. Porém, novamente, o cônsul Lúcio Cornélio Lêntulo, apoiado por Metelo, dissolveu a Sessão antes que a lei com as modificações propostas  por Antônio fosse aprovada.

Em 7 de janeiro de 49 A.C, o Senado Romano aprovou o “Senatus Consultum Ultimus” declarando Lei Marcial e nomeando Pompeu como “Protetor de Roma“, isto é, na prática, um Ditador. Como era esperado, essa lei também declarou o término do mandato de César na Gália, ordenando que o mesmo entregasse o comando das suas tropas.

Em seguida, os soldados de Pompeu ocuparam Roma e Pompeu expediu uma nota dizendo que “não poderia garantir a segurança dos Tribunos“…

Marco Antônio e Cássio entenderam bem o recado e fugiram de Roma, indo ao encontro de César. Quando lá chegaram, César percebeu que não havia mais espaço para manobras políticas ou negociações. Ele teria que optar entre obedecer o Senatus Consultum Ultimus, e arriscar a sorte como um cidadão comum exposto à sede de vingança dos inimigos, ou tornar-se um rebelde e um fora-da-lei.

Na verdade, como frequentemente acontece nas guerras, revoluções ou golpes de Estado, as partes rivais sempre alegam um bom pretexto para legitimar a sua ação. O fato é que a fuga dos Tribunos da Plebe, ou, como é mais correto, a expulsão deles de Roma, violando a sua sacrossantidade legal, deu a César um bom pretexto para ele para começar a Guerra Civil.

Rimini088(Coluna de César, em Rimini, erigida para marcar o local onde César discursou para as suas tropas exortando-as a entrarem com ele na Itália. Foto de Georges Jansoone (JoJan)

No dia 10 de janeiro de 49 A.C. (data estimada), César, comandando apenas a XIII Legião, cruzou um riacho chamado Rubicão, que marcava a fronteira da Itália com a Gália Cisalpina. Ao entrar na Itália, ele violou a lei romana e era, tecnicamente, autor de um crime de alta traição. Em suas próprias palavras:

A sorte está lançada!” (alea iacta est).

Começava a Guerra Civil!

Menander_and_New_Comedy_Masks_-_Princeton_Art_Museum.jpg(Relevo do autor grego Menandro, com máscaras de teatro de Comédia. César era grande apreciador da obra de Menandro e a frase “A sorte está lançada”, ou, mais precisametne, “os dados estão lançados’, foi uma citação de uma das peças dele  – Deipnosophistes, livro XIII)

GUERRA CIVIL

Durante a confrontação política que antecedeu a travessia do Rubicão por César, os Optimates cometeram alguns graves erros de avaliação:

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Por exemplo, eles superestimaram a capacidade militar de Pompeu na Itália: Embora Pompeu tenha retido sob seu controle, irregularmente, duas legiões recrutadas por César no sul da Península, elas não eram páreo para a experimentada XIII Legião que lutara com ele na Gália.

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Da mesma forma, os Optimates também levaram em conta a seu favor o fato de que  Pompeu comandaria, teoricamente, todas as forças romanas na Hispânia, África, Egito, Grécia e Oriente, em número bem superior às 8 legiões que César tinha na Gália,

E os Optimates também confiavam  no histórico dos muitos sucessos militares de Pompeu.

Por último, os Optimates acreditavam que, pelo fato de César ter violado a proibição da lei romana de entrar na Itália com um exército,  a maior parte da população da Itália ficaria contra ele, que, ao menos formalmente, tinha se tornado um criminoso.

Mas eles não poderiam estar mais errados….

As legiões da Gália, calejadas por dez anos de guerra cruenta contra os gauleses, naquele momento eram, provavelmente, os melhores soldados do Mundo Antigo; Pompeu era um renomado general, mas estava ficando velho e não comandava uma legião, quanto mais uma campanha, havia vários anos; Ademais, ao contrário do que os Optimates esperavam, no trajeto do norte da Itália em direção a Roma, César foi aclamado triunfalmente em diversas cidades, cujas  respectivas guarnições acabavam por juntar-se ao seu exército.

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Entretanto, nem tudo ia bem para César, pois, durante o avanço sobre Roma, o seu ajudante em mais de 10 anos de luta, o hábil general Labieno, desertou e uniu-se às forças de Pompeu. Não se sabe o motivo exato da defecção de Labieno, sendo que as explicações mais plausíveis são que ele seria um legalista que via a insurreição de César como criminosa ante as leis da República ou, então, o fato de ele estar decepcionado por não ter recebido maiores recompensas por seus serviços, como por exemplo, um consulado, ficando, ainda,  talvez enciumado pela predileção que César demonstrava em relação a Marco Antônio.

Pompeu, mesmo assim, concluiu que a sua melhor estratégia era fugir para a Grécia, onde ele poderia reunir um grande exército e, já que controlava a frota romana, interceptar os carregamentos de cereais para Roma, causando ali uma fome cuja responsabilidade seria atribuída a César, enfraquecendo-o perante a Plebe.

Embora esse não fosse um plano ruim, o simples fato de ele ter que abandonar a Itália, demostra o despreparo com que Pompeu foi pego pela rápida ação de César. E isto apesar de terem sido Pompeu e os Optimates que deram o ultimato ao adversário, motivo pelo qual seria de se esperar que eles, ao menos deveriam estar de antemão preparados.

A maior parte da facção dos Optimates acompanhou Pompeu em sua retirada estratégica da Itália . Portanto, ao contrário de César, que era o indiscutível comandante supremo de suas forças, Pompeu, por diversas vezes, tinha que escutar e levar em consideração os palpites militares dos senadores mais proeminentes, muitos deles sem qualquer experiência bélica…

Não é nosso propósito, todavia, aqui narrar pormenorizadamente os eventos da Guerra Civil, mas apenas traçar um quadro explicativo dos eventos que degeneraram no desfecho sangrento dos Idos de março de 44 A.C.

Senhor da Itália, César, ainda desejoso de respeitar as formalidades legais, convocou os senadores que tinham permanecido em Roma para um encontro, realizado em 1º de abril de 49 A.C, mas muito poucos apareceram. Consta que, ofendido com as ausências dos senadores, César teria dito:

Convidei-os para se reunirem a mim na tarefa de governar Roma. Porém, se a timidez faz com que recuem diante da tarefa, não os incomodarei mais. Governarei sozinho“.

Logo depois, porém, César conseguiu convencer (ou compelir) o Senado a autorizar o uso de um fundo de reserva para construir uma frota. Todavia, em uma demonstração de que seus oponentes ainda tinham poder na Cidade, a medida foi vetada pelo Tribuno Lúcio Cecílio Metelo. Não obstante, César ignorou o veto, entrou em Roma e, ameaçando executar Metelo, lançou mão dos recursos, manu militari.

César, então, partiu para enfrentar o exército de Pompeu na Hispânia.  Este, porém, naquele momento encontrava-se na Grécia, reunindo outro exército. Por isso, César assinalou:

Parto para a Espanha para enfrentar um exército sem general e logo seguirei para enfrentar um general sem exército.”

Em Ilerda, na Espanha, César cercou o exército de Pompeu, que se rendeu em 02 de julho de 49 A.C. A partir desta vitória, César principiou um comportamento em relação aos inimigos vencidos que ele repetiria muitas outras vezes durante a Guerra Civil e que se tornaria uma de suas marcas registradas causando admiração em muitos escritores antigos: a “Clementia” de César (clemência), poupando e anistiando os adversários. Com efeito, em Ilerda,  César concedeu aos inimigos derrotados que não quiseram se juntar ao seu exército, a opção de retornarem para casa como civis.

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Esse era um comportamento tão incomum na antiguidade que o próprio exército de César, pela primeira vez desde que ele se tornara um general, amotinou-se. O motivo da revolta era que os seus soldados esperavam saquear os pertences dos vencidos. O motim, contudo, foi reprimido sem muito custo.

Voltando a Roma, César, em apenas 11 dias de estadia na capital, foi nomeado Ditador por um curto período, o que lhe permitiu convocar a eleição para o consulado de 48 A.C, para o qual ele, naturalmente, se candidatou. Ele aproveitou também para colocar seus correligionários em todos os cargos importantes e, além disso, promulgou várias leis, entre elas uma dispondo sobre o pagamento de dívidas, permitindo que fossem dados bens em pagamento, dado o grande número de romanos endividados em função das turbulências políticas. Finalmente, César também restituiu os direitos civis aos cassados durante o governo de Sila e conseguiu que Pompeu fosse declarado fora-da-lei.

De volta à campanha de César na Guerra Civil, seguiram-se o quase-desastre em Dirráquio e a surpreendente vitória em Farsália, em 09 de agosto de 48 A.C., na qual César lutou em desvantagem numérica de 1 x 3 e onde muitos Optimates foram capturados, apesar de Pompeu ter conseguido fugir para o Egito, onde acreditava que iria ser acolhido pelo faraó Ptolomeu XIII, supostamente seu aliado.

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Porém, o jovem faraó, aconselhado a cair nas boas graças do vencedor, mandou prender Pompeu e decapitá-lo, enviando a cabeça dele para César. Quando ele, perseguindo o adversário, chegou em Alexandria, a História registra que César, ao receber, chocado, a cabeça de Pompeu, chegou a chorar, penalizado com o destino do seu ex-genro. E, em verdade, parece mesmo que nunca chegara a haver inimizade pessoal entre os dois grandes homens de Roma.

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Em Farsália, César pode exercer novamente a política de clemência para os adversários. Antes da luta, ele distribuiu aos seus oficiais uma lista dos partidários de Pompeu que deveriam ser poupados. Entre os nomes, estava o de Marco Júnio Bruto, um senador da facção dos Optimates e filho da amante de César, Servília Caepionis, que era irmã de Catão, o Jovem, o senador que pode ser considerado o verdadeiro ideólogo dos Optimates no Senado.

Seguiu-se o envolvimento de César na disputa pelo trono do Egito e o romance com Cleópatra VII, que resultaria no nascimento de seu único filho homem, chamado de Ptolomeu XV Filópator Filómetor César e que foi apelidado de “Cesarion“.

TRIUNFO E PODER ABSOLUTO

#César #Caesar #idosdemarço

Morto Pompeu, o seu único rival pelo poder supremo, César celebrou os seus Triunfos com uma magnificência jamais vista em Roma. Nos festejos pela vitória na Gália, que tinham sido adiados pela Guerra Civil, vinha, no final da procissão triunfal, Vercingetórix acorrentado (o altivo chefe gaulês seria executado após a cerimônia, como era o costume romano). Houve, ainda, uma batalha naval simulada em um lago artificial e 400 leões foram soltos em um Circo, para serem mortos por quem se dispusesse a pagar uma taxa. E em seu novo Fórum construído perto do antigo, César, presença de Cleópatra e Cesarion, desvendou uma bela estátua de ouro de sua amante e rainha do Egito, ao lado do Templo de Vênus Genitrix,  a deusa que a gens Júlia reivindicava como sendo sua ancestral.

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(Denário de prata de 48 A.C.,  com a imagem de Vercingetórix acorrentado, é a única imagem do líder gaulês capturado e executado após o Triunfo de César, em Roma)

Provavelmente esses festejos foram a maior exibição de propaganda política em toda a História de Roma. Mas os Optimates ainda não tinham sido completamente derrotados… Na África, um exército de 40 mil soldados liderado pelos velhos inimigos Catão, o Jovem e Metelo Cipião, e pelo inimigo recente, Labieno, aos quais se juntaram os filhos de Pompeu, contando com a ajuda do rei Juba, da Numídia, ainda constituía uma ameaça respeitável.

César, após as celebrações de seu triunfo, partiu de Roma e sitiou a cidade de Tapsos, na atual Tunísia. Os Optimates foram forçados a aceitar a batalha campal e o exército de César mais uma vez venceu, em 06 de abril de 46 A.C. Os Númidas fugiram e os 10 mil soldados inimigos que quiseram se render foram mortos pelos soldados de César. Esse massacre não era compatível com a política de clemência que ele vinha adotando desde o início da Guerra Civil. A explicação, segundo Plutarco, é que César, durante a Batalha de Tapsos, perdeu os sentidos devido a um ataque, supostamente epilético, e o desfecho sangrento teria acontecido à sua revelia.

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Catão, o Jovem e Metelo Cipião conseguiram fugir de Tapsos. O primeiro, que não era militar e não participara da batalha, se refugiou em Útica, mas acabou cometendo suicídio ao saber do resultado da luta. Consta que César, ao ser informado da morte de Catão, disse:

“Eu lamento a sua morte, Catão, assim como você teria lamentado se eu tivesse poupado a sua vida”.

Cipião também cometeu suicídio, após ser interceptado pela frota de César, quando tentava chegar com um navio até a Espanha, onde esperavam obter auxílio dos numerosos veteranos de Pompeu que viviam naquela Província.

Vale observar que, especialmente Catão, o Jovem, ao tirar a própria vida, tornou-se um símbolo para os Optimates de uma vida virtuosa e de sacrifício em prol da República. Posteriormente, já durante o Império, o nome dele seria sempre evocado como exemplo pelos senadores insatisfeitos como o Principado e por aqueles que , no futuro, conspirariam contra o despotismo dos imperadores.

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(Busto de bronze de Catão, o Jovem, achado na cidade romana de Volubilis, no Marrocos)

Após essa vitória, César foi nomeado Ditador da República Romana por 10 anos, algo inédito. Ele também foi eleito Cônsul para o ano de 46 A.C. (o que se repetiria nos dois anos seguintes).

O último bastião da resistência dos Optimates era agora a Espanha, onde os filhos de Pompeu, Cneu Pompeu e Sexto  Pompeu, valendo-se do grande número de soldados veteranos do falecido general assentados naquela província, conseguiram reunir um grande exército (incluindo duas legiões que tinham desertado do exército de César). Com isso, eles tomaram toda a Espanha, forçando as legiões leais a César a se refugiarem na cidade de Oculbo. De lá, os sitiados pediram ajuda a César.

César, cuja qualidade mais impressionante como general talvez fosse a velocidade com que conseguia que suas tropas se deslocassem, marchou os 2.400 km que separavam Roma de Oculbo em menos de 1 mês, e, com essa aparição súbita, conseguiu levantar o sítio.

Em 17 de março de 45 A.C, na planície de Munda, após uma feroz batalha que durou 8 horas, o exército de César saiu vencedor. Ele assim definiria a Batalha de Munda, segundo suas próprias palavras:

Inúmeras vezes, eu lutei pela vitória; em Munda, eu lutei pela minha vida !

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Trinta mil soldados inimigos foram mortos na batalha, incluindo o general Labieno. Um dos filhos de Pompeu, Cneu, foi capturado um mês após e morto. Já Sexto, sem exército, somente seria morto por Marco Antônio dez anos mais tarde.

César agora era o senhor absoluto de Roma, para onde voltou para implementar seus projetos de governo, que tinham sido interrompidos pela necessidade de combater os últimos focos de resistência senatorial em Tapsos e Munda.

Inicialmente, derrotados os inimigos, é preciso reconhecer que César, ao contrário de Mário e Sila – que tinham sido os únicos que haviam chegado perto de deter tamanha parcela de poder na República e que se aproveitaram disso para eliminar os desafetos – perdoou seus inimigos e permitiu que eles participassem da administração pública e retornassem ao Senado, sendo os exemplos mais ressonantes, os adversários Cícero, Cássio, Marco e Décimo Bruto.

E o que César tencionava fazer com tanto poder?

César nunca escreveu, ou foi registrado para a posteridade, quais eram os seus planos para a República: se pretendia aboli-la ou meramente reformá-la. Ele também não teve tempo, se é que esse era mesmo o seu propósito, de estabelecer para si uma nova posição como monarca de Roma. Somente podemos inferir, das medidas que tomou após alcançar o poder absoluto, algumas linhas gerais:

Uma diretiva inequívoca de seus planos é dada pelo aumento do número de Senadores e renovação da composição do Senado Romano (que havia sido muito desfalcado pelos anos de guerra civil). César aumentou o número de senadores para 900 e nomeou senadores oriundos de províncias fora da Itália, especialmente gauleses. Esse propósito é corroborado pela permissão de que legionários fossem recrutados nas províncias. De fato, César criou legiões compostas por gauleses, espanhóis e súditos do Oriente. Para isso, a cidadania romana e latina foi concedida amplamente na Sicília, na Gália, na Hispânia e até na Criméia.

Tudo isso constitui um indício de que o plano de César era criar um Império Romano universal e mais inclusivo, e não apenas manter uma dominação de Roma e das cidades italianas sobre colônias ao longo do Mediterrânea, em uma dominação etnicamente latina sobre súditos de outras raças. Nisso, talvez César até evocasse os desígnios de Alexandre, o Grande, um herói por ele admirado desde a juventude,  e cujos atos, inclusive os seus casamentos, manifestavam o propósito do rei macedônio de criar um império mundial que unisse  os gregos e outros povos orientais, como os persas e os hindus.

Podemos cogitar que César não tencionava restaurar a velha ordem republicana. Provavelmente, o Senado não seria mais a instância máxima de poder, funcionando como um conselho consultivo e, em seu governo, não apenas os Optimates, mas também os Populares, não encontrariam lugar, pois, já no início de sua Ditadura, os Concílios da Plebe atuavam apenas para referendar as leis promulgadas pelo Ditador, sem maior debate ou discussão. Nessa linha, César havia abolido os “collegia“, as associações corporativas que participavam politicamente das eleições, e que tinham se transformado em milícias violentas utilizadas para influir nos pleitos.

Vale citar como exemplo o fato de César ter sido o primeiro romano a exercer, concomitantemente, diversas magistraturas republicanas, que podem ter sido formalmente mantidas, mas cuja concentração nas mãos de um único homem era um fato inédito e que constitui mais um indício de que se tratava de uma nova ordem.

Assim, César, além de Ditador pelo longo prazo de dez anos (e em 44 A.C, ele seria nomeado “Ditador Perpétuo“) era, respectivamente: Cônsul e Pontífice Máximo (Chefe da religião) e, além disso, em mais uma inovação, mesmo sem ser Tribuno da Plebe, ele recebia, anualmente, o “Poder Tribunício“, ou seja, detinha todos os poderes inerentes a essa magistratura, inclusive o poder de votar todos os atos administrativos ou legislativos, bem como a “sacrossantidade” daqueles magistrados. Essa fórmula, diga-se de passagem,  seria mantida por Augusto e todos os imperadores que o sucederam. Devemos, contudo, observar que, de certa maneira, a menção expressa ao Poder Tribunício não deixava de ser um reconhecimento de que o Poder emanava do Povo.

O virtual fim da República também foi evidenciado pelas leis que deram a César:

a) o novo cargo de “Prefectus Morum“, encampando as atribuições dos Censores. Com esse poder, César podia nomear ou expulsar do Senado quem ele julgasse que obedecesse, ou não, os costumes morais romanos;

b) o direito de nomear os governadores das províncias para um mandato com prazo fixo, e de recomendar ao povo, para referendo, a metade dos magistrados em Roma;

c) o direito de declarar guerra e de celebrar a paz;

d) o direito de votar em primeiro lugar no Senado (assumindo, na prática, o lugar do “Princeps Senatus“, distinção conferida ao Senador mais antigo ou eminente e que seria a inspiração para Augusto batizar a posição ocupada pelo Imperador, dando o nome pelo qual o novo regime por ele inaugurado seria conhecido: “Principado“);

e) o direito perpétuo de comandar o Exército (“Imperium“, atributo do “Imperator“, ou comandante,  e que, futuramente, também acabaria batizando o governante do novo regime que seria inaugurado por Augusto);

f) o direito de dispor dos fundos públicos; e

g) o direito de promulgar Éditos,  que deveriam ser confirmados sem discussão pelo Senado.

Entretanto, devemos anotar que alguns historiadores não têm certeza de que César pretendesse que as reformas supracitadas fossem permanentes, considerando o fato de que ele, antes de morrer, planejava uma grande campanha militar contra a Pártia. Assim,  talvez essas reformas se destinassem apenas a assegurar a estabilidade do governo, enquanto ele estivesse ausente na planejada guerra.

César também reorganizou a estrutura dos governos municipais das cidades italianas e parece que ele tencionava uniformizar os diferentes sistemas de governo por elas adotados. Considerando que ele fundou diversas cidades, inclusive refundando as destruídas Cartago e Corinto, é possível supor que César compreendia que a força do Estado Romano repousava nas cidades e talvez ele até imaginasse o futuro império como uma confederação de cidades autônomas unidas sobre a autoridade de um governo central. Notavelmente, nas renascidas Cartago e Corinto, César determinou que fossem prestigiadas as populações nativas.

O Ditador César promoveu a reforma de várias leis penais, aumentando a punição para crimes violentos. Ele também instituiu um sistema uniforme de taxas alfandegárias e promulgou uma lei proibindo a exibição de luxo excessivo em público, uma preocupação recorrente dos governos desde quando o enriquecimento da aristocracia romana após as Guerras Púnicas atingiu níveis astronômicos. César também iniciou um vasto programa de obras públicas, visando aproveitar a numerosa mão de obra ociosa do proletariado romano, que aumentou muito após a desmobilização das legiões que se verificou com o fim da Guerra Civil.

O poder absoluto de César e a aura de semi-divindade que ele assumira perante boa parte dos olhos da opinião pública acarretaram que lhe fossem concedido um sem número de honrarias inauditas, como por exemplo: O 5º mês do calendário romano, “Quintilis“, foi rebatizado de “Julius” (Julho), em sua homenagem. Aliás, a reforma do antiquado e astronomicamente impreciso calendário romano, pelo muito mais acurado “Calendário Juliano“, foi uma das grandes contribuições de César para a Civilização Ocidental. E, pela primeira vez na História de Roma, a efígie de um governante foi cunhada nas moedas, a dele. Finalmente, muitos templos e estátuas foram erguidos em sua homenagem.

Surpreendentemente, César, apesar do pouco tempo decorrido desde a derrota militar da facção aristocrática do Senado, em Munda. mantinha seus exércitos fora da Itália e, na cidade de Roma,  ele era protegido apenas por uma pequena guarda pessoal. E mesmo este destacamento foi afastado pouco antes de março de 44 A.C.

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(Busto de César, retratado em seus últimos anos)

OS IDOS DE MARÇO – O ASSASSINATO DE CÉSAR

Nos meses anteriores ao assassinato de César, as fontes antigas narram um certo descontentamento com o seu comportamento soberbo e arrogante, ao menos por parte da elite governante. Suetônio narra que surgiram rumores acerca de conspirações para derrubá-lo e que tais informações tinham chegado anteriormente aos ouvidos de César, que se limitou apenas a advertir publicamente que ele  tinha ciência das mesmas.

A conspiração que resultou no assassinato de César, como não é de surpreender, em vista de tudo que narramos desde a primeira parte de nosso artigo, nasceu no seio dos remanescentes da facção dos Optimates no Senado Romano. O número de conspiradores, nas fontes antigas, varia entre 60 e 90 senadores. Os líderes da conspiração eram Caio Cássio Longino, Marco Júnio Bruto e Décimo Bruto.

Marco Júnio Bruto era filho do pai do mesmo nome e, supostamente, ele era descendente direto do fundador da República Romana, Lúcio Júnio Bruto, que expulsara o último rei de Roma e se tornaria o 1º Cônsul da República. Bruto era filho de Servília Caepionis, que também era meia-irmã de Caio Cássio Longino e que , desde longa época, era notória amante de ninguém menos do que  Júlio César. Alguns suspeitavam até que Bruto pudesse ser filho ilegítimo de César, mas isto é altamente improvável, pois ele tinha apenas 15 anos quando Bruto nasceu. Além disso, Bruto era genro do finado Catão, o Jovem, que se suicidara em Útica após uma vida de lutas contra César. A presença de Bruto entre os líderes da conspiração conferia legitimidade ideológica e histórica ao movimento.

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Bruto sempre foi um integrante da facção dos Optimates no Senado Romano e acompanhou Pompeu na Guerra Civil. Poupado por ordens expressas de César na Batalha de Farsália, Bruto, em seguida, foi admitido no círculo mais íntimo do Ditador e nomeado por ele Governador da Gália, em 46 A.C.

O historiador Nicolau de Damasco, uma das fontes antigas que escreveu em época mais próxima aos Idos de Março de 44 A.C, narra que o círculo de conspiradores foi crescendo, atraindo pessoas que tinham sido prejudicadas pela guerra civil com a perda de seu patrimônio ou de sua posição social, bem como antigos aliados de César que se sentiam preteridos em favor de inimigos perdoados, e, não menos importante, aqueles idealistas que achavam que César estava destruindo a República ou, ainda,  pessoas incomodadas com a idolatria a César.

Não há dúvida de que a Guerra Civil havia deixado feridas abertas na aristocracia romana. Temos um exemplo parecido com o que ocorreu após a Guerra Civil Americana (1861-1865). Aliás, o assassino de Abraham Lincoln, John Wilkes Booth, assumidamente reivindicou ter se inspirado em Bruto e, de fato, após atirar em Lincoln, ele repetiu a frase célebre atribuída a Bruto na cena do assassinato de César, em meio às punhaladas:

Sic semper tiranus!” (Sempre assim com os tiranos!).

A aristocracia senatorial romana era um clube fechado de umas centenas de famílias que se consideravam fundadoras da República, as únicas com direito a exercer o governo, em benefício não só da nação, mas também em seu próprio proveito e, não menos importante, julgavam-se merecedoras de especiais deferência e privilégios. Não é a toa que a carreira política do homem de Estado romano era chamada de “Cursus Honorum“… O direito a essas “honras” era inerente ao papel do aristocrata na sociedade romana. Em muitos aspectos, e não apenas o semântico, em Roma, “Respublica“, na prática, assumia um significado mais parecido com “Cosa Nostra“…

Como vimos no início de nosso estudo, essa aristocracia já havia reagido com violência à perspectiva de perda de seus poderes e privilégios,  inclusive assassinando os líderes da facção dos Populares que ameaçaram a sua posição privilegiada, como ocorreu com Tibério e Caio Graco.

Indiscutivelmente, a nomeação de César como Ditador Perpétuo, em 15 de fevereiro de 44 A.C deve ter desencadeado a conspiração para assassinar César.  E, neste mesmo mês, ocorreu o episódio que muitos historiadores consideram que forneceu o pretexto para o assassinato do Ditador – a acusação de que César pretendia ser coroado Rei.

Com efeito, foi na festa religiosa da Lupercalia que Marco Antônio, um dos celebrantes, completamente nu, colocou, por três vezes, um diadema de ouro sobre a cabeça de César, e sendo, por três vezes, repelido pelo Ditador. É bem possível que esse ato de Marco Antônio tenha sido encenado de comum acordo para demonstrar que César não tencionava ser coroado rei. Há quem acredite, por outro lado,  que aquela encenação foi um ardil para sondar o sentimento popular,  um teste para verificar se a massa reprovaria o gesto. O  fato é que alguns na multidão realmente aclamaram César como rei, o que deve ter aterrorizado os Optimates.

