Em 28 de março de 193 D.C, o Imperador Romano Pertinace devia estar ansioso para que o mês, no qual já tinham ocorrido tantos acontecimentos funestos, acabasse logo. Mas, de repente, os pensamentos do imperador foram interrompidos pela gritaria dos servos do Palácio e pelo barulho de sandálias militares, o que só podia significar uma coisa…
Nascido em 1º de agosto de 126 D.C., na cidade de Alba Pompéia, no atual Piemonte, Publius Helvius Pertinax (Pertinace), segundo a História Augusta, era filho de um escravo liberto da Ligúria, de nome Helvius Successus, que ganhava a vida como comerciante de madeira. O comércio não deve ter deixado Helvius rico, pois, segundo as fontes, seu filho Pertinace teve que trabalhar como “grammaticus” (professor que ensinava literatura e noções de oratória para crianças mais velhas e adolescentes).
Entretanto, sabendo-se que os historiadores que escreveram a História Augusta algumas vezes inventaram detalhes para enriquecer a biografia dos imperadores, esta narrativa deve ser vista com alguma cautela. Cássio Dião, um historiador mais respeitado, por exemplo, apenas escreveu que o pai de Pertinace não era de origem nobre
Em algum momento de sua juventude, Pertinace deixou a profissão de professor e, com o patrocínio do ex-Cônsul (144 D.C) Lollianus Avitus, de quem seu pai devia ser cliente, entrou para o Exército, alcançando o posto de Prefeito de uma Coorte (unidade que compõe uma legião).
Sabe-se que Pertinace serviu na Síria, onde, inclusive, ele recebeu uma punição pela infração de usar o “cursus publicus” (sistema de estradas e postos de montaria) destinado ao governador daquela província sem autorização, tendo sido lhe aplicada a punição de que voltasse a pé de Antióquia até o local onde sua unidade estava estacionada!
Já segundo a versão de Cássio Dião, o patrono de Pertinace no Exército teria sido Tibério Cláudio Pompeiano, general e genro do imperador Marco Aurélio. Vale observar que a versão da História Augusta, no que tange à carreira de Pertinace, é mais completa.
Não obstante, o fato é que, na vitoriosa guerra contra os Partas, que ocorreu entre 161 e 166 D.C, no reinado do Imperador Marco Aurélio, servindo sob o comando do co-imperador Lúcio Vero e de Pompeiano, Pertinace se destacou e foi galgando postos no Exército Romano.
Posteriormente, já na década de 170 D.C, Pertinace foi nomeado comandante da Legião XX Valeria Victrix, na Britânia e, depois disso, comandante da Flotilha do Reno e Procurador da Dácia, cargo equivalente ao de governador.
Foi nessa época que Pertinace também entrou no Senado Romano, onde ele foi alvo de intrigas palacianas que o prejudicaram aos olhos da Corte, mas acabou sendo reabilitado devido à guerra que Marco Aurélio travava com os Marcomanos. E, em decorrência do seu bom desempenho nesta campanha, Pertinace foi nomeado Consul Suffectus em 175 D.C.
Posteriormente, ainda no reinado de Marco Aurélio, Pertinace foi nomeado governador das províncias da Moésia Inferior, da Dácia e da Síria. Eu acredito que o motivo de Pertinace ser estimado pelo letrado Marco Aurélio deveu-se não apenas aos talentos militares dele, mas também pela sua formação de professor.
Quando Cômodo tornou-se imperador, porém, Pertinace foi novamente alvo de intrigas, agora por parte do Prefeito da Guarda Pretoriana Tigidius Perennis, que tentou implicá-lo em uma conspiração contra o Imperado. Esse fato levou Pertinace, em 182 D.C, a deixar a vida pública, voltando para a Ligúria, onde o seu pai tinha adquirido uma loja de roupas, lá ficando por 3 anos.
Mais uma vez, contudo, Pertinace conseguiu voltar às boas graças com o monarca reinante e ele foi nomeado, de 185 a 187 D.C, Governador da Britânia. Nesta província, porém, Pertinace teve que enfrentar o motim de uma legião, quando um grupo de soldados atacou os seus guarda-costas e feriu o próprio Pertinace, que chegou a ser dado como morto.
Quando Pertinace conseguiu recuperar-se dos ferimentos, ele reuniu os soldados fiéis e puniu severamente os revoltosos, ganhando a fama de disciplinador implacável. Apesar disso, o clima de tensão com a tropa continuou e, em 187 D.C, Pertinace deixou a Britânia.
No ano seguinte, Pertinace foi nomeado Governador da África.
Já em 189 D.C, Pertinace foi escolhido para ser o Prefeito Urbano de Roma, um cargo muito importante e que o colocava em contato direto com o Imperador Cômodo. Naquele mesmo ano, ele foi nomeado Cônsul, tendo como colega de consulado o próprio imperador, o que era considerado uma grande honraria.
No início da década de 190, estava ficando claro para a elite romana que Cômodo estava perdendo a sanidade mental, pois juízo e compostura sempre lhe faltaram…
De fato, face aos repetidos desmandos de Cômodo, a expectativa era que alguém tomasse a iniciativa de montar uma trama para acabar com os desmandos do imperador.
