(A Porta Palmirena, o principal portão de entrada de Dura-Europos, na Muralha Oeste da cidade)
Um dos sítios arqueológicos mais fascinantes do antigo Império Romano provavelmente nunca mais poderá ser visitado, pelo menos como era até bem pouco tempo atrás.
A cidade de Dura-Europos, na margem direita do Rio Eufrates, na atual Síria, situa-se próximo à fronteira oriental deste país com o Iraque, área que se encontra dentro da antiga Mesopotâmia. Mas, infelizmente, o lugar esteve no centro do território controlado pelo Estado Islâmico (ISIS ou DAESH), que durante três anos, sistematicamente pilhou e destruiu o sítio arqueológico.
Ninguém sabe ainda o quanto foi saqueado e quais ou quantos tesouros podem ter desaparecido para sempre. Com base em imagens de satélite, estima-se que 70% do sítio arqueológico teria sido destruído pelos fundamentalistas (vide https://www.npr.org/sections/parallels/2015/03/10/392077801/via-satellite-tracking-the-plunder-of-middle-east-cultural-history).
(Foto mostrando a extensão dos danos, com a cidade completamente escavada pelo ISIS, extraída do site da Universidade de Oxford, satellite image © DigitalGlobe. Taken on 25/12/15)
Origem e período selêucida
Dura-Europos foi fundada em 303 A.C. por Seleuco I Nicator, um general macedônio que, após a morte de Alexandre, o Grande, foi nomeado sátrapa (governador) da Babilônia. Após a guerra civil travada entre os generais que reivindicavam suceder o falecido rei (os chamados Diádocos), Seleuco autoproclamou-se rei da maior parte do território conquistado por Alexandre na Ásia, que incluía o que hoje é a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irã, e partes do Afeganistão e do Paquistão, assim fundando o Império Selêucida.
A cidade foi construída segundo o modelo ortogonal das cidades helenísticas, seguindo a planta chamada de hipodâmica (porque idealizada pelo arquiteto grego e precursor do urbanismo, Hipódamo de Mileto).
(Imagem do plano urbano de Dura-Europos )
O motivo principal da fundação de Dura-Europos foi estratégico, pois o local onde ela foi construída era o ponto de cruzamento fluvial da rota comercial leste-oeste que ligava as recém-fundadas cidades selêucidas de Antióquia e Selêucia do Tigre, sendo também um ponto de passagem da rota norte-sul ao longo do rio Eufrates. Ademais, o local era ideal para a construção de uma cidade fortificada: um promontório bem elevado em três lados, um deles dando para o rio, possibilitando que o único lado aberto fosse facilmente fechado por uma muralha (que seria construída décadas mais tarde). Por isso, a cidade ficou conhecida, na língua semítica dos habitantes nativos locais, como “Dura“, que vem da palavra “duru” (fortaleza, em aramaico), embora o seu nome oficial grego fosse Europos, um nome provavelmente dado em homenagem à cidade de nascimento do seu fundador, Seleuco I, na Macedônia, que também se chamava Europos. (O nome composto “Dura-Europos”, pelo qual a cidade hoje é conhecida, só começou a ser empregado bem mais tarde).
(Na foto acima é possível notar a posição privilegiada da cidade, dominando o rio Eufrates, somente sendo acessível pelo lado oposto ao rio, que foi fechado pela muralha).
Com o colapso do Império Selêucida, sobretudo devido às seguidas derrotas sofridas contra a República Romana, Dura-Europos foi conquistada, em 113 A.C. pelo Império Parta, que em sua essência era uma coalizão de tribos iranianas chefiadas pela dinastia dos Arsácidas que recuperou a maior parte das terras do antigo Império Persa, conquistadas pela dinastia dos Aquemênidas.
Período Arsácida (Parta)
Em Dura-Europos, o período dos Arsácidas caracterizou-se por um certo compromisso d do Império com as elites de origem grega que governavam as cidades que pontilhavam a Anatólia e a Síria, inclusive as fundadas pelos Selêucidas, como foi o caso da cidade (Aliás, diga-se de passagem, o próprio Império Parta adquiriu apreciável grau de helenização). Por outro lado, estando a cidade inserida em uma região de fronteira entre o mundo helenístico e o mesopotâmico, de substrato étnico majoritariamente semita e babilônio, mas que estava sujeita a um império dominado por iranianos, não surpreende que, ao longo dos anos, a sua população fosse composta por vários grupos étnicos e que a sua cultura tivesse se tornado altamente sincrética.
No decorrer desse período, nota-se que a função estratégica militar de Dura-Europos perdeu importância. E, talvez por isso, durante o governo parta, a cidade virou uma espécie de centro administrativo e comercial da região próxima, prosperando bastante.
Entretanto, como resultado das campanhas do expansionista imperador romano Trajano, que declarou guerra ao Império Parta sob o pretexto de coibir a interferência dele na Armênia, e também, provavelmente visando a glória militar e, ainda, eliminar o controle parta sobre o fluxo da Rota da Seda para o Império Romano, Dura-Europos foi conquistada pelos romanos, em 113 D.C.
Todavia, com a morte de Trajano, em 117 D.C., o seu sucessor, Adriano, resolveu abrir mão da recém-conquistada Província da Mesopotâmia, seguindo o seu pensamento estratégico de manter fronteiras melhor defensáveis, e a cidade, então, foi reocupada pelos Partas.
Com o passar dos anos, porém, no final do reinado do imperador romano Antonino Pio, o Império Parta, governado pelo rei Vologeso IV, voltou a intervir nos assuntos da Armênia. Assim, em 161 D.C., logo após a morte de Pio, que foi sucedido por Marco Aurélio, Vologeso invadiu o referido reino-cliente de Roma, depondo o rei que era simpático aos romanos e instalando Pacorus, um parente, no trono. Isso marcou o início da Guerra Romano-parta de 161-166 D.C.