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Diante disso, a decisão de executar a conspiração de matar César dependia apenas de se decidir sobre o dia, o local e o modo. Os conspiradores logo concordaram que, considerando que César comparecia ao Senado sem escolta, lá seria o local mais fácil de executar o Ditador, além de  poderem  facilmente ocultar os punhais sob suas togas, traje obrigatório para o comparecimento às sessões.

No dia 15 de março de 44 A.C, César acordou e ficou em dúvida se deveria ir ao Senado. Sua esposa Calpúrnia tinha tido um pesadelo em que aparecia uma poça de sangue e implorou para que César ficasse em casa. César. que não era nada supersticioso, decidiu ir. O adivinho Surinna também teria lhe advertido para ter cuidado com os Idos de  Março, mas César fez pouco caso. E, já na rua, em direção ao Senado, ele chegou a receber um rolo de papiro em que alguém delatava a conspiração, porém, guardou o manuscrito sem ler.

A reunião do Senado ocorreria em um recinto existente no Odeon do magnífico teatro construído por Pompeu, chamado de “Cúria de Pompeu”, já que a Cúria tradicional do Senao tinha sido danificada nos tumultos da guerra civil e estava em reparos.

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 (A Cúria de Pompeu, local onde César foi assassinado, é o edifício em forma de templo no meio do semicírculo do Teatro.Computer generated image of the Theatre of Pompey by the model maker, Lasha Tskhondia – L.VII.C)

No caminho para a Cúria de Pompeu, César estava acompanhado de Marco Antônio, mas os conspiradores, sabendo que ele era um sujeito parrudo e com experiência militar, acharam que ele poderia dificultar o assalto a César, e, assim, conseguiram distraí-lo a pretexto de um assunto e separá-lo do Ditador. César entrou sozinho na Cúria.

Os conspiradores esperaram César se sentar e se aproximaram, fingindo apresentar alguns requerimentos, até que o senador Cimber, em um sinal previamente combinado, arrancou a túnica do pescoço do Ditador, que, chocado, reclamou:

“Por quê? Isto é uma violência!”

Então o Senador Casca desferiu o primeiro golpe, mas, devido ao seu nervosismo, este apenas pegou de raspão no pescoço de César, que se virou e segurou a mão de Casca, dizendo:

Casca, seu vilão, o que estás fazendo?

Aterrorizado, Casca gritou, em grego :

Adelphi, boethei !” (“Irmãos, ajuda!”)

Nesse momento, vários conspiradores atenderam ao apelo de Casca, desferindo sucessivos golpes de adaga em César. Segundo Suetônio, quando César percebeu que Bruto estava entre os que o atacavam, ele falou, em grego:

Kai su, teknon?” (“Tu também, criança?”)

Segundo os relatos, César tentou se evadir dos seus atacantes como um leão ferido, mas, quando percebeu que estava perdendo forças, ele deixou-se cair e apenas cobriu a sua cabeça, tentando morrer com alguma aparência de dignidade (durante toda a sua vida, César sempre fora preocupado com sua imagem).

Bruto, em seguida, tentou fazer a sua proclamação, mas todos os senadores, aterrorizados, fugiram da Cúria.

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Foram contadas 23 feridas de punhaladas em César. De acordo com Suetônio, na opinião de um médico, que, pode-se dizer, autopsiou César, apenas uma delas, no peito, tinha sido fatal.

O corpo de César, ironicamente, ficou caído aos pés da estátua de seu maior rival, Pompeu, e jazeu ensanguentado por três horas no chão frio da Cúria, até ser recolhido por seus escravos.

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Bruto e os demais conspiradores se auto-intitulariam “Os Libertadores“. Eles tentaram imediatamente alguma conciliação com os Populares, oferecendo a preservação de todos os atos de César como Ditador e o direito a um funeral público.

Porém, na cerimônia pública de cremação, no Fórum Romano, um discurso de Antônio inflamou a massa e uma turba saiu à caça de qualquer um que fosse suspeito de participação na conspiração contra César.

Os “Libertadores” tencionavam restaurar a República, mas em três anos, todos eles seriam mortos, e o resultado da ação deles foi apenas causar outra Guerra Civil, primeiro para vingar César e depois para decidir quem seria o seu sucessor. É mais ou menos como se alguém tivesse tentado fazer recuar os ponteiros do relógio da História, mas apenas conseguisse segurá-los por 14 anos (até a vitória de Otaviano, o futuro Augusto, em Actium, em 31 A.C.)

moeda

(Denário cunhado pelos “Libertadores” ostentando os punhais usados para assassinar César, o tradicional capacete associado no Mundo Antigo aos que lutam pela Liberdade e a inscrição abreviada “Idos de Março)

A República já havia morrido antes de César lutar e vencer a Guerra Civil e obter o poder supremo, porém seu sucessor Augusto, seria mais astuto em preservar algumas aparências republicanas e conceder algumas deferências à classe senatorial.

(Templo do Divino Júlio, construído no exato local onde o corpo de César foi cremado, no Fórum Romano. A 2ª foto mostra o estado atual da ruína, com os restos do altar. Normalmente, mesmo nos dias atuais,  sempre há flores colocadas  nas ruínas do altar).

Como brilhantemente constatou Cícero, nos meses que se seguiram ao assassinato:

Matamos o Rei, mas o Reino continua entre nós“.

FIM

O RETRATO PERDIDO DE CLEÓPATRA

Por Eduardo André Lopes Pinto

“E alguns dizem que o braço de Cleópatra parecia ter dois pequenos e indistintos furos; E parece que Augusto também acreditava nisto. Porque, no seu triunfo, uma imagem da própria Cléopatra, com a serpente agarrada nela, foi levada na procissão”

Plutarco, “Vida de Antônio”, 86. pág. 139

“Entre outros detalhes, uma efígie da falecida Cléopatra foi levada em cima de um divã, com o objetivo que, de um certo modo, ela também, juntamente com outros cativos e com seus filhos, Alexandre, também chamado de Helios, e Cleópatra, também chamada de Selene, fosse parte do espetáculo e um troféu na procissão”.

Cássio Dião, “História de Roma”, Livro LI, 21, 8

“Ele (Júlio César) colocou uma bela imagem de Cleópatra ao lado da deusa, que continua ali até hoje”. 

Apiano, “As Guerras Civis”, Livro II, 102

1- A morte de Cleópatra

Segundo os historiadores Plutarco e Cássio Dião – que são as melhores e mais completas fontes antigas sobre a vida de Cleópatra e Marco Antônio – depois que a rainha egípcia cometeu o seu dramático suicídio, no dia 10 de agosto de 30 A.C., em Alexandria, não se tinha certeza exata acerca da maneira pela qual ela se matou: alguns defendiam a versão que acabou ficando célebre: a da morte por envenenamento decorrente de uma picada de uma serpente (uma áspide trazida escondida dentro de um cesto ou um jarro de água por um súdito fiel, quando ela encontrava-se cativa no próprio palácio, à disposição do futuro imperador Augusto); enquanto outros inclinavam-se a favor do relato de que ela havia intencionalmente se ferido com seu próprio alfinete de cabelo, envenenado. Vejamos os textos:

“Porém, quando ela retirou alguns figos e a viu, ela disse: “Veja. aí está”, e, descobrindo o braço, ela o manteve firme para a mordida. No entanto, outros dizem que a serpente foi cuidadosamente selada em um jarro de água e que enquanto Cleópatra a estava atiçando e irritando com uma roca dourada, ela deu o bote e se enrolou no braço dela. Mas a verdade sobre este fato ninguém conhece; pois também se disse que ela carregava um veneno em um alfinete de cabelo oco que mantinha escondido sob o seu cabelo; mesmo assim, nenhuma marca ou outro sinal de veneno apareceu no corpo dela. Ademais, nem mesmo o réptil foi visto dentro do quarto, embora pessoas tenham relatado que viram alguns rastros dela perto do mar, para onde as janelas do quarto davam vista”.

Plutarco, Vida de Antônio, 86, 1-3

Ninguém sabe com clareza de que modo ela morreu, porque as únicas marcas no corpo dela eram pequenas picadas no braço. Alguns contam que ela aplicou em si mesma uma serpente que lhe foi trazida em um jarro de água, ou talvez escondida no meio de algumas flores. Outros declaram que ela se inoculou com um grampo, que ela usava para prender o cabelo, com algum veneno possuidor de certas propriedades que, em circunstâncias usuais, não causaria qualquer dano ao corpo, mas, se entrasse em contato com uma gota de sangue apenas, o destruiria indolor e silenciosamente.; e que, antes desse momento, ela o usava no cabelo como de costume, mas então ela teria feito um leve arranhão no seu braço e mergulhou o grampo no sangue. Dessa forma ou de modo similar, ela morreu, e com ela mais duas criadas.(…). Quando César soube da morte de Cleópatra, ele ficou chocado, e não apenas foi ver o corpo morto dela, mas também valeu-se de remédios e dos Psylli, na esperança que ela pudesse ressuscitar. Esses Psylli são homens, porque nenhuma mulher nasce na tribo deles, e eles tem o poder de sugar o veneno de qualquer réptil, se deles se fizer uso imediatamente depois que a vitima tiver morrido; e eles não são afetados quando mordidos por tais criaturas”.

Cássio Dião, “História de Roma”, Livro LI, 14, 1-4

Estrabão, em sua obra Geografia, escrita em 7 A.C., ao falar de Alexandria, também alude aos relatos sobre a maneira que Cleópatra morreu:

“Porém, pouco depois, ela também se matou secretamente, enquanto estava presa, pela picada de uma serpente, ou (porque existem dois relatos), ao se aplicar um unguento venenoso;”

“Geografia, Livro XVII, 10

Também o historiador romano Floro, escrevendo por volta do ano 110 D.C., menciona a causa da morte de Cleópatra como sendo picada de serpentes, no plural:

 “Ali, tendo colocado uma veste elaborada ao lado de seu amado Antônio, em um sarcófago preenchido com ricos perfumes, e aplicando serpentes em suas veias, ela morreu assim como se estivesse dormindo.”

Epítome da História de Roma, Livro II, capítulo XXI

Finalmente, o célebre médico e filósofo greco-romano, Galeno, também discorreu sobre a morte de Cleópatra, em sua obra De Theriaca ad Pisonem (atribuída pela maioria dos estudiosos a ele), que teria sido escrita por volta do ano 200 D.C.:

“E eles relatam que ela chamou as suas duas servas de maior confiança cuja tarefa era cuidar dos seus trajes com vistas a exibir a sua beleza, chamadas Naeira e Charmione. Naeira arrumou seu cabelo de uma maneira apropriada e Charmione cortou as unhas dela e então ela ordenou que a cobra fosse trazida escondida no meio de algumas uvas e figos, de modo que os guardas não percebessem. Ela, então, experimentou a cobra nestas mulheres para ver se ela era capaz de matar rapidamente, e, depois disso, ela se matou com o restante do veneno, e eles contam que Augusto ficou completamente estupefato, tanto pelo fato das servas amarem tanto Cleópatra a ponto de morrerem com ela, como pelo fato dela ter preferido morrer de uma maneira nobre a viver como uma escrava. E eles contam que ela foi encontrada com a sua mão direita segurando o diadema, provavelmente para que, até mesmo naquela altura, fosse evidente para os observadores que ela tinha sido rainha.”

Galeno, De Theriaca ad Pisonem, pág. 93, em https://ore.exeter.ac.uk/repository/bitstream/handle/10871/13641/LeighR.pdf?sequence=1

Ainda de acordo com Plutarco, a explicação da causa da morte de Cleópatra como tendo sido a picada de uma serpente foi aceita pelo próprio Otaviano (Augusto) como verdadeira, o que é demonstrado pelo fato de que na procissão triunfal pelas ruas de Roma, assim que Augusto retornou de Alexandria, foi exibido um retrato da rainha egípcia no qual a mesma era retratada com o réptil em seu braço:

“E alguns dizem que o braço de Cleópatra parecia ter dois pequenos e indistintos furos; E parece que Augusto também acreditava nisto. Porque, no seu triunfo, uma imagem da própria Cleópatra, com a serpente agarrada nela, foi levada na procissão.

Plutarco, “Vida de Antônio”, 86. pág. 139

Não obstante, modernamente, alguns autores questionam a possibilidade de que cobras ou serpentes tenham sido responsáveis pela morte de Cleópatra, entendendo que os répteis dessa família que são capazes de matar com rapidez e sem causar muito sofrimento e danos extensos ao corpo da vítima seriam grandes demais para caber em um cesto ou jarro. Um estudo compreensivo sobre essas hipóteses pode ser visto em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33868954/. Há até alguns autores modernos que defendem que na verdade a rainha teria sido executada por Augusto e a história do suicídio dela inventada pelos romanos para não prejudicar a imagem pública do futuro imperador.

Como transcrevemos no início deste artigo, tanto Plutarco, que escreveu sua obra por volta do ano 100 D.C. como Cássio Dião, cuja obra data aproximadamente do ano 230 D.C, ao relatarem os eventos que se seguiram à morte de Cleópatra, mencionam a existência de uma representação da rainha egípcia, um retrato ou imagem, que foi levada na procissão triunfal de Augusto, em Roma.

Vale observar que o historiador romano Apiano, em sua História de Roma, no livro acerca das Guerras Civis, escrito por volta do ano 160 D.C., ao relatar os acontecimentos referentes ao triunfo de Júlio César celebrado 26 de setembro de 46 A.C, também menciona a existência de uma imagem ou retrato da rainha egípcia, que foi depositada pelo Ditador no recém-construído Templo de Vênus Genitrix:

“Ele erigiu um templo à Vênus, sua ancestral, como ele havia prometido fazer quando estava para dar início à Batalha de Farsália, e ele estabeleceu uma área em torno do templo para ser um fórum para o povo romano, não como um mercado para a compra e venda de mercadorias, mas sim como um espaço para negócios de interesse público, como as praças públicas dos Persas, onde o povo se reúne para demandar por justiça ou aprender sobre as leis. Ele colocou ali uma bela imagem de Cleópatra ao lado da deusa, que permanece ali até os nossos dias.

“As Guerras Civis”, Livro II, 102

Entretanto, a imagem acima referida por Apiano, por óbvio, foi produzida mais de 15 anos antes da morte de Cleópatra e há relatos de que se tratava de uma estátua de ouro, conforme é mencionado por Cássio Dião, em sua História de Roma, Livro LI, 22, 3.

O fato é que, depois da Antiguidade, durante muitos e muitos séculos não se ouviu mais qualquer referência a imagens de Cleópatra.

2- Uma polêmica seiscentista sobre uma certa pintura de Cleópatra

Contudo, em 1646, o escritor e polímata inglês Sir Thomas Browne publica sua Pseudodoxia Epidemica (com o título alternativo de “Investigações acerca das Muitas Crenças Recebidas e Verdades Vulgarmente Presumidas“), onde, em seu capítulo XII, ele avalia uma pintura de Cleópatra que teria visto, ou mais provavelmente, ouvido falar, em seus dias:

“Sobre a pintura descrevendo a morte de Cleópatra.

O quadro referente à morte de Cleópatra com duas víboras ou serpentes venenosas nos seus braços, ou seios, ou ambos, requer consideração: porque nisto a coisa em si é questionável, nem é indiscutivelmente certa a maneira pela qual ela morreu. Plutarco, em Vida de Antônio, abertamente afirma que ninguém soube de que modo ela morreu; porque alguns afirmaram que ela morreu por meio de um veneno que ela sempre trazia em um pequeno alfinete de cabelo oco, no cabelo. Além disso, nunca se encontrou alguma serpente no lugar em que ela morreu, embora duas de suas criadas tenham morrido junto com ela; somente foi dito que duas quase imperceptíveis picadas foram encontradas no braço dela; que foi tudo em que César (Otaviano) baseou-se para presumir a forma pela qual ela morreu. Galeno, que foi contemporâneo de Plutarco, relata duas versões: Que ela se matou com a picada de uma serpente, ou perfurou o seu braço e derramou veneno dentro. Estrabão que viveu antes de ambos também tinha duas opiniões: que ela morreu pela mordida de uma serpente ou por meio de um unguento venenoso.

Nós poderíamos questionar o comprimento das serpentes, que por vezes são descritas como bastante curtas; Enquanto a Chersaea ou serpente-terrestre que a maioria cogita que ela tenha usado, tem mais do que quatro cúbitos de comprimento (N.T: cerca de 2 metros). O número delas também não é indiscutível: Pois, enquanto geralmente duas são descritas, Augusto (conforme relata Plutarco) levou em seu triunfo a imagem de Cleópatra com somente uma serpente em seu braço. No que concerne às duas picadas, ou pequenas marcas no braço dela, elas não inferem a pluralidade de serpentes, pois, como a víbora, a áspide tem duas presas, por meio das quais ela deixa atrás essa marca, ou dupla perfuração.

E por último, nós poderíamos questionar o lugar (da picada); porque alguns a situam no seio dela, o que, não obstante não será consistente com a História; e o mesmo foi bem observado por Petrus Victorius. Mas aqui é fácil de ver o equívoco: sendo o costume em condenados à pena capital aplicá-las no peito, como determinou o autor de De Theriaca ad Pisonum, uma testemunha ocular de Alexandria, onde Cleópatra morreu: Eu contemplei, disse ele, em Alexandria, o quão rápido essas serpentes privam da vida um homem; porque, quando alguém é condenado a este tipo de morte, se a intenção deles é trata-lo favoravelmente, isto é, despachá-lo rapidamente, eles prendem uma áspide no peito dele, e ordenando-lhe que caminhe, ele naquele momento morre desta forma”.

Sir Thomas Browne, Pseudodoxia Epidemica, capitulo XII

As dúvidas levantadas por Sir Thomas Browne foram refutadas pelo escocês Alexander Ross, um escritor e polemista que também foi capelão real do rei Charles I, da Inglaterra, na obra que Arcana Microcosmi, escrita em 1651, cujo título alternativo é “Ou os segredos ocultos do corpo humano descobertos. Em um duelo anatômico entre Aristóteles e Galeno no que diz respeito às suas partes. Como também pela descoberta das estranhas e maravilhosas doenças, sintomas e acidentes do corpo humano“:

“Há algumas outras pinturas que ofendem os olhos do Doutor; como : 1. A de Cleópatra com duas serpentes. Suetônio fala de uma, Floro de duas, tal como Virgílio.

Nec dum etiam geminos à tergo respicit angues”.

E assim diz Propercio

“Brachia spectavia sacris admorsa colubris.”

Consequentemente, ele deveria tê-los reprovado, ao invés do pintor; ele também deveria ter brigado com Augusto, que dos orificíos que ele encontrou nos braços dela, concluiu que ela tinha sido picada por serpentes, e, por conseguinte usou os Phylli para sugar o veneno. Mas, tenha sido ela picada por uma, duas ou nenhuma serpente, a pintura é inofensiva, e de acordo tanto com os Historiadores quanto com os Poetas. “

Alexander Ross, Arcana Microcosmi, capítulo XI
Alexander Ross, Engraving by Pierre Lombart after unknown artist – National Portrait Gallery, UK[1], Public Domain,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7251976by; after Pierre Lombart; Unknown artist,print,published 1653

Inobstante, não fica muito claro se essa polêmica entre os dois eruditos britânicos acerca da consistência histórica do retrato em questão refere-se a uma obra artística contemporânea de ambos, ou se eles discutiam sobre uma pintura mais antiga.

3- Aparece um retrato, supostamente autêntico, de Cléopatra

Todavia, quase duzentos anos depois, o editor de livros inglês Simon Wilkin editou uma coletânea das obras completas de Sir Thomas Browne (entre 1835 e 1836). Em uma nota ao acima transcrito capítulo XI da Pseudodoxia Epidemica de Browne, relativo à pintura de Cleópatra, Wilkin alude a uma então recente descoberta de uma pintura da rainha egípcia, a qual teria ficado escondida por séculos e teria sido pintada por um pintor da Grécia Antiga, fazendo uso da desaparecida técnica de Encáustica (pintura esta que, tendo em vista o fato de ter sido descoberta no início do século XIX, obviamente, não poderia ser a mesma que foi objeto dos comentários de Browne e Ross no século XVII):

“Uma antiga pintura encáustica de Cleópatra foi recentemente descoberta, e retirada de uma parede, na qual esteve escondida por séculos, e tida como sendo um retrato de verdade, pintado por um artista grego. Foi feito sobre uma lousa azul. O colorido é fresco, muito vívido. Ela é representada aplicando áspide no seio dela”. Extrato de uma carta de Paris; Philadelphia Gazette, 27 de novembro de 1822 – Jeff.

A notícia precedente refere-se com toda probabilidade à pintura que foi trazida para a Inglaterra pelo seu detentor, Signor Micheli, que a avaliou em 10 mil libras esterlinas. Ele providenciou que fosse feita uma gravura dessa pintura, que eu tive a oportunidade de ver, nas mãos de R.R. Reinagle, Escudeiro, Real Academia (Reinagle, embora de fato tenha sido membro da Real Academia, até ser exonerado, em 1848, era também um falsário e é obvio que se deve ter isto em mente – J.E) e por sua gentileza eu também fui agraciado com esta muito completa e interessante história e descrição desta curiosa obra de arte, de acordo com minha solicitação:

“17, Fitzroy Square, o2 de dezembro de 1834.

“Senhor, – A pintura foi feita sobre uma espécie de lousa de mármore negra – estava quebrada em dois ou três lugares. Disse o Cavalheiro Micheli, o proprietário, que a trouxe de Florença para este país, que ela foi encontrada nas cavidades de uma grande adega, onde outros fragmentos da Antiguidade foram depositados. Que ela estava em uma caixa de madeira muito grossa quase que totalmente deteriorada. Que ela chegou às mãos de um negociante, através do mordomo da casa ou do palácio onde ela foi encontrada, tendo vendido uma parte da dita madeira insignificante na qual a pintura foi encontrada Em geral, ela estava incrustada com algum tipo de tártaro e verniz decomposto, que foi limpo por certos químicos eminentes de Florença. Partes do colorido foram raspadas e analisadas por três ou quatro pessoas. Atestados formais foram dados por eles às autoridades constituídas, e os documentos receberam selos de órgãos autorizados e assinaturas. Chegou-se à conclusão que as cores eram todas minerais e em pouco número. O vermelho era synopia grega (N.T: uma espécie de terra vermelha); um outro vermelho etéreo, usado no manto que Cleópatra vestia, era de uma origem não descoberta – ele tinha a aparência de pigmento vermelho veneziano brilhante, da cor carmesim; – o branco era um giz, mas eu esqueci de que natureza; – o amarelo tinha a natureza de amarelo de Nápoles – parecia vitrificado; – havia também amarelo ocre; – o preto era carvão. A cortina verde era denominada “terra vera da Grécia”, aplicada com alguma desconhecida cor amarela enriquecida. O cabelo era arruivado, e poderia ser manganês; – os cachos elaborados foram finalizados cabelo por cabelo, com linhas curvas vívidas nas partes mais claras, de cor dourada amarelo brilhante. O colar consistia de várias gemas engastadas em ouro: o amuleto era de ouro, e uma corrente dava duas ou três voltas no pulso direito dela. Ela usava uma coroa com pontas radiantes, e joias entre cada uma delas; – e também uma joia na testa, com uma grande pérola nos quatro cantos, disposta em forma de losango na testa dela; parte do seu cabelo frontal era trançada, e duas tranças rodeavam o pescoço, e estavam presas em um nó do cabelo; – o manto vermelho estava preso em ambos os ombros – não se via nenhuma roupa. Ela segurava a áspide em sua mão esquerda; era de cor verde, e bastante grande. Sua cabeça era extravagante, e compartilhava os caprichos tanto dos escultores antigos como modernos, lembrando a cabeça e a bico de um golfinho. No processo de se contorcer, como se preparando para dar um segundo bote; duas diminutas perfurações das presas estavam marcadas no seio esquerdo, e uma gota ou duas de sangue fluía. Cleópatra estava olhando para cima; uma expressão de tremor dos lábios, e lágrimas copiosas escorrendo pelas suas bochechas, davam ao semblante um efeito singular; a mão esquerda dela estava pendendo do antebraço como se a vida estivesse esvaindo-se e começando as convulsões. A composição da figura era ereta e judiciosamente disposta no espaço confinado onde foi colocada. A proporção da pintura era de aproximadamente dois pés e nove polegadas (NT: 83,8 cm), e estreita, como aquelas telas que os artistas na Inglaterra chamam de Kitcat. Decompondo as cores, os homens instruídos de Veneza e Paris ficaram totalmente persuadidos de que era uma pintura encáustica: cera e uma goma resinosa foram nitidamente separadas. Toda a pintura apresenta os mais fortes sinais de antiguidade; porém, permanece em muitas mentes a dúvida se trata-se mesmo de uma verdadeira antiguidade. Ela foi atribuída a Timomachus, um artista de grande eminência e um viajante, que viveu na corte de César Augusto. Ele seguia o estilo encaustico de Apelles. e com ele morreu ou desapareceu esta difícil arte. A pintura foi pintada (como se supõe), pelo supracitado artista grego, de memória (pois ele frequentemente tinha visto Cleópatra) para ocupar o lugar dela no triunfo de Augusto, quando ele celebrou a suas vitórias no Egito sobre Antônio e Cleópatra. Ela, por meio de sua desesperada firmeza, privou-o da honra de expor a sua pessoa à contemplação do povo romano. Conta-se que a pintura foi levada, como uma preciosa relíquia artística, por Constantino para Bizâncio, depois nomeada Constantinopla, e devolvida à Roma por seus sucessores à antiga sede do governo. Como ocorre com tantas coisas relativas à arte, esta pintura foi esquecida, e permaneceu nas escuras e profundas cavidades da adega. O Cavalheiro Micheli a levou de volta para a Itália, quando deixou a Inglaterra, há cerca de dois anos atrás. O que é feito dela desde então, eu desconheço.

O título da gravura é o seguinte:

– “Cleópatra, Rainha do Egito. O original, do qual esta é uma representação fiel, até então é o único espécime conhecido de pintura grega antiga. Ela deu origem às mais judiciosas investigações tanto na Itália como na França, e tem sido universalmente admitida pelos “cognoscenti”, auxiliados pela real análise das cores, como sendo uma pintura encáustica. A pintura é atribuída a Timomachus, e presumivelmente pintada por ele para seu amigo e patrono, César Augusto, para adornar o triunfo que celebrou suas vitórias sobre Antônio e Cleópatra, como uma substituta para a beleza da original, que o desapontou por meio da heroica morte que ela infligiu a si mesma. Esta lâmina é dedicada aos “virtuosi” e amantes das artes refinadas no Império Britânico pelo autor, que também é o possuidor desta inestimável relíquia da Arte Grega”.

Permaneço seu muito obediente servo,

Ao Sr. S. Wilkin.

