SÃO CRISPIM E SÃO CRISPINIANO

Crispinus e Crispinianus, segundo a hagiografia cristã, seriam dois irmãos, provavelmente gêmeos, provenientes de uma ilustre família da nobreza romana, que se converteram ao Cristianismo, na segunda metade do século III D.C. Após sua conversão, os dois irmãos foram morar na província romana da Gália Bélgica, na cidade de Augusta Suessionum (atual Soissons), com o objetivo de converter os habitantes locais. Ali, eles exerceram com sucesso a profissão de sapateiro, para se manter e também ajudarem os pobres da região.

No reinado do imperador Diocleciano, antes mesmo que fosse iniciada a chamada Grande Perseguição, Crispinus e Crispinianus foram trazidos à presença do colega dele, o Imperador do Ocidente Maximiano, que lhes exortou a renunciar à fé cristã, mediante ameaças e promessas de vantagens.

Ante a negativa veemente dos dois irmãos, Maximiniano enviou-os para o governador da província, um certo Rictiovarus, que os fez torturar e, após, ordenou que ambos fossem jogados ao rio Aisne com pedras de moinho amarradas ao pescoço. Não obstante, Crispinus e Crispinianus conseguiram nadar até a margem do rio, apenas para serem novamente capturados e decapitados por ordem do imperador, em 25 de outubro de 286 D.C.

Martírio de São Crispim e São Crispiniano (1494), Aert van den Bossche, Public domain, via Wikimedia Commons

A estória de Crispinus e Crispinianus basicamente repete a de muitos outros mártires cristãos do período: soldados ou romanos nobres que se convertem à religião cristã, são perseguidos, resistem à renegar Cristo e são executados, não sem antes resistir milagrosamente aos castigos ou formas de execução inicialmente aplicados. Que houve uma grande perseguição no reinado de Diocleciano e Maximiano é um fato inconteste, e não há porque duvidar que houve muitas execuções de cristãos que se recusaram a cumprir a exigência de que fizessem sacrifícios ao culto imperial. Presumivelmente, a crença inabalável de tantos mártires parece ter tido efeito contrário ao desejado pelos imperadores, inspirando a conversão de muitos pagãos. Já os relatos de ocorrências milagrosas consistem mais em uma questão de fé e não há como comprová-los.

Uma grande basílica foi erguida em Soissons em homenagem a São Crispim e São Crispiniano no século VI D.C., supostamente sobre as sepulturas dos dois mártires. Durante a Idade Média, eles tornaram-se os santos padroeiros dos sapateiros, dos curtidores e dos que trabalham com couro e selaria, que eram artesãos importantes no período pré-industrial. Com a Revolução Industrial, o culto aos dois santos perdeu um pouco a popularidade, mas a festa dos Santos Crispim e Crispiniano continua sendo comemorada em 25 de outubro.

Em 25 de outubro de 1415 foi travada a Batalha de Agincourt, entre os exércitos do rei Henrique V e do rei Carlos VI, da França, estas comandadas pelo condestável Carlos D’Albret. Embora inferiorizados numericamente, os ingleses infligiram uma terrível derrota aos franceses. O epísódio foi imortalizado por William Shakespeare, na peça Henrique V.

Em uma das peças mais célebres da literatura da língua inglesa, na véspera da Batalha de Agincourt, o rei Henrique V da Inglaterra faz o famoso discurso de motivação às suas tropas, conhecido como “‘Discurso do Dia de São Crispim (também chamado de “Discurso do Bando de Irmãos” ou “Band of Brothers Speech“). Vou transcrever aqui em inglês mesmo, porque sinceramente acho que nenhuma tradução em português consegue transmitir a força do original, mas o leitor pode utilizar qualquer ferramenta online para traduzir:

Westmoreland:
O that we now had here
But one ten thousand of those men in England
That do no work to-day!

King:
What’s he that wishes so?
My cousin, Westmoreland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmoreland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.
This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester
Be in their flowing cups freshly rememb’red.
This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

A peça Henrique V e o discurso foram admiravelmente filmados por Kenneth Branagh no filme homônimo, que pode ser visto abaixo (enquanto o youtube permitir):

A BATALHA DE ZAMA – ROMA ESTÁ VINGADA

Estamos em 19 de outubro de 202 A. C.

Nas proximidades da cidade de Zama Regia, a aproximadamente 130 km ao sudoeste da antiga Cartago, e da moderna Túnis, os exércitos romanos e cartagineses esperam na planície as ordens dos seus comandantes, Públio Cornélio Cipião e Aníbal Barca.