(moeda parta com a efígie de Vologeso IV)
Em 165 D.C., após vários sucessos ao longo dos dois anos anteriores, os romanos capturaram Dura-Europos, comandados pelo grande general Avídio Cássio (Nota: Avídio era tataraneto de Júlia Lépida, que por sua vez, era tataraneta de Júlia, a Jovem, sendo ele, assim, descendente direto do imperador Augusto, pai da última). Em seguida, o Avídio Cássio logrou saquear e incendiar a capital parta, Ctesifonte.
Essa guerra terminou no ano seguinte, com a vitória romana, embora o exército romano tenha sido obrigado a voltar para o território romano em virtude da terrível epidemia que ficaria conhecida como Peste Antonina. Como resultado da vitória, a fronteira romana da Síria avançou mais quase 250 km na direção sul do rio Eufrates, parando em Dura-Europos.
Começava, assim, o período da dominação romana em Dura-Europos.
Período Romano
O Império Romano, como anteriormente procedera em relação a maior parte das cidades de cultura grega conquistadas, permitiu que os magistrados civis da cidade mantivessem certo grau de autonomia. Assim, a elite grega da cidade manteve o seu status, ainda que, agora, a autoridade sobre questões relativas à segurança e ordem pública provavelmente coubesse, em última instância, ao comandante militar romano.
Com a chegada do Exército Romano, Dura-Europos acrescentou novos elementos ao fascinante e variado cadinho étnico-cultural que habitava um perímetro tão pequeno. De fato, estima-se que a população da cidade, então, seria de aproximadamente cinco mil habitantes. Os indícios até agora encontrados apontam que, integrando as tropas romanas, ou acompanhando as mesmas, chegaram os judeus e os cristãos.
Com efeito, sendo uma cidade pequena, mesmo para os padrões da Antiguidade, é impressionante que, na época do período romano, fossem faladas oito línguas diferentes em Dura-Europos (grego, latim, pahlavi, persa médio, aramaico, safaitico, siríaco e palmireno), existindo na cidade dez santuários pagãos de divindades de diferentes povos (Artemis Nanaïa, Zeus Megistos Artemis Azzanathkona, Zeus Kyrios, Atargatis, Bel, Aphlad, Zeus Theos, Gad, Adonis e Mitra), além de uma sinagoga e de uma igreja cristã, conforme os vestígios arqueológicos revelaram, todos aparentemente coexistindo em harmonia. A arquitetura e as obras de arte existentes na cidade também demonstram esse sincretismo, misturando elementos ocidentais e orientais. (cf.https://www.researchgate.net/publicatio/326929394_Dura_Europos_a_Greek_Town_of_the_Parthian_Empire_in_T_Kaizer_ed_Religion_Society_and_Culture_at_Dura-Europos_YCS_38_2016_Cambridge_University_Press_pp_16-29. e https://archive.archaeology.org/online/features/dura_europos/)
No reinado do imperador Septímio Severo, que infligiu aos Partas nova derrota e dessa vez ainda mais esmagadora, os romanos estabeleceram uma guarnição militar permanente na cidade, destacando-se uma coorte de arqueiros originários da cidade síria de Palmira, a Cohors XX Palmyrenorum (cidade que, embora nominalmente fizesse parte do Império Romano, gozava de alto grau de autonomia) e também soldados da Cohors II Ulpia Equitata, e para isso foi necessário instalar, em 209 D.C., um quartel, ocupando alguns quarteirões do canto norte da cidade, que, transformados em distrito militar, foram separados por um muro. Dentro dos muros do quartel, além das barracas dos soldados, a maioria utilizando residências convertidas, ficava o palácio do comandante (Dux Ripae). E com a presença dos soldados, a cidade ganhou também um pequeno anfiteatro.
(Afresco do templo que ficava dentro do quartel da Cohors XX Palmyrenorum, em Dura-Europos, mostrando os soldados da unidade, capitaneados por seu comandante, Julius Terentius, participando de uma cerimônia religiosa).
Ainda, com a vitória de Severo na última guerra romano-pártica, a fronteira romana avançou mais 160 km na direção sul do Eufrates, abaixo de Dura-Europos, parando na cidade de Kifrin.
Severo, com o objetivo de limitar o poder dos governadores da Síria, que em décadas passadas tinha sido a origem de vários pretendentes ao trono, resolveu dividir a província, destacando dela a nova província da Síria-Coele, da qual Dura-Europos passou a fazer parte.
Em 211 D.C., Septímio Severo concedeu a Dura-Europos o status de Colônia, o que conferia aos seus habitantes livres a cidadania romana e o acesso a vários privilégios, incluindo isenções de tributos.
Uma fortaleza romana contra a Pérsia Sassânida
Apesar dos séculos de guerra e várias vitórias (e derrotas), contudo, não seriam os romanos quem dariam o golpe final no Império Parta…
Em 224 D.C., Ardashir (ou Artaxerxes), que havia substituído Papak como rei dos Persas (os quais então eram súditos dos Arsácidas), aproveitou-se dos conflitos internos entre os Partas e iniciou uma revolta contra os Arsácidas, incorporando ou recebendo a adesão de outros governantes vassalos, terminando por derrotar o último rei parta, Artabanes, na Batalha de Hormozdgan. Dois anos depois, em 226 D.C., Ardashir I foi coroado Rei dos Reis (Shahanshah em persa), em Ctesifonte, fundando o Império Sassânida (assim chamado porque Ardashir era neto de Sasan).
(Relevo em Naqsh Rajab, Irã, mostrando Ardashir I recebendo o anel real do deus Ahura-Mazda, foto de
)Um dos motivos para o sucesso dos Sassânidas foi a insatisfação dos nobres do Império Parta com as seguidas derrotas militares sofridas pelas Arsácidas contra o Império Romano, e eles aparentemente ansiavam pela volta dos tempos gloriosos do Império Persa da época dos Aquemênidas, quando foram governados pelos grandes reis Ciro e Dario.