R.R. Reinagle

Simon Wilkin, “The Works of Sir Thomas Browne“, em https://archive.org/stream/worksofsirthomas02brow/worksofsirthomas02brow_djvu.txt

4- A antiga arte da Encáustica

A Encáustica é uma técnica de pintura conhecida na Antiguidade Clássica, cujo nome deriva da palavra grega “enkaustikos“, que significa “gravar a fogo” e que foi descrita pelo célebre naturalista romano Plínio, o Velho, em sua obra “História Natural“. A encáustica consiste no uso da cera como aglutinante dos pigmentos, formando uma mistura densa e cremosa aquecida ou aplicada com um pincel ou uma espátula quente. Embora fosse um processo muito antigo cujo conhecimento tenha se perdido durante séculos, o fato é que a técnica foi redescoberta e hoje voltou a ser utilizada pelos artistas. Segundo Plínio dá a entender, esta técnica teria surgido para pintar navios de guerra, já que o processo resultaria numa pintura resistente a agua salgada e às intempéries (vide Plinio. Nat. 35.4).

Posteriormente, como relata Plínio, a pintura encáustica, cuja invenção teria sido por alguns antigos atribuída ao pintor grego Aristides, foi utilizada por vários outros artistas e pintores gregos célebres, como Praxíteles, Apelles e Timomachus. Segundo Plínio, os materiais onde se executava este tipo de pintura eram a madeira e o marfim.

Este lindíssimo retrato em Encáustica sobre madeira, de uma bela mulher que faleceu no Egito durante o período romano, foi encontrado na múmia da falecida em Fayum e encontra-se no Museu Britânico, em Londres. Foto: British Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

Efetivamente, a durabilidade da pintura encáustica é comprovada pelo número de pinturas que sobreviveram praticamente intactas até os nossos dias, ostentando figuras nítidas e cores vibrantes, quase todas retratos de pessoas que foram mumificadas no Egito durante o período romano, conhecidas como Múmias de Fayum, mas também vários murais descobertos nas cidades romanas de Pompéia e Herculano, soterradas pela erupção do Vesúvio. Algumas estátuas de mármore também apresentam vestígios de pintura encáustica. Vale observar que os retratos das múmias de Fayum são sempre pintados sobre madeira, mas que algumas vezes é tratada ou revestida com gesso. ou cola (vide https://www.biancakiso.com/en/enkaustik/).

Retrato do menino Eutyches,, de cerca do século I ou II D.C., descoberto na tumba onde sua múmia repousava, na cidade egípcia de Fayum. Foto tirada pelo autor no Museu Metropolitan de Nova York, cujo acervo ele integra.

O cavalheiro que mostrou a gravura da pintura de Cleópatra trazida para a Inglaterra a Simon Wilkin e escreveu-lhe a carta contando os detalhes sobre a obra é Ramsay Richard Reinagle (1775-1862), um pintor inglês da Academia Real que chegou a estudar na Itália e na Holanda e cujos temas mais frequentes eram paisagens e retratos. Ele também especializou-se em reproduzir obras de mestres consagrados.

Porém, em 1848, Reinagle apresentou em uma exposição, como sendo de sua lavra, um quadro que, posteriormente, descobriu-se que havia na verdade sido pintado por um outro artista e que ele adquiriu de um marchand, tendo ele feito apenas algumas alterações na tela. Assim, devido ao escândalo, Reinagle foi obrigado a renunciar ao seu diploma de membro da Real Academia. Vale notar que, não obstante ele mesmo não fosse gravurista, isto é, fizesse gravuras, foram feitas várias gravuras de seus trabalhos por diversos gravuristas ingleses, entre 1818 e 1830, sendo a gravura um tipo de arte que estava na moda no período.

Ramsay Richard Reinagle, Public domain, via Wikimedia Commons

5- A Pintura Encáustica de Cleópatra desperta o interesse dos especialistas

Não obstante, a bombástica notícia de que uma supostamente antiga pintura de Cleópatra teria sido descoberta (pintura esta que, com certeza, é a mesma cuja reprodução em gravura foi vista por Simon Wilkin e referida por R. R. Reinagle) de fato circulou pelo mundo culto no início da década de 1820, tendo sido esta obra, cuja autenticidade de pronto suscitou controvérsias, examinada por integrantes da comunidade artística e científica, como podemos ver do seguinte trecho do The European Magazine, and London Review, Volume 83, edição de janeiro de 1823:

“A Pintura Encáustica de Cleópatra

-Esta pintura, executada em lousa, representa Cleópatra no instante em que ela é picada pela áspide em seu seio esquerdo. M. Luigi Micheli, a quem esta gravura pertence, fez com que a mesma fosse examinada pelo Marquês Ridolfi, um químico erudito. M.Ridolfi acredita que nela ele pode reconhecer um precioso monumento de arte anterior ao declínio da arte da pintura. Ele até supõe que ela foi feita por Tymomacus, da escola de Apelles, a quem Plutarco menciona. M. Zannoni, um conhecido antiquário de Florença, é de opinião contrária e estipula uma data bem moderna para a obra em questão. Ele observa que as feições não guardam nenhuma semelhança com as de Cleópatra existentes em antigas moedas latinas e gregas: onde ela nunca é representada com uma coroa raiada, nem o arranjo dos seus cabelos, vestido, etc., similares aos desta pintura; e que o ferimento produzido pela serpente não prova nada. M. Zannoni não reconhece nesta pintura a Cleópatra de Plutarco e Dionysius, mas, ao contrário, ele a percebe como é representada por Guido e pelos artistas modernos. Com relação à composição empregada nesta pintura, ele cita as observações do Conde de Caylus, que diz que a encáustica era utilizada pelos antigos em tabuletas de madeira, e que estes não conheciam a lousa; a encáustica tendo sido revivida e reintroduzida pelo Conde de Caylus desde 1754, e trazida à perfeição por Requeno, e por Fabbrinion e Parenti, ambos de Florença, sendo sua opinião que esta gravura pertence a um destes dois últimos. Esta pintura, objeto de pesquisas químicas e de antiquários, está agora em Paris, onde a questão que tem dividido os italianos sem dúvida será solucionada.”

Fonte: https://books.googleusercontent.com/books/content?req=AKW5Qadq8Q7gRbIFknuGYOK6B4cq0c75UEVVmHPpdKOivhAVIfwOYCyAhOBpnQ1uTbHlAuWerZ6e3kuuASZ_KUN_aNlfJlMzgqJmnMlm2ptck2Ci4BZ_wMmidcKRIAja9bw30KdjPtIoYkJRlm16PprKKScGy5iApg9b3e1vAhwFyc_ml6OX66IcE7qRumtxcF-eRr1uUCht43Bt45KyHEWjAJJ360OWCEQM7HlzmHNkEPvYHHjSXR092SzevpmXuDGeR-ISYodl2fMvP5GraJ-pTsPI9HHp_uawfL9IQ8CosG46M_wAhtM

O acima citado Marquês Ridolfi, químico que teria examinado o retrato de Cleópatra, escreveu uma carta na qual é exibida uma gravura ilustrando o mesmo, sendo a carta publicada na Autologia di Firenze, em agosto de 1822, e, posteriormente, em um artigo escrito pelo escritor, revolucionário e poeta italiano Ugo Foscolo, na London Magazine, de maio de 1826, conforme mencionado pela escritora italiana Eugenia Levi, em 1913 (La Bibliofilía, Vol. 15, No. 2/3 (Maggio-Giugno 1913), pp. 68-90, publicado pela Casa Editrice Leo S. Olschki s.r.l.). Desse modo, esta deve ter sido a primeira vez que uma imagem do retrato em questão foi publicada, e esta gravura, que copiamos do artigo de Levi pode ser vista abaixo:

Mas o fato de que essa gravura da suposta pintura de Cleópatra realmente existiu e foi divulgada na época é confirmado por uma nota publicada em 28 de agosto de 1858, na revista Notes & Queries, um periódico editado pela Oxford University Press desde 1849, voltado para estudiosos e curiosos fazerem perguntas e darem respostas sobre temas versando sobre história, antiguidades, literatura e língua inglesa. Na nota, uma pessoa anônima, que se identifica apenas pela letra grega “β”, pede informações sobre o paradeiro da pintura trazida cerca de 35 anos antes para a Inglaterra pelo Sr. Micheli, e avaliada por ele em 10 mil libras, que foi reproduzida em uma gravura que trazia exatamente o mesmo título extenso transcrito na carta de Reinagle, acima citada por Wilkin (vide Notes & Queries, 2nd S., Vol. 6 (139), p. 166, August 28, 1858, disponível no Google Play).

Não posso, contudo, deixar de observar que a saga dessa pintura de Cleópatra reveste-se de um ar suspeito, e não me surpreenderia se ela tiver sido o objeto de uma trapaça dos citados Micheli e Reinagle objetivando vender um quadro falso a algum ricaço inglês (empreitada que não deve ter sido bem sucedida, pois Reinagle relata, na carta transcrita por Wilkin, que Micheli levou a pintura de volta para a Itália, por volta de 1832…). Mas existe a possibilidade de que, mesmo não sendo proveniente da Antiguidade, a pintura possa ter sido produzida por algum anterior especialista em pintura encáustica, quem sabe os referidos Fabbrinion e Parente, ou talvez o próprio Conde de Caylus, referido na matéria do The European Magazine, and London Review.

Com efeito, Anne Claude de Tubières-Grimoard de Pestels de Lévis (1692-1785), o Conde de Caylus referido na matéria pelo especialista cético M. Zannoni, de fato foi um dos redescobridores da técnica da antiga pintura encáustica e ele também era um notável antiquário e arqueólogo amador, estudioso da arte clássica e hábil gravurista que produziu inúmeras gravuras de objetos antigos.

Comte de Caylus By Alexander Roslin – pl.pinterest.com, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=21855758

Seja como for, sessenta anos após o aparecimento da pintura trazida por Micheli e vista por Reinagle e Wilkins na Inglaterra, ela seria vista e examinada na Itália pelo artista anglo- americano John Sartain, em 1883.

John Sartain fez esta gravura de si mesmo. Foto By Unknown author – http://www.antiquehelper.com/item/309799, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=18992462

John Sartain (1808-1897) era um gravurista que foi o pioneiro da gravura em metal (calcografia), através da técnica chamada de meia-tinta (mezzotinto), que ele próprio introduziu nos EUA, um processo de produção de gravuras que foi muito empregado para ilustrar livros e jornais no século XIX, fazendo grande sucesso.

Em 1885, Sartain escreveu um livro que recebeu o título de “On the Antique Painting in Encaustic of Cleopatra” (na verdade, a obra está mais para um pequeno ensaio ou artigo) relatando a viagem que ele fez à Itália, em outubro de 1883, e onde teve a oportunidade de examinar duas pinturas supostamente provenientes da Antiguidade Clássica, ambas produzidas com o emprego da Encáustica sobre uma lousa de ardósia oriental: um retrato de uma jovem, com uma coroa de louros na cabeça, um seio à mostra, segurando uma lira, que, por este motivo foi apelidada de “Musa Polyhymnia“, até hoje existente no Museu da Academia Etrusca de Cortona; e uma pintura de Cleópatra, retratando-a logo após ela ser mordida pela serpente, guardada na cidade de Sorrento. O livro é dedicado ao Barão de Benneval, um nobre francês que, na ocasião, era o proprietário do retrato de Cleópatra e uma edição original do livro encontra-se no acervo da Biblioteca da Universidade de Cornell, nos EUA, e uma cópia em PDF pode ser facilmente consultada e baixada via internet.

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Capa do livro de John Sartain

No seu livro, Sartain, escrevendo da cidade de Cortona, Itália, inicialmente discorre sobre as duas pinturas, relatando as circunstâncias de suas descobertas.

6- A Musa Polyhymnia – uma pintura sobrevivente da Antiguidade Clássica?

Sartain relata, em primeiro lugar, a interessante história da Musa Polyhymnia, uma pintura supostamente antiga que teria sido descoberta em 1734 pelo Senhor Rainero Tommasi próximo à cidade de Petrignano onde aquela havia sido, por sua vez, encontrada alguns anos antes por um camponês que vivia nas terras do referido cavalheiro, tendo o humilde homem acreditado que a pintura fosse um retrato da Virgem Maria.

Após a visita de um padre que contestou a identidade da mulher retratada, considerando-a uma obra pagã, o camponês em questão resolveu usar a pintura como uma portinhola para o forno de sua casa, até ela ser resgatada deste indigno destino por seu senhorio, o citado Tommasi, que a compra, tendo então esta pintura sido mantida em poder da sua família até 1852, quando foi doada pela Senhora Louise Bartolotti Tommasi à Academia Toscana de Cortona e colocada no museu onde até hoje se encontra.

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Musa Polyhyminia, , Museu da Academia Etrusca de Cortona

A narrativa de Sartain acerca da Musa Polyhymnia é importante porque a mesma história das circunstâncias de sua descoberta foi relatada por Curzio Tommasi, sobrinho de Rainero, em 1765, como se pode constatar no livro “Fabriquer L’Antique“, de Delphine Burlot (ver https://books.openedition.org/pcjb/6288, em francês). Portanto, ainda que a estória original em si não seja isenta de suspeitas, podemos considerar que não resta dúvida de que Sartain não a inventou.

Para o nosso artigo sobre a pintura de Cleópatra, é relevante também constatar que a gravura que Sartain produziu e incluiu em seu livro reproduzindo a Musa Polyhymnia de Cortona é bem fiel ao original exposto no Museu da Academia Etrusca de Cortona, como se pode examinar abaixo.

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John Sartain, Public domain, via Wikimedia Commons

A Musa Polyhymnia acabou sendo acolhida pela comunidade de Cortona como um verdadeiro tesouro local e praticamente uma relíquia histórica proveniente da arte grega antiga, ideia que foi corroborada por algumas análises feitas por especialistas do final do séculos XVIII até a metade do século XIX, que atestaram, segundo critérios técnicos disponíveis na época, que de fato tratava-se de uma pintura encáustica proveniente da Antiguidade.

Como não se trata de nosso assunto principal, e nosso artigo já está bem longo, não vamos detalhar o processo pelo qual se chegou a essa conclusão, mas o fato é que, a partir do século XX, peritos em arte e pintura começaram a contestar a autenticidade da Musa Polyhymnia, nos aspectos estilístico e técnico, e, atualmente, o próprio Museu da Academia Etrusca de Cortona expõe a pintura como sendo um exemplar de pintura sobre ardósia que deve ter sido pintado entre os séculos XVI e XVIII.

Mas para quem se interessar em estudar a interessante saga dessa pintura, há um capítulo do já citado livro “Fabriquer L’Antique“, de Delphine Burlot (ver https://books.openedition.org/pcjb/6288) tratando da referida obra: Nesta, basicamente, a autora oferece argumentos bem elaborados de que o retrato da Musa Polyhymnia foi uma tentativa de reproduzir pinturas que haviam sido recentemente descobertas na cidade romana soterrada de Herculano, sendo provavelmente um trabalho de Camillo Paderni, um pintor italiano conhecido por pintar e copiar obras da Antiguidade e que teria sido contratado pelo antiquário Marcello Venuti, cujo objetivo seria mostrar ao rei de Nápoles que as pinturas recentemente descobertas em seus domínios – Pompéia e Herculano, não seriam obras-primas da arte greco-romana.

7- O retrato de Cleópatra é localizado em Sorrento e reproduzido em gravura por Sartain

Retornando à pintura de Cleópatra, Sartain conta a trajetória prévia da pintura até chegar às mãos do Barão de Benneval, agora com alguns detalhes que não constavam dos primeiros relatos desde 1822 e mencionados por Wilkin e Reinagle:

O outro exemplo de pintura de cavalete antiga é de grande importância, e está preservada na Villa do Barão de Benneval em Piano de Sorrento. Esta também está em boas mãos, mas também deveria encontrar um lugar de repouso permanente em alguma coleção nacional, onde deveria estar protegida para sempre. Ela representa Cleópatra morrendo da picada de uma áspide, e, obviamente, não se pode defender que se trate de um retrato feito em vida, já que foi evidentemente pintado após o trágico fim dela. Foi descoberta por Micheli, o conhecido antiquário, embaixo do recinto do Templo de Serápis, na Vila de Adriano. Da primeira pintura (ele fala da Musa Polyhymnia), não se cogita sequer de sua origem, exceto que ela é evidentemente grega, mas da última existem informações que fornecem uma aproximação razoável a uma história conectada. Quando encontrada, ela estava em dezesseis fragmentos, que ao serem juntados mostravam que praticamente nenhuma parte estava faltando. As peças separadas foram levadas para Florença, e submetidas a um exame crítico do eminente advogado Giovannni Battista Tannucci, da Academia Real de Pisa, que escreveu um elaborado relatório sobre o assunto, mostrando o quão profundamente ele ficou impressionado com o valor da descoberta. O relatório foi publicado na “Autologia di Firenze”, volume 7. Em Agosto de 1822, o conhecido cientista e químico Marquês Cosimo Ridolfi, auxiliado por Targiani Tozzeti, submeteu o material do qual ela era composto a uma análise química e dessa forma chegou ao exato conhecimento dos veículos empregados junto com os pigmentos de cor. Esses provaram serem feitos de dois terços de resina e um terço de cera. Tais experimentos estão detalhados em um estudo que também foi publicado na “Autologia”, em 1822, e dos quais eu obtive uma cópia. Os manuscritos originais de ambos os estudos estão arquivados nos arquivos públicos de Florença. Finalmente, as peças quebradas foram remontadas e colocadas juntas em uma base de cimento. Ambas as pinturas foram feitas sobre ardósia oriental de uma cor cinzenta”,

On the Antique Painting in Encaustic of Cleopatra“, John Sartain, em https://penelope.uchicago.edu/oddnotes/cleoinencaustic/cleopatraencaustic.html

Sartain também relata a quase rocambolesca da saga do retrato de Cleópatra até chegar às paredes da vila do Barão de Benneval, em Sorrento:

Após ser descoberto pelo antiquário Micheli, nas ruínas do Templo de Serápis, na Vila do imperador romano Adriano, em Tìvoli, o retrato de Cleópatra foi oferecido ao Grão-duque da Toscana, que mantinha o Museu Florentino, que recusou-se a pagar o alto preço pedido. Depois, devido a dificuldades financeiras que o negócio dos irmãos Micheli enfrentava, eles acabaram oferecendo o objeto de arte como garantia a uma dívida. Após a morte dos irmãos, os herdeiros deles, não podendo remir a dívida, venderam o quadro a um conhecido do Barão de Benneval, que quitou a dívida. Posteriormente, o adquirente vendeu o quadro ao Barão, em 1860.

O quadro, então, foi exibido em galerias de Londres, Paris, Munique e Roma, e foi em Munique que a obra teria recebido uma base de cimento, a fim de manter os fragmentos unidos com segurança, trabalho feito por M. Plater, restaurador que trabalhava para o rei Ludwig, da Baviera.

Em 1869, o imperador da França, Napoleão III, teria feito uma oferta pelo quadro, que foi enviado a Paris. Contudo, ao eclodir a Guerra FrancoPrussiana, inclusive tendo ficado lá durante o cerco prussiano à Cidade-Luz, aos cuidados do Príncipe Czartoryski. Não concluído o negócio, provavelmente pelo fato de Napoleão III ter sido deposto, em 1870, a pintura voltou para Sorrento.

Gravura da Villa do Barão de Benneval, em Sorrento, extraída do livro de John Sartain. Eu procurei na internet alguma referência à esta propriedade, bem como esquadrinhei o google earth, inclusive o street view, e não achei nenhuma menção a ela, nem encontrei nenhum prédio semelhante na cidade, mas o imóvel pode ter sido remodelado, destruído(ou apenas eu não consegui encontrá-lo).

Percebe-se que ao ser exibida em várias capitais da Europa, reacendeu-se o interesse dos especialistas em arte e antiguidades pela pintura, e o livro de Sartain menciona vários estudos que foram feitos sobre ela, sendo o mais abrangente deles, feito, obviamente com a tecnologia disponível na época, o do perito alemão D.R. Schoener.

Schoener examinou pessoalmente a pintura em Sorrento, que descreve como tendo sido feita em uma lousa de ardósia oriental medindo 79 cm de altura x 57 cm de largura, e pela descrição que ele faz, não há dúvida de que é exatamente a mesma pintura objeto do livro de Sartain.

O perito alemão considerou que o diadema que a figura ostenta na pintura corresponde à coroa radiada utilizada pelos monarcas da dinastia dos Ptolomeus, da qual Cleópatra foi a última representante, junto com seu filho Cesárion, como pode ser observado em moedas do período (não obstante, deva ser observado que até hoje não tenha sido encontrada nenhuma moeda, relevo ou escultura de Cleópatra usando este tipo de coroa), e que as joias usadas pela figura feminina retratada correspondem a tipos de ornamentos utilizados por mulheres romanas do período, conforme afrescos descobertos em Pompéia.

Ptolemy VIII Euergetes II (Physcon). 145-116 BC, usando uma coroa radiada. AR Tetradrachma, foto by Classical Numismatic Group, Inc. http://www.cngcoins.com, Public domain, via Wikimedia Commons
Moeda de Ptolomeu IV Philopator, retratando seu deificado pai, Ptolomeu III, também usando uma coroa radiada, foto by PHGCOM, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons

Novamente, não vamos descrever a análise técnica dos pigmentos e do processo examinados por Schoener, que também faz no texto uma abrangente e minuciosa explanação sobre a pintura encáustica, mas falarei agora um pouco da plausibilidade do relato da descoberta do retrato, algo que também é abordado pelo alemão.

Como já mencionamos, a existência de um retrato póstumo de Cleópatra, pintado pouco depois da morte da rainha, para ser exibido no Triunfo do imperador Augusto, em Roma, é um fato relatado pelas fontes antigas. E também que, cerca de quinze anos antes do suicídio da egípcia, uma imagem ou estátua de Cleópatra foi colocada por Júlio César no Templo de Vênus Genitrix, e que, por volta do ano 160 D.C, quase duzentos anos após a morte dela, essa imagem ainda estava lá.

A Vila de Adriano, concluída no ano de 128 D.C, foi construída pelo célebre imperador não somente para ser sua residência, mas também para servir como um autêntico parque temático privado para evocar os tesouros e preciosidades do mundo greco-romano e helenístico, sendo reservado um espaço especial para o Egito, onde morreu e foi deificado Antínoo, o adorado amante de Adriano. De fato, neste particular, o complexo tinha uma grande piscina cercada por uma colunata, conhecida como Canopus, emulando o rio Nilo (nome original da cidade onde Antínoo morreu afogado), que levava a um Serapeum (Santuário do deus greco-egípcio Serápis), e neste local, foram encontradas várias esculturas de deuses em estilo egípcio, incluindo do próprio Antínoo, e do deus egípicio Bes, bem como de crocodilos. Havia também muitas reproduções de importantes obras de arte da arte clássica, trazidas de outros lugares. Muitas dessas estátuas foram escavadas no século XVIII.

O Serapeum, na Vila de Adriano. Foto Carole Raddato from FRANKFURT, Germany, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Sabe-se, pelas fontes, que a Vila de Adriano ainda era utilizada pelos imperadores no século III D.C., e, embora tudo indique que esta residência palaciana tenha sido paulatinamente abandonada a partir de então, o mais provável é que a propriedade continuasse sendo parte do patrimônio imperial até a Queda do Império Romano do Ocidente, em 476 D.C. Já no período ostrogodo, há relato de que as instalações da Vila de Adriano foram utilizadas como armazém tanto pelos germânicos como pelos bizantinos, durante a Guerra Gótica, que durou de 535 a 554 D.C. Nessa época, então, tudo que deveria haver de valor já teria sido saqueado há várias décadas.

E ainda assim, enquanto o Império Romano ainda não tinha caído, a partir do final do século IV D.C, com a decisão de Teodósio, o Grande de tornar o Cristianismo a religião oficial do Estado, iniciou-se um grande surto de vandalização e destruição de estátuas ou de edifícios que estivessem relacionados com o Paganismo.

Efetivamente, é enorme a quantidade de estátuas desse período que apresentam danos intencionais causados por fanáticos cristãos. E, ironicamente, graças ao fato delas não serem feitas de material precioso e de terem sido destruídas ou danificadas, e arrojadas e descartadas, ficando perdidas embaixo de detritos ou da própria terra, é que ainda hoje muitas dessas obras são encontradas, ainda que em fragmentos.

Assim, uma pintura como a de Cleópatra, ostentando a coroa radiada (sinal de divindade) e trazendo a serpente enrolada no braço (para os cristãos da época, um símbolo do Diabo), poderia muito bem ter sido percebida como um ídolo pagão e destruída em pedaços, assim que esses fanáticos religiosos tiveram acesso à Vila de Adriano, que já devia estar abandonada no século V D.C.

Normalmente, pinturas não sobrevivem muito tempo ao ar livre, mas, tendo sido realizada com a técnica da encáustica, que foi criada justamente para resistir à água, e estando em fragmentos soterrados sobre grande quantidade de material ou solo, torna-se, a meu ver, bem plausível acreditar que uma pintura encáustica sobre ardósia proveniente da Antiguidade possa ter chegado em bom estado até o século XVIII ou XIX.

Obviamente que espertalhões do mercado de antiguidades e falsários (não obstante, frequentemente eruditos e versados nos textos antigos), poderiam saber de tudo isso, assim como as suas vítimas prediletas: os ricaços europeus adeptos do “Grand Tour” (a febre de viagens educativas aos berços da Civilização Greco-Romana que grassou no final do século XVIII até meados do século XIX) e os monarcas e nobres colecionadores ávidos por peças antigas para abrilhantar os seus museus e galerias.

Que a pintura pode ser falsa, admitamos, é uma suspeita que também é estimulada pela divergência nos relatos acerca da sua descoberta. Segundo a já citada carta de Reinagle a Wilkin, ele menciona que a mesma, segundo o antiquário Micheli, “foi encontrada nas cavidades de uma grande adega, onde outros fragmentos da Antiguidade foram depositados. Que ela estava em uma caixa de madeira muito grossa quase que totalmente deteriorada“, portanto, um relato um tanto diferente do que nos foi trazido por Sartain (achado embaixo do recinto do templo de Serápis). Mas, também é admissível, e nos parece até bem provável, que as versões diferentes sejam apenas fruto de um ruído na transmissão dos fatos por Reinagle que não entendeu ou relatou com precisão o que teria ouvido de Micheli. Ele pode muito bem ter confundido “Cella” (recinto de um templo ou santuário antigo) com “Cellar” (adega, em inglês).

Não obstante, Schoener, baseando-se muito na análise de Ridolfi, e na comparação entre o que ele observou na pintura e as características da técnica da encáustica exaustivamente mencionadas por ele, concluiu que a pintura é autêntica.