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Os protagonistas acreditam que a batalha será o round final da Segunda Guerra Púnica, que já durava 16 anos, um conflito que havia se iniciado com o ataque dos africanos à Sagunto, uma cidade ibérica aliada de Roma, e, ganhado proporções épicas quando o cartaginês Aníbal deixando a Espanha em uma marcha surpreendente, cruzou os Alpes e invadiu a Itália, ali derrotando, uma após uma, as legiões romanas enviadas contra ele.

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PRELÚDIO

Após a grande vitória de Aníbal na Batalha de Canas, no sul da Itália, em 216 A.C., em que, adotando uma tática magistral, o exército cartaginês destruiu quatro exércitos consulares, matando mais de 60 mil soldados romanos em apenas um dia, todos acreditavam que o cerco e captura de Roma seria uma questão de tempo. Aníbal , inclusive, esperava que as cidades italianas aliadas à Roma iriam passar para o seu lado.

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Porém, os aliados de Roma se mantiveram fiéis. Diante da situação desesperadora, o Senado nomeou um comandante, com poderes ditatoriais, o general Quinto Fábio Máximo, que retomou a sua estratégia de guerrilha e de terra arrasada, evitando confrontos diretos com o multinacional exército cartaginês, que além dos povos púnicos, de origem fenícia e berberes, incluía ibéricos, gauleses e mercenários gregos.

Fábio Máximo, devido a estratégia que adotou, ganhou o apelido de “Cuntator“, ou seja, “protelador” (ou “contemporizador”), com o qual ele passaria a História. E de fato, a “estratégia fabiana” funcionou bem:

Assim, Aníbal perambulou à vontade durante quase 10 anos pela península italiana, entretanto, o tempo trabalhava a favor dos romanos, já que, longe da pátria, com poucas fontes de reforços, o exército cartaginês aos poucos ia diminuindo e se enfraquecendo.

Até que, em 207 A.C., os cartagineses decidiram mandar para a Itália o seu importante exército que continuava na Espanha, sob o comando de Asdrúbal, irmão de Aníbal, que também  marchou para cruzar os Alpes e juntar-se às forças do irmão ilustre, com o fim de ambos darem o golpe final em Roma.

Desta vez, contudo, os romanos estavam melhor preparados. Asdrúbal acreditava que ele iria enfrentar apenas um exército consular, no Rio Metauro, na Úmbria. Entretanto, os romanos, secretamente, enviaram  para  juntar-se a este mais um exército, iludindo Aníbal e Asdrúbal, sendo que este segundo exército romano conseguiu ficar escondido no acampamento do primeiro.

Assim, valendo-se dessa dessa oculta superioridade numérica, os romanos conseguiram derrotar a força expedicionária cartaginesa, na Batalha do Rio Metauro. Como recado, a cabeça de Asdrúbal foi cortada e enviada para seu irmão, no sul.

Desse modo, Aníbal perdeu definitivamente a oportunidade de liquidar a campanha na Itália: Ele não receberia mais reforços, e, com os recursos humanos que ele dispunha, ele era incapaz de derrotar Roma, muito embora os romanos ainda não se atrevessem a atacá-lo diretamente.

Concomitante ao quadro acima descrito, os exércitos romanos na Espanha eram comandados por Públio Cornélio Cipião. Sentindo-se confiante com a situação favorável aos romanos na Península Ibérica, após a vitória na Batalha de Ilipa, em 206 A.C., o prestigiado Cipião resolveu voltar para Roma, onde ele conseguiu ser eleito Cônsul.

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Cipião, como primeira medida no mais importante cargo executivo da República, propôs a política de mudar o teatro de operações da Itália para a África, defendendo um ataque direto a Cartago. Assim, ao invés de arriscar uma incerta vitória contra o temido Aníbal na Itália, onde uma nova derrota teria consequências desastrosas, Cipião acreditava que um desembarque nas costas africanas obrigaria o próprio cartaginês a vir em socorro da pátria-mãe.

Todavia, o Senado Romano, influenciado por Fábio “Cuntator, opôs-se ao plano de Cipião, julgando-o muito arriscado. Ocorre que as sucessivas vitórias de Cipião na Espanha deram-lhe muito prestígio junto ao povo e o Senado, pressionado pela opinião pública, acabou autorizando a expedição idealizada por Cipião, porém negando que os soldados conscritos, recrutados para os exércitos consulares, fossem utilizados.

Assim, Cipião partiu, seguido, inicialmente, por apenas 7 mil voluntários, atraídos pelo seu prestígio, para a Sicília, onde ele ficou durante um ano treinando o seu exército para o confronto na África.

Em 203 A.C., com o seu novo exército pronto, Cipião desembarcou próximo à cidade de Útica, na moderna Tunísia, onde  ele prontamente derrotou um exército cartaginês de cerca de 30 mil homens enviado para repelir a invasão romana.