A orientação nacionalista e o desejo de restaurar as fronteiras do antigo Império Persa obviamente só podia levar ao confronto com Roma e Ardashir I logo tomou a iniciativa, em 230 D.C., sitiando a estratégica cidade de Nísibis (Nusaybin), uma praça-forte que havia sido recapturada pelos romanos no século anterior.
Somente a muito custo o imperador Severo Alexandre conseguiu repelir a invasão de Ardashir I. Embora, no final, os persas tenham sido contidos, o exército romano sofreu algumas derrotas e houve vários motins, onde as tropas mostraram extraordinária falta de disciplina.
(Busto do Imperador Severo Alexandre)
Para piorar a situação, em concomitância com a ressurgimento de um inimigo poderoso no Oriente, o Império Romano começava a enfrentar, no Ocidente, as invasões de tribos germânicas, que por sua vez demonstravam ser mais numerosas, belicosas e bem-preparadas do que as suas antepassadas de mais de dois séculos atrás.
Por isso, muitos estudiosos consideram que um dos fatores mais decisivos para o declínio e queda do Império Romano do Ocidente foi o surgimento do Império Sassânida, que ao infligir várias derrotas militares romanos, drenou tropas que poderiam ter sido empregadas na defesa da fronteira Reno-Danúbio, facilitando, assim, a penetração dos bárbaros germânicos, acarretando, ainda, a necessidade de reorganização política do Império, sendo uma das causas principais da criação do Império Romano do Oriente.
Para lidar com o pesadelo estratégico da guerra em dois fronts foi necessário aumentar o número de soldados e manter duas cortes, uma no Ocidente e outra no Oriente, contribuindo para o aumento dos gastos públicos, o que por sua vez, impôs a realização de reformas fiscais a partir do reinado de Diocleciano, aumentando a tributação, com sérias consequências econômicas, políticas e sociais.
Os sucessores de Septímio Severo e de Caracala caracterizaram-se por serem manipulados pelas imperatrizes-mãe, que na verdade controlavam a burocracia palaciana e as finanças imperiais.
Severo Alexandre acabou sendo assassinado pelos soldados, após tentar negociar com os bárbaros germânicos, em 235 D.C. Ironicamente, a dinastia dos Severos, cujo fundador elegeu o prestígio e o bem-estar dos militares como prioridade absoluta, favoreceu o aumento da indisciplina e os dois últimos imperadores, Elagábalo e Severo Alexandre, reputados como fracos., foram assassinados pelas tropas. Assim, Roma agora entrava na chamada Crise do Século III.
O ressurgimento de um Império Persa poderoso foi uma péssima notícia para os habitantes de Dura-Europos. Afinal, a cidade fronteiriça estava obviamente na linha de frente de qualquer ataque persa. A guarnição da cidade teve que ser reforçada e os assuntos militares tornaram-se preponderantes.
Pelos nomes existentes em inscrições e papiros que foram descobertos nas suas ruínas, aparentemente houve no período um grande influxo de habitantes de origem síria, incluindo soldados provenientes de destacamentos (vexillationes) de legiões acantonadas na província. Tudo indica que o status político da elite de origem grega, que já vinha perdendo proeminência e poder a partir da instalação de um comandante militar romano no interior da cidade, diminuiu bastante e muitos dos seus membros podem até ter emigrado (cf. “The Palmyrenes of Dura-Europos: A Study of Religious Interaction in Roman Syria“, Lucinda Dirven, pág. 15)
Dura-Europos agora, era praticamente mais um forte militar do que uma cidade. Sentindo a ameaça do renovado poder sassânida, a cidade passou por uma série de obras visando reforçar as suas defesas.
Entrementes, a morte de Severo Alexandre e o caos reinante no Império Romano incentivou Ardashir I a atacar novamente a Síria e a Mesopotâmia romanas. Ele sitiou e tomou as estratégicas cidades de Nísibis e Carras (Harran), em 238 D.C.
Em 242 D.C, Ardashir I foi sucedido por seu hábil e determinado filho, Sapor I (Shapur), que receberia o cognome do “O Grande”, e, fazia dois anos já vinha governando a Pérsia junto com o pai. Inicialmente, Sapor teve que submeter as tribos medas nas montanhas do Irã e os Kushan na fronteira oriental do Império Persa, e, assim, os romanos, durante o reinado de Gordiano III, aproveitaram para invadir a Mesopotâmia sassânida e conseguiram retomar Nísibis e Carras, em 242 D.C.
Sapor I retornou para dar combate à invasão e os Persas derrotaram os romanos na Batalha de Misiche, próximo à atual Fallujah, no Iraque, em 244 D.C. Segundo as fontes persas e um relevo comemorativo que Sapor I mandou fazer em uma rocha no local, o imperador Gordiano III foi morto nessa batalha, embora o fato não seja mencionado nas fontes romanas. De qualquer forma, o imperador romano, se não morreu na batalha, foi assassinado imediatamente depois, e sucedido pelo Prefeito Pretoriano, Filipe I, cognominado “o Árabe” (ele nasceu na província romana da Arabia Petraea, na cidade de Philippopolis, atual Shabbah, a 90 km ao sul de Damasco).
(Busto de Filipe, o Árabe)
Filipe, o Árabe não teve muitas alternativas senão assinar um tratado de paz com o Império Sassânida, o qual foi considerado humilhante pelos romanos, a fim de evitar a destruição ou captura do exército romano sobrevivente da Batalha de Misiche, fato que poderia colocar todo o Oriente romano em risco.
Mas na verdade, dadas as circunstâncias, os termos da trégua não foram tão ruins. Os Persas colocaram um pretendente de sua confiança no trono da Armênia e receberam uma indenização de 500 mil denários de ouro. Os romanos mantiveram Nísibis, Carras e Dura-Europos.