John Sartain incluiu no livro uma gravura que ele fez retratando a pintura de Cleópatra que ele pôde observar na Vila do Barão de Benneval. Examinando-a podemos notar que é muito semelhante, podendo muito bem ser a mesma, que foi impressa na carta do Marquês Ridolfi publicada na Autologia di Firenze, em agosto de 1822, obviamente que com algumas diferenças decorrentes da técnica utilizada e do estilo de cada artista.

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Gravura de retrato de Cleópatra em posse do Barão de Benneval,por John Sartain

Considerando que a gravura de Sartain retratando a Musa Polyhymnia reproduz muito bem o original até hoje exposto na Museu da Academia Etrusca de Cortona, é admissível cogitarmos de que a sua gravura do retrato de Cleópatra também seja bem fiel à pintura encáustica de propriedade do Barão de Benneval, que, segundo todos os relatos, seria a pintura de Cleópatra alegadamente desenterrada na Vila de Adriano, e que, supostamente, seria um original proveniente da Antiguidade, pintado logo após a morte da rainha egípcia.

8- Um anticlímax…

Eu estava já terminando de escrever este artigo, quando, em um último afã de obter mais alguma informação sobre o paradeiro deste suposto retrato de Cleópatra, que tanto eletrizou a comunidade artística e científica durante boa parte do século XIX, deparei-me com a já mencionada cópia do artigo da escritora italiana Eugenia Levi, publicado em 1913 (La Bibliofilía, Vol. 15, No. 2/3 (Maggio-Giugno 1913), pp. 68-90, pela Casa Editrice Leo S. Olschki s.r.l..

O artigo, cujo título é “L’articolo sull’Incausto” di Ugo Foscolo” trata, como o nome diz, sobre um artigo escrito pelo escritor, revolucionário e poeta italiano Ugo Foscolo, na London Magazine, de maio de 1826, na qual foi reproduzida uma gravura do retrato de Cleópatra conforme já relatamos no item 5 deste nosso artigo.

Para minha grande surpresa, no final do seu artigo, Eugenia Levi relata que conseguiu o endereço da viúva do Barão de Benneval, que estava vivendo em Nápoles, após a Vila deles em Piano de Sorrento ter sido vendida. Embora não tenha conseguido se encontrar com a viúva, Eugenia Levi conseguiu obter o endereço do antiquário onde o retrato de Cleópatra que pertencia ao finado Barão estava à venda! (vide cópia abaixo do artigo, que pode ser baixado em https://www.jstor.org/stable/26207999?read-now=1&refreqid=excelsior%3A6c88eef44eb77fd9269dfa8401934097&seq=23#page_scan_tab_contents

De acordo com Eugenia Levi, o quadro estava sob os cuidados do antiquário Ferdinando Massa, em sua loja situada na Praça Torquato Tasso, em Sorrento. Finalmente, após três meses de insistência por parte de Eugenia Levi, o antiquário consentiu em lhe remeter uma fotografia do retrato de Cleópatra, que se encontra estampada na página 70 do referido artigo, cuja cópia, igualmente extraída do JSTOR.ORG, encontra-se abaixo:

Tenho que confessar que, após fazer esta longa, mas divertida, jornada em busca do paradeiro do Retrato de Cleópatra, aprendendo sobre os mistérios da antiga pintura encáustica e sua redescoberta no século XVIII, trilhando a instigante investigação realizada por tantos especialistas oitocentistas sobre esta elusiva obra, ao comparar a figura acima, enviada pelo antiquário como sendo a da pintura que, após tantas peripécias, chegou às mãos do Barão de Benneval, com a reprodução em gravura feita por John Sartain, o sentimento que desponta é o de decepção.

Com efeito, o retrato de Cleópatra que aparece na foto do Antiquário onde ela estava exposta à venda, no ano de 1913, não se parece nada com uma pintura produzida na Antiguidade Clássica. E a mesma também parece diferente e, em termos artísticos, muito inferior às reproduções que dela se fizeram, sobretudo a de Sartain.

Teria sido a foto encaminhada pelo antiquário à Eugenia Levi tirada em condições desfavoráveis e/ou por uma máquina fotográfica ruim? Ou seria a pintura mostrada na foto, na verdade, uma falsificação de má qualidade, ainda que a real pintura que pertenceu ao Barão de Benneval também fosse nada mais do que uma falsificação, só que mais bem feita? Uma outra possibilidade a ser cogitada é que a pintura tenha sido danificada ou mal restaurada.

De qualquer forma, ainda que o Retrato de Cleópatra de Sorrento não seja autêntico, a sua saga é tão interessante que esperamos que um dia ele reapareça, e então poderá ser submetido a exames com técnicas científicas modernas.

ADENDO: QUAL SERIA A REAL APARÊNCIA DE CLEÓPATRA?

Em tempos recentes, têm surgido artigos acerca da real aparência de Cleópatra, os quais, por terem sido escritos, a nosso ver, com um viés mais ideológico do que histórico, vêm suscitando polêmicas. A tese subjacente é que tendo ela nascido e sido governante de um Reino situado na África, a rainha necessariamente deveria ter uma aparência fenotípica de etnias da África Subsaariana.

Aproveito aqui para ressaltar que, para este autor, a aparência de Cleópatra, em termos fenotípicos, não deve ser tomada como historicamente relevante, tanto para justificar como para combater preconceitos raciais existentes na atualidade, tanto isso é verdade que nenhum dos historiadores da Antiguidade preocupou-se em relatar qual era a cor da sua pele, dos seus olhos ou dos seus cabelos.

Com efeito, não há fontes históricas descrevendo as características físicas de Cleópatra, como pode ser constatado nas citações de Plutarco e Cássio Dião abaixo, sobretudo no que se refere a cor da pele. E o motivo prosaico para isso é que, no Mundo Helenístico Clássico, esta era uma questão praticamente irrelevante: o que importava era estar o indivíduo inserido no universo civilizacional ou cultural greco-romano, pertencesse ele a qualquer grupo étnico, em assim sendo, ele era distinto daqueles que não faziam parte da civilização helenística, genericamente tachados de “bárbaros“.

Assim é que um norte-africano de origem berbere e cartaginesa de pele bem escura, como Septímio Severo, pôde se tornar imperador, e um general romano de origem germânica, filho de um chefe vândalo com uma cidadã romana, como Estilicão, jamais poderia aspirar ao trono. Por tudo isso, em nosso anterior artigo sobre Cléopatra, não mencionamos nada acerca de suas características físicas.

Finalmente, é preciso dizer que a História registra grandes rainhas negras, como Candace da Etiópia, que derrotou um exército do imperador Augusto, e a rainha Nzinga, de Angola, entre muitas outras.

Feito este parêntese, não podemos deixar de reconhecer, por outro lado, que sendo Cleópatra uma das mulheres mais fascinantes de todos os tempos, é mais do que natural a curiosidade acerca de sua aparência, e, felizmente, a História e a Arqueologia nos oferecem algumas pistas.

Ancestralidade

Cleópatra e sua família eram descendentes diretos do nobre macedônio Ptolomeu,  um general que foi um dos auxiliares mais próximos do rei da Macedônia, Alexandre, o Grande.

Ptolomeu era filho da nobre macedônia Arsinoe, que algumas fontes relatam ter sido concubina de Filipe II, o pai de Alexandre, o Grande, a quem chegou-se a atribuir a paternidade do próprio Ptolomeu. Segundo esta narrativa, Filipe II teria dado Arsinoe, já grávida de Ptolomeu, ao seu cortesão Lagus de Eordaia, que é oficialmente o pai de Ptolomeu. Em outra versão, considerada mais verossímil pelos historiadores modernos, Arsinoe seria filha de Meleagro, que por sua vez era primo do rei macedônio Aminthas III, pai de Filipe II e descendente do rei Alexandre I da Macedônia.

Ptolomeu I Soter

Os Macedônios habitavam o norte da Grécia continental, na península dos Bálcãs e falavam um dialeto que se acredita ser derivado do grego dórico do noroeste; eles compartilhavam as crenças religiosas, costumes e outros elementos culturais com seus vizinhos do sul da Grécia. Portanto, a maioria dos estudiosos considera que os Macedônios eram etnicamente gregos apesar do fato de que, durante o período clássico, os Gregos do sul, especialmente os Atenienses, considerassem os Macedônios como bárbaros ou semibárbaros, muito em função do fato deles terem adotado uma forma de organização política, baseada não na polis (Cidades-Estado autônomas e frequentemente democráticas), mas sim no regime monárquico. Não obstante, acredita-se também que os Macedônios podem ter absorvido ou se misturado a algumas populações de etnias trácias e ilírias que teriam habitado o mesmo território.

Quando Alexandre morreu, em 323 A.C, os seus generais mais próximos estabeleceram-se, inicialmente, como “sátrapas” (governadores) das terras que tinham sido anexadas pelo rei macedônio, e a Ptolomeu coube governar o Egito. Em 305 A.C., Ptolomeu, da mesma forma que os outros sátrapas, após uma série de conflitos entre eles e outros pretendentes à sucessão de Alexandre, denominada de Guerra dos Diádocos, autoproclamou-se rei do Egito, com o nome de Ptolomeu I Soter.

Ptolomeu I teve várias mulheres e filhos, que conseguiram posições proeminentes em outros reinos helenísticos, mas quando já governava o Egito, ele conheceu e se casou com Berenice I, uma nobre da Eordaia, inicialmente uma região limítrofe ao norte que depois veio a integrar a Macedônia, e que era filha de Antígona, sobrinha do regente da Macedônia, Antípatro, e de Magas, ele também um nobre macedônio da Eordaea. De sua união com Berenice I, nasceu o sucessor de Ptolomeu I no trono do Egito, Ptolomeu II Filadelfo (*309 A.C/+246 A.C) que por sua vez casou-se com sua prima distante Arsinoe I, filha do rei Lisímaco, um dos Díadocos, generais macedônios sucessores de Alexandre, o Grande, e que se tornou rei da Trácia, da Ásia Menor e da Macedônia, e de Nicéia, filha do mencionado regente Antípatro.

Ptolomeu II FIladelfo foi sucedido por seu filho Ptolomeu III Evergetes (*280 A.C/+222 A.C), fruto de seu casamento com Arsinoe I. Ptolomeu III, por sua vez, casou-se com sua prima Berenice II, rainha da Cirenaica e filha de Magas de Cirene que era filho do primeiro casamento de Berenice I, a já referida esposa de Ptolomeu I Soter, com Filipe, um oficial macedônio do Exército de Alexandre, o Grande.

No Egito, os sucessores e descendentes de Ptolomeu I e Ptolomeu II para se legitimarem perante os súditos nativos, adotaram também muitos dos costumes da realeza nativa, entre os quais estavam os casamentos endogâmicos, principalmente entre irmão e irmã, que tinham o objetivo de preservar o caráter divino da linhagem sanguínea dos faraós. Ainda assim, a língua da corte era o grego koiné, também utilizado para os assuntos diplomáticos e administrativos.

A personagem de nosso artigo, Cleópatra VII Philopator, nasceu em 69 A.C, em data ainda desconhecida, em Alexandria. Ela era filha legítima do faraó Ptolomeu XII Auletes. (*117 A.C/+51 A.C.) Nâo se sabe exatamente quem foi a mãe de Cleópatra,, assim, como há dúvidas acerca da identidade da mãe do pai dela. Ptololeu XII era o filho mais velho do faraó Ptolomeu IX Soter II (*c.141 A.C/+81 A.C.) e algumas fontes antigas, como Cícero, afirmam que o pai de Cleópatra seria filho ilegítimo deste último, o que pode significar que ele era filho de uma concubina, provavelmente oriunda da aristocracia, seja a originária da Macedônia ou a nativa do próprio Egito. Por sua vez, Ptolomeu IX era filho de Ptolomeu VIII Evergetes II, apelidado de Physcon (*c. 184 A.C/+116 A.C), filho de Ptolomeu V Epifânio (*210 A.C./+180 A.C.), filho de Ptolomeu IV Philopator e da rainha Arsinoe III, e assim na linha direta paterna, regressivamente, até o fundador da dinastia, Ptolomeu I Soter (*367 A.C/+282 A.C.).

Vale observar que Ptolomeu V Epifânio, por razões diplomáticas, casou-se com Cleópatra I Síria, que era filha do rei Antíoco III, o Grande, tatareneto do nobre e general macedônio Seleuco I Nicator, que era outro dos Díadocos e fundador do Império Selêucida, que dominou a Mesopotâmia, a Sìria e a Anatólia (Turquia). A mãe de Cleópatra I Síria era a rainha Laodice III, filha do rei Mitridates II do Ponto, descendente da nobreza persa e da rainha Laodice, por sua vez filha do rei selêucida Antíoco II Theos, que era neto de Seleuco I Nicator.

Antíoco III, provável antepassado de Cleópatra, foto Carole Raddato from FRANKFURT, Germany, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Abaixo, apresentamos as imagens de todos os ascendentes masculinos de Cleópatra na linha direta paterna, excluindo Ptolomeu I Soter, cujo busto encontra-se no início deste tópico.

Ptolomeu II FIladelfo, foto de Naples National Archaeological Museum, CC BY 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by/2.5, via Wikimedia Commons
Ptolomeu III, Evergetes, foto de Miguel Hermoso Cuesta, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons
Ptolomeu IV Philopator, foto de British Museum, Public domain, via Wikimedia Commons
Ptolomeu V, Epifânio, foto de ArchaiOptix, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons
Ptolomeu VIII Physcon, bisavô de Cleópatra, foto American Numismatic Society, CC0, via Wikimedia Commons
Ptolomeu IX Soter II, avô de Cleópatra, foto Keith Schengili-Roberts, CC BY-SA 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5, via Wikimedia Commons
Ptolomeu XII Auletes, pai de Cleópatra, foto Louvre Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

De acordo com historiadores da dinastia ptolomaica, considera-se a rainha-consorte Cleópatra V Tryphaena como a figura histórica mais provável de ter sido a mãe da nossa Cleópatra. Ela é uma personagem obscura, da qual pouco se sabe, além dos fatos de que casou-se com Ptolomeu XII Auletes em 79 A.C., e pode tanto ter sido filha, legítima ou ilegítima, de Ptolomeu IX (e, portanto, como mandava o costume faraônico, seria irmã ou meia-irmã de seu marido Ptolomeu XII. Mas ela também pode ter sido filha legítima de Ptolomeu X, irmão mais novo de seu marido. É possível que Cleópatra Tryphaena tenha falecido ao dar à luz à sua filha mais célebre. Mas deve ser ressalvado que não há certeza absoluta de que ela seja a mãe da nossa personagem principal, Cleópatra VII.

Precisamos, ainda, ressaltar que é uma pouco tormentoso traçar a genealogia de algumas mulheres da dinastia ptolomaica porque no último século desta houve muita instabilidade, havendo muitos pretendentes rivais que se sucederam no trono, sendo eles irmãos, primos ou sobrinhos, algumas vezes reinando junto com a própria mãe e, sobretudo, porque todas as mulheres da dinastia, em três séculos de existência, somente recebiam um desses três nomes: “Cleópatra“, “Arsinoe” ou “Berenice“.

Abaixo, apresentamos imagens de algumas prováveis ascendentes de Cleópatra, tanto pela linha materna como paterna.

Cleopatra Tryphaena, provável mãe de Cleópatra, foto de Musée Saint-Raymond, Public domain, via Wikimedia Commons
Acredita-se que este busto pode representar Cleópatra II, ancestral de Cleópatra VII, foto Louvre Museum, Public domain, via Wikimedia Commons
Arsinoe III, mãe de Ptolomeu V, tataravó de Cleópatra, foto Sailko, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons
Berenice II, foto de Sailko, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons
Segundo estudiosos, este mosaico pode representar, Berenice II, ascendente de Cleópatra
Arsinoe I, foto de Einsamer Schütze, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons

Descendência

Se conhecer alguns dos principais ascendentes de Cleópatra pode nos dar uma pista sobre a aparência dela, vamos também, com esta mesma finalidade, examinar os seus descendentes:

Em 23 de junho de 47 A.C., Cleópatra deu a luz a seu primeiro filho, que se chamou Ptolemaios XV Philopator Philometor Caesar. Ela anunciou que o menino, que receberia o apelido de Caesarion (Cesárion ou Cesarião), era fruto do seu relacionamento com o Ditador de Roma, Caio Júlio César, que, aliás, nunca negou publicamente a paternidade, apesar de, igualmente, ele jamais ter reconhecido oficialmente a criança, nem mesmo em seu testamento, aberto após o seu assassinato nos Idos de março de 44 A.C.

Caesarion
Cabeça encontrada em Alexandria que se acredita retratar Caesarion como Faraó. Os traços faciais lembram muito os das imagens de Cleópatra; Sdwelch1031, CC0, via Wikimedia Commons

Posteriormente, no final de 40 A.C., Cleópatra deu a luz a um casal de gêmeos, que receberam os nomes de Alexandre Helios (Sol) e Cleópatra Selene (Lua), nascidas de seu relacionamento amoroso com o Triúnviro romano Marco Antônio. A menina depois se casaria com o rei Juba II, da Numídia e Mauritânia, união da qual nasceria Ptolomeu da Mauritânia, que seria o último monarca do referido reino.

Busto de Cleópatra Selene, foto de Hichem algerino, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons
Acredita-se que esta seja uma estatueta de Alexandre Helios, filho de Cleópatra, foto de Metropolitan Museum of Art, CC0, via Wikimedia Commons
Busto de Ptolomeu da Mauritânia, neto de Cleópatra, foto PericlesofAthens, CC0, via Wikimedia Commons

Cleópatra também teve com Marco Antônio mais um filho, que nasceu entre agosto e setembro de 36 A.C. O menino recebeu o nome de Ptolomeu Philadelphus que, juntamente com seus outros irmãos foi exibido no triunfo de Otaviano pelas ruas de Roma, em 29 A.C., fato após o qual ele não é mais mencionado pelas fontes.

Representações de Cleópatra

As fontes históricas antigas que sobreviveram até os nossos dias não mencionam a cor da pele, dos cabelos, dos olhos, altura, ou qualquer característica física de Cleópatra.

E os historiadores Plutarco e Cássio Dião, inclusive, divergem um pouco sobre a beleza da rainha egípcia. Para Plutarco, a beleza da rainha não tinha nada de notável; já, para o segundo, Cleópatra seria uma mulher estonteante:

A beleza dela, de acordo com o que nos foi dito, em si mesma não era de todo incomparável, nem tanta que impactasse aqueles que a viam, mas a sua presença tinha um charme irresistível, e havia uma atração na sua pessoa e na sua conversa, que, junto com a peculiar força de sua personalidade, em cada palavra ou gesto, deixavam todos que se envolvessem com ela enfeitiçados. Apenas escutar o som da voz dela já era um prazer, e a sua língua, como se fosse um instrumento de muitas cordas, podia passar de um idioma para outro, conforme ela desejasse, de modo que havia poucas nações bárbaras para as quais ela precisava de um intérprete, respondendo-lhes pessoalmente e sem auxílio.”

Plutarco, Vida de Antônio, 27,2

Pois ela era uma mulher de beleza transcendente, e, naquela época, quando ela estava na flor da sua idade, ela estava ainda mais impactante; ela também possuía uma voz muito charmosa, e sabia como se fazer ainda mais agradável a todos. Sendo deslumbrante tanto para ser vista como para ser ouvida, e com o poder de conquistar a qualquer um, e até mesmo um homem saciado de amor que já tinha ultrapassado o auge da idade, ela achou que era o seu papel encontrar César e escorar em sua beleza todas as suas reivindicações ao trono.”

Cássio Dião, História de Roma, Livro LII, 34, 4 – 35, 1

De qualquer modo, baseados no relato dos dois historiadores, podemos considerar que, com certeza, Cleópatra não era uma mulher feia, como às vezes se lê em algumas reportagens modernas.

Há, na verdade, uma menção antiga aos traços físicos de Cleópatra, no caso a cor da pele, embora não em textos de historiadores ou cartas, mas em um poema. Em nossa opinião, não obstante esta observação possa decorrer de licença poética, deve ser observado, que Lucano, o poeta que escreveu os versos (no caso, a parte que canta um banquete que Cleópatra ofereceu a Júlio César, em Alexandria), tendo vivido entre 39 D.C e 65 D.C, estava muito mais próximo da época de Cleópatra do que as demais fontes citadas neste texto. Acredita-se que o poema tenha sido escrito por volta de 60 D.C, quando provavelmente as últimas pessoas que teriam conhecido Cleópatra viva já teriam morrido ou teriam idade avançadíssima (cerca de 100 anos de idade), mas provavelmente deveriam existir muitas imagens pintadas dela, e também pessoas vivas que teriam conhecido alguém que conviveu com a rainha. Portanto, acreditamos que qualquer alusão que fosse incompatível com a aparência de Cleópatra poderia gerar críticas ou até mesmo escárnio por parte do público romano letrado:

“… E então vieram legiões de escravas. Elas na cor da pele e na idade variavam ;

Algumas tinham os negros cabelos da Líbia, e outras cabelos tão ruivos ostentavam,

que César negou que ele alguma vez tivesse visto cabelos tão vermelhos;

nas terras pelo Reno banhadas;

Outras tinham a pele negra, e de suas testas recuava uma cabeleira encaracolada;

Ali os monarcas, junto a César, cujo poder era maior, se reclinavam;

E a Rainha (Cleópatra), sua perigosa beleza por cosméticos reforçada,…

Vestia riqueza em sua cabeça e pescoço, e sentindo em si suas joias pesadas,

Seus seios brancos como a neve, através do tecido diáfano sidônio, rebrilhavam.

Lucano, Pharsalia 10, 125-145


Das representações antigas de Cleópatra, aquelas sobre as quais não pairam dúvidas sobre o fato de ser ela a pessoa retratada na imagem são as moedas cunhadas durante o seu reinado. Mesmo assim, estudiosos frequentemente debatem se a figura constante das mesmas é um retrato fidedigno da rainha, sendo que com relação a alguns exemplares se a possibilidade da imagem ser um padrão convencional, ou de ser o reaproveitamento de outras moedas e até mesmo se acredita que em alguns casos a cunhagem tenha tido a intenção de reforçar algum atributo masculino. Não obstante, há bastante homogeneidade com relação a vários traços, como por exemplo, o penteado estilo “melão”, o coque, o nariz adunco (às vezes bem pronunciado, às vezes apenas levemente curvado), os olhos grandes, o queixo proeminente, e a tiara, como símbolo helenístico da realeza.

Abaixo, apresentamos alguns exemplares de moedas com a efígie de Cleópatra:

Cleopatra_VII_tetradrachm_Ascalon_mint

Cleopatra VII. 51-30 BC. Æ Hemiobol of Patra – Hexachalkon (21mm, 5.01 g). Agias, son of Lyson, magistrate. Struck circa 32/1 BC.  http://www.cngcoins.com
Otto Nickl, Public domain, via Wikimedia Commons

Com relação às estátuas e bustos de mármore que se considera como sendo retratos de Cleópatra, não há certeza absoluta de sua identidade, uma vez que não há nelas nenhuma inscrição informando tratar-se dela, porém, tendo em vista os atributos da imagem, especialistas em Arte e historiadores consideram que um punhado de obras efetivamente retratam a rainha egípcia. A seguir, reproduzimos os exemplares mais aceitos:

A cabeça de mármore abaixo foi descoberta no ano de 1784 nas ruínas da Villa dos Quintílios, na Via Ápia, em Roma, e estima-se que seja datada entre 40 A.C e 30 A.C, encontrando-se atualmente no Museo Gregoriano Profano, integrante dos Museus Vaticanos. Ela ostenta o penteado estilo melão, o coque e a tiara da realeza ptolomaica, esta com um detalhe que pode ser uma pedra preciosa (falaremos sobre isso mais adiante) ou talvez seja o resto de uma serpente (ureaus, ornamento característico dos faraós). Infelizmente, o nariz da escultura foi danificado, de forma intencional, provavelmente, e se perdeu.

Cleopatra_VII,_Marble,_40-30_BC,_Vatican_Museums_001
Portrait of Cleopatra VII. Inv. No. 38511. Rome, Vatican Museums, Pius-Clementine Museum.

 

Já esta outra célebre cabeça de mármore é conhecida como o Retrato de Cleópatra de Berlim e está no Altes Museum, Staatliche Museen zu Berlin. Ela foi descoberta entre 1786 e 1797 durante escavações patrocinadas pelo Cardeal Antonio Despuig y Dameto, Conde de Montenegro, também efetivadas na Via Ápia, ao sul de Roma, no trecho compreendido entre Ariccia e Genzano. Não é preciso ser especialista forense para se notar que se trata, quase que com absoluta certeza, da mesma mulher retratada na escultura anterior, no Museo Gregoriano Profano, e ambas devem ser contemporâneas. Olhos, boca, os cabelos e o penteado, e o formato geral do rosto, são praticamente idênticos. A mulher também ostenta uma tiara real, porém sem qualquer engaste. Exceto por este detalhe, as tiaras são idênticas às retratadas nas moedas de Cleópatra. Vale notar que ambas as esculturas apresentam uma espécie de marca próxima à maçã do rosto (também falaremos sobre isso em breve). Vale citar que os cabelos da cabeça ainda têm traços de pigmentos vermelhos, indicando que seriam ruivos. Confiram as fotos abaixo:

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cleopatra -0035_Altes_Museum_Portrait_Kleopatra_VII_anagoria

Interessante observar que os traços fisionômicos das mencionadas cabeças do Museu Gregoriano Profano e do Altes Museum parecem muito com as imagens existentes de Ptolomeu XII Auletes, o pai de Cleópatra.

Existe, ainda, uma estátua retratando Cleópatra, encontrada na área pertencente à Villa dos Quintílios, na Via Ápia (e não na Tomba de Nero, na Via Cássia, como originalmente se pensava), também escavada entre 1783 e 1784. Porém, o corpo da estátua é uma cópia romana de um original do final do século V A.C. Já os braços e os pés originais faltantes foram substituídos por outros. Por sua vez, a cabeça é um molde da cabeça existente no Museu Gregoriano Profano, supracitada, porém com um nariz provavelmente ajuntado.

Cleopatra_VII,_marble,_Vatican_Museums,_Pius-Clementine_Museum,_Room_of_the_Greek_Cross_2

Há outras estátuas de Cleópatra produzidas no Egito, porém, o exame das mesmas demonstra terem sido produzidos no estilo altamente estilizado da arte egípcia, e tudo indica não são retratos naturalistas. De qualquer forma, reproduzimos alguns exemplares abaixo, incluindo também um relevo do Templo de Dendera, no Egito.

Estátua de Cleópatra VII no Museu Hermitage, em São Petersburgo, foto: I, George Shuklin, CC BY-SA 3.0 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/, via Wikimedia Commons
Estátua presumidamente de Cleópatra VII, no Museu Metropolitan de Nova York
Relevo no Templo de Dendera, Egito, retratando Cleópatra VII e seu filho Cesarion. Foto: anegyrics of Granovetter, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Para finalizar, há pouco mais de dez anos, levantou-se a possibilidade de que uma pintura existente em uma parede de uma casa em Pompéia retrate Cleópatra.