Essa derrota inicial dos cartagineses consagrou a eficácia da estratégia de Cipião, pois em função dela o Senado de Cartago chamou Aníbal de volta para a África e pediu a paz aos romanos. Observe-se que o próprio general cartaginês foi favorável à capitulação, até porque os termos do tratado proposto pelos romanos, dada a presente situação militar dos cartagineses, eram bem razoáveis: Cartago permaneceria com todos os seus territórios na África, mas perderia suas colônias na Espanha, Sicília e Sardenha (que, de qualquer forma já estavam em mãos romanas), pagaria uma indenização e, finalmente, teria sua frota reduzida para apenas 40 galeras.

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Entretanto,  durante as tratativas; uma frota romana com suprimentos enviados para as tropas de Cipião acabou encalhando no golfo de Túnis e os cartagineses se apropriaram dos navios e da carga. Era, sem dúvida, uma óbvia violação da trégua, e, provavelmente, os cartagineses se sentiram encorajados  a fazer isso devido ao retorno de Aníbal, embora o grande general continuasse a favor do fim das hostilidades.

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Consequentemente, o Senado de Cartago votou pela rejeição do tratado e pela continuação da guerra. Obediente, Aníbal reuniu o máximo de tropas disponíveis e partiu para interceptar os romanos, sendo o primeiro a chegar nas planícies próximas à Zama, seguido pelos romanos…

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A BATALHA

Consta que os dois maiores generais que o mundo havia conhecido depois da morte de Alexandre, o Grande, encontraram-se antes da batalha para negociar. Aníbal propôs que o tratado anterior fosse restabelecido. Contudo, Cipião respondeu que, agora, somente a rendição incondicional seria aceita pelo Senado Romano. A paz, portanto, era impossível, e ambos os  generais se retiraram para seus acampamentos.

Os cartagineses tinham cerca de 36 mil soldados de infantaria, 4 mil cavaleiros e 80 elefantes, que deveriam ser os primeiros a atacar. Segundo as fontes, entre as tropas cartaginesas, havia 4 mil soldados macedônios que teriam sido cedidos pelo rei Filipe V, da Macedônia, monarca que já estava incomodado com o aumento do poder romano no Mediterrâneo.

Aníbal dispôs as suas tropas formadas em três linhas: as tropas de seu outro irmão Mago, retiradas da Itália, na primeira linha, as tropas domésticas alistadas para essa campanha, na segunda linha, e, na terceira, na retaguarda, os veteranos que vinham servindo com Aníbal desde a Itália. No flanco esquerdo, ficava a eficiente cavalaria númida e, no flanco direito, a cavalaria cartaginesa, menos experiente.

Já o exército romano tinha cerca de 29 mil homens e 6 mil cavaleiros, sendo a maioria deles númidas fornecidos pelo agora aliado rei Masinissa, que havia sido capturado por Cipião na Espanha e, tinha sido, pelos reconhecidos talentos diplomáticos do general romano, convencido a lutar contra Cartago. A forte cavalaria númida ficou na ala esquerda, e a cavalaria italiana na ala esquerda. Observe-se que os romanos sempre foram fracos em cavalaria, arma que vinha se mostrando muito importante nos combates anteriores,  e, portanto, o apoio de Masinissa era crucial.

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( A ordem de batalha em Zama, diagrama de Mohammad adil)

Preocupado com a ameaça representada pelos elefantes de Aníbal, Cipião, engenhosamente, dispôs as tradicionais três linhas das legiões em blocos espaçados (com exceção das primeiras, para que o estratagema não fosse percebido), como que criando avenidas por onde os elefantes passariam, e no meio das quais os enormes bichos poderiam ser atacados pelos lados. Para assustar os elefantes, o general romano instruiu a cavalaria a soprar suas trombetas a plenos pulmões, fazendo um ruído ensurdecedor.

Quando a batalha começou, assim como previsto, parte dos elefantes se apavorou com o barulho e voltou em direção aos próprios cartagineses, criando confusão em suas linhas, e a outra parte passou pelos corredores sem causar danos de monta.

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Masinissa atacou a cavalaria númida cartaginesa, que já tinha sido desorganizada pela fuga dos elefantes, fugindo esta do campo de batalha. Por sua vez, Aníbal ordenou que a cavalaria cartaginesa remanescente desengajasse para atrair a cavalaria romana para fora do campo de batalha, com a intenção de impedir que esta fosse utilizada contra a sua infantaria.

