Por Eduardo André
O Vinho ocupava um espaço central na vida romana, assim como em praticamente todas as civilizações mediterrâneas. Não à toa, a bebida, juntamente com o trigo e a oliveira, era um componente do tripé daquilo que os historiadores consideram como sendo o sustentáculo das civilizações da orla do Mediterrâneo: a chamada Tríade Mediterrânea, tão bem explicada pelo grande historiador francês Fernand Braudel.

É praticamente consenso que a vitivinicultura chegou aos romanos inicialmente por meio dos Etruscos, e em seguida, dos gregos que a trouxeram para o sul da Itália (Magna Grécia). Inclusive, Enotria (ou Oenotria) era o nome que os gregos deram à região (entre Paestum e o sul da Calábria), com o significado de “Terra dos Vinhedos”…
Conquistando paulatinamente os Etruscos e as cidades gregas do Sul da Itália, Roma absorveu e incorporou toda a cultura vinícola desses povos, e, em seguida, o mesmo ocorreu em relação à Grécia e Cartago, que praticavam técnicas avançadas e cultivavam variedades próprias.
CULTIVO
Segundo nos conta Plínio, o Velho (História Natural, Livro XIV), de acordo com o costume romano, as vinhas eram podadas anualmente e, na Campânia, as plantas, em princípio, eram colocadas para crescer em torno dos álamos ou outras árvores. O naturalista romano também descreve as técnicas de cultivo em latadas (estruturas em grades de madeiras ou pergolados, ainda muito comuns na Itália e no sul do Brasil, onde as parreiras ficam suspensas) e, para a surpresa de muitos, ele também cita, como é mais comum atualmente, uma forma de cultivo similar à espaldeira, em que as vinhas são plantadas em fileiras brotando diretamente do solo, apoiadas em estacas (obviamente sem os “cavalos de videira”, isto é, os tocos de videiras nativas da América que foram adotados como porta-enxertos das variedades viníferas europeias, após a praga da Filoxera, que devastou os vinhedos europeus no século XIX). Segundo Plínio, o cultivo semelhante à espaldeira era preferencialmente praticado em algumas províncias, como a Gália Narbonense.
VARIEDADES
Em sua História Natural, Plínio, o Velho já menciona a existência de incontáveis variedades de uvas e de vinhos no Mundo Romano, motivo pelo qual ele justifica que somente abordou os mais importantes. Para ele, os vinhos de mais alta qualificação seriam provenientes de um tipo de uva que os romanos chamavam de Aminaea (o texto sugere se trata de um tipo de uva, e não de uma espécie individual, que compreendia cinco variedades) e que melhoraria com o envelhecimento. Entre as regiões onde a Aminea era cultivada, o naturalista cita especificamente o Monte Vesúvio e as colinas de Sorrento. Então, certamente, entre outros lugares, ela devia ser consumida, senão produzida, em Pompéia.

O vinho Falérnio, ou Falerno, o mais afamado no Império Romano, de acordo com Plínio, o Velho (originalmente era o Caecubum, mas, segundo o autor, este não era mais produzido quando o livro foi escrito), era produzido com a variedade Aminea Gemina na região de Falerno, que ficava na Campânia, em três vinhedos no sopé do Monte Massico, próximo à antiga cidade de Sinuessa, perto da fronteira com a região do Lácio (nos limites da atual província italiana de Caserta). Vários autores antigos exaltaram em seus textos a excelência do Falerno, como os poetas Horácio e Catulo e, de acordo com esses relatos, ele pode ser considerado o equivalente antigo de ícones tradicionais da região de Bordeaux, como um Petrus ou da Borgonha, como um Romaneé-Conti. Tudo indica que devia ser um vinho branco, possivelmente fortificado, doce e de colheita tardia, com alto teor alcoólico, pois, segundo Plínio, o líquido acenderia quando em contato com uma chama.