Segundo a arqueóloga Susan Walker, do Museu Britânico e do Ashmolean Museum, da Universidade de Oxford, uma pintura encontrada na sala 71 da Casa de Marcus Fabius Rufus, em Pompéia pode representar Cleópatra, ou, mais especificamente, a uma estátua de Cleópatra, possivelmente retratada como Ísis/Afrodite, colocada por Júlio César, no Templo de Vênus Genitrix que ele ergueu no Fórum de César, em Roma (Vide “Cleopatra in Pompeii?“, em Papers of the British School at Rome 76 (2008), pp. 35-46 e 345-8, https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/S00682462000004040)

A pintura mostra uma figura feminina, que pode ser identificada como Vênus, na soleira da porta de um templo com uma pequena figura apoiada em seu ombro direito, que seria seu mitológico filho Cupido, encostado no seu rosto e no seu pescoço. A pesquisadora Eleanor Winsor Leach entendeu que a cena retrataria uma atriz de teatro representando uma rainha, porém, ao contrário do que é recorrente neste tema, nenhuma máscara teatral é mostrada.

Susan Walker nota que a representação de Vênus com o Cupido em questão é associada com a Vênus Genitrix, atributos da deusa que foi primeiro celebrada em público por Júlio César, que lhe dedicou o primeiro templo de Vênus Genitrix em Roma, onde, como já vimos, de acordo com as fontes romanas, como Apiano e Cássio Dião, foi colocada uma estátua de Cleópatra, provavelmente com os mesmos atributos da deusa, já que no Egito, a rainha era associada à deusa Ísis, que por sua vez, em Roma estava associada à Vênus/Afrodite.

Observa, ainda, a arqueóloga, que as joias ostentadas pela deusa na pintura correspondem às que se encontravam na moda em Pompéia, bem como em Alexandria, na metade do século I A.C. Ela veste um manto púrpura, talvez reminiscente do direito que foi conferido a César de usar uma toga desta mesma cor.

O véu diáfano que cobre a cabeça da mulher na pintura apresenta dobras que fazem perceber o penteado estilo “melão”, característico das representações de Cleópatra, e ela ostenta uma tiara dourada tendo no centro uma pedra preciosa de cor vermelha. Esta tiara assemelha-se um tanto à tiara que adorna a cabeça de Cleópatra existente no Museo Gregoriano Profano, mostrada acima, e que também tem um objeto incrustado no centro, muito provavelmente também uma pedra preciosa. Os cabelos da mulher são ruivos, ou castanho avermelhados (algo que é relativamente comum na Arte Clássica, tanto por haver menções a mulheres de cabelos ruivos, na mitologia e na vida real, em Roma e na Grécia, como pelo fato comprovado de muitas delas tingirem o cabelo desta cor).

Segundo uma teoria citada pela arqueóloga, a marca existente na maçã do rosto desta cabeça (assim como também há uma semelhante na lateral do rosto, porém menor e mais próxima à orbita do olho na cabeça de Cleópatra integrante do acervo do Altes Museum, em Berlim), têm uma correspondência com a posição do Cupido na pintura de Pompéia, dando a entender que as duas cabeças, que seriam inspiradas na referida estátua de Cleópatra no templo de Vênus Genitrix, ali retratada, também, originalmente, teriam uma estátua de Cupido colada à face, posteriormente removidas ao longo dos séculos. A presença de Cupido evocaria Cesárion, o filho que Cleópatra deu à luz como fruto de seu relacionamento amoroso com César.

Venus_and_Cupid_from_the_House_of_Marcus_Fabius_Rufus_at_Pompeii,_most_likely_a_depiction_of_Cleopatra_VII_(2)

A comparação da fisionomia da mulher retratada na pintura acima, que Susan Walker propõe representar Cleópatra, com as duas cabeças existentes nos dois museus anteriormente citados, mostra vários pontos coincidentes, como, por exemplo, o formato dos olhos, do nariz, da boca, além do penteado e cor dos cabelos (e também, eu acrescentaria, todos esses traços são semelhantes à pintura que pertenceu ao Barão de Benneval, supostamente sobrevivente da Antiguidade, como já vimos).

Finalmente, no artigo de Susan Walker, consta a informação de que a pintura em questão, encontrada na sala 71 da Casa de Marcus Fabius Rufus, encontrava-se atrás de uma parede construída posteriormente, como se os proprietários da casa quisessem escondê-la, fato que a arqueóloga relaciona como decorrente da derrota de Marco Antônio e Cleópatra na Guerra Civil do Segundo Triunvirato por Otaviano, e da consequente inconveniência política de se ter em casa uma estátua da inimiga do primeiro imperador de Roma, sobretudo ostentando a presença do pretenso filho natural dela com o seu pai adotivo no recém-inaugurado regime imperial.

Portanto, se Susan Walker estiver certa, e a pintura de Pompéia retratar mesmo Cleópatra, ou então a sua estátua no Templo de Vênus Genitrix (lembrando que as estátuas romanas eram pintadas em cores para retratar a aparência real ou presumida dos representados), ela pode constituir a representação mais acurada da rainha egípcia, a não ser, é claro, que a pintura da Vila do Barão de Benneval, em Sorrento, seja autêntica…

FIM

FONTES: Todas as fontes estão citadas no corpo do texto.

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR!

UM ARTIGO SOBRE A TRIBUTAÇÃO NO IMPÉRIO ROMANO

Eduardo André

Milhões de brasileiros anualmente ocupam-se com a tarefa de fazer suas declarações anuais de imposto de renda.

A Associação Comercial de São Paulo mantém, na sua sede, na Rua Boa Vista, centro antigo da cidade de São Paulo, um “Impostômetro“, calculando em tempo real, o valor total pago em impostos no Brasil. A carga tributária brasileira alcança quase 40 % do PIB, isto é, tudo que é produzido em bens e serviços no Brasil ao longo de um ano.

Impostõmetro da FIESP, foto MARIO SERGIO ARAUJO DOS PASSOS or my username: Msadp77, CC0, via Wikimedia Commons

A taxação também era uma questão central na vida dos cidadãos romanos e vital para a existência do Império. Há até quem defenda que o excesso de tributação foi uma das causas principais da Queda do Império Romano e uma situação que explicaria a relativa falta de resistência civil às invasões bárbaras, ao menos no Ocidente.

Mas qual era exatamente a carga fiscal no período do Baixo Império Romano?

Certamente a obra de referência em tudo o que se refere ao período a partir do imperador Diocleciano é “The Later Roman Empire“, do historiador norte-americano Arnold Hugh Martin Jones, mais conhecido como A.H.M. Jones, da Universidade de Cambridge. É deste livro que extraímos todas as informações abaixo.

Segundo Jones, não temos dados sobre as receitas ou despesas do Império. Com relação aos gastos, temos dados sobre o século VI D.C, ou seja, relativos ao Império Romano do Oriente, que sobreviveu à Queda do Ocidente, ocorrida em 476 D.C. Conhece-se, por exemplo, os gastos com funcionários públicos do Prefeito Pretoriano da África. Já com relação às receitas, sabe-se quanto arrecadavam a província da Numídia e da Mauritânia. Há, ainda, dados incompletos sobre o Egito Romano, no reinado do Imperador Justiniano. Estes últimos permitem calcular como o Egito, devido à grande produtividade agrícola, era mais rico que as demais províncias africanas.

A maior parte dos impostos era paga em gêneros (indictiones) ou em trabalho forçado (operae). Foi o imperador Diocleciano (284/305 D.C) quem sistematizou esses pagamentos, que passaram a recair anualmente sobre a terra e a população rural. As necessidades do Estado para cada ano eram estimadas pelos Prefeitos Pretorianos e, assim, o Estado Romano começou a ter um esboço de Orçamento. Por outro lado, como a demanda estatal era variável de ano para ano, a taxação também variava.

Foi Diocleciano também que conseguiu estabilizar a moeda romana, desvalorizada por um longo período de inflação, assim abrindo caminho para adoção do solidus por Constantino como a moeda de ouro padrão do Império. Esta estabilidade monetária, por sua vez, permitiu ao Estado converter o pagamento de uma parte dos impostos pagos em gêneros para o pagamento em moeda corrente.

Solidus, de Constantino I, foto Classical Numismatic Group, Inc. http://www.cngcoins.com, CC BY-SA 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5, via Wikimedia Commons

No sistema idealizado por Diocleciano, “tudo deveria ser objeto de impostos: os campos, os vinhedos, as árvores, os animais, pessoas, filhos, escravos, incapacitados, somente os mendigos se livraram”, queixa-se o autor cristão Lactâncio. Os impostos incidentes sobre as terras passaram a ter como base de cálculo unidades fiscais ideais (chamados de “iuga”), correspondente a uma determinada área de superfície, como um módulo rural. Não obstante, também foi estabelecido, adicionalmente, como base de cálculo, um número determinado de camponeses (“caput” =cabeça). Havia, portanto, duas bases de cálculo, o “iugatio” e o “capitatio”, que determinavam o imposto a ser pago pelos agricultores, tanto em função da área da propriedade como do número de pessoas, ou cabeças, que nela trabalhavam, constituindo uma unidade fiscal, que, no entanto, variava de acordo com a província.

Observe-se que, para que esse sistema funcionasse bem, era fundamental que a quantidade de que o número dos sujeitos passivos dos tributos e sua capacidade contributiva fosse avaliada periodicamente por censos.

Os registros mostram, que, sem que isso nos cause qualquer surpresa, os tributos recaíam, em enorme proporção, sobre as terras e produção agrícolas. E eram cobradas taxas também sobre produção pecuária. Já os cidadãos que viviam dentro das cidades, normalmente, não pagavam tributo algum. Sendo assim, não é exagerada a constatação do historiador Peter Brown:

“A História do Império Romano é a história das maneiras pelas quais 10% da população que vivia nas cidades, que foram aqueles que deixaram a sua marca no curso da civilização europeia, usufruíam do trabalho dos 90% remanescentes, que trabalhavam nos campos”.

Muito raramente, e em caráter emergencial e temporário, foram instituídos tributos sobre a propriedade imobiliária urbana, como por exemplo, em 405 D.C, pelo Imperador Honório, que tributou celeiros, banhos, oficinas, lojas, casas e até aposentos.

Mas o fato é que, desde o seu início, no Império Romano, qualquer coisa que oferecesse a possibilidade do Estado auferir recursos era considerada, mesmo nas cidades. Vale lembrar a célebre passagem relatada pelo historiador romano Suetônio, envolvendo o imperador Vespasiano e seu filho, Tito:

Quando Tito censurou Vespasiano por instituir um tributo sobre as latrinas públicas, o imperador segurou uma moeda proveniente do primeiro pagamento sob o nariz do seu filho, perguntando se o cheiro o incomodava. Quando Tito disse: “Não”, ele retrucou: “Ainda assim, veio da urina”.

Suetônio, Vida de Vespasiano, 23,3

Inclusive, o episódio supracitado é a origem do princípio atualmente vigente do Direito Tribuário (vide artigo 118, do Código Tributário Nacional), denominado por isso mesmo de “non olet” (que quer dizer :”não tem cheiro”, em latim), em que mesmo as atividades ilícitas, quando constituírem fatos geradores de tributos, podem ser tributadas pelo Estado, como por exemplo a renda e patrimônio de traficantes, contrabandistas ou corruptos.

Mas havia também tributos sobre a produção ou venda de certos produtos, como tecidos. Aliás, eram esses, e as taxas alfandegárias de importação ou exportação, que eram cobradas “ad valorem”, na base de 12,5% do valor da mercadoria, os únicos tributos que recaiam sobre todos, indistintamente, como hoje ocorre com os impostos indiretos, tais como o ICMS e o IPI.

Fora os impostos acima citados, o único tributo que não incidia sobre os agricultores era a “collatio lustralis”, um imposto inicialmente quinquenal e, depois, quatrienal, sobre os ganhos dos comerciantes, cambistas, artesãos, cambistas e, em geral, sobre todos os prestadores de serviços, inclusive as prostitutas. Já os professores e médicos eram expressamente isentos da cobrança deste tributo.

Tesouro de denários de prata romanos, foto de Gabinet Numizmatyczny D. Marciniak, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons

Para se ter uma ideia dessa desproporção entre a tributação romana sobre a produção agrícola e a de outras atividades, Edessa, uma cidade que vivia basicamente do comércio entre Roma e a Pérsia recolhia, sob a rubrica de “collatio lustralis”, a cada quatro anos, 140 libras de ouro., totalizando, em média, 2.520 solidi. Já Heracleopolis, no Egito, uma cidade que tinha um vasto território agrícola sob sua jurisdição, em certo ano pagou 57.500 solidi, mais de vinte vezes o valor pago por Edessa.

E a tributação em Roma não era progressiva em função da renda ou do tamanho da propriedade: um camponês proprietário de uma pequena fazenda pagava a mesma alíquota que um senador proprietário de um imenso latifúndio.

É verdade que a rica classe senatorial era chamada a contribuir com a oferta de espetáculos públicos, decorrente do exercício das altas magistraturas (cônsul, pretor), mas dada a gigantesca concentração de renda nas mãos dos senadores, tais despesas eram, normalmente, suportáveis. Os ricos também eram obrigados a contribuir a cada cinco anos com o Estado entregando cavalos e recrutas (nessa época, a estrutura agrária romana já estava começando a se assemelhar ao feudalismo e os trabalhadores rurais encontravam-se ligados aos latifúndios onde trabalhavam, sob o regime do colonato, daí a obrigação do senhor de fornecer os recrutas, obrigação que podia ser substituída pelo equivalente em ouro).

O Cônsul Aerobindus presidindo os Jogos que ele financiou (na mão direita, a bolsa com dinheiro). Imagem comum no Baixo Império Romano e no Império Romano do Oriente. Foto © Marie-Lan Nguyen / Wikimedia Commons

Outro pagamento imposto à classe senatorial era o “aurum oblaticium”, um donativo compulsório exigido em ocasiões especiais, como aniversários do imperador, em intervalos de cinco ou dez anos, e a “gleba”, na verdade uma diminuta sobretaxa que incidia sobre os impostos cobrados sobre as terras de propriedade dos senadores.

Porém, as classes altas gozavam de inúmeros privilégios fiscais e normalmente obtinham anistias, isenções ou descontos sobre os tributos atrasados.

Os recursos públicos provenientes dos tributos compunham as “riquezas sagradas” (sacrae largitiones), cuja administração ficava a cargo de um dos mais importantes ministros da corte imperial: o “Comes Sacrarum Largitionum”, ou Conde das Riquezas Sagradas.

Mas o imperador também controlava, através do “Comes Rei Privatae”, a sua “res privata”, que em sua maioria era constituída dos recursos advindos das vastíssimas propriedades que compunham o seu próprio patrimônio (apesar do Imperador ter seu próprio “tesouro”, esses bens não podiam ser herdados por seus parentes, e eram transferidos ao novo imperador, quando ele sucedia o anterior. Vale observar que muitos definem o regime de Roma, desde a República, como sendo uma Plutocracia (governo dos ricos), e o fato é que ao apossar-se da “res privata”, o imperador automaticamente tornava-se o homem mais rico do Império.

Salviano, um escritor cristão que viveu na província da Gália, escreveu, por volta do ano 440 D.C, o seguinte lamento:

“Os romanos oprimem-se uns aos outros com taxações e proscrições, mas eu erro quando digo “uns aos outros”, caso fosse assim, seria tolerável, se cada um sofresse exatamente o que ele inflige ao outro. Mas é bem pior que do que isso, porque muitos são oprimidos por poucos, que consideram as exações públicas como seu direito peculiar e que delas se apropriam sob o disfarce de coletar impostos. E isso é feito não apenas pelos nobres, mas por homens da mais baixa extração; não apenas pelos juízes, mas pelos seus subordinados. Pois, que Município, vila ou mesmo aldeia que não têm tantos tiranos quanto têm magistrados? Em que lugar, por conseguinte, como eu disse, até as próprias entranhas das viúvas, órfãos, e até mesmo dos santos, não são devoradas pelos governantes das cidades?

Ninguém, a não ser o poderoso, está seguro das devastações desses bandidos saqueadores, exceto aqueles que não sejam eles mesmos ladrões.

Não, o Estado atravessa dias tão tenebrosos que um homem não pode estar seguro a menos que seja mau. Mesmo aqueles que estão em posição de protestar contra a iniquidade que eles veem, atrevem-se a falar, a fim de não fazer as coisas piores. Assim, o pobre é despojado, as viúvas suspiram, os órfãos são oprimidos, até que muitos deles, nascidos de famílias não obscuras e que foram educados nas artes liberais, fogem em direção a nossos inimigos porque não podem suportar mais a opressão da persecução do Estado. Eles indubitavelmente buscam a humanidade romana entre os bárbaros, porque eles não podem suportar a bárbara desumanidade entre os romanos. E embora eles sejam diferentes em língua e costumes das pessoas para onde eles fogem, embora eles não tenham o fétido odor dos corpos e trajes bárbaros, ainda assim, eles preferem aguentar uma civilização estrangeira no meio dos bárbaros, do que a cruel injustiça no meio dos romanos.

Assim, eles migram para os Godos, ou para os Bagaudas, ou para alguma outra tribo bárbara que controla todo lugar, e não lamentam o seu exílio. Pois eles preferem viver livres sob uma aparente escravidão, do que como cativos sob uma aparente liberdade. O nome de cidadão romano, que certa vez foi tão estimado e tão ardentemente buscado, agora é algo que os homens repudiam e do qual fogem”.

O texto de Salviano é uma advertência atemporal sobre os efeitos destruidores que uma tributação excessiva pode causar…

Fontes:

1- The Later Roman Empire, Vol. I, páginas 411/469, A.H.M. Jones, The Jonh Hopkins University Press, 1986.

2-The World of Late Antiquity, Peter Brown, Norton, 1989.

3- De Gubernatione, Livro V, páginas 136 a 138, Salviano de Marselha, em A treatise of God’s government and of the justice of his present dispensations in this world by the pious, learned and most eloquent Salvian … ; translated from the Latin by R.T. … ; with a preface by the Reverend Mr. Wagstaffe. (umich.edu)

4- The Life of the Caesars, Life of Vespasian, Suetonius, disponível em https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Suetonius/12Caesars/Vespasian*.html

SANTO AMBRÓSIO – UM BISPO TÃO PODEROSO QUANTO OS IMPERADORES

AmbroseOfMilan

Em 4 de abril de 397 D.C, morre, em Milão, cidade que então era a capital do Império Romano do Ocidente, Aurelius Ambrosius, mais conhecido como Santo Ambrósio.

Nascido por volta do ano 340 D.C, na cidade de Augusta Treverorum (atual Trier, na província da Germânia), Ambrósio era filho do Prefeito Pretoriano da Gália, que também se chamava Aurelius Ambrosius. A mãe de Ambrósio era uma cristã devota, e assim, ele e seus irmãos, Satyro e Marcellina, foram criados como cristãos (Posteriormente, os dois últimos também seriam venerados como santos católicos).

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(Porta Nigra, em Trier, portão das muralhas romanas da cidade onde Ambrósio nasceu)

Graças à posição de seu pai, Ambrósio recebeu uma esmerada educação em Roma,  sendo versado em latim, grego, filosofia e direito, e, concluídos os seus estudos, ele seguiu a carreira pública, chegando a ser nomeado governador da Ligúria-Emília, região onde ficava a cidade de MIlão, em 372 D.C.

Em 374 D.C, Ambrósio foi escolhido para ser o Bispo de Milão, por aclamação dos fiéis, embora ele não fosse ainda batizado (era então costume dos cristãos leigos se batizar apenas no fim da vida, mas para os bispos isso era requerido) e, muito menos, ordenado. Apesar de inicialmente recusar a escolha da comunidade, Ambrósio acabou cedendo e, em uma semana, ele foi batizado, ordenado padre e nomeado Bispo!

A Sé de Milão vivia uma disputa entre os devotos que esposavam o Credo Niceno, estabelecido no Concílio de Nicéia, e os que seguiam a doutrina do Bispo Ário, chamados de “Arianos” (nada a ver com o suposto grupo étnico).

Ambrósio uniu a experiência administrativa civil no serviço público, que ele tinha adquirido no cargo de governador, a uma grande eloquência e força de caráter, e, por isso, ele logo atraiu uma enorme legião de seguidores entre os fiéis. Os seus sermões eram famosos e faziam encher a catedral de Milão com uma multidão. Foi durante uma dessas homilias de Ambrósio que um jovem inseguro e  indeciso em sua fé tornou-se um fervoroso convertido: era o futuro Santo Agostinho, que seria batizado por Ambrósio, em 387 D.C.

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(Santo Agostinho, seu retrato mais antigo, do séc. V,  existente na Basílica Laterana, em Roma).

Em 380 D.C., os imperadores Teodósio I, Graciano e Valentiniano II publicaram o Édito de Tessalônica, tornando o Cristianismo a religião oficial do Império Romano.

No Concílio de Aquiléia, em 381 D.C, Ambrósio destituiu os bispos arianos, apesar dos mesmos terem o apoio do imperador Valentiniano II, o colega do imperador Graciano no Ocidente.

Mais tarde, quando o imperador cristão Graciano, em 382 D.C, ordenou a retirada do venerável Altar da Vitória, o santuário com a estátua dourada da deusa que, havia séculos, ficava na Cúria do Senado em Roma. Ambrósio foi o principal responsável por  impedir que esse altar fosse restaurado, apesar dos insistentes pedidos da influente facção de senadores pagãos.

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Interior da Cúria Júlia, sede do Senado Romano. O Altar da Vitória provavelmente ficava no fundo do edifício, no centro, onde está a base de mármore).

Outro episódio em que  Ambrósio teve destacada atuação na defesa da ortodoxia católica, ocorreu quando a imperatriz Justina, mãe de Valentiniano II, exigiu que a Basílica Portia, na cidade de Milão, fosse destinada ao culto dos cristãos arianos. Nessa ocasião, Ambrósio colocou barricadas em torno da mesma e encheu-a de partidários da ortodoxia nicena preparados para resistir, o que acabou levando a imperatriz a desistir do seu intento, em 386 D.C

Em 390 D.C., o imperador do Oriente, Teodósio I, massacrou 7 mil pessoas em Tessalônica, ordenando brutal represália a uma revolta contra a guarnição de Godos estacionada na cidade. Considerando a ação um grave pecado, Ambrósio excomungou o imperador, que, depois de alguns meses, foi obrigado a fazer uma penitência pública, somente após a qual Ambrósio admitiu que Teodósio pudesse comungar. Esse gesto foi um precursor de uma tendência que se repetiria algumas vezes na Idade Média – o reconhecimento da supremacia do poder espiritual, detido pelo clero, sobre o poder temporal . Após este episódio, Teodósio tornou-se muito mais intolerante com o paganismo, proibindo, em 393 D.C, a celebração de qualquer ritual pagão, incluindo a proibição tácita da realização dos Jogos Olímpicos.

Assim,  Santo Ambrósio foi uma figura fundamental para que o cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano, sob a direção da Igreja Católica, o que teria influência duradoura na História do Mundo.

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(Foto: Corpo de Santo Ambrósio, preservado ao lado de dois outros mártires, na Catedral de Milão)

SEPTÍMIO SEVERO – DÉSPOTA APLICADO

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Em 4 de fevereiro de 211 D.C., morreu, aos 65 anos de idade, em Eburacum (atual York, na Inglaterra), o imperador Lucius Septimius Severus Eusebes Pertinax Augustus, mais conhecido como Septímio Severo (e, também, Sétimo ou Setímio Severo).

Quando Severo morreu, na longínqua província da Britânia, ele estava no curso de uma operação contra os bárbaros Caledônios, que acossavam a província romana a partir do outro lado da Muralha de Adriano. Esta era mais uma campanha militar de um imperador que, em seus 18 anos de reinado, passara quase todo o tempo incansavelmente em guerra, contra vários inimigos externos, e também alguns internos.

O futuro imperados Lucius Septimius Severus nasceu em 11 de abril do ano de 145 D.C, na cidade de Leptis Magna, na Província Romana da Tripolitania (atual Líbia), filho de Publius Septimius Geta e Fulvia Pia. O pai dele era integrante de uma família de ancestralidade púnica, ou seja, ligada aos fundadores de Cartago, oriundos da Fenícia, mas que, provavelmente, tinha também algum sangue berbere, a população nativa da região.

O avô de Severo, também chamado Lucius Septimius, era da classe equestre, o segundo nível da nobreza romana. Já a esposa deste último, e avó paterna de Severo, Victoria, era filha de Marcus Vitorius Marcellus, que foi senador e consul suffectus, em 105 D.C, e de Hosidia, filha de Gnaeus Hosidius Geta, que também foi general, senador e consul suffectus, no ano de 49 D.C.

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Vista de Leptis Magna, foto de SashaCoachman

Por sua vez, a mãe de Severo, Fulvia Pia, era de uma antiga família plebeia que, ainda em meados do período republicano, ingressou na nobreza, tendo seus antepassados exercido, inclusive, vários consulados. Alguns Fúlvios, provavelmente, se mudaram para Leptis Magna quando a cidade foi reorganizada e recebeu políticas de incentivo por ordem de Júlio César, quando este tornou-se Ditador.

Leptis Magna, originalmente fundada pelos Púnicos, ou Cartagineses, no século VII A.C, era uma cidade rica que governava um território fértil, extensamente cultivado. E, portanto, sendo uma das famílias mais ilustres da cidade, certamente os Severos deveriam ser eles também muito ricos.

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Consequentemente, o jovem Septímio Severo recebeu a melhor educação que a cidade de Leptis Magna poderia fornecer, tendo sido educado em latim e grego. Entretanto, sabemos que ele também falava o idioma púnico local, que talvez fosse até a sua língua de infância, pois as fontes relatam que ele falava latim com forte sotaque púnico. Severo deve também com certeza ter aprendido Oratória, pois sabe-se que, ainda em Leptis, ele fez o seu primeiro discurso público, aos 17 anos.

Depois disso, obviamente almejando horizontes mais amplos na vida do que os que a provinciana Leptis poderia lhe oferecer, Severo, por volta de 162 D.C, partiu para Roma, a Meca de todos os jovens bem-nascidos do Império.

E quando Severo chegou a Roma, ele foi recomendado por um parente ilustre ao imperador Marco Aurélio, que, em virtude disso, mandou arrolá-lo, já que era descendente de cônsules, como membro da ordem senatorial, o cume da nobreza romana.

Com isso, abriram-se para Severo as portas do “cursus honorum” – a carreira das magistraturas – e ele foi nomeado um dos “Vigintivir”, membro de um colégio de 26 magistrados juniores, que cuidavam, entre outras coisas, de casos judiciais menores e também da manutenção de estradas, ruas ou prédios públicos. Posteriormente, Severo foi nomeado advocatus fiscus, uma espécie de procurador público imperial.