(Relevo persa em Naqsh-e Rostam, mostrando Filipe, o Árabe se ajoelhando perante Sapor I, que também captura Valeriano, o seu sucessor – este último fato ocorreu em 260 D.C.)
Não se sabe com exatidão o que sucedeu em Dura-Europos nesses anos, mas, apesar da cidade estar no centro do conflito Roma x Pérsia, a sua comunidade judaica, por exemplo, teve recursos suficientes para erguer uma nova sinagoga no lugar da antiga, muito mais suntuosa do que a anterior, no ano de 244 D.C.
Como é frequente no período entre 240 e 270 D.C., o auge da Crise do Século III, as fontes escritas romanas são esparsas e pouco confiáveis.
O caos em que se encontrava o Império Romano, sobretudo após a desastrosa derrota sofrida contra os Godos na Batalha de Abritus, em 251 D.C. que resultou na morte em combate do imperador Trajano Décio, muito provavelmente encorajou Sapor I a invadir novamente a Sìria e a Mesopotâmia romanas.
Em 253 D.C., segundo as inscrições nos relevos comemorativos que Sapor mandou fazer em Naqsh-i Rostam, os Persas derrotaram um grande exército romano com 60 mil soldados, na Batalha de Barbalissos, cidade às margens do rio Eufrates na província romana da Síria-Coele.
A vitória possibilitou os Persas sitiarem e tomarem várias cidades importantes (37 segundo o relevo de Naqsh-i-Rostam), incluindo a grande cidade de Antióquia, capital da Síria romana, que tinha cerca de 400 mil habitantes (Há, inclusive, entre os acadêmicos, uma corrente, com argumentos respeitáveis, que vê indícios de que, nessa ocasião, Dura-Europos foi uma das cidades capturadas, sendo, posteriormente, retomada pelos romanos, como por exemplo, a professora de Arqueologia Jennifer Baird, da Univesidade de Londres (cf. https://www.academia.edu/656310/Dura_Deserta_The_Death_and_Afterlife_of_Dura-Europos)
Os Persas Sassânidas haviam herdado milênios de cultura e tradições das civilizações do Oriente Médio, eram disciplinados e bem mais determinados do que seus antecessores arsácidas. E, além disso, eles eram conhecedores das mais avançadas técnicas de cerco e máquinas de assédio da Antiguidade.
Indubitavelmente, a guarnição e os habitantes de Dura-Europos sabiam que a vez deles chegaria logo… (OBS: É possível, e há algumas evidências que parecem apoiar essa tese, que a população civil tenha sido deportada pelos persas, caso eles tenham tomado a cidade em 253 D.C., ou evacuada pelos romanos, em preparação para o cerco)
Cerco persa e abandono
Não há nenhum relato escrito sobre o cerco de Dura-Europos, mas o excepcional estado de preservação de todo o sítio arqueológico, permitiu aos estudiosos reconstruir com bastante precisão como ele ocorreu e o seu desfecho.
A guarnição romana certamente teve algum tempo para se preparar e antecipar o que os Persas fariam. Eles sabiam que a muralha oeste, que dava para o deserto aberto, seria o foco principal das investidas inimigas e que os persas usariam arietes para tentar abrir brecha por onde poderiam entrar. Assim, os soldados construíram à frente da muralha de pedra uma cinta de tijolos de barro inclinada, que na base tinha 6 metros de profundidade, denominada de glacis.
(Militares romanos da Cohors XX Palmyrenorum reproduzindo os uniformes retratados no mural do templo que decorava o templo. A suástica para os romanos era um elemento decorativo, e talvez tivesse o objetivo de trazer boa sorte, não tendo nenhuma relação com a futura ideologia nazista)
Por sua vez, à parede do fundo da muralha, os romanos ajuntaram um aterro que tinha o comprimento de 20 metros para trás e subia até 8 metros de altura. Esse aterro cobriu a rua e a fileira de casas e edifícios adjacente à muralha oeste e tinha a finalidade de dar mais sustentação à muralha para resistir aos arietes e grandes pedras que fossem arremessadas contra ela. Foi graças a esse aterro que, quase 1700 anos mais tarde, seriam descobertas, praticamente intactas, a sinagoga e a igreja cristã primitiva da cidade.
(Esquema mostrando os reforços à muralha feitos pelos romanos para resistir ao cerco persa, extraída dehttps://www.academia.edu/1448923/Death_in_the_dark_at_Dura-Europos_Did_the_Sassanids_use_chemical_warfare)
(Na foto, podem ser vistas algumas partes- não escavadas – do aterro feito pelos romanos)
O exército persa, estimado em 20 mil homens, chegou a Dura-Europos em 256 D.C., provavelmente no início da primavera, construindo um acampamento próximo à cidade. Era uma força que não ficava nada a dever aos romanos em termos de disciplina, equipamentos e e capacidade tática. A tropa incluía, além da infantaria, a temível e vistosa cavalaria couraçada chamada pelos romanos de clibanários (clibanarii), grandes catapultas e sapadores especializados em cavar túneis.
(Um relevo sassânida em Taq-i-bostan, no Irã, mostrando um clibanarius persa, foto de
Por sua vez, sua vez, a guarnição romana certamente recebeu reforços, mas, em todo caso, o seu número deveria ser de 3 mil soldados, sendo, na estimativa mais larga, de 5 mil soldados.
Os romanos sabiam que, devido a superioridade numérica dos Persas, eles somente teriam chance de sobreviver se conseguissem resistir às tentativas dos inimigos de penetrar nas muralhas de Dura por tempo suficiente para que eles desistissem em face das perdas sofridas ou, então, até que o resto do exército romano, vindo de outras províncias, chegasse em socorro. A resistência, assim, dependia da defesa e da solidez das muralhas, pois a cidade contava com fonte de água dentro dela e provisões tinham sido estocadas em antecipação.