Da mesma forma que ocorre hoje com os vinhos de qualidade, o Falerno era safrado, e Plínio cita que Júlio César, ao celebrar suas vitórias na Hispânia, em 60 A.C, mandou servir no banquete comemorativo vinho falérnio da safra de 121 A.C, chamada de Opimiano, porque foi colhida no consulado de Lucius Opimius, no referido ano (os romanos identificavam os anos de acordo com o nome dos cônsules ordinários que exerceram o consulado nos mesmos). Aliás, ainda segundo Plínio, foi César, já em seu terceiro consulado (46 A.C.), quem, pela primeira vez em Roma, no banquete, comemorativo de seu triunfo, teria servido quatro tipos de vinhos diferentes aos comensais (vinho Falerno, e os vinhos Quiano, isto é, de Quios, na Grécia, Lésbio e Mamertino – vide História Natural, Livro XIV, capítulo 17).
Terminado o jogo, Trimalchião foi servido com uma porção de todos os aperitivos e anunciou em voz alta a sua vontade de se juntar a qualquer um dos convidados numa segunda taça de vinho com mel, quando, ao som de uma música, os petiscos foram subitamente levados por escravos cantando; porém, um pequeno prato caiu no chão, e, na correria, e um escravo o pegou. Vendo isso, Trimalquião ordenou que o menino fosse punido com um tapa na orelha, e obrigou-o a jogá-lo novamente no chão; então, um zelador surgiu com sua vassoura e varreu o prato de prata no meio do lixo. A seguir vieram dois etíopes de cabelos compridos, carregando pequenas garrafas de couro, como as que comumente são vistas nas mãos dos que espalham areia na arena, e derramaram vinho em nossas mãos, porque ninguém nos ofereceu água. Quando elogiado por essas elegantes extravagâncias, o anfitrião gritou: "Marte adora uma luta justa, por isso encomendei uma mesa separada para cada um: assim esses escravos fedorentos não nos farão sentir calor com sua aglomeração". Algumas garrafas de vidro cuidadosamente seladas com gesso foram trazidas naquele instante e uma etiqueta com esta inscrição estava fixada no gargalo de cada uma:
“OPIMIANO FALÉRNIO 100 ANOS”
Enquanto estudávamos os rótulos, Trimalchião bateu palmas e gritou: "Ah, eu! De pensar que o vinho vive mais que o pobre e insignificante homem! Vamos encher as taças! Há vida no vinho e este é o verdadeiro Opimiano, vocês podem confiar no que eu digo. Ontem, eu não ofereci tal safra, embora meus convidados fossem muito mais respeitáveis...""
(Petrônio, Satyricon, capítulo 34)
As escavações em Pompéia permitiram encontrar e identificar vinhedos e inferir os tipos de uvas que neles eram plantadas (o que ocorria até mesmo em jardins de residências particulares), sendo que viticultores especialistas, analisando sementes, troncos e impressões de folhas, acreditam que existe parentesco entre as variedades Aglianico e Falanghina, atualmente extensamente cultivadas na região, com as uvas que eram cultivadas pelos Romanos quando da erupção do Vesúvio, em 79 D.C.
Cientistas que analisaram sementes de uvas encontradas em sítios arqueológicos da época romana no sul da França encontraram laços estreitos entre as amostras obtidas e duas variedades de uvas altamente populares hoje: Syrah, que provavelmente descende (e até mesmo poderia ser a mesma) da variedade denominada allobrogica, mencionada pelos autores antigos como sendo cultivada na região do rio Rhône, e Pinot Noir (que para outros seria de fato a allobrogica). Por sua vez, testes de DNA comprovaram que as variedades suiças Humagne Blanc e Amigne descendem diretamente de uvas cultivadas pelos romanos. (vide: https://www.inrae.fr/en/news/dna-ancient-roman-and-medieval-grape-seeds-reveals-unexpected-links-modern-grape-varieties).
Havia também uma variedade chamada de biturica, citada por Columella (Lucius Junius Moderatus Columella) em sua obra “De Re Rustica” (que contém 3 volumes tratando do cultivo e produção de vinhos), que para alguns especialistas seria ancestral das Cabernet.
A leitura do texto de Plínio, o Velho sobre o cultivo e consumo do vinho no mundo romano permite observar que compartilhamos com os Romanos muitos dos usos e costumes relacionados à Enologia e cultura enogastronômica moderna: Safras consideradas boas de produtores renomados eram compradas ainda nos parreirais pelos comerciantes, e as ânforas dos vinhos produzidos com elas, mesmo décadas depois, adquiriam preços astronômicos. Os apreciadores de vinho atribuíam sua boa saúde e longevidade ao consumo da bebida e também havia os espertalhões que vendiam vinhos inferiores como se fossem vinhos caros. Em Pompéia, por exemplo, em uma taberna (termopolium), descobriu-se um anúncio de uma dose de vinho “Falérnio” por 4 asses (moeda romana de bronze ou cobre, normalmente usada para troco e pagamentos de pequeno valor), sem dúvida uma ninharia, pois, segundo os relatos antigos, uma ânfora de um genuíno Falérnio poderia ser trocada por um escravo.
Citemos, como curiosidade, a seguinte passagem, escrita por Plínio, sobre a influente imperatriz Lívia Drusila, também conhecida como Júlia Augusta, esposa do primeiro imperador romano, Augusto:
” Júlia Augusta atribuía os seus 86 anos de vida ao vinho de Pizzino, nunca tendo bebido nenhum outro”.
Plínio, o Velho, História Natural, Livro XIV, 8, 59-62;
Acredita-se que o “Vinho de Pizzino” fosse um tipo de vinho espumante, semelhante ao Prosecco.