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Cipião, então, ordenou que a infantaria romana avançasse. Como sempre, as linhas cartaginesas não conseguiam resistir muito tempo ao assalto dos legionários. Porém, ao contrário do que ocorrera na Batalha de Canas, os cartagineses agora não tinham mais o apoio da cavalaria para ajudar a montar a mesma armadilha usada naquela oportunidade: o falso recuo do centro da linha visando fazer os romanos serem cercados pelas tropas cartaginesas nos flancos da sua formação, e pela cavalaria cartaginesa na retaguarda. Aníbal, notando a situação difícil, ordenou que a sua segunda linha não permitisse o recuo da primeira, e a batalha recrudesceu com a massa de tropas envolvidas. Temendo ser flanqueado pelo número superior de tropas cartaginesas, Cipião ordenou que as legiões formassem agora uma só linha. Era uma manobra complicada que, em meio à confusão do campo de batalha, somente era possível devido ao excepcional treinamento e disciplina do legionário romano e ao excelente nível dos oficiais subalternos (centuriões graduados).

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Não obstante, a batalha restou indecisa até o momento que a cavalaria de Cipião retornou, após haver perseguido os inimigos, e atacou a infantaria cartaginesa pela retaguarda. Agora acossados pela frente e por trás, as linhas cartaginesas foram sendo desmanteladas e destruídas. No final, vinte e cinco mil soldados de Cartago foram mortos e o restante foi feito prisioneiro.

EPÍLOGO

Aníbal conseguiu escapar com uma escolta de cavalaria para Hadrumeto, e dali ele alcançou Cartago, onde ele recomendou ao Senado que se rendessem aos romanos, o que acabou sendo aceito, apesar de muita oposição. Deve ter sido um momento devastador para aquele menino que, décadas antes, jurara ao seu pai, Amílcar Barca, perante um altar, que ele seria inimigo de Roma para sempre!

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Banido de Cartago, em 195 A.C., Aníbal foi asilar-se na corte de Antíoco III, rei da Selêucia e outro grande adversário de Roma. Quando Roma derrotou também esse reino, em 183 A.C., Aníbal fugiu para a Bitínia, onde, após o seu anfitrião, o rei Prúsias, ser intimado a a entregá-lo aos romanos, ele cometeu suicídio.

Públio Cornélio Cipião voltou para Roma onde ele celebrou um magnífico Triunfo e foi agraciado com o congnome “Africano“. Disputas políticas, entretanto, fariam com que o grande herói romano da Segunda Guerra Púnica fosse banido da vida pública, falecendo, coincidentemente, também em 183 A.C.

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CONCLUSÃO

Com a vitória, Roma tornou-se a potência suprema no Mediterrâneo ocidental,  governando a Península Itálica, a Sicília, a Sardenha, a Espanha e o sul da França. Assegurada a supremacia naquela vasta região, em poucos anos Roma seria capaz de derrotar, um a um, na Grécia, na Ásia e no Egito, os Estados helenísticos, herdeiros do vasto império de Alexandre, iniciando, por conseguinte, uma hegemonia política e cultural que duraria 500 anos, ou mesmo 1500, se contarmos o período relativo ao Império Romano do Oriente,  centrado em Constantinopla.

FIM

AS FABULOSAS PORTAS ROMANAS

Dos objetos romanos que chegaram até os nossos dias, um dos que mais me fascinam são as portas de bronze romanas: além de artisticamente belíssimas, elas transmitem majestade e solidez, conferindo um aspecto digno e solene aos edifícios que elas ainda guardam. E, provavelmente, embora pudessem ter sido originalmente douradas ou dotadas de ornamentos dourados, o fato é que o envelhecimento típico do bronze lhes cai muito bem. E também são tecnicamente muito bem feitas. De fato, até onde eu sei, as portas romanas que descreveremos neste artigo são as mais antigas ainda em funcionamento no Mundo (há portas mais antigas, como a que selava a tumba do faraó Tutankhamun, ou outras até mais antigas, de pedra, mas não podemos dizer que elas ainda sejam portas funcionais).

Sem mais delongas, vamos então às mais antigas portas romanas:

1- Portas da Cúria do Senado Romano (Curia Julia)