Acredita-se, com base nos vestígios, que os persas devem ter feito algumas incursões exploratórias junto à muralha oeste, com suas 15 torres, principalmente onde ficava o portão principal de entrada da cidade (Porta Palmirense), para testar a força dos defensores. Eles logo devem ter percebido que eram guarnecidas por muitas armas de arremesso do tipo balista, o temível escorpião ( scorpio ), como eram chamadas pelos romanos (vide fotos abaixo), que tinham o alcance de 400m e eram capazes de perfurar um escudo a mais de 100m de distância, além das flechas disparadas pelos experientes arqueiros da Cohors XX Palmyrenorum.
(foto de MatthiasKabel)
(Um scorpio, defendendo uma posição fortificada, retratada na Coluna de Trajano, em Roma – foto acima. OBS; Nas duas fotos aparecem a cheiroballistra uma variante do scorpio)
Os Persas, então, começaram a usar as suas catapultas, que atiravam enormes bolas de pedra, a fim de causar dano à muralha, matar os defensores que estavam nos muros e nas torres, além de causar o máximo de pânico na população civil.
Sobretudo, a barragem de artilharia facilitava dissimular o principal objetivo dos Persas: cavar túneis que chegassem até as fundações das muralhas, que, sem o apoio necessário, eles esperavam que ruíssem nos trechos escolhidos, permitindo um assalto direto pelas tropas sassânidas.
Os Persas começaram a cavar esses túneis a partir do cemitério de Dura-Europos, que, como em todas as cidades antigas, ficava do lado de fora das muralhas. Isso permitia que eles aproveitassem as tumbas já escavadas no solo rochoso sobre o qual se assentava a própria cidade. Dois dos locais que os Persas escolheram para fazer o trabalho de sapa foram as denominadas Torres 14 e 19 da Muralha Oeste de Dura-Europos. A primeira fica ao sul, e a segunda, ao norte, da Porta Palmirense. Isso, provavelmente, tinha o propósito de fazer com que os defensores romanos se espalhassem mais, não ficando concentrados num só ponto de ataque.
(Desenho reconstituindo a aparência interna da Porta Palmirena, de A. Henry Detweiler, 1937. Unpublished drawing, Yale University Art Gallery, Dura-Europos Archives).
A Batalha pela Torre 19
Com o objetivo de derrubar a Torre 19, os Persas começaram a cavar um túnel a cerca de 40 metros dela. Em dado momento, quando o túnel chegou mais próximo, os defensores romanos certamente conseguiram ouvir, vindo do subsolo, o barulho das ferramentas persas escavando a rocha e, da mesma forma que nos relatos sobre vários outros cercos da Antiguidade, eles resolveram cavar uma contramina, isto é, o seu próprio túnel, visando interceptar o dos Persas e impedi-los de continuar a ação deles, seja matando os inimigos em combate corpo-a-corpo, seja fechando o túnel inimigo.
Porém, os Persas conseguiram chegar primeiro embaixo da base da Torre 19 e, retirando o trecho de terra que estava acima de suas cabeças, começaram a minar as fundações de blocos de pedra da muralha, escorando com vigas de madeira.
Por sua vez, o túnel romano foi cavado através do aterro que os defensores tinham feito anteriormente para escorar a muralha e conseguir interceptar o túnel inimigo, embora ficando 3 metros acima dele.
O arqueólogo francês Robert du Mesnil du Buisson, que escavou o local entre as décadas de 20 e 30 do século XX, encontrou, no túnel escavado pelos Persas, 20 corpos de soldados romanos, identificados pelo seu característico equipamento, e o corpo de um soldado persa, identificado por seu elmo e cota de malha. além de outros materiais.
(Restos mortais do soldado sassânida encontrado no túnel sob a Torre 19, ainda com a sua cota de malha).
Segundo a interpretação de Robert du Mesnil, os soldados romanos conseguiram descer até o túnel persa e invadi-lo, entrando em combate com os Persas, mas acabaram repelidos para o seu próprio túnel, deixando apenas um inimigo morto. Porém, os soldados romanos que estavam do lado de fora devem ter pensado que um grande número de persas tinha conseguido derrotar os seus colegas e estavam vindo invadir a cidade pelo próprio túnel romano, e, assim, teriam entrado em pânico e rapidamente fechado a sua entrada, deixando os seus camaradas trancados. Em seguida, os Persas atearam fogo às escoras de madeira em seu túnel, embaixo da fundação das muralhas, valendo-se de betume e cristais de enxofre, cujos vestígios foram encontrados no local, matando os soldados romanos asfixiados pela fumaça.
Os vestígios mostram que por muito pouco o estratagema persa não deu certo. Após as escoras serem incendiadas, a Torre 19 chegou a afundar, descendo apenas um metro mas se estabilizou, provavelmente contida pelo aterro que os romanos, previdentemente, tinham construído atrás de toda a Muralha Oeste. Um trecho inteiro dela também levemente cedeu, afundando um pouco verticalmente, mas sem, contudo, desmoronar. Um piso interno da torre desabou, soterrando embaixo dele escudos romanos e uma armadura para cavalo.
(Os efeitos do trabalho de minagem persa na região da Torre 19 ainda são clarametne visíveis, quase 1800 anos depois).
O ataque final
Com o insucesso da investida sobre a Torre 19, os Persas provavelmente resolveram se concentrar no trecho sul da Muralha, entre a Torre 14 e a Torre 15, que ficava na quina sul da cidade, onde uma rampa de assédio estava sendo engenhosamente construída. Efetivamente, as escavações encontraram não um monte de terra, mas uma rampa sólida, com com muros laterais e pavimentada com tijolos de argila, por onde certamente subiria uma torre de cerco com rodas. A Torre 14 chegou a iniciar um colapso, mas a estrutura também se manteve em pé, ainda que desconjuntada, igualmente contida pelo aterro de arrimo. Além disso, ao lado da rampa, os Persas escavaram um túnel largo o suficiente para permitir a passagem de quatro soldados lado-a-lado. Houve também outras tentativas de invasão pela porta da cidade que dava para o rio Eufrates e intensos ataques dirigidos à Porta Palmirense, mas o mais provável é que o ataque final tenha se dado pela rampa, em um ataque conjunto com o avanço pelo túnel subterrâneo.