PRODUÇÃO
A leitura das obras dos autores antigos que se debruçaram sob o tema da vitivinicultura, como Plínio, o Velho, Columella e Catão, o Velho, mostra que os Romanos já utilizavam muitas das técnicas conhecidas dos produtores modernos: eles sabiam que a poda das videiras melhorava a qualidade do vinho, assim como o distanciamento das mesmas permitia melhor insolação, plantavam mudas de outras plantas, como lavanda, ou árvores junto às mesmas, lavavam e purificavam periodicamente os recipientes utilizados para a fermentação e sabiam que os vinhos produzidos com o primeiro mosto obtido das bagas eram de melhor qualidade. Os romanos conheciam e praticavam também a “colheita tardia”, na qual o teor de açúcar da uva é aumentado. Ao introduzirem o plantio de vinhas às margens dos rios Reno e Mosela, os Romanos aprenderam que a plantação em terraços descendentes protegia os vinhedos do vento gélido e favorecia a melhor insolação, exatamente como é feito atualmente na mesma região e em outras, como ao longo do rio Douro. Eles também sabiam que deixar o vinho branco envelhecer um pouco em contato com a borra contendo leveduras mortas contribuía para diminuir a acidez e acrescentar notas de tostado e nozes, técnica conhecida na França atual como “sur lie“.
Inclusive, os cientistas Dimitri Van Limbergen, da Ghent University e Paulina Komar, da Universidade de Varsóvia, publicaram na revista Antiquity um artigo demonstrando que o vinho romano provavelmente tinha um sabor ligeiramente picante e tinha aromas semelhantes ao pão torrado e nozes.
De acordo com a matéria sobre o referido estudo, publicada pela revista Newsweek, Van Limbergen e Paulina Komar estudaram as “Dolia” antigas – um tipo de vaso ou pote usado para armazenar o vinho nos tempos romanos antigos – comparando-as com o vinho produzido nos chamados qvevri, recipientes muito semelhantes usados até hoje para produzir vinho na República da Geórgia. As Dolia eram utilizadas não apenas para guardar o vinho, mas também para produzi-lo e envelhecê-lo.
“Os resultados do nosso estudo nos forçam a questionar várias suposições de longa data sobre a vinificação romana. Em primeiro lugar, usando as técnicas que descrevemos em nosso artigo, os romanos eram capazes de fazer vinhos muito melhores, mais saborosos e muito mais estáveis do que se supõe”.
“A natureza generalizada das adegas com recipientes de barro (dolia) no mundo romano entre o século III ou II d.C. e o século III ou IV d.C. sugere o desenvolvimento de uma indústria vinícola em uma escala nunca alcançada antes, e com um nível de experiência e um perfil sensorial há muito obscurecido”.
“Ideias modernas de classificação de vinhos são inúteis para capturar a natureza do vinho romano. As cores do vinho, por exemplo, não eram subdivididas por padrão entre branco e tinto (como é feito hoje), mas para os romanos, elas pertenciam a um amplo espectro de cores que variam de branco e amarelo a dourado, âmbar, marrom e depois vermelho e preto, tudo baseado em uvas maceradas com a casca.”
Van Limbergen, em entrevista à revista Newsweek (conferir link no texto)
Hoje em dia, a maioria do vinho é feita em grandes recipientes de metal, o que permite que mais vinho seja produzido em massa. Já as “dolia” são comparáveis ao qvevri, que são vasos usados para fazer vinho na atual República da Geórgia. O processo usado neste processo de vinificação mostrou-se muito semelhante ao que os romanos teriam utilizado para fazer vinho nas dolia.