Contudo, sendo ele ainda muito jovem para ocupar cargos mais elevados e, sobretudo, em função da chegada a Roma de uma epidemia de peste, Severo resolveu voltar para Leptis Magna.

Enquanto isso, durante o tempo em que esteve de volta em sua terra natal, Severo completou 25 anos, que era a idade requerida para o cargo de Questor, e, pouco depois, por sorte, a epidemia em Roma abrandou, permitindo que ele voltasse para Roma e assumisse, em 169 D.C, este prestigioso cargo.

Então, como Questor, Severo conseguiu, enfim, ingressar legalmente no Senado Romano.

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Edifício da Cúria do Senado no Fórum Romano

Vale ressaltar que muitos cargos haviam ficado vagos em função da virulência da referida Peste, que havia ceifado muitas vidas, o que permitiu que Severo progredisse ainda mais no serviço público. Assim, ele foi nomeado Questor pela segunda vez.

Porém, logo após esses progressos, Severo foi surpreendido pelo repentino falecimento de seu pai e ele foi obrigado a voltar para Leptis para resolver assuntos ligados à sucessão e ao inventário do falecido.

Resolvidas as questões sucessórias, Severo foi cumprir o resto do mandato de Questor na ilha da Sardenha, que estava temporariamente sob administração do Senado Romano.

Em seguida, Severo foi servir com seu parente Gaius Septimius Severus, que tinha sido apontado Proconsul da África, na qualidade de Legatus pro Praetor, ou seja, governador.

Novamente de volta à Roma, em 174 D.C,  Severo foi escolhido, como candidato do próprio Imperador, Tribuno da Plebe.

Sem dúvida, Severo, até então, estava tendo uma carreira notavelmente promissora: Com efeito, apesar dos relatos dos historiadores de que ele era alvo de piadas em Roma por causa do seu forte sotaque púnico, restava claro que Severo estava sendo visto com simpatia pelos poderosos, e até pelo próprio Imperador, fato que não é de surpreender, pois, como relatamos no início, o seu pedigree genealógico era suficiente para competir com outros candidatos aos cargos mais importantes.

Severo era um homem forte, embora de baixa estatura, e de pele bem morena, como os naturais do Norte da África. E um dos traços mais marcantes da sua personalidade era ser muito supersticioso, acreditando em sonhos premonitórios e astrologia, que frequentemente lhe prediziam um futuro brilhante.

Ele também sentia-se muito ligado à sua Leptis Magna natal e por isso, parece natural que, quando Severo resolveu se casar, aos 30 anos de idade, ele tenha escolhido uma esposa natural de Leptis, chamada Paccia Marciana, originária de uma família de origem púnica, como a sua.

O casamento com Marciana durou dez anos e, se eles tiveram filhos (a História Augusta, considerada pouco confiável, relata duas meninas), os mesmos não sobreviveram até a idade adulta. Marciana morreu por volta de 186 D.C.

Ainda segundo a História Augusta, o sempre supersticioso e agora viúvo Severo, querendo casar-se novamente, recorreu à ajuda de astrólogos para encontrar uma nova esposa. Nessa busca, Severo, então, teria ouvido falar de uma mulher síria acerca de quem se falava da existência de uma previsão de que ela se casaria, um dia, com um rei…

Severo foi até a Província da Síria e encontrou a mulher em questão, Júlia Domna, que era, ela mesma, descendente da casa real dos Sempsiceramidas e Soêmios, reis-sacerdotes da cidade síria de Emesa (atual Homs, na Síria) que era habitada por um povo de origem semítica árabe-beduína que falava aramaico.

Além do incentivo da previsão astrológica, certamente Severo foi incentivado a casar-se com Júlia pelo fato de ser ela muito bonita. E, para completar, Emesa, e os seus governantes sempsiceramidas, eram riquíssimos…

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Cabeça de estátua de bronze de Septímio Severo

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Cabeça de Júlia Domna

Com a aprovação do pai de Júlia Domna, Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus El-Gabal (Elagabalus, ou Heliogábalo, em latim), em Emesa, Severo e Júlia casaram-se em 187 D.C, logo seguindo-se o nascimento dos filhos Lucius Septimius Bassianus (que ficaria conhecido como o futuro imperador Caracala), ocorrido em 188 D.C, quando Severo governava a Gália, e Publius Septimius Geta, em 189 D.C., nascido quando Severo era governador da Sicília.

Vale notar que, desde 180 D.C., o imperador era Cômodo, que sucedera o pai, Marco Aurélio, mas, pelo visto, o nome de Severo continuou a gozar de prestígio junto ao trono.

De fato, o casamento parece ter dado uma nova turbinada na carreira de Severo e, em 190 D.C, ele foi nomeado Cônsul, a mais alta magistratura romana, sob recomendação do imperador Cômodo. E, no ano seguinte, Cômodo nomeou Severo governador da importante província da Panônia, na fronteira do rio Danúbio, o que implicava no comando de várias experimentadas legiões do Exército.

Foi nessa privilegiada posição que Severo encontrava-se quando o imperador Cômodo, após um reinado de anos de tirania e de vários excessos, foi assassinado em um complô palaciano, em 31 de dezembro de 192 D.C.

O ano de 193 D.C começou com um novo imperador, Pertinax (Pertinace). Porém, antes que o ano terminasse, os romanos ainda veriam mais outros quatro ocuparem o trono, motivo pelo qual aquele ano passaria à História como “O Ano dos Cinco Imperadores”…

Com efeito, o  ambicioso Pertinace, Prefeito Urbano de Roma, ao saber da morte de Cômodo, na qual talvez ele até estivesse implicado, correu para o Quartel da Guarda Pretoriana, prometendo um grande donativo aos soldados, caso o aclamassem imperador. Eles assim o fizeram e o Senado, exultante pelo fim da tirania de Cômodo, imediatamente reconheceu o pretendente como Imperador. Porém, depois de quatro meses de um reinado promissor, um outro grupo dos insaciáveis pretorianos, sequiosos de dinheiro, assassinou Pertinace , que teve a sua cabeça fincada e exibida em um poste.

Em um dos episódios mais vergonhosos da História de Roma, os gananciosos Pretorianos abordaram na rua o rico senador Dídio Juliano e insistiram para que ele aceitasse ser aclamado imperador, obviamente em troca do pagamento de uma grande soma de dinheiro. Ato contínuo, os soldados levaram Dídio Juliano para o Quartel da Guarda Pretoriana, onde, para a surpresa do pretendente, lá já estava outro candidato à púrpura imperial, Flávio Sulpiciano. Na presença dos dois, os Pretorianos promoveram um infame leilão do trono, que, após vários lances, foi ganho por Juliano, que ofereceu a cada soldado a quantia de 25 mil sestércios.

Aproveitando-se da debilidade do novo imperador, uma série de governadores de província, rebelaram-se, incluindo o próprio Severo, que foi aclamado imperador pelas próprias tropas, em 14 de abril de 193 D.C.

Antecipando-se aos seus rivais na sucessão, Severo, prometendo vingar a ignominiosa morte de Pertinax, marchou contra Roma, não sem antes assegurar-se de que um potencial rival, Clódio Albino (também ele um romano nascido na África, em Hadrumeto), o governador da Britânia, não reivindicasse o trono. Então, para obter a lealdade de Albino, o astuto Severo ofereceu-lhe o título de “César” (que equivalia, grosso modo, ao de príncipe-herdeiro), que foi aceito.

Entretanto, as legiões do Oriente  também aclamaram o seu comandante, Pescenius Niger (Pescênio Nigro), governador da Síria, imperador.

Antes de Severo chegar à Roma, contudo, boa parte do Senado já o estava apoiando. Assim, em 1º de junho, Dídio Juliano foi destituído pelo Senado e condenado à morte, após reinar por meros 66 dias. Esta sentença foi prontamente executada pelos próprios Pretorianos, aterrorizados com a aproximação das experimentadas legiões de Severo, as quais eles bem sabiam que não tinham a menor condição de enfrentar em batalha.

Desse modo, Severo entrou em Roma sem oposição, no dia 9 de junho de 193 D.C.

Cumprindo a sua promessa, Severo imediatamente puniu os pretorianos, mas de uma forma sorrateira: ele convidou a guarda pretoriana a um banquete no seu acampamento. Porém, quando os pretorianos chegaram, eles foram desarmados por uma força de soldados de Severo, que executaram os assassinos de Pertinace. Mais tarde, Severo substituiu os pretorianos por soldados originários da Panônia.

No Oriente,  Pescênio Nigro, governador da província da Síria, recusou aceitar Severo como imperador e ainda obteve o apoio da província do Egito. Severo marchou imediatamente para o leste e esmagou o indisciplinado exército de Nigro. A batalha decisiva aconteceu em Issos, na primavera de 194 D.C, e Nigro foi morto em Antióquia. A cabeça dele foi enviada à Severo, que estabelecera seu quartel-general em Bizâncio.

Aureus de Pescênio Niger, foto de Numismatica Ars Classica NAC AG, CC BY-SA 3.0 CH https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/ch/deed.en, via Wikimedia Commons

Outra característica marcante de Severo era ser implacável com os inimigos, e isso se aplicava às províncias e cidades que haviam apoiado Nigro, que foram severamente punidas, bem como aos reinos estrangeiros hostis.

Assim, em 195 D.CSevero iniciou uma campanha contra o Império Parta e invadiu a Mesopotâmia, subjugando os árabes osroenes, adiabenes e cenitas, no que também era um acerto de contas pelo fato destes terem apoiado Nigro. Em um gesto simbólico de afirmação de sua origem púnica, Severo, nessa passagem pelo Oriente, mandou reformar com mármore o túmulo de Aníbal Barca, o grande general cartaginês e inimigo mortal de Roma, mas também o seu mais ilustre conterrâneo, que morreu exilado na Bitínia, no longínquo ano de 183 A.C.

Enquanto isso,  Clódio Albino, levando a sério o seu título de César,  começou a cunhar moedas como se fosse imperador, autointitulando -se Augusto.

Severo, que provavelmente sempre tivera a intenção de se livrar do rival, deu a seu filho Lucius Septimius Bassianus, conhecido como Caracala (um apelido dado pelo fato dele usar, costumeiramente, um manto de origem gaulesa, que tinha esse nome) o mesmo título de César, o que, na prática, significava a cassação do status de Albino, que, em seguida, foi declarado “Inimigo Público”.

Foi também 195 D.C que Severo proclamou que ele era filho adotivo do imperador Marco Aurélio, razão pela qual alterou o nome de seu filho Caracala para Marcus Aurelius Severus Antoninus Augustus, numa tentativa de se legitimar como continuador da bem-sucedida dinastia dos Antoninos, que terminara com o assassinato de Cômodo.

Em verdade, Severo e Albino, desde a revolta contra Dídio Juliano, provavelmente sempre estiveram tentando ganhar tempo até terem todas as condições de eliminarem um ao outro. Quando chegou a notícia de sua proscrição pelo Senado, em 196 D.CAlbino já estava preparado para invadir a Gália e, após derrotar o legado de SeveroVinius Lupus, assumiu o controle da importante província, instalando-se em Lugdunum (Lyon).

Na inevitável guerra que se seguiu, Severo conseguiu derrotar Albino, na Batalha de Lugdunum, em 19 de fevereiro de 197 D.C. Foi uma batalha duríssima, segundo Dio Cassio, envolvendo 150 mil soldados de cada lado (número provavelmente exagerado). Severo ganhou o dia utilizando a sua cavalaria. Albino se matou ou foi capturado e executado, não se sabe ao certo. Porém, as fontes narram que Severo dispensou um tratamento cruel ao cadáver, que foi exposto nu e pisoteado pelo seu cavalo. E a cabeça do rival foi decepada e enviada à Roma, como um alerta para futuros pretendentes. Por sua vez, a desafortunada Lyon, como punição pelo apoio a Albino, foi saqueada.

Entre 197 e 199 D.C, foram travadas com sucesso uma série de campanhas contra o Império Parta que derivaram no estabelecimento da nova província da Mesopotâmia.

Após a conquista de Ctesifonte, a capital dos Partas, em cujo cerco faleceram cerca de 100 000 pessoas, os romanos apoderaram-se dos tesouros inimigos.

Em seguimento à vitória, Severo dedicou os cinco anos posteriores a organizar a administração da nova província, cuja existência, entretanto, jamais seria pacífica e teria curta duração, fadada a ser retomada pelos persas sassânidas, que destronariam os partas arsácidas, fundando um novo império.

Não obstante, as vitórias de Severo na região asseguraram o controle das estratégicas cidades de Nísibis e Síngara e a supremacia regional de Roma até o ano de 251 D.C, ou seja, por quase 50 anos. Ficaria, como testemunho dessa campanha, o Arco do Triunfo de Setímio Severo, no Fórum Romano, ainda existente.

Com efeito, a preocupação com o Exército e as questões militares foram o cerne da política governamental de Severo.

Severo começou por extinguir a Guarda Pretoriana e dispensar, com desonra, os seus integrantes. Em substituição, ele formou uma guarda com 10 coortes (cerca de 10 mil homens), com seus veteranos da Panônia. Depois, o imperador ainda acantonou, nas cercanias de Roma, uma legião. Na prática, com essas últimas iniciativas, a Guarda acabou sendo reconstituída.

Depois, Severo decretou um aumento de um terço para o salário dos soldados, o qual passou de 300 para 400 denários e aumentou o número de legiões de 30 para 33, medidas que, entretanto, provocaram um grande déficit público, causando inflação e prejudicando a economia imperial..

Severo também ampliou a “Anona” militar, organizando-a oficialmente como uma instituição permanente de previdência social dos soldados.

O imperador reformou, ainda, o estatuto civil dos militares:

De fato, até o reinado de Cláudio, os soldados não podiam deixar os quartéis enquanto duravam os seus anos de serviço. Consequentemente, exigia-se que eles não tivessem família por um número determinado de anos, variando o tempo em função da unidade a que pertenciam: os Pretorianos durante 15 anos, os legionários durante 20 anos e os auxiliares durante 30 anos.

Cláudio reformara o sistema a fim de permitir aos soldados saírem do acampamento quando não estivessem de serviço, facilitando-lhes assim fundarem uma família; porém, ainda assim, até o reinado de Severo, eles não tinham direito a casar-se legalmente e reconhecer os seus filhos antes de concluir o seu tempo de serviço militar. Então, Severo autorizou que os militares oficializassem a sua vida conjugal.

Como consequência dessa política, aumentou-se o número de cidadãos romanos, pois, com o status de casamento legal, os filhos dos soldados com as mulheres não-romanas que habitavam as proximidades dos acampamentos podiam aspirar à cidadania romana. Desse modo, podemos entender a “Constitutio Antoniniana” – lei editada pelo filho de Severo, Caracala, estendendo a cidadania romana a todo homem livre nascido no Império – como uma continuação desta política de Severo.

Severo também estabeleceu novas honras militares, autorizando aos oficiais portar um anel de ouro, privilégio até então reservado aos cavaleiros.

Além dos assuntos militares, Severo também dedicou-se aos assuntos administrativos e civis.

Vale citar que Severo tinha como seu principal auxiliar o seu primo, Gaius Fulvius Plautianus, nomeado Prefeito Pretoriano, e era também assessorado por juristas célebres, como Ulpiano e Papiniano.

Na Síria, de onde era natural a sua esposa, Severo criou duas novas províncias, para facilitar a administração local e, não menos importante, diminuir o poder do seu respectivo governador, que comandava várias legiões, as quais foram divididas entre as duas novas unidades político-administrativas.

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Depois de concluir a campanha no Oriente, Severo visitou o Egito, onde ele rendeu homenagem ao corpo de Alexandre o Grande, no Mausoléu no qual o famoso rei macedônio foi sepultado, em Alexandria;e, depois, ele navegou o rio Nilo até Tebas. Em seguida, o imperador dedicou-se aos assuntos de sua África natal, onde as tribos nativas dos Garamantes estavam causando problemas. Derrotados os inimigos, com a expansão do Limes Africanus, Severo pode estabelecer oficialmente a província da Numídia, agora separada administrativamente da África, e, finalmente após esse périplo pelo Oriente e África, o imperador retornou à Roma, em 203 D.C.

Painel de madeira pintada (tondo), com as figuras de um Severo já grisalho, da imperatriz Júlia Domna e de seus filhos Caracala e Geta (rosto apagado). A pintura é proveniente do Egito e provavelmente foi pintada quando da viagem da família imperial pela Província, por volta do ano 200 D.C. Posteriormente, quando Caracala sucedeu ao pai e assassinou Geta, foi decretada a “damnatio memoriae” deste e, obedientemente, a imagem de Geta foi apagada dos monumentos públicos, bem como deste painel. É o único retrato pintado de um imperador e ele é valiosíssimo pois nos permite ver as cores das vestimentas e dos ornamentos imperiais, inclusive o cetro e a coroa, além da tez da pele e dos cabelos.

Na capital do Império, Septímio Severo erigiu uma série de importantes construções: ele embelezou o lado sul do Palatino mediante a construção de uma monumental fonte chamada Septizódio, dedicada aos sete principais astros do firmamento. Além disso, foi ampliado o palácio imperial, com a construção de uma nova ala, a Domus Severiana, e ele também começou a construção dos banhos públicos que seriam conhecidos depois como Termas de Caracala, já que foram terminados no reinado de seu filho. Procedeu-se, ainda, à restauração de muitos edifícios danificados pelos incêndios que ocorreram no final do reinado de Cômodo, entre os quais: o Templo da Paz, o Teatro de Pompeu, o Pórtico de Otávia e o Arco de Nero.

A cidade natal de Severo, Leptis Magna, também beneficiou-se amplamente em seu reinado, sendo embelezada com vários monumentos suntuosos: o Fórum de Severo, a Basílica de Severo, o Mercado e  grandes instalações portuárias.

Septímio Severo tomou, ainda, algumas  significativas medidas judiciárias e assistenciais: A Presidência dos tribunais de apelação foi transferida aos Prefeitos Pretorianos, função antes realizada pelo imperador,  e foi instituída a distribuição gratuita de azeite de oliva, que se unia à tradicional repartição de trigo para a plebe.

A fim de consolidar a sua sucessão, Severo casou o seu filho Caracala com Plautilla, filha do Prefeito Pretoriano Plautianus (Plauciano). Este casamento arranjado, porém, foi o início da discórdia entre Severo e seu antigo amigo e parente, e agora sogro do seu filho.

De fato, Caracala odiava Plauciano, e, após o casamento, ele recusou-se a ter qualquer relacionamento com a esposa. Na verdade, consta que Caracala prometeu que, quando se tornasse imperador, daria cabo de ambos, esposa e sogro, o que pode ter levado Plauciano a conspirar contra Severo, ou, ao menos, este foi o pretexto que Caracala usou para conseguir a queda e execução do sogro. Plautiano foi acusado de traição por alguns centuriões em 205 D.C, subornados provavelmente por Caracala. Severo mandou executá-lo e Plautilla foi exilada na ilha de Lipari.

As relações de Severo com o Senado nunca foram boas, devido ao caráter marcadamente ditatorial do seu reinado. O imperador mandou executar dúzias de senadores sob variadas acusações de corrupção e conspiração, substituindo-os por homens fiéis ao trono.

Não obstante, entre a plebe romana, Septímio Severo gozava de popularidade, devido às medidas que ele tomou contra a corrupção generalizada que havia aumentado durante o reinado de Cômodo, e Severo ganhou a boa reputação de ter restabelecido a moralidade pública após os anos de decadência do governo anterior.

Contudo, o aumento vertiginoso das despesas militares, obrigou Severo a promover a maior desvalorização do denário desde o reinado de Nero, o que causaria uma grande inflação.

Nos anos finais do reinado de Severo, ocorreram muitos ataques das tribos caledônias que viviam além da Muralha de Adriano, que foram estimuladas pelo fato de Albino, quando da disputa com Severo pelo trono, haver zarpado para a Gália com praticamente todo o efetivo militar da Britânia.
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Em 207 D.C, o incansável Septímio Severo foi para a Britânia combater os Caledônios, levando consigo a esposa e os dois filhos, realizando várias campanhas ao norte da Muralha de Adriano, que foi reforçada por ele. Todavia, esse esforço não foi suficiente para subjugar aquelas ferozes tribos, antepassadas dos escoceses.

As fontes narram que, preocupado com a instabilidade mental demonstrada por Caracala, Severo nomeou, em 209 D.C, seu filho mais novo, Geta, como “César”.

A campanha contra os Caledônios prosseguiu, com resistência maior do que se poderia supor, e a saúde do já sexagenário Severo não aguentou o tranco. Ele caiu gravemente enfermo, e, pressentindo que ia morrer, mandou chamar Caracala e Geta, para dar-lhes um último conselho, em seu leito leito de morte, o qual ficaria célebre:

Não briguem entre si, deem dinheiro aos soldados e desprezem todos os outros“.

No dia 4 de fevereiro de 211 D.C, em Eboracum(York), aos 65 anos de idade, Septímio Severo morreu e Caracala e Geta foram aclamados imperadores pelas tropas. Ambos decidiram interromper imediatamente a campanha e voltar para Roma.

Nove meses depois, Caracala mataria seu irmão Geta, que se refugiara nos braços da mãe de em pleno palácio, para reinar sozinho. Portanto, Caracala somente seguiria fielmente o segundo e o terceiro conselhos de seu pai…

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Busto de Caracala, o sucessor de seu pai Severo, cuja expressão parece corresponder ao seu caráter violento.

CONCLUSÃO

Septímio Severo é um imperador controverso e o seu reinado é um dos mais difíceis de avaliar:  por um lado, ninguém pode negar que ele foi um servidor público incansável e muito dedicado aos assuntos públicos, tarefa que jamais foi por ele deixada de lado em prol dos prazeres e lazeres que Roma oferecia. De fato, Severo expandiu as fronteiras do Império Romano, visitou inúmeras províncias, venceu guerras e construiu importantes monumentos.

Mas Severo falhou em fazer uma reforma administrativa e tributária capaz de sustentar o aumento no efetivo e no orçamento militar, sendo que o aumento dos soldos acentuou uma tendência que comprometeria as finanças públicas dos reinados que se seguiram. E, ironicamente, tantas benesses dadas aos soldados podem ter comprometido a disciplina militar, estimulando os vários episódios de insubordinação que seriam observados durante os reinados da dinastia inaugurada por ele.

Outra medida  que se considera negativa foi a proibição de que os senadores exercessem comandos militares. Essa vedação, que seria reforçada nos reinados seguintes, afastou a elite romana do serviço militar e acabou contribuindo para criar ou ampliar um estranhamento entre o Exército e o Senado, afastando completamente a aristocracia da carreira das armas, o que no futuro se revelaria nocivo.

E Severo falhou mais amplamente em seguir os quase cem anos de boa política sucessória dos Antoninos, dinastia que ele tinha a pretensão de fazer parte, ao escolher os incompetentes e despreparados Caracala e Geta como herdeiros, mas este, diga-se de passagem, foi um erro no qual o próprio “imperador-filósofo e déspota esclarecido” Marco Aurélio também incorreu.

Quanto às numerosas execuções de senadores e rivais, talvez Severo não tenha sido tão diferente da maior parte de seus antecessores e sucessores. O fato é que ser imperador romano, especialmente no século III, como logo seria constatado, era uma das profissões mais perigosas do mundo.

FIM

NERVA – O INVOLUNTÁRIO FUNDADOR DA IDADE DE OURO DE ROMA

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1- Ancestralidade e nascimento

Em 8 de novembro do ano 30 D.C. (ano provável), nasceu, em Narni, na região italiana da Úmbria, Marcus Cocceius Nerva (Nerva), membro de uma tradicional família da nobreza italiana, sendo ele filho, neto e bisneto de ex-Cônsules.

Aliás, o bisavô de  Nerva foi partidário do triúnviro Marco Antônio, mas em algum momento, durante as guerras do Segundo Triunvirato, ele passou a apoiar Otaviano, o futuro imperador Augusto, que, em recompensa, incluiu a família dos Cocceii Nerva no novo Patriciado, meramente honorífico, formado após as Guerras Civis. Por sua vez, o avô e o pai de Nerva foram afamados juristas, sendo que o primeiro foi amigo pessoal do imperador Tibério.

2- Carreira Pública

Pouco se sabe acerca da carreira política de Nerva no serviço público. Na verdade, parece que o único campo em que ele se destacou em sua juventude foi a poesia, chegando a receber elogios do imperador Nero. E foi no reinado deste imperador que Nerva foi indicado para o cargo de Pretor, no ano de 65 D.C., ocasião em que ele recebeu os ornamentos triunfais. Vale observar, contido, que a História não registra nenhuma campanha militar nesse período, então é altamente provável que Nerva tenha sido recompensado pelo fato dele ter ajudado a debelar a chamada Conspiração Pisoniana, uma trama para assassinar Nero, liderada por Calpúrnio Pisão, que envolveu senadores e integrantes da guarda pretoriana, fartos das excentricidades e do comportamento cada vez mais tirânico daquele imperador (Nero finalmente cometeria suicídio ao ser destronado, em 68 D.C.).

NERO

Tudo indica que Nerva apesar de não ter se destacado como homem público ou na carreira militar, tinha um grande talento para atrair ou se aproximar de pessoas importantes e há vários indícios de que ele, de fato, devia ser tido como um amigo ou conselheiro confiável, tanto é que, para o ano 71 D.C., Nerva foi escolhido para ocupar o consulado junto com o imperador Vespasiano, (que, após os breves reinados de Galba, Oto e Vitélio, tornara-se, em 69 D.C., imperador romano, inaugurando a dinastia dos Flávios).

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Ser escolhido pelo imperador para ser o seu colega de consulado era uma honra excepcional, somente conferida a pessoas muito importantes e próximas do imperador (dois cônsules eram escolhidos para cada ano, e a identificação dos anos do calendário romano era feita de acordo com o nome dos cônsules que serviram naquele ano (ex: “no consulado de Vespasiano e Nerva“, era como os romanos identificavam o que hoje numeramos como o ano 69).

Em 90 D.C., Nerva,  que agora já era um senador veterano, foi escolhido novamente para ser cônsul junto com o imperador Domiciano, o filho de Vespasiano que sucedera o seu irmão mais velho, o adorado Tito, como Imperador, no ano de 81 D.C. Novamente, alguns historiadores acreditam que Nerva deve ter tido um papel importante ajudando o imperador a debelar uma séria revolta, agora capitaneada pelo governador da Germânia, o general Lúcio Antônio Saturnino e suas legiões. Nerva  pode ter atuado para assegurar o apoio do Senado, ou talvez tenha denunciado a trama, não se sabe ao certo.