Estas portas guardavam a Cúria do Senado Romano, que começou a ser erguida pelo Ditador Júlio César em 44 A.C., no lugar da Curia Hostilia, incendiada nos tumultos que sucederam ao assassinato do político Clódio, em 52 A.C. Mas os trabalhos só foram concluído pelo herdeiro de César, Otaviano, em 29 A.C. Após a Queda do Império Romano do Ocidente, o edifício foi transformado em uma igreja, em 630 D.C, permanecendo nesta função até o governo de Benito Mussolini, em 1938, quando o templo foi desconsagrado, sendo todos os acréscimos posteriores ao período romano removidos, revelando o piso de mármore no padrão opus sectile original e as arquibancadas onde ficavam os bancos de madeira dos senadores. Assim, o prédio da Curia Julia, que sofreu várias restaurações ainda durante o Império Romano, sobrevive no Fórum Romano, sendo a mais importante delas a efetuada pelo Imperador Diocleciano, que resultou no prédio que atualmente podemos visitar hoje. Porém, as magníficas portas de bronze que o guarneciam, medindo imponentes 5,9 m de altura, foram colocadas entre 81 e 96 D.C, durante o reinado do imperador Domiciano. Elas permaneceram na Curia até 1660, quando foram retiradas e instaladas na Basílica Católica de São João de Latrão (San Giovanni Laterano), em Roma, onde se encontram até hoje, em perfeito funcionamento. Durante os trabalhos de restauração realizados no governo de Mussolini, foram instaladas reproduções fiéis das portas originais. Como a própria Basílica de San Giovanni Laterano, apesar de muito reformulada ao longo dos séculos, foi construída e consagrada no reinado do imperador Constantino, o Grande, em 324 D.C, sem dúvida as suas portas merecem o título de portas romanas mais antigas em funcionamento (e talvez do mundo). Finalmente, é fascinante pensar que por essas portas, sem sombra de dúvida passaram ao longo dos séculos vários imperadores e inúmeros senadores romanos.

antmoose, CC BY 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by/2.0, via Wikimedia Commons
~Visão interna, com as trancas. Foto Tomk2ski, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

2 Portas do Pantheon

As portas de bronze do Pantheon são as mais antigas que ainda permanecem no seu local original de instalação. O icônico edifício foi construído no reinado do imperador Adriano, e dedicado em 126 D.C., sendo provavelmente concebido pelo grande arquiteto Apolodoro de Damasco. A opinião prevalente é que essas portas são as originais da construção do prédio atual, embora alguns defendam que possam ser anteriores, até mesmo contemporâneas de um edifício anterior, de mesmo nome e no mesmo local, erguido por Marco Vipsânio Agripa, no governo do imperador Augusto (como gesto de modéstia, Adriano quis que a inscrição dedicatória em nome de Agripa fosse mantida no frontão do novo edifício). Mas há opiniões minoritárias alegando que essas portas seriam medievais ou até mesmo modernas. As portas medem 7,53 m de altura por 4,45 m de largura e cada porta pesa 8 toneladas e meia, totalizando 17 toneladas no total. Durante 241 anos a porta direita não abria, mas trabalhos de restauração no umbral e/ou na soleira, bem como nos pinos, realizados em 1998, restauraram a sua funcionalidade. Assim, ambas as portas, apesar do peso descomunal, podem ser abertas por apenas uma pessoa, graças à perfeição do mecanismo criado pelos Romanos.

Ank Kumar, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

3- Portas do Templo de Rômulo

Estas foram as primeiras portas romanas que eu vi pessoalmente, quando da primeira vez eu estive em Roma, no Fórum Romano e o seu formato sóbrio e vetusto e o verde marcante da pátina em seu bronze me fascinaram instantaneamente.

Segundo a teoria mais aceita, este templo foi dedicado a Valério Rômulo, filho do imperador Maxêncio, que morreu ainda adolescente em 309 D.C., sendo divinizado por ordem de seu pai, sendo o único templo romano, além do acima referido Pantheon, que ainda tem as suas portas de bronze originais, inclusive com a fechadura, também autêntica, ainda funcionando perfeitamente! Em 527 D.C, o Templo de Rômulo, durante o reinado de Teodorico, o Grande, rei dos Ostrogodos, foi doado ao Papa, tornando-se, então, o vestíbulo da Basílica de São Cosme e São Damião, no Fórum Romano.

Foto do autor (2000)
Amphipolis, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons
A fechadura romana original funcionando. Talvez a mais antiga do mundo ainda operacional. Foto By MumblerJamie – https://www.flickr.com/photos/184393744@N06/49355439643/, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=118275303

4- Portas da Igreja de Santa Sabina

A Basílica de Santa Sabina é um local que eu recomendo muito a todo o viajante que quiser viver uma experiência diferente e mais imersiva na Roma Antiga. Ela fica no topo da colina do Aventino, uma zona residencial chique, desde os tempos do Império Romano, que não é um local tão frequentado por turistas. O templo católico foi construído em 432 D.C, durante o reinado do imperador Valentiniano III, no terreno onde ficava a casa da aristocrata romana Sabina, cristã martirizada em 126 D.C, e, ao contrário de muitas igrejas antigas romanas, não foi alvo de restaurações ou reconstruções em estilo renascentista ou barroco, ao contrário, Santa Sabina conserva a sua arquitetura original do estilo do Baixo Império Romano, da qual é um dos exemplos mais representativos. As portas da basílica são as únicas incluídas neste artigo que são feitas de madeira (cipreste). E, comprovadamente, mediante testes de dendrocronologia e de rádio-carbono realizados, essas portas são originais, datadas do século V D.C. ( vide https://journals.ub.uni-heidelberg.de/index.php/rihajournal/article/download/69927/version/60257/63277?inline=true#page=1&search=%22sabina%20santa%22.

