GLICÉRIO – O ANTEPENÚLTIMO IMPERADOR ROMANO DO OCIDENTE

 

Glicerio_-_MNR_Palazzo_Massimo.jpg(moeda de Glicério, foto de TcfkaPanairjdde)

 

Em 3 de março de 473 D.C., em Ravena, Itália,  Flavius Glycerius (Glicério) foi escolhido como novo Imperador Romano do Ocidente, pelas tropas comandadas por Gundobado, o Burgúndio, que sucedera seu tio Ricimer na condição de Patrício (um título que no final do Império era dado ao comandante militar supremo do exército romano, ou Magister Militum, normalmente um chefe bárbaro germânico).

Glicério, quando de sua ascensão ao trono, ocupava o cargo de Comes Domesticorum (Conde dos Domésticos), ou seja, comandava o regimento de guardas imperiais do Palácio de Ravena. E antes deste posto, as fontes citam que Glicério ocupou um comando militar na Dalmácia.

As fontes nada mencionam sobre a origem de Glicério, mas, certamente, ele devia ser um cidadão romano e sem antepassados bárbaros recentes, pois,  para ser considerado um candidato aceitável para o Senado Romano e para a população italiana, era necessário ter este pedigree.

Com efeito, apesar de Ricimer  ser a eminência parda do Império do Ocidente desde 456 D.C. e o responsável pelas nomeações dos imperadores Majoriano, Líbio Severo e Olíbrio, ele mesmo jamais se atreveu a assumir o trono, uma vez que Ricimer era filho de Rechila, o rei dos Suevos, na Galícia e norte do atual Portugal e neto, por parte de mãe, de Wallia, rei dos Visigodos. E se Ricimer,  mesmo depois de quase vinte anos de poder, não foi um pretendente viável ao trono, muito menos o seria seu sucessor e sobrinho, Gundobado.

Contudo, apesar de ser um efetivo criador de imperadores, Ricimer preferiu não se opor à indicação de Antêmio (467/472 D.C.), feita pelo pelo Imperador Romano do Oriente, Leão I, para ser o novo imperador do Ocidente, devido ao fato de que Ricimer precisava do apoio de Constantinopla para contrabalançar a influência de Geiserico, rei dos Vândalos. Como retribuição à sua boa vontade e provável compensação, Ricimero recebeu a mão de Alypia, a filha de Antêmio, em casamento.

Como imperador, Antêmio procurou atacar os dois maiores problemas que ameaçavam a sobrevivência do Império do Ocidente:  a) a ocupação dos Vândalos na África, governados pelo astuto e competente rei Geiserico, que fazia incursões na Itália (entre as quais o Grande Saque de Roma, em 455 D.C) e no Mediterrâneo e intervinha constantemente nos assuntos do governo e, b) a expansão dos Visigodos  na Gália.

E, mais importante, Antêmio contava com o apoio de Leão I, o novo Imperador Romano do Oriente, que também estava comprometido com uma estratégia de enfraquecimento do poder dos bárbaros e, como visto, mostrava-se interessado nos assuntos ocidentais. Sem a participação de Constantinopla, contudo, nenhum plano nesse sentido seria possível, porque seus recursos materiais e humanos eram muitos superiores aos disponíveis ao imperador ocidental.

Leo I Louvre Ma1012 n2 by Marie-Lan Nguyen

Com efeito, o fato é que, após a perda da África, em  sua maior fonte de grãos, em 435 D.C.,  e de boa parte da Gália, a sua província mais rica, o Império do Ocidente mal tinha recursos para pagar o seu exército composto, majoritariamente, de mercenários bárbaros e tribos germânicas servindo como foederati.

Porém, a grande expedição conjunta contra Cartago, a capital dos Vândalos na África, em 468 D.C., foi um retumbante fracasso. E Antêmio não teve mais sorte contra os Visigodos, que derrotaram as tropas ocidentais próximo a Arles, inclusive matando seu filho, Anthemiolus.

Esses insucessos tornaram Antêmio muito mais dependente de seu general Ricimer, que, ostensivamente, já se mexia para colocar um novo fantoche no trono ocidental.

O estopim para  o conflito aberto entre Antêmio e o seu comandante-em-chefe Ricimer foi a execução do senador Romanus, amigo próximo e aliado do general bárbaro, acusado de conspiração, o que levou Ricimer a abandonar Roma acompanhado de 6 mil  guerreiros, em direção a Milão.

O bispo de Pavia intermediou uma trégua entre Antêmio e Ricimer que durou um ano. Quando as hostilidades recomeçaram,  Antêmio julgou mais seguro ir se refugiar na Basílica de São Pedro, no Vaticano, que, desde o reinado de Constantino I era a sede do Bispado de Roma.