Domiciano, embora não tenha sido, como governante do império, um mau imperador, adotou, ao longo do seu reinado de 15 anos, um comportamento crescentemente despótico em relação à aristocracia senatorial, a quem, de acordo com a constituição não-escrita legada pelo primeiro imperador, Augusto, cabia um papel no governo imperial, administrando diretamente algumas províncias menos importantes, e, reunida no Senado, funcionava como órgão consultivo, sendo destinatária de algumas honrarias e de uma deferência protocolar pelo imperador.

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Toda vez que um imperador não respeitava essas aparências, ligadas à fictícia permanência dos elementos de um regime republicano, que em verdade estava defunto, ele recebia a hostilidade dos senadores mais ciosos de suas prerrogativas, que, em alguns casos, desaguavam em uma conspiração, normalmente reprimida com rigor implacável. 

Os historiadores antigos que escreveram sobre o seu reinado afirmam que Domiciano teria abandonado o título de “Princeps” ( que significava o primeiro senador e cidadão do império) e, abandonando todos os escrúpulos, exigiu ser tratado como “Dominus et Deus” (Senhor e Deus).

Tendo sido Domiciano caracterizado como um governante desconfiado e paranoico, o seu reinado acarretou para a aristocracia romana uma época de perseguições, processos de traição e execuções, período em que prosperaram os informantes e os delatores.

Ademais, com o passar do tempo, Domiciano tornou-se insuportável para o seu próprio círculo íntimo, tendo ele sido finalmente assassinado em uma conspiração arquitetada por cortesãos próximos, incluindo altos funcionários que eram seus escravos libertos domésticos e até mesmo a sua própria esposa, Domícia Longina, em 96 D.C., pondo, assim, fim à dinastia dos Flávios.

3- Ascensão ao Trono

Se dermos crédito aos historiadores antigos, pela primeira vez, não havia generais em revolta dirigindo-se à Roma para assumir a púrpura imperial. E pela primeira vez, coube ao Senado assumir as rédeas da sucessão e nomear o novo imperador. E o escolhido foi o velho senador Marcus Cocceius Nerva.

Observe-se que existe praticamente um consenso sobre os motivos pelos quais Nerva foi proclamado imperador:

Em primeiro lugar, ele era um senador respeitado, de uma família ilustre o suficiente para estar à altura da dignidade máxima do Estado. Vale notar que Nerva deve ter convivido com Tibério quando criança, e o seu tio era parente afim deste imperador. E quatro gerações da família já tinham exercido o consulado.

De certa forma, a figura de Nerva fazia um elo de ligação entre o final da República, o início do Principado e o final da dinastia Flaviana. Politicamente, por sua vez, Nerva não estava ligado a nenhuma facção que fosse inaceitável para os militares.

Porém, talvez mais importante do motivo acima mencionado, era o fato de que Nerva era um homem velho, quase um ancião para os padrões antigos, tendo cerca de 65 anos de idade, e além disso, ele não gozava de boa saúde (a História conta que ele sofria de uma doença que o fazia vomitar com frequência).

E, mais importante ainda do que tudo isso, Nerva não tinha filhos…

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Portanto, Nerva era o “imperador-tampão” ideal, pois não havia risco de que se criasse uma dinastia que reivindicasse, posteriormente, seu direito ao trono, caso a situação política se invertesse e aparecesse algum general poderoso o suficiente para assumir o Império.

4-Reinado

E, de fato, o reinado de Nerva seria curto: de setembro de 96 D.C. a janeiro de 98 D.C.

Nerva, obviamente não desapontou quem esperava o fim da tirania de Domiciano: as suas primeiras medidas foram a anulação de todos os processos de traição, a devolução das propriedades confiscadas, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos. As prerrogativas do Senado voltaram a ser respeitadas.

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Nerva também reduziu alguns tributos, medida sempre bem vista em todos os tempos e lugares, reduziu gastos com espetáculos e também vendeu propriedades do Estado, promovendo um verdadeiro  “ajuste fiscal”.

No campo das obras públicas, procedeu-se à inauguração do chamado “Forum Transitorium“, que foi iniciado por Domiciano, mas concluído e inaugurado por Nerva, em 97 D.C., motivo pelo qual ficou conhecido como Fôro de Nerva. O nome Forum Transitorium, tudo indica, deve-se ao fato de que ele ficava adjunto aos Fôros de César e de Augusto, maiores e mais antigos,  podendo passar-se de um ao outro através do Fôro de Nerva. Ainda subsistem, em Roma, alguns vestígios da colunata deste fórum (vide foto abaixo).

Ironicamente, o reinado de Nerva também seria caracterizado como um “reinado transitório”…

 

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Em outubro de 97 D.C., estourou uma revolta da Guarda Pretoriano, liderada por seu comandante, Casperius Aelianus, exigindo a punição dos assassinos de Domiciano. Os pretorianos chegaram a cercar o palácio imperial, praticamente colocando o imperador na situação de refém. Acossado e humilhado, Nerva teve que ceder e dois implicados na conspiração contra Domiciano foram executados.

Sem dúvida, foi a precariedade de sua situação como governante que obrigou Nerva a adotar o general mais prestigiado do Exército Romano, o hispânico Marcus Ulpius Trajanus (o futuro imperador Trajano), comandante das legiões romanas na Germânia, como filho e sucessor. Segundo a narrativa consagrada, esta adoção representou a escolha do homem mais capaz para a sucessão imperial, fórmula sucessória que seria a marca da dinastia dos Nerva-Antoninos. Porém, nos bastidores, não sabemos se Trajano pressionou Nerva a adotá-lo ou se esta foi uma decisão voluntária do imperador.

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(Denário de Nerva, com a inscrição Concórdia no Exército, provavelmente cunhada para simbolizar o apoio do Exército Romano ao imperador, após a crise com os Pretorianos e a adoção do general Trajano como sucessor)

5- Morte

No primeiro dia do seu quarto consulado, no dia  1º de janeiro de 98 D.C. em uma audiência privada, Nerva sofreu um derrame. A sua saúde frágil certamente sucumbiu à tensão gerada pela revolta dos pretorianos.

Então, em 27 de janeiro de 98 D.C,  Nerva faleceu, aos 67 anos de idade, em sua casa situada nos Jardins de Salústio, em Roma, após uma prolongada febre, que surgiu depois do citado derrame. Trajano, o sucessor legal de Nerva, foi comunicado da morte na Germânia, mas, contrariando as expectativas, ele não se deslocou imediatamente para Roma, preferindo assegurar a lealdade das legiões do Reno antes de sua entrada triunfal na capital, o que somente ocorreria no ano seguinte. 

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CONCLUSÃO

A sucessão pacífica entre Nerva e Trajano seria o paradigma do principado até a morte do imperador Marco Aurélio, em 180 D.C,, oficialmente deixando de lado o princípio dinástico baseado no nascimento, optando-se pela escolha do homem mais capaz como sucessor. Era um ideal caro à dinastia dos Nerva-Antoninos, apesar de, na realidade, as coisas serem um pouco diferentes: os imperadores antoninos em geral tinham entre si algum laço de parentesco, sanguíneo ou por afinidade, ainda que distante.

Com efeito, os anos de governo de Nerva até Marco Aurélio seriam os mais prósperos e internamente pacíficos da História de Roma, sendo o período batizado de “Seculum Aureum” (O SÉCULO DE OURO).

FIM

CALÍGULA – ENLOUQUECIDO PELO PODER

Em 24 de janeiro de 41 D.C (segundo Suetônio), após três dias de exibições dos Jogos Palatinos em homenagem ao divino Augusto, os quais estavam sendo realizados em um teatro montado no próprio palácio imperial, o Imperador Romano Gaius Julius Caesar Germanicus Augustus Germanicus, a quem o povo chamava, carinhosamente, de Calígula, sentiu-se fatigado e foi incentivado por cortesãos a ir tomar um banho.

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Busto de Calígula, Ny Carlsberg Glyptotek. foto de Louis le Grand

Calígula , então, resolveu deixar o teatro e ir para os seus aposentos através de uma passagem subterrânea coberta (criptopórtico), que ligava as referidas áreas e que era privativa para o imperador.

Eram cerca de 15 horas da tarde e o imperador devia estar com fome, pois assistira todas as performances daquele dia sem se ausentar, exibindo-se à vista de todos, rodeado pela sua devotada guarda particular, composta por guerreiros germânicos e que ficou no teatro para vigiar os espectadores.

No caminho, Calígula parou para inspecionar alguns jovens gregos, bailarinos da chamada “dança pírrica”, que se preparavam para se apresentarem no evento, e tinham sido acomodados naquela passagem.

De repente, um velho oficial da guarda pretoriana se aproximou do Imperador…

Era o centurião Cássio Queréa, um veterano e bastante condecorado soldado que inclusive servira sob o comando do pai de Calígula, o adorado general Germânico, 20 anos antes, durante as campanhas romanas na Germânia, ocasião em que Queréa distinguira-se pelos seus atos de bravura, razão pela qual ele conseguiu ingressar e progredir na Guarda Pretoriana, a guarnição militar de Roma e do Palácio Imperial.

Porém, após Calígula ser sagrado imperador e passar a habitar no Palácio, o jovem imperador escolheu Queréa para ser a vítima frequente de suas zombarias e pilhérias:

Neste particular, conta-se que, pelo fato de Queréa ter o timbre de voz fino, Calígula, quando o Centurião estava de sentinela – ocasião em que os escalados deviam, ao iniciar o serviço, perguntar ao Imperador qual seria a senha – escolhia nomes embaraçosos, tal como “Vênus“, só para que Queréa, com seu peculiar timbre feminino, respondesse na frente dos outros, quando a senha fosse exigida.

Uma outra brincadeira que deleitava ao Imperador era quando ele estendia a sua mão para que o veterano centurião beijasse o anel, ocasião em que Calígula, avançava e retirava o punho da boca de Queréa, aludindo a um gesto pornográfico de felação, humilhando o veterano soldado perante os colegas.

Então, naquele dia 24 de janeiro, entretido com os jovens gregos no criptopórtico, Calígula mal olhou para Queréa quando este, como de costume, perguntou-lhe qual seria a senha do dia. Consta que o Imperador respondeu:

“Júpiter”.

Queréa, então, imediantemente respondeu, gritando:

“Assim seja. Toma!”

E, já com o seu gládio em punho, Queréa desfechou um tremendo golpe entre o ombro e pescoço de Calígula, o qual penetrou até o osso do peito, mas sem atravessá-lo.

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Foto do criptopórtico escavado no Palatino. Há grande probabilidade de que este seja o local onde Calígula foi assassinado –  © Photo Ministero dei Beni e delle Attività Culturali

Calígula ficou tão perplexo com o ataque que ele sequer gritou ou esboçou qualquer reação, mas apenas se virou, para receber um novo golpe potente, que, desta vez, praticamente arrancou, de uma só vez, a sua mandíbula inferior, a qual ficou pendendo presa apenas por um fiapo de músculo, deixando o seu rosto com o aspecto de uma máscara grotesca.

Somente então o Imperador começou a correr, somente para ser alcançado por outro conspirador, o tribuno Cornélio Sabino, que lhe acertou um golpe de espada no joelho, levando-o ao chão. A partir daí, Queréa, Sabino, o soldado Áquila e provavelmente outros conspiradores começaram a golpear Calígula, já moribundo, inclusive nos genitais. Assim, ele levou 30 golpes, até morrer. Queréa e os cúmplices conseguiram fugir do Palácio, ironicamente, atravessando a casa de Germânico, o finado pai de Calígula, que tinha sido anexada ao Palácio.

O destacamento de guarda-costas pessoais de Calígula, que, como dito, era composto de bárbaros germânicos, quando percebeu que o imperador tinha sido atacado, tomou-se de um frenesi de vingança e começou a matar todos que viam pela frente no Palácio, inclusive um Senador. Eles logo cercaram o teatro e fizeram menção de massacrar todos os espectadores, até alguém informar que o Imperador estava morto, ocasião os seus líderes devem ter pensado que não havia mais nada o que fazer.

Não satisfeito, Queréa mandou um subordinado, chamado Lupus, de volta ao Palácio, para matar Cesônia e a pequena filha de Calígula, que era ainda apenas um bebê. Assim, Cesônia recebeu, resignadamente, um golpe no pescoço. Já a menina teve a cabeça esmagada contra uma parede.

É difícil achar a explicação para a brutal execução de ambos: Obviamente, não poderia haver pretensão alguma de se ocultar a autoria do assassinato do imperador, cometido à luz do dia e com testemunhas. E não havia a menor chance de Cesônia ou a filha assumirem o governo. Eu posso cogitar de dois motivos: Cesônia saberia de algo que poderia arruinar Queréa, ou, talvez até mesmo ela soubesse o nome de outros conspiradores mais ilustres; como também é possível que a esposa do finado Imperador participasse ativamente das humilhações a que Caligula submetia Queréa.

Muitos, porém, acreditam que Queréa pode ter sido cooptado por senadores que queriam restaurar a República, e por isso, visavam eliminar a descendência de Calígula, para que não houvesse sucessores, porém, para que tal propósito fosse bem sucedido, eles teriam que eliminar também outros integrantes da dinastia Júlio-Cláudia, como o jovem Nero, entre outros…

Com efeito, logo após o assassinato, enquanto o Palácio era vasculhado, um pretoriano chamado Gratus encontrou Cláudio, que era tio de Calígula e irmão do pai dele, Germânico, escondido apavorado atrás de uma cortina do Palácio. Uma facção dos pretorianos saudou Cláudio, que até então era tido como imbecil, como o novo imperador, e levou-o para o quartel da Guarda. Lá, ele foi reconhecido e aclamado como o novo Príncipe pelo Senado.

Um Novo Imperador 41 AD, tela de Sir Lawrence Alma-Tadema (1871), foto: Lawrence Alma-Tadema, Public domain, via Wikimedia Commons

Nascimento e caminho para o trono

Nascido em  31 de Agosto do ano 12 D.C., em Anzio, Itália, Gaius Julius Caesar Germanicus (Caio Júlio César Germânico), que se tornaria popularmente conhecido como o imperador romano Calígula, era filho de Germanicus Julius Caesar, cognominado “Germânico” e de Vipsânia Agripina (mais conhecida como Agripina, a “Velha”, para distingui-la de sua filha, do mesmo nome, Agripina, a “Jovem”, mãe do futuro imperador Nero).

Portanto, por parte de pai, Calígula era sobrinho-bisneto do Imperador Augusto, pois a sua bisavó paterna era Otávia, a irmã do primeiro imperador que se casou com o triúnviro Marco Antônio, em uma união da qual nasceu Antônia, a Jovem, de cujo casamento com Nero Cláudio Druso, por sua vez, nasceu Germânico. E Calígula também era bisneto de Lívia Drusila, a influente esposa de Augusto, avó de seu pai, pois Nero Cláudio Druso era o filho mais novo do primeiro casamento dela com Tibério Cláudio Nero, sendo que o caçula desta união foi o imperador Tibério, irmão de Druso, tendo o primeiro sucedido Augusto como seu herdeiro e filho adotivo, sendo aquele também, portanto, tio-avô de Calígula.

Já pela linha materna, Calígula era bisneto de Augusto, pois sua mãe, Agripina, era filha de Marco Vipsânio Agripa, o grande amigo e braço-direito do primeiro imperador, e de Júlia, “a Velha”, a única filha e descendente de Augusto.

Tal “pedigree” colocava Germânico, o pai de Calígula, como um não-desprezível pretendente à sucessão do próprio Augusto. Aliás, vale observar que todos herdeiros-presuntivos inicialmente favorecidos por Augusto eram seus parentes, tais como seu sobrinho, Marcelo, e seus netos Caio César e Lúcio César. Todos eles, porém, morreram antes do velho imperador, que, muito em função das maquinações de sua esposa Lívia, acabou adotando e nomeando como herdeiro o filho natural desta, o seu enteado Tibério.

Augusto, porém, certamente visando garantir alguma continuidade sanguínea entre si e os seus sucessores, ao adotar Tibério, exigiu que este, por sua vez, da mesma forma adotasse Germânico, como herdeiro.

Ocorre que o pai de Calígula tornou-se um grande general, muito querido pelo Exército e pelo povo. Ele se destacou em campanhas na Panônia e na Dalmácia. Aliás, Germânico e Agripina eram uma espécie de família romana modelo: Eles tiveram nove filhos juntos, seis dos quais atingiram a idade adulta, três meninos, sendo Calígula o mais jovem deles, e três meninas, sendo que a mais velha, Agripina, “a Jovem”, seria mãe do futuro imperador Nero.

Quando Augusto morreu, em 14 D.C., sendo sucedido por Tibério, o sobrinho deste, Germânico, recebeu do novo imperador um comando na Germânia, onde ele comandou uma campanha brilhante na qual conseguiu finalmente, em 16 D.C., vingar a grande derrota sofrida por Varo, sete anos antes (foi por esse motivo que ele recebeu o seu apelido, pois dar ao general um cognome derivado dos inimigos vencidos era uma tradicional honraria romana).

Foi durante esse período que Germânico demonstrou que sabia utilizar sua família como uma ferramenta de propaganda pessoal. Ele residia no acampamento militar, em território inimigo, com toda a sua família e costumava vestir o seu filho mais novo Caio, que tinha entre 3 e 4 anos, com um uniforme militar em miniatura.

E entre as peças de vestuário militar que o pequeno Caio usava, estava uma pequena sandália ou bota militar, “caligae“, em latim. O diminutivo de “caligae” é “caligula” e o menino acabou recebendo da soldadesca esse apelido, que pode ser traduzido como “Botinha” (ou “Sandalinha“), um apelido que “pegou” (e consta que o mesmo era abominado por Calígula, depois de se tornar adulto).

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Inclusive, as fontes narram que em certa ocasião, quando uma das legiões comandadas por Germânico se revoltou, a mera sugestão de que o comandante, temendo pela segurança de sua família, estava mandando o adorado “Botinha” para um lugar seguro, longe dos soldados, bastou para acabar espontaneamente com o motim.

Infelizmente, a imensa popularidade de Germânico seria, para muitos, a provável causa de sua morte…

Consta que Lívia, a imperatriz-mãe viúva, muito provavelmente, e não para o desagrado de Tibério, urdiu uma série de intrigas visando afastar Germânico da linha sucessória, a quem percebia como uma ameaça a seu filho. De fato, as fontes do período, como Tácito, apontam Lívia e Tibério como os principais suspeitos pela morte de Germânico, em 19 D.C., acometido de uma misteriosa doença que se assemelhava a um caso de envenenamento, ainda que não haja provas conclusivas disso.

A postura questionadora da mãe de Calígula e viúva de Germânico, Agripina, em relação à morte de seu marido, azedou as relações dela com Tibério e deu início a uma série de desconfiança e intriga entre ambos. Consta que, certa vez, Tibério, notando uma cara de desagrado em Agripina, teria recitado, em grego, para ela o seguinte verso de uma então famosa obra clássica:

Porque não és rainha, eu te fiz algum mal?

Assim, em virtude dessa animosidade, e dos efeitos que isso causou na saúde da sua mãe, Calígula acabou indo morar sua bisavó, Lívia, a principal suspeita pelo assassinato de seu pai.

Em 29 D.C, no mesmo ano em que Lívia morreu, Agripina foi presa e exilada para a remota ilha de Pandatária, acusada de traição junto com seus outros filhos Nero e Druso.

Após sofrer vários maus-tratos e provações, Agripina morreu na ilha, em 33 D.C. Antes disso, os irmãos de Calígula também morreriam em função das acusações: Nero (não confundir com o imperador de mesmo nome) morreu de inanição, enquanto preso e Druso se suicidou. Em todos esses fatos esteve implicado o Prefeito Pretoriano Lúcio Élio Sejano, para alguns como instigador, ou ao menos, como o executor da vontade de Tibério.

Então, em 31 D.C, Calígula, que estava morando junto com sua avó Antônia, foi residir com Tibério, que, deixando os assuntos da administração nas mãos de Sejano, havia abandonado Roma e se mudado para Capri, desde o ano de 26 D.C.

Não temos dúvidas de que a situação deve ter sido aterrorizante para Calígula, pois após morar com Lívia, a suposta algoz de seu pai, agora ele iria viver sob a tutela do filho desta, o imperador responsável pelo sofrimento e morte de sua mãe e de seus irmãos. O que ele podia esperar para si senão o pior?

A julgar pelo relato de Suetônio, em Capri, Calígula habilmente soube fingir ser inofensivo e servil a Tibério. Se os escandalosos relatos do citado historiador forem verdadeiros, na paradisíaca ilha,  Calígula deve ter sofrido a influência maléfica dos inúmeros atos de perversão sexual e crueldade relatados na “Vida de Tibério“, o livro integrante da coletânea de biografias conhecida como “Os doze Césares“, que teriam ocorrido na espetacular Villa Jovis de Tibério, situada em Capri.

No entanto, em 33 D.C, Tibério deu a Calígula seu primeiro cargo público, o de Questor Honorário, e, dois anos mais tarde, Calígula foi nomeado herdeiro do Imperador, juntamente com seu primo, e neto de Tibério, o menino Tibério Gemellus.

Quando Tibério morreu, em 16 de março de 37 D.C, com a avançada idade de 78 anos, Calígula tornou-se o terceiro imperador romano. Suetônio levanta suspeitas sobre a culpa de Calígula na morte do tio, mas o mais provável é que Tibério tenha morrido de velhice.

A morte de Tibério foi recebida com júbilo pelo povo e pelo Senado. De fato, a austeridade de Tibério, que havia acumulado um grande superávit no Tesouro, muito em função dele ser avesso aos gastos públicos, especialmente para com os jogos e corridas tão amados pela plebe, acabou tornando-o consideravelmente impopular, fato que foi reforçado pela sua responsabilização, real ou presumida, pelas mortes dos queridos Germânico e Agripina.

Calígula imperador

Assim, a aprovação entusiasmada do Senado e do Povo de Roma acompanhou a aclamação de Calígula como imperador: Além de suceder um governante antipático, ele era o belo e jovem filho de um herói popular e membro de uma família muito célebre e muito estimada. Para comparar, o clima deve ter sido parecido com o que o Reino Unido atual experimentará quando o príncipe William tornar-se rei da Inglaterra, sucedendo ao pai Charles.

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Reprodução de um busto original  romano de Calígula, com cores restauradas, obtidas através de processo científico

Parece que, em seus primeiros meses, o reinado de Calígula parecia promissor (aliás, a crônica do seu início pode ser considerada a narrativa-padrão do reinado de todos os “maus” imperadores romanos, tais como Nero, Domiciano e Cômodo). Ele entrou em Roma em 28 de março de 37 D.C, 12 dias após a morte de Tibério, seguindo-se cerca de três meses de verdadeira adoração, em grande parte espontânea, por parte do povo. De fato, inicialmente, Calígula correspondeu mesmo aos anseios dos súditos:

De fato, o novo imperador mandou pagar todos os legados previstos no testamento de Tibério, tanto individuais como coletivos e, mais importante, mandou destruir todos os documentos que estavam nos arquivos imperiais para dar subsídios aos numerosos processos de crime de alta-traição ou de lesa-majestade, que haviam sido tão frequentes no reinado do seu antecessor.

Calígula também inaugurou o costume, que depois se mostraria funesto, de dar um grande donativo à Guarda Pretoriana em comemoração à ascensão de um novo imperador ao trono (prática que estimularia futuros motins dos Guardas visando destronar o monarca reinante, para assim obter recompensas do substituto).

Passados poucos meses, porém, Calígula não titubeou em se livrar de seu primo Gemellus, o neto de Tibério que, com ele, havia recebido em testamento o Império. Na verdade, um dos primeiros atos de Calígula após a sua aclamação oficial havia sido conseguir do Senado a anulação do testamento de Tibério no que se refere à posição de co-herdeiro de Gemellus. Porém, antes que o ano terminasse, Gemellus seria executado sumariamente à mando de Calígula.

As fontes narram que, antes disso, Calígula, em outubro de 37 D.C, ficou seriamente doente, e que foi somente após recuperar-se desta enfermidade que ele começou a praticar os reiterados atos de tirania, crueldade, devassidão e loucura pelos quais tornaria célebre (Suetônio, contudo, aponta que Calígula já demonstrava sua má índole quando adolescente). Infelizmente, os textos antigos não fornecem detalhes precisos sobre a misteriosa doença dele que possam nos dar alguma pista da sua real natureza –  isto é, se tratava-se uma doença infecciosa, congênita, física ou mental.

Gastos exorbitantes e deterioração na situação econômica

Um fato que parece incontestável acerca do reinado de Calígula é a rapidez com que a situação financeira do Império se deteriorou. Com efeito, são várias as afirmações nas fontes de que Tibério havia deixado um gigantesco superávit no Tesouro do Estado, apontando-se até a soma precisa de 2,7 bilhões de sestércios, e, portanto, parece certo que o problema fiscal foi causado pela política (ou falta de) determinada por Calígula. A desorganização econômica acarretou, ainda, episódios, relatados pelas fontes, da ocorrência de fome entre a população, algo que não ocorria há tempos.

Com feito, ,as fontes mencionam vários gastos desmedidos ordenados por Calígula:

Relata-se, por exemplo, que ele ordenou a construção de uma ponte flutuante de mais de 4 km entre Baiae e Puteoli, apenas para contrariar uma profecia. Uma outra despesa enorme descrita por Suetônio foi a construção de dois enormes navios, para serem usados como templo e palácio. Esses barcos, que tinham mais de 70 metros de comprimento, foram recuperados no Lago Nemi, durante o governo de Mussolini na Itália, e colocados em um museu especialmente construído. Infelizmente, durante a 2ª Guerra, os barcos foram destruídos. Recentemente, vale citar, foi restituído a Itália um pedaço do magnífico pavimento de mosaico da referida embarcação, retirado em data incerta do fundo do Lago, e que foi parar em um apartamento em Manhattan, Nova York, EUA, transformado em uma mesa de centro! (vide https://olhardigital.com.br/2021/12/06/ciencia-e-espaco/como-um-mosaico-do-lendario-imperador-romano-caligula-virou-tampo-de-mesa-em-ny/

De qualquer modo, a Arqueologia confirmou, mais uma vez, os relatos dos historiadores antigos.

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(Foto da escavação de um dos navios de Caligula, no Lago Nemi)

Política Externa

Não obstante, no front externo, Calígula reivindicou a realização de campanhas na Britânia e na Germânia, mas estas teriam, sido, na verdade, na opinião dos historiadores, apenas exercícios ou manobras militares, ou pior, segundo as fontes romanas (cf. Suetônio), uma encenação ridícula. Mas talvez seja provável que essas opiniões tenham exageradas, uma vez que, recentemente, descobriu-se, nas escavações de um forte romano na Holanda, chamado de Velsen-2, indícios de que Calígula pode ter estado realmente nesta região durante o seu reinado, e de que a referida fortificação foi efetivamente construída para viabilizar a invasão da Britânia e conter as tribos germânicas da outra margem do Reno.