De acordo com o estudo, a base estreita do vaso de fermentação permitia que os resíduos sólidos da uva fossem separados do vinho. Ao contrário de muitos dos vinhos típicos que consumimos, esse processo de fermentação dava ao líquido uma cor laranja.
O sabor picante surgia ao se enterrar as dolia no chão, diz o estudo. Isso significava que o pH e a temperatura eram bem controlados enquanto o vinho envelhecia. As leveduras tinham mais oportunidade de fermentar, produzindo um composto conhecido como sotolon.

A vinificação em qvevri e dolia é extremamente simples e uma forma engenhosa de produzir vinho, segundo Van Limbergen, mas ele ressalva:
““Grandes adegas cheias de dolia eram investimentos de um tipo que só poderia ocorrer em circunstâncias economicamente favoráveis, e sua presença atesta a prosperidade econômica no mundo romano no final dos tempos republicanos e no início do império.
Ao mesmo tempo, muitas famílias podiam pagar um dolium, e a produção de vinho provavelmente fazia parte da vida quotidiana de muitas famílias, tornando o vinho um produto consumido numa ampla escala social (muitas famílias hoje na Geórgia produzem o seu próprio vinho e mantêm-no próximo de na cozinha ou numa adega dentro de um qvevri, isto deve ter sido bastante semelhante no mundo romano).”
A textura deste vinho também teria sido diferente do vinho que consumimos hoje. O barro da vasilha conferia ao vinho uma “sensação de ressecamento” na boca. Segundo os pesquisadores, isso era popular entre os paladares romanos.
Esta pesquisa não só nos ensina como era o sabor e o aroma do vinho, mas também dá aos arqueólogos novos detalhes sobre como viviam os romanos. A partir do processo de fermentação, fica claro que os romanos conheciam muitas técnicas diferentes de criação de vinho e podiam variar seu sabor e aroma. Eles manipulavam os sabores e aromas alterando o formato das dolia e a forma como eram armazenadas.
Em outra matéria jornalística que compilamos, publicada no site da Revista do Smithsonian Institute, uma adega recentemente descoberta no centro de Israel por uma equipe dirigida pelos arqueólogos Elie Haddad, Jon Seligman e Liat Nadav-Ziv, produziu alguns dos melhores vinhos do Mediterrâneo, já no período da Era Bizantina (que nada mais é do que o Império Romano do Oriente, que continuou existindo até 1453 D.C), a um ritmo de mais de meio milhão de galões por ano (um galão tem 3,78 litros), afirmam os arqueólogos da Autoridade de Antiguidades de Israel (IAA). Vide https://www.smithsonianmag.com/smart-news/1500-year-old-winery-found-in-israel-180978848/
Ao escavar no local de um projeto de construção nos arredores de Yavne, a sul de Tel Aviv, a equipe de Haddad encontrou cinco enormes lagares de vinho, cada um com cerca de 2.400 metros quadrados. Cada lagar incluía pisos com degraus, onde os trabalhadores esmagavam as uvas com os pés, bem como compartimentos para fermentar o vinho e cubas para o recolher. Também no local havia quatro grandes armazéns onde o vinho era envelhecido, bem como fornos onde os jarros de vinho eram cozidos.
O vinho produzido na região de Yavne e arredores era conhecido como Vinho de Gaza ou Ashkelon, devido aos portos próximos que o transportavam para outras partes do mundo mediterrânico.
“Era um vinho branco e leve”, disse Seligman ao Jerusalem Post. “Encontramos muitos lagares em Israel, mas o que é único aqui é que estamos falando de um conjunto de cinco lagares enormes, especialmente bonitos em sua arquitetura.”
Na instalação, os trabalhadores primeiro colocavam as uvas em pisos pequenos, onde a pressão do seu próprio peso fez com que produzissem suco “livre”, escreve Ruth Schuster, no jornal Haaretz. Este suco produzia um vinho da mais alta qualidade, livre de taninos amargos liberados quando as cascas das uvas eram esmagadas pela pisa. Depois disso, as uvas seguiam para as pisadas, onde se produziam vinhos menos sofisticados. Depois de as uvas terem sido prensadas com os pés, uma prensa de rosca as espremia para extrair os últimos sucos, para produzir vinhos ainda mais baratos.
Seligman disse que a equipe agora está tentando extrair DNA de sementes antigas de uva encontradas no local para determinar quais tipos foram usados na vinícola. Fontes antigas descrevem o vinho de Gaza servido na festa de coroação do Imperador Romano Justino II, em Constantinopla, ocorrida em 565 D.C., como “branco como a neve”.
A grande operação de estilo industrial não marcou o início da utilização do local para a vinificação. A escavação também encontrou lagares anteriores que datam de cerca de 300 a.C., bem como fornos usados para fazer recipientes que remontam ainda mais longe, ao período da Média Idade do Bronze, em quantidades que sugerem uma operação industrial.