Leão I, preocupado com a crise, resolveu mandar à Roma o senador Olíbrio, que se encontrava em Constantinopla para intermediar um novo acordo entre os adversários, além de um emissário levando uma carta para Antêmio

Segundo uma das fontes, porém, a verdadeira intenção de Leão I era se livrar de Olíbrio, já que este era suspeito de ser aliado de Geiserico, o rei dos Vândalos, que por duas vezes já tinha patrocinado a candidatura dele ao trono.

Contudo, os soldados de Ricimer controlavam o Porto de Roma e a carta do imperador foi interceptada. Ao ser aberta a carta, uma surpresa: Leão I dava instruções a Antêmio para executar Olíbrio assim que este chegasse à Roma.

Em abril de 472 D.C. (data provável), Ricimer proclamou Olíbrio como novo imperador do Ocidente. Porém, os nobres e a população de Roma ficaram do lado de Antêmio.

Seguiram-se cinco meses de combates urbanos nas ruas de Roma, com Antêmio e seus partidários entrincheirados no Palatino. Porém, quando Ricimer conseguiu  cortar a rota entre o Palácio e o Porto fluvial do Tibre , interrompendo o abastecimento de víveres, Antêmio foi obrigado a ir se refugiar novamente na Basílica de São Pedro (outra fonte menciona a Igreja de Santa Maria in Trastevere). Vale citar que, entre as tropas comandadas por Ricimer, estava Odoacro, chefe da tribo dos Scirii.

Em uma última tentativa desesperada, durante o conflito, Antêmio enviou um pedido de ajuda às tropas da Gália, também compostas de mercenários germânicos, sendo que Ricimer havia feito, concomitantemente, idêntica solicitação.

Ocorre que o primeiro a atender o pedido foi Gundobado, o sobrinho de Ricimer, que ocupava o cargo de Magister Militum per Gallias. O provável substituto de Gundobado, Bilimer,  também veio em socorro de Antêmio, mas foi derrotado e morto nas proximidades de Roma.

Derrotado e sem reforços, Antêmio tentou fugir disfarçado de mendigo, mas foi decapitado por Gundobado, que não deu a mínima para o fato do imperador estar refugiado em uma igreja.

basilica são pedro 21.jpg(Antiga basílica de São Pedro,no Vaticano, construída pelo imperador Constantino, o Grande. Ela durou até a atual ser construída, no século XVI).

Assim, Olíbrio assumiu o trono, mas, novamente, quem governava de fato era Ricimer, secundado por Gundobado. O novo imperador era integrante de uma das famílias senatoriais mais ilustres e mais ricas do Baixo Império Romano, os Anícios, mas isso não lhe seria de muita serventia, pois o que contava agora era a capacidade de controlar tropas e recursos e isso ele não tinha. Para piorar, como não é de surpreender, ele não foi reconhecido pelo imperador do Oriente, Leão I, o único capaz de oferecer algum auxílio.

Uns 30 ou 40 dias após a ascensão de Olíbrio ao trono, Ricimer morreu, aparentemente de causas naturais, sendo sucedido por Gundobado, agora o novo Patrício.

O reinado de Olíbrio seria curto e insignificante. Não havia nada que ele pudesse fazer para reverter a situação terminal do Império do Ocidente, se é que ele tinha alguma disposição de tentar, assim, não espanta que os esparsos indícios de suas ações relacionem-se com a religião cristã.  Em outubro ou novembro de 472 D.C., Olíbrio morreu de alguma doença cujo sintoma era hidropsia.

Com a morte de Olíbrio, Gundobado tinha 3 alternativas: a) colocar um sucessor no trono ocidental; b) oferecer o trono ocidental a Leão I, que, afinal, ainda que apenas formalmente, tinha legitimidade para reunificar o Império Romano; ou c) proclamar-se ele mesmo o novo imperador romano.

Gundobado, como vimos, jamais seria um imperador aceito pela aristocracia senatorial romana. Esta podia não ter nenhum poder militar, mas o fato é que os senadores do Ocidente tinham, em regra, uma fortuna descomunal, proveniente de séculos de acumulação de patrimônio, e, além disso, a administração pública ocidental não conseguiria funcionar sem o concurso da classe senatorial.

Ironicamente, reunificar o Império também era uma opção indesejada pela aristocracia ocidental. Os senadores ocidentais gozavam de  privilégios e isenções muito maiores do que os seus colegas em Constantinopla, onde a autoridade do imperador era exercida de modo muito mais intenso e abrangente.