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(A Torre 14, vista de dentro, que foi desconjuntada pela minagem persa, mas não colapsou totalmente)
Embora não se tenha certeza sobre o ponto exato por onde os Persas conseguiram penetrar, o fato é que, após várias semanas, ou, mais provável, alguns meses de cerco, eles conseguiram invadir Dura-Europos. Escavações mais recentes demonstraram que houve luta dentro da cidade no reduto final romano: o quartel no norte da cidade, onde foram encontrados alguns restos mortais de soldados romanos nos alojamentos e uma boa quantidade de flechas de metal, voltadas para dentro da cidade, para serem disparadas pelos escorpiões.
Como já dissemos acima, não há relatos escritos do cerco a Dura-Europos, mas quem quiser ter uma boa idéia de como se desenvolvia um cerco persa contra uma cidade romana na região, vale a pena ler o emocionante, mas bem fidedigno, relato que o historiador romano Amiano Marcelino fez do cerco à cidade de Amida, ocorrido em 359 D.C. Uma obra moderna que também faz uma excelente descrição do fim de Dura-Europos é o romance histórico Fogo no Leste, integrante da série Guerreiros de Roma, do historiador britânico Harry Sidebottom (no livro, a cidade é chamada de Arete).
O fim de Dura-Europos
Certamente os soldados romanos que não morreram na defesa de Dura-Europos foram levados como prisioneiros pelos Sassânidas para trabalhar como cativos em seus domínios. A população civil, caso ainda estivesse vivendo algum particular em Dura-Europos quando do cerco, também foi deportada para a Pérsia (OBS: se procedente a tese de que a cidade já havia sido uma primeira vez capturada pelos persas em 253 D.C., isso teria ocorrido, então, nesta oportunidade). Vale notar que a deportação de soldados romanos e da população capturada em batalhas e cercos era um costume arraigado entre os Persas, desde o tempo dos Aquemênidas, tendo se verificado, por exemplo, em várias cidades da Síria e da Mesopotâmia romanas, e, portanto, em Dura-Europos isso não deve ter sido diferente.
Algumas inscrições persas parecem indicar que os sassânidas ficaram ainda, no mínimo por alguns meses, em Dura-Europos, mas não há dúvida de que a cidade foi abandonada, seja logo após a sua queda ou pouco tempo depois.
(Inscrições em persa, na sinagoga de Dura-Europos)
Pouco mais de cem anos depois, em 352/363 D.C., Amiano Marcelino, servindo na campanha de Juliano contra a Pérsia, conta que este imperador passou por Dura-Europos e que ela, então, era uma cidade deserta.
A redescoberta de Dura-Europos
Dura-Europos foi visitada por uma expedição norte-americana, que, inclusive, fotografou a Porta Palmirena, em 1885.
Em termos arqueológicos, a cidade foi “redescoberta” poucos anos após o fim da 1ª Guerra Mundial, quando, em 30 de março de 1920, um soldado britânico cavando uma trincheira encontrou paredes com pinturas murais no Templo de Bel. Como a Síria estava sob administração francesa, em mandato conferido pela Liga das Nações, o arqueólogo belga Franz Cumont, com o patrocínio da Académie des Inscriptions et Belles-Lettres de Paris iniciou as escavações científicas. Por sua vez, entre 1929 e 1937, a Universidade de Yale, junto com a Académie patrocinaram os trabalhos, sob a diração do prestigiado historiador russo, Michael. I. Rostovtzeff, que publicou o livro Dura-Europos and Its Art. Os trabalhos arqueológicos foram interrompidos pelo advento da 2ª Guerra Mundial e somente seriam reiniciados em 1986, pela Missão Franco-Síria, que revelou vestígios que sugerem que houve um grande combate seguido de incêndio, na Porta Palmirense e outros que sugerem que a cidade foi ocupada pelos Sassânidas durante algum tempo após o sítio de 256 D.C. (cf. https://www.persee.fr/doc/crai_0065-0536_1994_num_138_2_15369?pageId=T1_398)
A “Pompéia do Deserto”
O fato da cidade nunca mais ter sido habitada, ao menos em caráter permanente, após a sua captura pelos Sassânidas, em 256 D.C. e, sobretudo, vários edifícios terem sido deliberadamente sepultados pela construção do aterro junto à Muralha Oeste, foram responsáveis por uma grande quantidade de achados de valor incalculável, cuja enumeração e comentários pormenorizados fica um tanto difícil em um blog de divulgação como o nosso. As condições climáticas do sítio arqueológico, somadas as circunstâncias ligadas às obras defensivas feitas pelos romanos, à própria dinâmica dos combates travados e ao abandono final da cidade contribuíram muito para o excelente estado de preservação desses achados.
Entre os achados que consideramos mais notáveis, podemos mencionar:
1) A sinagoga
A sinagoga de Dura-Europos, em seu formato derradeiro, é uma das mais antigas já encontradas. Ela foi remodelada em 244 D.C, expandindo um prédio mais antigo. O fato de ter sido intencionalmente soterrada pelo aterro defensivo construído pelos romanos às vésperas do cerco de 256 D.C. ajudou a preservar boa parte da sua estrutura, disposição e decoração internas. Em uma das paredes, por exemplo, há um nicho para a Torá, que fica na direção de Jerusalém. Os arqueólogos ficaram tão estupefatos com a riqueza e quantidade de suas pinturas murais, retratando várias passagens bíblicas, que, inicialmente, eles pensaram tratar-se de um templo pagão, devido ao fato da existência de uma proibição divina na Bíblia quanto a feitura de imagens de pessoas e animais. Observe-se que essas pinturas, alguns estudiosos acreditam, trazem indícios de que havia um modelo amplamente disseminado de imagens narrativas bíblicas, que teria sido copiado pelos artistas que fizeram os murais, e também de que esse modelo influenciou a arte cristã primitiva. A sinagoga ficava bem próxima à igreja cristã da cidade, bem como de outros templos pagãos, o que parece indicar que havia uma convivência harmônia entre as diversas religiões em Dura. Por outro lado, a qualidade das pinturas e o tamanho do edifício é prova de que a comunidade judaica da cidade era bastante próspera e gozava de boas relações com a classe dominante de Dura. As pinturas e vários elementos arquitetônicos da sinagoga, incluindo os muito fragmentos do forro original do teto, foram remontados no Museu de Damasco e ainda estão em ótimo estado.