BARRICAS DE VINHO ROMANAS
Como já mencionamos, os romanos, assim como a maioria dos povos mediterrâneos, desenvolveram a vinificação das uvas usando primordialmente como recipientes para fermentação e armazenamento ânforas de barro. Esta técnica vem sendo estudada por especialistas modernos e tem se verificado que resulta em vinhos de sabor agradável, embora um tanto diferente do que estamos acostumados.
Porém, sabe-se, inclusive mediante o relato de Júlio César, em seus Comentários às Guerras da Gália, que os romanos entraram em contato com a técnica de armazenar o vinho em barricas de madeira a partir da conquista da Gália, no século I A.C, e, ao longo da existência do Império Romano, esta técnica concorreu com as tradicionais ânforas de barro, sobretudo nas áreas aos longo dos rios Reno e Ródano, como é mostrado em vários relevos romanos antigos.

Em 2008, no rio Vesle, próximo à cidade de Reims, na França (considerada a capital do Champagne), arqueólogos chefiados por Philippe Rollet desenterraram três barris de madeira, em excelente estado de conservação, datados do século I ao século IV D.C.
A análise dos vestígios das aduelas do barril, no entanto, obteve restos reveladores de ácidos málico e tartárico, que são indicadores comuns de fermentação alcoólica. Além disso, havia marcas nos barris que indicavam que tinham sido utilizados no comércio de vinho antes de serem eventualmente reaproveitados.
Os barris de vinho romanos de Reims foram construídos quase exclusivamente com materiais colhidos no norte da Europa: as tábuas dos barris eram feitas de abeto prateado europeu, os aros, de mudas de avelã e o selante, de piche de madeira de pinho. Isto indica que provavelmente foram produzidos por fabricantes de barris ou tanoeiros locais, cujos serviços foram contratados por comerciantes ou atacadistas que operavam na metade norte da próspera e geograficamente expansiva rede de comércio de vinho do Império Romano. Não obstante, parece que, ao menos nos primeiros séculos, a técnica e os materiais utilizados no período, no que se refere à conservação do vinho, apresentavam resultados inferiores aos obtidos com o uso das ânforas de barro.
Os barris foram construídos para conter até 317 galões (1.200 litros) de vinho, o que seria suficiente para encher 1.500 garrafas fabricadas de acordo com os padrões modernos.
Uma parte interessante do estudo sobre as barricas encontradas em Reims mostrou que elas continham os selos ou marcas não só dos produtores das barricas, mas também dos produtores dos vinhos, dos negociantes atacadistas que as adquiriam e revendiam o vinho aos varejistas que supriam os consumidores, e até mesmo dos empresários encarregados de transportá-los, demonstrando a existência de uma rede organizada de comércio. Os pesquisadores, então, deduziram que as barricas eram encomendadas pelos negociantes, que as enviavam aos produtores para serem enchidas com a bebida, e que, após serem transportadas até o destino final, as barricas eram esvaziadas e deviam ser devolvidas aos negociantes, para serem reutilizadas. Todos os envolvidos gravavam os seus selos nas barricas, o que de certa forma, funcionava como marca de propriedade e selo de autenticidade, e também como uma espécie de “nota fiscal”, além de funcionar como controle de qualidade.
A descoberta pode ser consultada no link https://www.ancient-origins.net/news-history-archaeology/roman-wine-barrels-0014830