Assim, Gundobado optou por agir de modo convencional e escolher mais um fantoche para o trono do Império Romano do Ocidente. E, naquele  03 de março de 473 D.C. (uma fonte menciona o dia 05), o escolhido foi Glicério, que, além de ser aceitável para o Senado, como já mencionamos, era, ao menos tecnicamente, até aquele momento, um subordinado do Magister Militum,  ou seja, do próprio Gundobado.

Glicério e Gundobado, de início, tentaram ser conciliadores com Leão I, como foi demonstrado pelo fato de Glicério não haver escolhido, como era de seu direito, o segundo Cônsul para o ano de 474 D.C, deixando que o neto de Leão I, que era ainda uma criança pequena, servisse como único cônsul para aquele ano.

Mesmo assim, Leão I, que em breve morreria, em janeiro de 474 D.C., não reconheceu a escolha de Glicério como imperador pelo Senado Romano, designando Julius Nepos, o comandante do exército oriental na Dalmácia e parente da imperatriz Verina, como seu candidato ao trono do Ocidente, encarregando-o de uma expedição para depor Glicério. Com a morte de Leão I, seu neto, Leão II assumiu o Império Romano do Oriente, o qual  nomeou, como co-imperador, o próprio pai, e, então, o verdadeiro homem-forte em Constantinopla, Zenão I.

Ainda tentando ser reconhecido pelos colegas orientais, Glicério chegou a cunhar moedas com as efígies de Leão II e Zenão I, mas a corte de Constantinopla se manteve inflexível em considerá-lo apenas um usurpador.

A situação do Ocidente só piorava e Glicério, sem muitas alternativas, fez o melhor que podia para lidar com a ameaça de invasão dos Visigodos e dos Ostrogodos à Itália, que, na prática, era a única província que ele ainda governava de fato: Mandou as tropas que ainda restavam combater, com algum sucesso, os Visigodos (na verdade, era apenas um bando desses bárbaros, comandado por um subordinado do rei Eurico), e, após conseguir acumular algum ouro, pagou  2 mil moedas de ouro aos Ostrogodos para que eles fossem para algum outro lugar. Infelizmente, o lugar onde ambos os bandos foram parar foi a Gália, que já estava sendo avassalada por várias invasões.

Enquanto isso, a expedição de Julius Nepos, que estava aguardando o inverno passar para poder zarpar, finalmente, com a chegada da primavera, pôs-se a caminho de Ravena.

Glicério, que durante o seu reino residira em Ravena ou em Milão, foi para Roma, talvez porque essa cidade estivesse mais distante da Dalmácia, ou, também,  porque lá, contando com o apoio do Senado Romano e da população, ele tenha pensado que fosse mais fácil resistir.

Contudo, Julius Nepos certamente tinha ciência da manobra de Glicério, pois navegou em direção ao Mar Tirreno, desembarcou em Portus (porto de Roma, no litoral), sendo que Glicério não esboçou nenhuma resistência, sendo deposto sem esboçar qualquer luta, em junho de 474 D.C.

Ao contrário do desfecho mais corriqueiro na longa lista de imperadores romanos, Glicério não foi executado, mas apenas destituído do trono e nomeado Bispo de Salona, na Dalmácia (lugar onde Julius Nepos decerto tinha mais capacidade de controlar qualquer ação sua).

O Senado Romano imediatamente reconheceu Julius Nepos como o novo imperador do Ocidente.

Não há registro de qualquer medida tomada por Gundobado para defender Glicério ou atacar Julius Nepos. É bem possível que ele estivesse na Gália, lidando com os ataques de outras tribos germânicas ou tentando reunir tropas para  a defesa de Glicério, não se sabe ao certo. Outra possibilidade é que ele tenha ido reclamar a sua parte no reino dos Burgúndios, na Gália Lugdunense (que daria origem à atual região da Borgonha), após a morte de seu pai, Gundioc, e do irmão dele, Chilperico I, esta ocorrida justamente em 474 D.C. De qualquer forma, o seu comando militar na Itália não existia mais e de fato não  consta que ele tenha voltado à península.

A última notícia que se tem de Glicério data do ano de 480 D.C., quando ele ainda era Bispo de Salona e, segundo um autor antigo, teria participado de uma conspiração para assassinar, ironicamente,  ninguém menos do que o próprio Julius Nepos, que, após ser deposto pelo novo Magister Militum do Ocidente, Orestes, em 29 de agosto de 475 D.C.,  havia fugido para a Dalmácia.

 

 

 

 

 

 

 

Publicidade