2) A igreja cristã
Trata-se da igreja cristã mais antiga já encontrada. Ocupa uma casa particular, remodelada para servir como igreja, como era comum no início da cristandade. Fica próxima à sinagoga, tendo sido construída alguns anos antes da remodelação daquela, e também foi preservada graças ao mesmo aterro. É, contudo, bem menor e mais modesta do que a sua vizinha. No seu interior, ha um salão para a reunião dos fiéis e um acesso para uma pequena, que foi adaptada para servir como batistério, em um nicho parecido com o que foi feito para abrigar a Torá na sinagoga. Inclusive, estudiosos acreditam que a igreja pode ter sido decorada pelos mesmos artesãos que trabalharam na primeira. Entre as pinturas existentes na parede do batistério estão as mais antigas imagens retratando Jesus Cristo encontradas até hoje, uma sobre a cura do paralítico (vide foto abaixo, onde ele carrega o próprio catre, como narrado no evangelho) e o outra mostrando Cristo caminhando sobre as águas e amparando São Pedro que afundava (as pinturas hoje estão na Universidade de Yale, nos EUA). O fato da igreja estar colada à Torre 17 e bem próxima a uma casa de banho e da casa dos escribas romanos é um sinal de que os cristãos eram bem tolerados em Dura-Europos, a despeito dos relatos de escritores cristãos de perseguições no reinado do imperador Trajano Décio (249-251 D.C).
3) O mitreu
O mitreu (santuário do deus Mitra) de Dura-Europos foi construído em 168 D.C., logo depois da conquista pelos soldados do exército romano, já que o deus era extremamente popular entre os militares. O santuário também foi preservado pela construção do aterro defensivo e foi remontado na Universidade de Yale.
(Imagem de um soldado romano participando de um culto no Mithraeum (templo de Mitra), em Dura)
4) Equipamentos bélicos e vestígios relacionados com o cerco persa e a batalha travada em Dura-Europos
As escavações no sítio arqueológico de Dura-Europos proporcionaram achados de valor incalculável no que se refere aos equipamentos e táticas militares utilizados pelos exércitos romano e persas.
Os trabalhos dos arqueólogos nas torres e muralhas da cidade renderam exemplos raríssimos e, até mesmo inéditos, de vestígios decorrentes de guerras de antiguidade que congelaram no tempo situações de combate enquanto elas estavam se desenrolando.
A situação mais dramática foi a já mencionada operação de minagem persa e contra-minagem romana na Torre 19 da Muralha Oeste.
Recentemente, o arqueólogo Simon James, da Universidade de Leicester, publicou suas conclusões sobre os achados na Torre 19 e concluiu, de modo bem convincente, que os 20 soldados romanos cujos restos foram encontrados no interior do túnel que eles mesmo cavaram para interceptar o túnel persa foram mortos em virtude de deliberada queima de cristais de enxofre e betume pelos inimigos, tratando-se de um episódio de guerra química, que, aliás, não era estranha aos antigos, sendo mencionada por fontes antigas gregas.
De acordo com James, os soldados romanos não foram mortos em combate corpo-a-corpo, e sim asfixiados e envenenados por dióxido de enxofre, proveniente dos elementos acima mencionados, queimados pelos persas em um braseiro, provavelmente com o uso de um fole (ou em função do efeito sucção causado pela abertura do túnel romano). Posteriormente, os corpos dos soldados romanos inconscientes ou já mortos foram propositalmente empilhados no fundo do túnel romano, para impedir a entrada de reforços romanos. Porém, na operação, o único soldado persa cujo corpo foi encontrado, provavelmente um oficial comandante, dada a qualidade da sua armadura e elmo, acabou também morrendo asfixiado (vide https://www.academia.edu/1448923/Death_in_the_dark_at_Dura-Europos_Did_the_Sassanids_use_chemical_warfare)
(Desenho ilustrando a “guerra química” empregada pelos persas contra os romanos nos túneis subterrâneos embaixo da Torre 19, extraído do artigo do Prof. Simon James)
Um acessório militar importante encontrado no mesmo túnel foi o elmo utilizado pelo oficial persa que provavelmente morreu acendendo o braseiro que sufocou os romanos. Segundo estudiosos, o desenho deste elmo provavelmente influenciou o design dos elmos romanos utilizados no final do século III até o final do império, e, consequentemente até mesmo, os elmos europeus medievais *Cf. artigo de Simon James em https://www.persee.fr/doc/syria_0039-7946_1986_num_63_1_6923)
(O desenho reconstitui o elmo e proteção de cota de malha do soldado persa que morreu na Torre 19, extraído do artigo do Prof. Simon James, acima citado)
Ainda em relação aos persas sassânidas, os achados no sítio de Dura-Europos demonstram que, ao contrário de que as fontes romanas, suspeitas de parcialidade, relatavam, e alguns historiadores ocidentais acreditavam, o exército persa detinha capacidade logística, especialização e táticas militares avançadas para manter um cerco a uma cidade tão fortificada como Dura.
(Foto tirada nos anos 20 mostra projéteis para catapultas trazidas pelo persas ainda no local exato onde eles as empilharam para serem usadas no cerco a Dura. Provavelmente, a cidade caiu antes que o lote precisasse ser utilizado).