ÂNFORAS
Mas, as dolia e as barricas de madeira do tamanho das que foram encontradas em Reims obviamente eram grandes demais para serem transportadas por via terrestre até o consumidor final, ou para serem guardadas nas tabernas e nas residências ou, ainda, serem usadas nas ocasiões em que o vinho era consumido.
Para estas finalidades, o recipiente mais utilizado eram as ânforas de barro ou cerâmica. A palavra “ânfora” vem do grego “amphoreus“, sendo que “amphi” significa ambas ou dois lados, no caso, em referência às alças, e “phoreus” quer dizer carregador. As ânforas eram utilizadas na Antiguidade, e muito tempo depois, principalmente para transporte de vinho, azeite, e vários produtos agrícolas, como especiarias, ou até mesmo da indústria alimentícia antiga, como o molho “garum” Havia as maiores, destinados ao transporte comercial dessas mercadorias, sobretudo em navios, onde seu formato permitia que fossem engenhosamente empilhadas com segurança, mas também versões menores, para guarda sobretudo de vinho e azeite nas tabernas e nas residências, ou até mesmo para serviço de mesa.
No caso do vinho para ser consumido em casa, por ocasião de um banquete ou refeição, era comum deixar o vinho em uma ânfora de mesa acompanhado de uma “hídria” (vaso usando na antiguidade para servir água ) feita de cerâmica, bronze ou prata, contendo água para ser misturada ao vinho de acordo com o gosto dos convivas.
Com o tempo, os antigos romanos foram desenvolvendo ânforas com um formato específico para cada tipo de vinho, e, até mesmo, para cada região (e os achados arqueológicos mostram que havia uma quantidade enorme de formatos diferentes). Assim, os consumidores poderiam saber, só de olhar a garrafa, que vinho ela continha. Considerando que os índices de alfabetização no mundo greco-romano, embora consideráveis em comparação com os povos circundantes, eram muito inferiores ao atuais, devia ser importante que os iletrados pudessem escolher o seu vinho mesmo sem saber ler os anúncios nas vendas e tabernas, bem como que os estivadores encarregados de carregar e descarregar os navios pudessem separar corretamente as cargas.