Dezoito dos painéis decorativos esculpidos em relevo são também originais e trazem algumas das mais antigas representações do Novo Testamento, inclusive uma das primeiras reproduções conhecidas da cena da crucificação de Jesus Cristo.

Finalmente, ainda que não diga respeito ao nosso tema, o leitor que visitar Santa Sabina não pode deixar de conhecer o Giardino degli Aranci, um jardim que fica ao lado da igreja, com lindas e antigas laranjeiras que, na estação apropriada, ficam carregadas de laranjas exalando um cheiro delicioso. O jardim também oferece vistas magníficas do rio Tibre e de parte da cidade de Roma e, se tudo der certo e o ambiente estiver calmo, propiciará uma experiência inesquecível, sobretudo para quem se lembrar do famoso afresco da Villa de Lívia, em Prima Porta, retratando um jardim com laranjais.

By Peter1936F – Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=58188414
Painel de madeira da porta de Santa Sabina, com relevo retratando a Crucificação de Jesus Cristo ao lado dos ladrões (século V). Foto CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1880569
MumblerJamie, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

5- Portão Esplêndido de Hagia Sophia

O chamada “Portão Esplêndido” ou “Porta Bonita” é uma porta interna de bronze instalada na Igreja de Santa Sofia (Hagia Sophia), em Constantinopla (atual Istambul, na Turquia). A imponente igreja foi construída pelo imperador romano do Oriente Justiniano, no século VI D.C. Porém, a porta em questão foi removida de um templo pagão, que ficava na ilha de Cnido, na Grécia, provavelmente o Templo de Afrodite (embora não se possa afirmar com certeza) e trazidas para Santa Sofia pelo imperador bizantino Teófilo , provavelmente em 838 D.C, tendo em vista uma inscrição com esta data nela aposta. As portas, em duas folhas, nitidamente foram adaptadas para caberem no interior da igreja, provavelmente cortando-se alguma parte delas e davam acesso à nave principal da construção a partir de um vestíbulo no nártex, utilizado pelo imperador e seu círculo íntimo. Considerando o estilo e outras características, especialistas avaliam que as portas foram fabricadas por artesãos gregos, antes ou durante o período romano, por volta do século II A.C, o que as tornariam as mais antigas existentes.

Dosseman, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

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Sebah & Joaillier, photographer, Public domain, via Wikimedia Commons

https://web.archive.org/web/20181229231848/http://ayasofyamuzesi.gov.tr/en/door-nice-door

ALEXANDRE, O ÚLTIMO SEVERO E A CRISE DO SÉCULO III

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Em 22 de março de 235 D.C., o imperador romano Severo Alexandre, encontrava-se na base militar romana de  Castrum Moguntiatium (que deu origem à moderna cidade alemã de Mainz, ou Mogúncia, seu nome em português) quando um motim dos soldados da Legião XII Primigenia estourou.

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As tropas recusaram-se a obedecer aos apelos do imperador para que combatessem as tropas lideradas pelo general Maximino Trácio, comandante da Legião IV Italica, as quais tinham aclamado Maximino imperador.

Reunidos no centro do Quartel, os soldados começaram a ficar muito agressivos, acusando Severo Alexandre de ser um covarde dominado pela mãe avarenta e comparando-o ao desprezível Elagábalo, seu primo e antecessor no trono.

Os amotinados, ato contínuo, demandaram que os demais soldados abandonassem “o tímido menininho amarrado à barra da saia da mãe“,  fazendo com que toda a soldadesca lhe desse as costas, deixando o imperador sozinho no praetorium.

Severo Alexandre, aterrorizado, correu para a tenda de sua mãe, a imperatriz Júlia Maméia (Julia Mammaea), que o acompanhava, como sempre, naquela campanha contra os bárbaros Alamanos.

Tinha sido Júlia Maméia quem havia aconselhado Alexandre a oferecer aos bárbaros uma boa soma em dinheiro para que eles desistissem de guerrear contra os Romanos.

E esse foi justamente o estopim da revolta das legiões , pois os soldados alegavam que isso era uma grande desonra para o Império Romano (talvez eles esperassem que o dinheiro fosse dado a eles como donativo pela vitória).

No interior da tenda da mãe, Severo Alexandre chorou e recriminou a mãe pelos seus infortúnios. Ele sabia que estava acabado. Por isso, quando um grupo de soldados seguiu o imperador e invadiu a tenda de Júlia Maméia, Alexandre, resignadamente, ofereceu o pescoço para que eles o executassem. Ele morreu aos 26 anos de idade e treze de reinado. Na mesma ocasião, os soldados também mataram Júlia.