Assim, segundo a História Augusta, as pessoas que tomaram para si a tarefa de se livrar de Cômodo foram: o Prefeito Pretoriano Quintus Aemilius Laetus, Márcia, a amante do imperador, e o seu camareiro Eclectus. A urgência surgiu quando eles descobriram que figuravam em uma lista de pessoas a serem executadas a mando de Cômodo,
Assim, os conspiradores assassinaram Cômodo enquanto este tomava banho, em 31 de dezembro de 192 D.C. O nome de Pertinace não é mencionado expressamente na lista de conspiradores, porém, a ação que ele tomaria em seguida, é um indício de que dificilmente ele ignoraria esta trama, e, provavelmente, devia ser participante.
Com efeito, imediatamente após o assassinato de Cômodo, Pertinace se dirigiu ao acampamento da Guarda Pretoriana e prometeu uma doação aos soldados, sendo aclamado imperador. A aclamação dele foi aprovada entusiasticamente pelo Senado, que, tudo indica, também tinha tomado parte na trama.
Consequentemente, em 1º de janeiro de 193 D.C, e, até onde se sabe, pela primeira vez na Historia de Roma, o filho de um liberto se tornava imperador, com o nome de Publius Helvius Pertinax Augustus, aos 66 anos de idade (tornando-se, até então, a pessoa mais velha a assumir o trono romano, com exceção de Galba).
Pertinace adotou uma série de medidas populares a partir de sua coroação, revogando algumas leis tirânicas ou insensatas de Cômodo.
Todavia, quando Cômodo morreu, só havia um milhão de sestércios no Tesouro do Estado e Pertinax teve muita dificuldade para pagar o donativo prometido aos Pretorianos. Ele, inclusive, teve que vender várias propriedades e escravos de Cômodo para poder reunir o dinheiro.
Segundo o historiador Cássio Dião, ele mesmo um senador que foi contemporâneo de Pertinace no Senado Romano, o reinado de Pertinace havia começado de modo promissor, porém, ele, esquecendo-se de que seu poder dependia da precária boa-vontade dos Pretorianos, tentou revogar os imensos privilégios que Cômodo havia-lhes conferido durante o seu reinado…
Não obstante, Pertinace deve ter percebido que sua posição no trono não era muito segura, pois ele recusou que a sua esposa, Flávia Titiana, recebesse o título de Augusta e ainda mandou o seu filho ir morar com o avô, e não, como seria de se esperar, com ele, no Palácio.
Pertinace deve ter entendido que o reinado dele deveria seguir a “raison d’etre do principado de Nerva, que não tinha filhos e era idoso ( ele foi coroado com 65 anos), sendo visto por todos como um imperador transitório, originário do Senado, o que explica a sua tentativa de afastar a sua família da Corte. Seja como for, a medida foi sensata, pois essa providência permitiu que, mais tarde, eles fossem poupados.
Contudo, Pertinace nomeou seu sogro, o senador e ex-cônsul Tito Flávio Cláudio Sulpiciano, Prefeito Urbano do Roma.
Nota: Acredita-se que Sulpiciano possa ser filho de Tito Flávio Titianus e de Flávia Domitila. Nesse caso, o pai de Sulpiciano era filho de Tito Flávio Clemente, sobrinho do imperador Vespasiano e primo dos imperadores Tito e Domiciano, e a mãe de Sulpiciano seria neta de Vespasiano. Vale citar, assim, que o avô da esposa de Pertinace, o qual foi executado sob acusação de ateísmo, pode ter sido cristão e seria, na verdade, o santo católico conhecido como São Clemente. E a sua mãe,Domitila, seria a Santa Domitila dos cristãos.
O fato é que quando março chegou, sendo este apenas o terceiro mês do reinado de Pertinace, ele teve que enfrentar a primeira tentativa de golpe. Assim, quando ele estava no porto de Óstia inspecionando o embarque de grãos para Roma, alguns Pretorianos procuraram o cônsul Quintus Sosius Falco, propondo-lhe o cargo de Imperador caso aceitasse participar de uma conspiração contra Pertinace. Segundo o plano, Falco, após a morte de Pertinace, seria levado ao quartel da Guarda Pretoriana e aclamado. Pertinace, porém, avisado a tempo por um escravo, voltou à Roma e fez um discurso no Senado denunciando a conspiração. Alguns senadores propuseram condenar Falco à morte e declará-lo inimigo público, porém o imperador disse: “Não permitam os céus que algum senador seja executado durante o meu reinado” e Falco foi perdoado. Na História Augusta, é relatada também a versão de que Falco ignoraria a trama dos Pretorianos, que teria sido feita à sua revelia.
De acordo com Cássio Dião, Pertinace, na referida sessão do Senado, teria irritado os Pretorianos quando disse aos senadores que ele havia lhes pago o mesmo donativo que Marco Aurélio tinha pago quando de sua ascensão ao trono. O motivo da indignação seria o fato de que, na verdade, Pertinace tinha dado aos Pretorianos 12 mil sestércios, em comparação com os 20 mil sestércios que os soldados receberam de Cômodo. Além disso, conta-se que Pertinace mandou executar alguns Pretorianos pelo golpe falho envolvendo Falco, o que também desagradou os soldados.