Do lado romano, as escavações em Dura-Europos também renderam objetos muito valiosos para os historiadores militares.
Talvez o mais icônico desses artefatos seja o escudo romano encontrado embaixo de detritos de uma das torres da muralha oeste. Simplesmente, este é o único escudo retangular romano já encontrado, do célebre tipo retratado em tantos relevos existentes em monumentos romanos. Este achado permitiu compreender a técnica construtiva do escudo, entender melhor o seu emprego e determinar que o seu tipo ainda continuava em uso em meados do século III (vide foto abaixo).
Também foram encontrados exemplares de escudos redondos, tradicionalmente associados às unidades de auxiliares (auxilia), muito embora hoje acredite-se que ambos poderia ser empregados por legionários ou auxiliares, conforme a situação exigisse. Um desses escudos é particularmente interessante porque ostenta uma pintura mostrando um mapa, ainda que impreciso como representação geográfica, mostrando o nome de várias fortificações romanas ao longo do Mar Negro, onde, presumivelmente, o soldado a quem ele pertencia deve ter servido. Esse costume castrense, aliás, é mencionado pelo poeta romano Ovídio, em seu poema Metamorfoses. (vide primeira foto abaixo)
Finalmente, foram achadas armaduras para cavalos romanas, utilizadas pelas tropas equestres chamadas de catafractos, encontradas na Torre 19. Uma delas estava em tão bom estado que chegou a ser colocada em um cavalo que estava na escavação, nos anos 30.
5) Outros achados (tão ou mais) relevantes
Vários papiros bem conservados foram achados no que seriam os arquivos da Cohors XX Palmyrenorum abarcando um período de 50 anos de atividades da unidade em Dura-Europos. Os documentos são relativos a escalas de serviços dos soldados, inventários de suprimentos, licenças e autorizações para transferência de militares, listas de pagamentos, datas de pagamentos de soldos e de dispensas militares, além de um calendário das datas comemorativas próprias da unidade, bem como de feriados religiosos e aniversários dos imperadores, a serem celebrados com paradas.
Um fragmento de pergaminho (nº 24) contendo uma Harmonia do Evangelho em grego, um texto buscando conciliar as narrativas dos 4 Evangelhos Canônicos sobre a vida de Jesus Cristo, que se estima datar do século III D.C (sendo portanto anterior a 256 D.C, data do cerco e abandono de Dura-Europos). Para alguns estudiosos, o fragmento seria uma cópia do Diatessaron escrito por Taciano cerca de 165/170 D.C, embora para outros trate-se de uma obra independente.
Outro pergaminho, escrito em hebraico, parece derivar do Didache (Didaque), uma espécie de catecismo escrito cristão primitivo (alguns estudiosos estimam que ele dataria do século I A.C.), originado da comunidade de judeus-cristãos da Síria ou até da própria Jerusalém, sendo que alguns trechos são muito semelhantes a bençãos judaicas sobre a comida e o vinho ( Birkot-ha-mazon,). O fragmento foi assim traduzido:
“Bendito seja o Senhor, Rei do Universo, que criou todas as coisas, deu de comer e beber a todas os filhos da carne com os quais eles serão saciados; mas concedeu a nós, seres humanos, participar do alimento das miríades do seu angélico corpo. Por tudo isso, nós devemos dar graças cantando nas reuniões do povo”.
Conclusão
Dura-europos é um dos sítios arqueológicos mais fascinantes do mundo. A cidade existiu durante 560 anos, mais do que qualquer cidade brasileira, por exemplo, e, apesar de ter tido uma população que não ultrapassou 5 mil habitantes, foi o lar de diversas etnias e religiões que, tudo indica, coabitaram em harmonia.
Há um vasto material sobre as escavações arqueológicas realizadas na cidade que ainda aguarda publicação.
Dezoito séculos depois, uma nova tragédia se abateu sobre Dura-Europos: a devastação feita pelo Estado Islâmico, que, na busca por artefatos antigos para vender no mercado negro e, também, por fanatismo religioso, vem sistematicamente destruindo o sítio.
F I M
graças ao twiter nos adicionamos, achei bem interessante seu interesse por Roma, tenho lido nos ultimos dias o condesado (é o q está disponível) de Edward Gibon. meu interesse foca a origem do cristianismo e E.G. tem um capitulo bem interessante sobre Constantino/concilio de niceia e o arianismo. parabens
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Obrigado, Ricardo, por seguir o blog e pelos comentários. Sem dúvida, a obra do Gibbon ainda é muito útil, já que ele basicamente leu todas as fontes disponíveis sobre Roma até o século XVIII. Acho q ele só não teve acesso ( e nem poderia, rs) ao que foi descoberto depois da morte dele, como os papiros de Nag Hamaddi, de Oxirrinco, os manuscritos do Mar Morto, etc. Além disso, ele escrevia bem demais, e não à toa era o autor preferido do Churchill. No nosso blog, falamos muito sobre acontecimentos relacionados ao Cristianismo, afinal, foi a religião dos imperadores romanos a partir de 330 D.C (salvo o breve reinado de Juliano, o Apostata), mas sem nos aprofundarmos nas questões teológicas. Tem uma frase marcante do Gibbon que diz que “A Queda do Império Romano foi o triunfo da barbarie e da religião (cristã)”, o que obviamente é questionável, ja que o Império Romano do Oriente (bizantino), cristão desde o início, durou mais de mil anos. Não sei o nível em que você está estudando esse tema, mas Eu recomendo a obra do historiador A.H.M. Jones, “The Later Roman Empire”, em 2 volumes, que traz muita informação sobre o período de 284 a 602 D. C, inclusive sobre os Concílios e os efeitos das disputas teológicas no Império Romano. Infelizmente, não conheço tradução em português. Mas é uma das principais fontes que eu utilizo ao escrever os artigos sobre o período. Abraço .
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