Marcus Julius Gessius Bassianus Alexianus(Severo Alexandre) nasceu em 1º de outubro de 208 D.C, na cidade de Arca Caesarea , na província romana da Síria Fenícia (atual Arqa, no Líbano), filho de  Marcus Julius Gessius Marcianus e de Julia Avita Mammaea (Júlia Maméia).

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O pai de Severo Alexandre era um cidadão romano de origem síria que pertencia à classe Equestre, o segundo nível da nobreza romana e parece ter exercido alguns cargos públicos.

Em algum momento depois do ano 200 D.C., Marcus Julius Gessius Marcianus casou-se com Júlia Maméia, que era sobrinha da poderosa imperatriz Júlia Domna, casada com o imperador Septímio Severo. Durante o reinado do marido, Júlia Domna receberia o título de “Mãe dos Quartéis, do Senado e da Pátria“.

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(busto de Júlia Maméia)

Júlia Maméia e sua irmã, Júlia Soêmia, eram filhas de Júlia Maesa, irmã da imperatriz Júlia Domna, que por sua vez eram filhas de  Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus Elagábalo (El-Gabal), situado em Emesa (a moderna Homs), na Província da  Síria, e integrante da dinastia dos Sempseramidas, que havia séculos governavam a referida cidade, a qual, durante muito tempo, havia sido a próspera capital de um reino-cliente de Roma,  até a sua anexação pelo Império Romano.

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(Estátua de Júlia Soêmia)

Portanto, a família de Júlia Maméia era riquíssima e, quando o imperador Caracala, filho e sucessor de Septímio Severo morreu, assassinado por ordens de Macrino, sua mãe Júlia Maesa e sua irmã, Júlia Soêmia, valeram-se dessa fortuna e de seu poder e prestígio na importante província da Síria para fomentar a rebelião que em pouco tempo derrubou Macrino. 

As tropas da Síria aclamaram o jovem filho de Júlia Soêmia, Elagábalo, de apenas 15 anos de idade, como imperador, em 16 de maio de 218 D.C. Macrino seria derrotado em junho de 218 D.C. e, assim,  Elagábalo foi reconhecido imperador pelo Senado.

A mãe do novo imperador, Júlia Soêmia, e  a sua tia, Júlia Maesa, foram declaradas “Augustas”. De forma ainda mais surpreendente, as duas seriam, um pouco mais tarde, as primeiras e únicas mulheres a serem admitidas no Senado Romano. E Júlia Maesa ainda receberia o título de “Mãe do Senado”.

O reinado de Elagábalo seria marcado pelos escândalos e pela repulsa que a sua condição de sumo-sacerdote de El-Gabal, a sua aparência andrógina e o seu comportamento desregrado provocaram não apenas na elite senatorial, mas nas próprias tropas.

Em algum momento, Júlia Maesa percebeu que a crescente rejeição a Elagábalo pela sociedade romana, e, sobretudo, pelos militares romanos, colocava em perigo a própria posição da família. Ela também percebeu que os reiterados excessos sexuais dele eram encorajados pelo fervor religioso com que Elagábalo e sua própria filha, Júlia Soêmia, a mãe do imperador, se dedicavam ao culto a El-Gabal.

Júlia Maesa então aproximou-se de sua outra filha, Júlia Maméia, que também tinha um filho, Marcus Julius Gessius Bassianus Alexianus (Severo Alexandre), então com 13 anos de idade, primo do imperador.

A influente Júlia Maesa conseguiu persuadir Elagábalo a nomear o seu primo como seu herdeiro, dando-lhe o título de “César”, passando a adotar o nome de Caesar Marcus Aurelius Alexander, em 221 D.C, Severo Alexandre seria Cônsul junto com Elagábalo. As duas mulheres também devem ter sido as responsáveis por espalhar o boato de que Alexandre seria também filho ilegítimo de Caracala, o que lhe granjearia a simpatia dos soldados.

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(estátua de Júlia Maesa)

Contudo, percebendo o entusiasmo que a nomeação de  Severo Alexandre provocou nos soldados da Guarda Pretoriana, já muito incomodados com os seus excessos, Elagábalo resolveu anular sua decisão e revogar os títulos concedidos ao seu primo. Contudo, essa decisão fez o  público e as tropas se alvoraçarem temendo pela vida do menino.

Os Pretorianos demandaram a presença de Elagábalo e de Severo Alexandre no Castra Pretoria, devido aos rumores de que Alexandre pudesse ter sido assassinado. É possível até que o motim tenha sido instigado por Júlia Maesa e Júlia Maméia. Quando Elagábalo chegou, começou um tumulto que degenerou no assassinato dele e de sua mãe, Júlia Soêmia, que depois tiveram os corpos arrastados pelas ruas, em 11 de março de 222 D.C.