Seja como for, essa alusão de Pertinace à questão dos donativos em seu discurso acerca da rebelião de Falco, e a reação zangada dos Pretorianos, mostram que eles deviam estar bem insatisfeitos com a recompensa que receberam por terem elevado Pertinace ao trono.
Assim, não deve ter sido surpresa, nem para as mentes mais ingênuas, quando, em 28 de março de 193 D.C, um bando calculado entre 200 e 300 Pretorianos se dirigiu ao Palácio. O Prefeito Pretoriano Laetus não interceptou os soldados e Pertinace, apesar de avisado da aproximação do grupo, decidiu ficar no Palácio, que já estava sendo invadido, sem que nenhum de seus guarda-costas oferecesse qualquer oposição.
Dizem as fontes que Pertinace ainda poderia ter fugido, mas ele preferiu ir em direção ao grupo e fazer-lhes um inflamado discurso reprovando a conduta deles , o que causou um grande efeito, levando a maioria dos soldados a baixarem os olhos.
Porém, um certo Tausius, um soldado de origem germânica, insatisfeito, gritou com os seus camaradas e atirou uma lança no peito de Pertinace, que caiu e foi golpeado por vários outros soldados. Em seguida, a cabeça de Pertinace foi cortada e desfilada por Roma na ponta de uma lança.
Depois da morte de Pertinace, ocorreu um dos mais vergonhosos episódios da História de Roma: Os Pretorianos saíram pela cidade de Roma em busca de candidatos para quem pudessem vender o trono imperial.
Um grupo de Pretorianos levou para o Quartel da Guarda o Prefeito Urbano Sulpiciano, com quem começaram a negociar o preço. Logo em seguida, trazido por outro grupo, chegou o senador Dídio Juliano, que, ouvindo tudo, começou a fazer, ainda do lado de fora dos muros, as suas ofertas. O triste espetáculo transformou-se em um verdadeiro leilão, no qual Dídio Juliano acabou saindo vitorioso.
Porém, nem o povo, nem o Senado aceitaram a forma abjeta com que Dídio Juliano havia obtido o trono e ele começou a ser vaiado em público, quando comparecia a jogos, cerimônias ou espetáculos. Em um desses eventos, o povo chegou a aclamar o governador da Síria, o general Pescênio Niger, imperador.
Logo, os generais Clódio Albino, Septímio Severo e Pescênio Niger seriam aclamados imperadores, cada um pelas respectivas legiões, e a Guarda Pretoriana, com medo da punição aos seus crimes, abandonou Dídio Juliano.
Quando Septímio Severo invadiu a Itália, o Senado condenou Dídio Juliano à morte e reconheceu-o como novo imperador. Dídio Juliano foi executado por um soldado, em 1º de junho de 193 D.C., antes mesmo de Severo entrar em Roma
Senhor absoluto de Roma (mais tarde ele se livraria dos rivais Niger e Albino nas províncias), Septímio Severo ordenou a execução dos assassinos de Pertinace e fez com que o Senado “deificasse” o antecessor. Severo também decretou que as datas de nascimento e de ascensão de Pertinace ao trono fossem incluídas no calendário de festejos romanos (e elas ainda constavam do célebre calendário do ano de 354 D.C, de Filócalo), recuperou a cabeça e o corpo de Pertinace, que foram objeto de um funeral estatal, e, honra suprema, incorporou o nome de “Pertinax” ao seu próprio nome imperial.
Pertinace, apesar de reinar por apenas 86 dias, havia sido um governante popular e respeitado.
Severo, inicialmente, resolveu compor com Clódio Albino e lhe deu o título de “César”, o que implicava em um reconhecimento do seu direito de herdar o trono.
CONCLUSÃO
Pertinace granjeou a fama de ter sido um bom imperador e que poderia ter restaurado os bons tempos da dinastia dos Antoninos. Parece que o Senado o escolheu com intuito parecido com o que ensejou a nomeação de Nerva: um senador respeitado e de idade avançada para um reinado de transição, que não instauraria uma dinastia, pois enquanto Nerva não tinha filhos, Pertinace tinha deixado claro que não associaria o seu filho ao governo.
O exemplo de Nerva foi bem sucedido porque ele soube (ou talvez, mais apropriadamente, não se opôs) escolher um general de prestígio no Exército, com boas conexões com a elite romana e uma boa base de apoio na sua própria província para sucedê-lo (Trajano).
Já Pertinace não parece ter tido tempo sequer de tratar de sua sucessão, e, de modo imprudente, para dizer o mínimo, ignorou a precariedade da sua posição, já que de fato ele era um verdadeiro refém da Guarda Pretoriana. Esta, por sua vez, era incapaz de impor, de modo duradouro, qualquer escolha às legiões das províncias. E o Senado também foi ingênuo em achar que poderia escolher alguém entre os seus pares que não tivesse o apoio do Exército.
Por tudo isso, o ano de 193 D.C ficaria conhecido como “O Ano dos Cinco Imperadores“.