O sistema de selos e anotações nos recipientes, que mencionamos no tópico referente às barricas de madeira com certeza foi aplicado primeiro nas ânforas de cerâmica: nelas foram encontradas inscrições feitas com carimbos no próprio barro quando ainda úmido ou pintadas após a secagem, seja relativas à olaria onde foram produzidas, ao volume que podiam transportar, seja relativas ao produtor do vinho, mencionando o nome do vinicultor, o tipo de vinho, a região, o ano de produção ou louvando a sua qualidade, seja, ainda, aquelas relativas ao negociante e ao transportador.
OS VINHOS ROMANOS QUE SOBREVIVERAM AO TEMPO
Em 1867, na cidade de Speyer, na Alemanha, no decorrer de uma escavação, foi encontrado, dentro de um sarcófago romano datado do século IV D.C (entre os anos de 325 e 350 D.C., segundo avaliações), uma garrafa de vidro contendo, em seu terço inferior, um líquido vermelho escuro, acima do qual havia substâncias resinosas.
O líquido estava selado com azeite grosso e cera de abelha, que certamente ajudou na sua preservação, e seu recipiente ficou conhecido como a Garrafa de Vinho de Speyer ou Römerwein (vinho romano, em alemão) e, então, foi considerado como sendo o vinho mais antigo ainda existente em estado líquido. A garrafa tem cerca de 1,5 litros de capacidade e possui duas alças em forma de golfinho, semelhantes às usadas em ânforas. O líquido dentro dela foi considerado pelos estudiosos como sendo uma mistura de vinho, resina e ervas, conservado em uma combinação de azeite de oliva, que criou uma camada protetora contra a oxidação.
Embora a tecnologia moderna permita a análise química do conteúdo, o vinho nunca foi aberto, principalmente por questões de conservação e respeito ao artefato histórico. Os especialistas acreditam que abrir a garrafa poderia comprometer a integridade do líquido e do próprio frasco. Tudo indica que o vinho que ela preserva pode ser enquadrado no tipo que os romanos denominavam de conditum, como veremos a seguir. A garrafa do Römerwein faz parte do acervo do Wine Museum, seção do Museu Histórico do Palatinado, em Speyer.

Porém, em 2024, o Römerwein perderia o seu título para outro exemplar de vinho romano, também ainda em estado líquido, descoberto em 2019 em uma tumba nos limites da cidade espanhola de Carmona, na Andaluzia, por um time de arqueólogos a serviço da Prefeitura da Cidade. A tumba, datada do século I D.C., inteiramente preservada e selada, continha os restos mortais de um homem chamado Senicio, de uma mulher, de nome Hispana, além de outros dois homens e duas mulheres. Uma urna de vidro continha as cinzas e restos de ossos de Senicio, imersos em um líquido de cor avermelhada.

Análises químicas feitas por uma equipe do Departamento de Química Orgânica da Universidade de Córdoba, liderada pelo Professor José Rafael Ruiz Arrebola, confirmaram que o líquido se tratava de vinho. O estudo foi publicado no Journal of Archaeological Science: Reports, em 2024.
Eles estudaram o pH do líquido e a presença de certos compostos químicos e os compararam a vinhos da denominação Montilla-Moriles, Jerez e Sanlúcar. A chave para a confirmação da natureza do líquido encontrado baseou-se na presença de polifenóis, substâncias presentes em todos os vinhos. E os pesquisadores encontraram sete polifenóis específicos presentes nas denominações espanholas supracitadas, comprovando que se tratava mesmo de vinho romano. A ausência de um polifenol específico, o ácido siríngico, indica que o vinho preservado provavelmente era vinho branco, embora os cientistas admitam que essa substância possa ter se degradado ao longo do tempo.
A matéria pode ser conferida em https://phys.org/news/2024-06-world-oldest-wine-rome.html
CONSUMO

O mosaico da foto acima, que hoje faz parte do acervo do museu do Chatêau de Boudry (foto copiada do site “http://www.chateaudeboudry.ch”😉 é um dos mais extraordinários mosaicos romanos que sobreviveram. Ele data do século V D.C. e acredita-se que seja originário da Síria e mostra uma cena de um banquete romano.
Bem no canto direito, podemos ver um escravo enchendo um recipiente em uma espécie de samovar, com o que parece ser água quente, pois sabemos que os romanos costumavam adicioná-la ao vinho (porém, os romanos, no verão, também apreciavam o oposto: beber vinho misturado com neve trazida dos picos das montanhas). Ou, quem sabe, pode ser o próprio vinho aquecido, com especiarias, como ainda se consome no norte da Europa (vin chaud).
Depois da sobremesa, um banquete que se pretendesse longo evoluiria para uma fase de degustação de vinhos, em variadas formas, chamada de comissatio (valendo observar que nos banquetes romanos, ao contrário dos symposia gregos, o vinho era servido já durante a refeição).
O vinho frequentemente era misturado com água ao gosto do convidado, em sua própria taça, para o qual ele se valia de uma concha, chamada de simpulum. Muitos acreditam que isso era necessário porque o processo de fermentação utilizado pelos romanos resultaria em um vinho de teor alcoólico muito elevado. E, provavelmente isto realmente era necessário para alguns tipos de vinho. Entretanto, conforme já vimos, cada vez mais surgem evidências de que os romanos eram capazes de controlar o processo de fermentação e produzir vinhos de vários tipos, assim eu acredito que na verdade essa era também uma forma dos convivas dosarem a quantidade de álcool que ingeriam, permitindo que bebessem mais, como hoje fazemos ao intercalar bebidas alcoólicas e copos d’água em um evento (sendo que beber água pura, na Antiguidade, aumentava o risco de contrair doenças).