Ilustração do Forte Romano em Velsen, extraída da matéria do The Guardian, conforme o link no parágrafo seguinte. Foto de Graham Sumner

A descoberta do forte cf. em https://www.theguardian.com/world/2021/dec/26/roman-fort-built-by-caligula-discovered-velsen-near-amsterdam.

Já a decisão de anexar a Mauritânia, um reino-cliente de Roma, foi tomada durante o reinado de Calígula, mas há dúvidas se a execução desta decisão ocorreu quando ele ainda estava vivo ou se foi deixada para o sucessor, Cláudio, que, assim, teria, em seu reinado, na verdade, continuado iniciativas tomadas pelo antecessor.

Desmandos, perversões e crueldades

Vamos aqui deixar a narrativa detalhada dos inúmeros assassinatos, atos de perversão sexual e gestos tresloucados de Calígula para quem se interessar em ler Suetônio. Entre os últimos, podemos citar o desejo manifesto dele nomear seu cavalo Incitatus para o Senado Romano…

Aliás, o filme Calígula, de Bob Guccione, dono da Revista Penthouse, foi muito criticado por ser porno-erótico, mas a película não deixa de ser bem fiel ao relato de Suetônio (com a interpretação magistral de Malcolm Mcdowell no papel do imperador)…

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De qualquer forma, a personalidade cada vez mais instável de Calígula inviabilizou politicamente o seu governo. As fontes asseguram que ele efetivamente pensava ser um deus-vivo e exigia o culto que lhe achava devido. O judeu alexandrino Filão deixou um precioso relato da embaixada que ele fez à Roma, onde encontrou pessoalmente Calígula, com o objetivo de tentar demovê-lo do propósito de instalar uma estátua de si mesmo no interior do Templo de Jerusalém. Filão descreve em seu texto que percebeu que o imperador ficava muito agitado em alguns momentos, e ele saiu do encontro com a impressão de que Calígula acreditava que realmente era um ser divino.

Calígula era louco?

Entre os autores antigos há certo consenso de que Calígula era louco, mas, hoje em dia, muitos autores modernos lançam suspeitas sobre esses relatos, atribuindo o tom negativo a uma certa antipatia e animosidade política dos escritores romanos, todos integrantes da classe senatorial, que se julgava preterida e perseguida pelos Césares.

Porém, eu acredito que Calígula era insano mesmo, embora não possamos identificar com precisão que tipo de distúrbio psicológico ele sofria. É quase certo que as provações pelas quais passou na infância e adolescência, como, por exemplo, ter visto a mãe e os irmãos morrerem assassinados e o medo incessante de ser executado por Tibério ou por Sejano, tudo isto deve ter deixado marcas profundas em sua mente e pode ter gerado transtornos de personalidade. Por exemplo, Suetônio narra que Calígula conversava com as estátuas dos deuses, não conseguia dormir à noite e vagava como uma alma penada pelo Palácio. É bem possível, portanto, que ele sofresse de esquizofrenia paranóide.

Dessa forma, ao contrário de outros imperadores que se destacaram pelo comportamento tirânico e bizarro, como Nero, que reinou 14 anos, Domiciano, que reinou 15 anos, e Cômodo, que reinou 13 anos, Calígula, apesar do prestígio quase sacrossanto de sua linhagem entre o Povo e o Exército, foi assassinado antes de completar o quarto ano de seu reinado!

A conspiração

Quando Calígula manifestou a intenção de se mudar para Alexandria, onde poderia ser adorado como Deus, muitos romanos influentes perceberam que havia chegado a hora de se livrar do lunático imperador…

A elite política romana estava farta das insanidades de Calígula. Talvez ela até aguentasse as excentricidades e bizarrices se tais comportamentos não comprometessem a deferência e os privilégios aos quais os senadores se julgavam merecedores, mas esse definitivamente não era o caso, já que Calígula não titubeava em tratar os senadores como súditos e submetê-los a inúmeras humilhações.

Assim, somos da opinião de que quando os senadores perceberam que Calígula também não era benquisto por um bom número de seus próprios guarda-costas, a conspiração para se livrarem do perturbado imperador ganhou corpo, e foi posta em prática no dia 24 de janeiro de 41 D.C.,  por elementos da Guarda Pretoriana, como relatamos no início do nosso texto.

Contudo, se os conspiradores alguma vez de fato tiveram alguma esperança de restaurar a República, a realidade tratou de sepultar imediatamente suas aspirações, pois a própria Guarda apresentou ao Senado, o tio de Calígula, Cláudio, como sucessor, demonstrando que, após mais de setenta anos de governo de Augusto e de seus sucessores Júlio-Cláudios haviam colocado a ideia de um regime de uma República governada pelo Senado definitivamente nos livros de História.

FIM

TEODÓSIO – A IGREJA NO PODER

Em 11 de janeiro de 346 D.C, em Cauca (Coca), a 50 km da atual cidade de Segóvia, na província romana da Hispania Gallaecia, nasceu Flavius Theodosius (o futuro imperador romano Teodósio), filho de seu pai homônimo, Flavius Theodosius (Conde Teodósio”, e de Flavia Thermantia (Termântia).

O pai de Teodósio, chamado de “Teodósio, o Velho“, pelos historiadores, para distingui-lo do filho que viria a se tornar imperador, foi um renomado general, também nascido na Hispânia, que teve uma brilhante carreira durante o reinado do imperador Valentiniano I, sendo, em 368 D.C, designado para ocupar o cargo de Conde (Comes) da Britânia, onde, acompanhado do filho, derrotou uma insurreição promovida por tropas romanas amotinadas aliadas a tribos bárbaras.

Posteriormente, Teodósio, “o Velho” foi promovido ao importantíssimo posto de Comandante-em-chefe de Cavalaria do Exército Romano (Magister Equitum) e, novamente acompanhado do filho Teodósio, teve decisiva atuação na campanha contra os bárbaros Alamanos.

Em 373 D.C, o jovem Teodósio já tinha prestígio próprio bastante para ser apontado por Valentiniano I como governador da Moésia superior e Duque (Dux, ou seja, comandante militar daquela província), onde combateu com sucesso os Sármatas.

Enquanto isso, Teodósio, “o Velho” foi enviado à província da Mauritânia, na África, para combater a rebelião de Firmus Mouro, um nobre berbere que ocupava um comando militar no exército romano naquela província. Após uma duríssima campanha, o pai de Teodósio conseguiu derrotar a insurreição e Firmus cometeu suicídio.

Em 375 D.C, Valentiniano I, o último imperador romano que efetivamente comandou um exército poderoso, faleceu após mais um dos seus temidos ataques de fúria, que desta última vez foi causada pelo comportamento insolente de embaixadores da tribo dos Quados, explosão que lhe causou um derrame em plena audiência.

Não se sabe exatamente o motivo, mas, logo após a morte de Valentiniano I, o pai de Teodósio foi preso, quando ainda estava em Cartago, e ali mesmo executado. Muito provavelmente essa execução estava ligada à crise causada pela inesperada sucessão do imperador falecido, quando alguns generais do exército romano, notadamente o general de origem franca Merobaudes aclamaram como imperador Valentiniano II, com apenas 4 anos de idade, forçando Graciano, o filho mais velho de Valentiniano I, então com 16 anos de idade, a aceitar o irmão como co-imperador do Ocidente (Assim, inaugurando uma tendência que dominaria as últimas décadas do império romano: a escolha de imperadores fantoches por comandantes militares de origem bárbara).

Essa solução acabou sendo aceita também por Valente, irmão de Valentiniano I, que, desde 364 D.C., reinava sobre a metade oriental do Império, em Constantinopla. Desse modo, é bem possível que o Conde Teodósio tenha sido executado por ter sido contra aquela manobra, ou, ainda, por ser percebido como um obstáculo ao projeto de poder de Merobaudes.

Teodósio, por sua vez, no mesmo ano em que ocorreu a morte do pai, foi destituído de seu comando e voltou para as terras de sua família, na atual Galícia, dedicando-se aos seus assuntos privados. Discute-se se esse “exílio” de Teodósio foi devido à desgraça do pai ou se foi por causa da derrota de duas legiões que ele comandava para os Sármatas, em 374 D.C. Nesse caso, isso teria sido uma punição infligida ainda em vida por Valentiniano I, que, notoriamente, não tolerava as derrotas de seus generais,  a quem ele frequentemente responsabilizava pelos erros de seus subordinados.

Todavia, em 378 D.C, uma das maiores catástrofes militares sofridas pelos romanos, e talvez a que tenha acarretado as piores consequências, mudaria para sempre a sorte de Teodósio.

Cerca de 200 mil Godos, após cruzarem a fronteira romana do rio Danúbio, procurando asilo motivado pela sucessão de migrações causadas pelo avanço das tribos hunas em direção ao Ocidente, acabaram se revoltando, invadindo a província romana da Trácia.. O efetivo militar dos Godos é calculado entre 20 e 30 mil homens.

Ao saber da invasão, Valente, o Imperador Romano do Oriente, comandando todo o seu exército e sem esperar pelo auxílio das tropas de seu sobrinho Graciano, Império Romano do Ocidente, resolve atacar sozinho os bárbaros, que, liderados pelo Chefe Fritigern, se encontravam entrincheirados próximos à cidade de Adrianópolis, em uma boa posição defensiva, protegidos por um círculo de carroções parecidos com os dos pioneiros do Velho Oeste americano (formação conhecida como “laager“), sem se dar conta de que a cavalaria Goda estava ao largo. Assim, deu-se o desfecho trágico e antes que a noite do dia 09 de agosto de 378 D.C. terminasse, dois terços do exército romano, cerca de 40 mil soldados, morreriam na chamada Batalha de Adrianópolis, incluindo o imperador Valente, cujo corpo jamais foi encontrado em meio à montanha de cadáveres, vários generais e centenas de oficiais.

(Foto 1: Moeda Solidus de Valente; Foto 2: Círculo defensivo de carroções)

A morte de Valente automaticamente tornaria seu sobrinho Graciano, o Imperador Romano do Ocidente (lembrando que a Itália, da África e de parte da Ilíria, eram formalmente governadas pelo seu irmão Valentiniano II, de apenas 7 anos de idade) o governante também do Oriente.

Com os Godos à vontade para se locomoverem nos Bálcãs ( o que ameaçava a própria Itália), sem opções militares, tendo em vista que mal acabara de concluir uma campanha contra os Alamanos, poucos meses antes do desastre de Adrianópolis, e não havendo mais generais experientes no Oriente, Graciano resolve chamar Teodósio de seu retiro na Espanha e, em raro gesto de desprendimento somado à necessidade, o nomeia Augusto, em 19 de janeiro de 379 D.C, entregando-lhe o trono da metade oriental do Império Romano.

Obviamente que o primeiro problema que o novo Imperador Romano do Oriente teve que enfrentar foi a ameça dos Godos, que pilhavam à vontade a Trácia e a Ilíria, somente sendo incapazes de sitiar com sucesso cidades protegidas por boas muralhas, por falta do “hardware” e do “know-how” necessários para esta difícil tarefa.

Para isso, ele precisava de tropas e ele tentou formar um exército, convocando veteranos e até trazendo unidades do Egito. Segundo o historiador pagão Zózimo, Teodósio também recrutou amplamente guerreiros bárbaros, observando que as tropas do Egito acabaram tendo a disciplna severamente enfraquecida pelo convívio com os indisciplinados germanos.

Neste ponto, deve ser observado que o Exército Romano do Oriente sofrera duas grandes derrotas no espaço de quinze anos. Em 363 D.C, a invasão da Pérsia pelo Imperador Juliano resultara em uma grave derrota, com o imperador sendo ferido no campo de batalha e morrendo em sua tenda. E agora, pouco antes da ascensão de Teodósio, dois terços do exécito tinham sido aniquilados em Adrianopla.

O problema do recrutamento sempre foi recorrente durante o Império Romano. A Itália, esteio principal do Exército durante a República, ao longo do Império cessou de contar como fornecedora de tropas. Seus cidadãos tinham ficado durante muito tempo praticamente isentos do serviço militar. De fato, depois que O primeiro imperador Augusto estabelecera as 28 legiões em quartéis na fronteira, os legionários passaram a ser recrutados entre colonos de cidadania romana estabelecidos nos locais onde as legiões estavam baseadas. Já os auxiliares eram recrutados entre os povos vizinhos que tinham vocação guerreira e adquiriam a cidadania romana após 20 anos de serviço. A vida de soldado era dura e não era para qualquer um. Os citadinos amolecidos pelos confortos da vida urbana dificilmente seriam aptos para uma vida de longas marchas em terreno difícil, dormir em barracas precárias em lugares inóspitos e combates cada vez mais sangrentos.

O fato é que os romanos, ainda durante a República, recrutaram contingentes de origem estrangeira para o seu exército. Unidades de cavalaria germânica, por exemplo, foram empregadas por César e Augusto. Porém, o normal era empregar as unidades estrangeiras subordinadas a uma legião, sob o comando de um general romano e submetidas à disciplina militar romana.

As evidências apontam que, a partir do imperador Constantino, uma boa parte dos soldados do Exército Romano era de origem germânica, sobretudo no Ocidente. A “germanização” do Exército é um fato atestado. O próprio Constantino foi aclamado imperador pelas suas tropas e erguido em cima de um escudo, um tradicional costume germânico de saudar um novo chefe. No século IV D.C, registrou-se que os soldados romanos utilizavam o tradicional grito de batalha dos bárbaros, o “baritus”. E o nome de vários generais e soldados mencionados nos textos denota clara origem germânica.

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(soldados romanos do início do século IV D.C)

A partir da metade do século III, Roma passou a enfrentar o desafio estratégico de lutar em dois fronts: 1) A constante investida dos povos germânicos situados na fronteira do Reno e Danúbio começou a aumentar devido a pressão gerada pelas migrações de povos vindos da Escandinávia e do Leste Europeu, deslocadas pelo avanço dos Hunos para o Ocidente a partir da fronteira com a China; 2) A subida ao poder dos nacionalistas Sassânidas na Pérsia que adotaram uma política de confronto militar para conter a influência romana na Armênia e no Oriente Médio, resultando em um estado de guerra constante do século III ao século VII.

Feita essa explanação da situação estratégica de Roma e da situação do Exército Romano antes da derrota de Adrianópolis, é sintomático que uma das medidas tomadas por Teodósio, a qual demonstra a magnitude que o problema do recrutamento de tropas representava para o Império Romano naqueles tempos e o estado desesperador do setor militar romano, tenha sido reformar um Decreto de Valentiniano I determinando que aqueles que tentassem fugir do recrutamento cortando os próprios polegares seriam queimados vivos – Teodósio mudou o Decreto para prever que para cada recruta que se apresentasse sem um dos polegares, outro recruta, da mesma circunscrição, deveria ser apresentado, ou seja, o recruta amputado teria que servir e o seu vilarejo ainda teria que mandar outro!

Não obstante esse quadro, o historiador Zózimo narra que Teodósio começou o seu reino demonstrando indolência e luxo, aumentando o número de funcionários-eunucos e aumentando os gastos com a manutenção da corte. Parece que o julgamento do cristão devoto Teodósio pelo pagão Zózimo seria de uma suspeita severidade, mas certamente a gravidade dos tempos pedia um líder da estatura de um Cipiáo , de um César ou Diocleciano, este último um reformador implacável que enfrentou uma situação parecida com a de Teodósio.

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(Prato de prata, dito Missorium de Teodósio, que está representado no centro.)

De qualquer forma, parece que a tentativa de Teodósio de reforçar o exército romano oriental não teve sucesso. As fontes não são claras, mas tudo indica que, no verão de 380 D.C, o novo exército de Teodósio foi, mais uma vez, derrotado pelos Godos, na Macedônia e na Tessália, ainda que não de forma catastrófica. Teodósio, então, teve que deixar a cidade de Tessalônica, que havia sido o seu quartel-general durante os dois primeiros anos à testa do governo do Oriente e se refugiar na inexpugnável Constantinopla.

A tarefa de conter os Godos nos Bálcãs ficou a cargo do Imperador do Ocidente, Graciano, que enviou para lá um exército comandado pelos generais Bauto e Arbogaste, ambos militares bárbaros de origem franca que serviam o Império.

Os Godos se dividiram em vários bandos. Um dos principais grupos, chamado de Ostrogodos, rumou para o oeste e invadiu a Panônia, No outro grupo importante, conhecido como Visigodos, estourou uma guerra entre o chefe Fritigern e o antigo rei, Atanarico, que foi se abrigar em Constantinopla, lugar onde, em 381 D.C., ele foi recebido com surpreendentes honras por Teodósio.

Em 3 de outubro de 382 D.C, Teodósio firmaria um polêmico Tratado de Paz com os Godos, um inédito acordo que teria consequências duradouras: os Visigodos seriam recebidos dentro do Império Romano como aliados (foederati), recebendo a autorização para se instalarem na Moésia, diocese setentrional da Trácia, continuando a serem governados pelos seus chefes e somente com a obrigação de lutarem quando convocados pelo Imperador, porém como um exército independente. Os visigodos também receberiam tributos em forma de provisões a serem pagas pelos súditos romanos da Mésia e seus chefes um pagamento anual em ouro.

Talvez tenha parecido, a muitos contemporâneos, que uma composição com os Godos era uma medida razoável. Um orador do período, Themistius, louvando Teodósio, até escreveu, esperançosa ou aduladoramente, que os Godos trocariam a espada pelo arado e, romanizados, revitalizariam aquela província. A posteridade, porém, reconheceria que aquele ato de Teodósio foi desastroso: O assentamento permanente dos visigodos dentro do Império seria um fator decisivo de enfraquecimento romano. Com efeito, em 410 D.C, o Império seria abalado pelo saque de Roma pelos visigodos, e eles ainda pilhariam a Gália, até se instalarem na Hispânia, onde criariam um reino independente que duraria até a invasão árabe no início do século VIII D.C.

Enquanto isso, em 25 de agosto de 383 D.C, morreu Graciano, o colega de Teodósio no Ocidente, assassinado em Lyon, para onde teve que fugir após não conseguir debelar a revolta do general da Britânia, Magnus Maximus, um militar também de origem espanhola que havia servido como subordinado do Conde Teodósio, e invadira a Gália para depor o imperador, filho do primeiro, supostamente pelo fato das tropas estarem insatisfeitas com a preferência que Graciano dava às tropas compostas por bárbaros alanos.

Valentiniano II, o jovem irmão de Graciano, que, por influência dos generais francos havia sido reconhecido por ele como co-imperador seria o próximo alvo de Maximus. Teodósio então, pressionado pelas circunstâncias, acabou concordando em reconhecer Maximus como novo imperador das províncias governadas por Graciano, sob o compromisso de que Maximus reconheceria Valentiniano II como co-imperador no Ocidente.

Esse arranjo durou até 387 D.C, quando Maximus resolveu invadir a Itália para derrubar Valentiniano II e assumir o controle total do Ocidente. Um dos motivos principais era a crescente influência de Teodósio nos assuntos da corte de Valentiniano II. Assim, em um momento em que a ameaça externa era enorme, mais uma vez os maltratados exércitos romanos se enfrentariam em uma nova guerra civil, pois Teodósio resolveu intervir e, após juntar suas forças com as de Valentiniano II, que recuara para Tessalônica, valendo-se de seus aliados visigodos e de mercenários hunos, conseguiu derrotar Maximus na Batalha de Siscia, no rio Sava, na atual Croácia, em 388. Maximus conseguiu fugir, mas foi capturado e executado próximo a Aquiléia, em 28 de agosto de 388 D.C.

Na prática, mas ainda não de direito, Teodósio tornou-se o virtual imperador de todo o Império Romano. Ele ficaria ainda três anos na Itália, voltando para Constantinopla em 391 D.C. Oficialmente, porém, o novo imperador único do Ocidente passara a ser Valentiniano II. Contudo, o real poder militar estava nas mãos do general de origem franca Arbogaste, na qualidade de Comandante-em-chefe da Infantaria (Magister Peditum Praesentalis).

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(base do obelisco de Teodósio, no Hipódromo de Constantinopla, mostrando o Imperador presidindo uma corrida)

Em 392 D.C, após um desentendimento público com Arbogaste, Valentiniano II foi encontrado enforcado em seus aposentos. As suspeitas, obviamente, recaíram sobre o general franco. A esposa de Teodósio, a imperatriz Gala, irmã do falecido, não engoliu a tese de suicídio e instou que o marido investigasse a morte do irmão. Porém, Arbogaste não perdeu tempo e, incapaz de assumir ele mesmo o trono, devido a sua origem bárbara, aclamou, em 22 de agosto de 392 D.C, o inesperado Eugênio, que era apenas um professor de retórica, e ministro de Valentiniano II, como novo Imperador Romano do Ocidente.

Teodósio recusou-se a reconhecer Eugênio e preparou-se para invadir a Itália. Durante os preparativos, Teodósio nomeou, em janeiro de 393 D.C, o seu filho de 4 anos, Honório, como Augusto do Ocidente, o que inviabilizou qualquer tentativa de composição com Eugênio. Além disso, Eugênio, embora aparentemente fosse cristão, tomou medidas simpáticas aos pagãos, especialmente para o ainda muito influente grupo de senadores pagãos de Roma, inclusive financiando a restauração de templos pagãos na Cidade. Ele provavelmente tinha, portanto, o suporte de uma boa parte da aristocracia romana tradicional e, indiretamente, de todos os pagãos ainda influentes…

Em 394 D.C, Teodósio estava pronto e marchou em direção a Itália, com seu exército. A longa preparação era necessária pois, nominalmente, o exército do Ocidente era considerado maior e melhor. Ele ainda mantinha um núcleo de tropas tradicionalmente romanas, no que se refere à disciplina e táticas e não havia sofrido tantas baixas como o exército oriental, derrotado fragorosamente em 363 e 378 D.C .

Os oponentes se encontraram no rio Frigidus, no território da atual Eslovênia, em 5 de setembro de 394 D.C. Consta que imediatamente, dispensando qualquer reconhecimento ou preparação, Teodósio mandou os seus 20 mil Visigodos comandados pelo rei Alarico (que mais tarde saquearia Roma) atacarem uma posição bem defendida pelas tropas de Eugênio. Após duríssimos combates, os Visigodos foram repelidos, perdendo 10 mil homens. Muitos estudiosos acreditaram que com esse ataque, Teodósio deliberadamente visou enfraquecer os seus aliados Godos, que eram reconhecidamente a principal ameaça militar ao Império Romano.

As fontes também relatam que, antes do início da batalha, Eugênio e Arbogaste ordenaram que duas estátuas de Júpiter fossem colocadas nos flancos do seu Exército e que estandartes fossem pintados com a imagem de Hércules, dando, assim, um nítido caráter de guerra religiosa ao confronto, já que as tropas de Teodósio, incluindo os Visigodos que professavam a heresia Ariana, eram cristãs.

Assim, no primeiro dia da batalha, o exército de Eugênio e Arbogaste levou a melhor, sendo relatado que houve entusiasmadas comemorações em seu respectivo acampamento.

No dia seguinte, Teodósio, que passara a noite em claro, foi estimulado pela notícia de que um contingente que Arbogaste enviara para guardar umas passagens entre as montanhas desertara para o seu lado. Reanimado, ele decidiu, assim, renovar o ataque. Então, segundo o relato das fontes, no exato momento em que suas tropas atacavam, começou a soprar o fortíssimo vento conhecido como “Bora“, um fenômeno natural que ocorre ainda hoje na região. jogando nuvens de poeira nos olhos das tropas de Eugênio, que, impedidas de combater com eficiência, foram derrotadas. Posteriormente, o influente Ambrósio, Bispo de Milão, mencionaria que o vento decorreu da intervenção divina em favor da Cristandade.

Eugênio, capturado, foi decapitado. Já Arbogaste conseguiu fugir, mas, após vagar sem rumo, perseguido durante dias, preferiu cometer suicídio.

Teodósio tornava-se, assim, o único Augusto reinante, e, efetivamente, o último Imperador a reinar oficialmente sobre as duas metades do Império Romano.

Todavia, em 17 de janeiro de 395 D.C, apenas 4 meses após se tornar o último Imperador a reinar sobre as duas metades, Ocidental e Oriental, do Romano, Teodósio faleceu, em Milão, de causas naturais. Antes de morrer, porém, o imperador tomou as medidas necessárias para que seus filhos Honório e Arcádio se tornassem, respectivamente, após a sua morte, os Imperadores Romanos do Ocidente e do Oriente.

CONCLUSÃO

Para quem olhasse de fora, apenas contemplando um mapa do Império Romano, era um império cuja área era maior do que aquele sobre o qual Augusto reinara, 400 anos antes, e somente um pouco menor do que o de Trajano.

Contudo, era um Império que tinha dentro de si um povo inimigo inteiro, e que dependia de outras tropas recrutadas entre essas mesmas etnias para se defender de outros inimigos que rodeavam suas fronteiras; e, tão grave quanto isso, cuja economia suportava um esforço enorme para custear essa defesa e, que, não menos importante, ainda se via corroído por sangrentas disputas religiosas.

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Assim, em 27 de fevereiro de 380 D.C, Teodósio promulgou, em conjunto com Graciano e Valentiniano II, o Édito de Tessalônica, declarando o Credo Niceno-Trinitário como a única religião legítima do Império e a única passível de ser considerada “católica” (universal), e determinando que todo apoio oficial às demais religiões politeístas fosse encerrado.

Cristão devoto, Teodósio permitiu que a crescente intolerância religiosa por parte do Cristianismo triunfante desaguasse na destruição de importantes templos pagãos, como o Serapeum, em Alexandria, que degeneraram em massacres. Ele também proibiu os sacrifícios pagãos e os Jogos Olímpicos .

Com efeito, em vários episódios, Teodósio mostraria-se submisso à forte personalidade de Santo Ambrósio, Bispo de MIlão, e, quando ele foi excomungado pelo referido prelado, chegou a fazer meses de penitência, fato inaudito para um imperador romano que inaugurou a tendência, frequente na Idade Média, de submissão do poder temporal ao poder eclesiástico.

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(Mosaico do século V, com a figura de Santo Ambrósio, que demonstrou ter ascendência moral sobre o imperador Teodósio)

Ademais, a Batalha do Rio Frígido terminaria por desmoralizar de vez o Exército Romano. Embora houvesse bárbaros lutando dos dois lados, o exército vencedor, o de Teodósio, fora quem empregara os foederati Visigodos em larga escala. E foram eles quem suportaram o maior castigo, reivindicando, a partir daí, a primazia e as recompensas das quais julgavam que o seu esforço era merecedor. O exército de Eugênio, que ainda tinha um núcleo romano tradicional, fora derrotado. A partir de então, a esperança de que o imperador poderia formar e treinar um exército composto majoritariamente de cidadãos romanos começou a desvanecer.

Por tudo isso, para muitos historiadores, Teodósio lançou o Império em um “ponto de não-retorno”, cujo resultado foi a Queda do Império Romano do Ocidente.

FIM