Entre os tipos de vinhos mais consumidos estava o passum, um vinho doce de uvas passificadas, o muslum, que era uma mistura de vinho e mel, de origem cartaginesa, e o conditum, que era uma mistura de vinho, mel e especiarias, envelhecida em recipientes. Segundo as recomendações, as mulheres somente deveriam consumir o passum. Uma outra forma de adoçar o vinho, relatada pelos autores antigos mas que para nós parece inacreditável, era adicionar ao vinho suco de uva concentrado, aquecido em recipientes de chumbo, que adocicavam a mistura devido ao acetato presente no referido elemento.
A prática de guardar o vinho em ânforas seladas com resinas de árvores fazia com que o vinho adquirisse um pouco do aroma e sabor das resinas empregadas, e, este tipo de vinho resinado deu origem moderna Grécia na bebida chamada de Retsina, um vinho branco ou rosé resinado.
A alguns paladares romanos agradava que o vinho tivesse notas de “fumaça”, característico do envelhecimento da bebida, o que levava alguns produtores, ainda na fase de produção, a guardarem as ânforas em um compartimento chamado de fumarium, uma câmara construída sobre um forno à lenha, na qual o vinho adquiria o aroma e o sabor enfumaçado, de certa forma emulando o que acontece modernamente com vinhos colocados a envelhecer com “chips” de madeira.
Outro costume, esse nos parecendo muito mais estranho, mas que é relatado pelas fontes, era diluir o vinho com água do mar para ser bebido.
Havia taças de vários tipos, as mais comuns sendo o scyphus e o cantharus, de inspiração grega, que tinham duas asas para segurar.


O consumo de vinho também era definido pela marcada estratificação da sociedade romana.
Os soldados rasos romanos consumiam a posca, uma bebida resultante da mistura de vinho quase avinagrado com água (um litro por dia, segundo o Código de Justiniano).
E, para consumo dos escravos, era produzida a lora, bebida feita com a mistura quase sólida das cascas das uvas, engaços e sementes, prensadas pela terceira vez e deixada por um dia dentro de um recipiente com água.
CONCLUSÃO
Terminamos assim nossa jornada pelo mundo do vinho romano. Espero que o leitor tenha apreciado. Pedimos simplesmente que, em caso afirmativo, curta e compartilhe esse artigo. Escrevo este blog apenas pelo prazer de estudar o tema e são as curtidas e compartilhamentos que fazem os algoritmos perceberem nossa existência.
Como diz o provérbio romano, que foi preservado na História Natural, de Plínio, o Velho:
In vino, Veritas! (No vinho está a Verdade!)
FIM
FONTES (traduções do inglês pelo autor):
-História Natural, Plínio, o Velho, capítulo 14 ( em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0137%3Abook%3D14%3Achapter%3D3)
-Revista História Viva, Grandes Temas, edição especial temática nº 17 (“Sete Mil Anos de Vinho)
–https://www.deliciousitaly.com/lazio-rome-food-wine/ancient-roman-wine
–https://glossary.wein.plus/ancient-grape-varieties
–https://www.ancient-origins.net/news-history-archaeology/roman-wine-barrels-0014830
–https://phys.org/news/2024-06-world-oldest-wine-rome.html
–https://www.smithsonianmag.com/smart-news/1500-year-old-winery-found-in-israel-180978848/
–Satyricon, Petrônio, capítulo 34 (em https://www.gutenberg.org/files/5219/5219-h/5219-h.htm#p1160