Em 13 de março de 222 D.C., Severo Alexandre foi aclamado oficialmente imperador romano, adotando o nome de Marcus Aurelius Severus Alexander Augustus, nome escolhido para enfatizar a conexão dinástica com Septímio Severo e Caracala.

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Como o  imperador Severo Alexandre tinha  apenas 13 anos de idade, quem de fato detinha as rédeas do poder era sua mãe, Júlia Maméia.

Júlia Maesa e Júlia Maméia tinham testemunhado a catástrofe que a coroação de um imperador muito jovem, completamente despreparado e de comportamento indecoroso, como foi o seu seu sobrinho Elagábalo, representava, não só ao Império, mas, sobretudo, à própria sobrevivência da dinastia dos Severos.

Assim, as duas mulheres, que, naquele momento, eram as governantes de fato do Império Romano procuraram cercar o jovem Severo Alexandre dos mais ilustres e respeitáveis conselheiros, como foi o caso dos juristas Ulpiano, que foi nomeado para o importante cargo de Prefeito Pretoriano, e Paulus, e  também do senador e, mais tarde, historiador, Cassius Dio (Cássio Dião). Vale citar que Júlia Maesa morreria logo em 224 D.C., portanto, Júlia Maméia foi quem deteve ascendência preponderante sobre o filho.

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(Busto de Ulpiano)

Graças a esse Conselho de homens notáveis, os primeiros atos do governo de Severo Alexandre visaram a recuperação moral e econômica do governo romano, a melhoria das condições da plebe de Roma e implantar medidas em prol dos soldados.

Foram implementavas ações para diminuir os gastos da Corte, considerada excessivamente luxuosa e extravagante. Talvez daí tenha surgido a fama de avarenta que Júlia Maméia gozou até o fim da sua vida. Uma fonte chegou a narrar que ela teria determinado que os restos dos banquetes no Palácio fossem recolhidos e guardados para serem servidos em outra oportunidade…

O denário foi inicialmente desvalorizado, provavelmente para aumentar a circulação de moeda e ajudar a equilibrar o déficit do Tesouro, mas posteriormente, mediante o aumento do percentual de prata, a moeda foi revalorizada, o que demonstra que houve uma melhoria nas contas públicas. Isso inclusive permitiu que os impostos fossem diminuídos, o que sempre estimula a economia e satisfaz os contribuintes. Esse programa foi completado pela criação de um serviço para emprestar dinheiro a taxas de juros moderadas.

Durante o reinado de Severo Alexandre foi construído o  Acqua Alexandrina, o último dos grandes aquedutos que abasteciam a cidade de Roma, em 226 D.C.. E as Termas de Nero, que se encontravam em péssimo estado, foram reconstruídas, passando o complexo a ser conhecido como “Banhos de Alexandre”.

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(Um trecho do aqueduto Acqua Alexandrina, foto de Chris 73)

Severo Alexandre também estabeleceu medidas para beneficiar os militares no que se refere aos direitos sucessórios e pecúlios.

Todavia, já no início do reinado, Severo Alexandre sofreu com o problema da crescente indisciplina dos soldados.

Em 223 D.C., os Pretorianos, insatisfeitos com as medidas do Prefeito Pretoriano Ulpiano, a quem eles eram subordinados, assassinaram o famoso jurista na presença do próprio imperador. Ulpiano se tornaria célebre nas faculdades de direito por ter estabelecido o que seriam os preceitos principais do Direito: “Viver honestamente, não causar mal a ninguém e dar a cada um o que é seu” (Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere)

Aliás, no período da dinastia dos Severos, apesar dos imperadores seguirem estritamente o conselho do seu fundador, Septímio Severo, de “dar dinheiro aos soldados e desprezar todos os outros“, aumentaram muito os episódios de indisciplina e insubordinação, chegando a um ponto que qualquer medida que visasse enrijecer a disciplina ou reduzir os donativos e gratificações, como ocorreu no reinado de Severo Alexandre, desencadeava rebeliões e motins entre a tropa, cuja efetividade em combate, também, parece ter sido comprometida.

Apesar das questões relativas à disciplina dos militares, o reinado de Severo Alexandre vinha tendo relativo sucesso em relação aos reinados anteriores de Elagábalo e Caracala, melhorando a economia e obtendo estabilidade política.

Contudo, eventos externos que ocorreram no reinado de Severo Alexandre, e em relação aos quais ele não teve qualquer responsabilidade,  não só causariam problemas que levariam à sua derrubada, mas teriam graves consequências estratégicas, que, futuramente comprometeriam a própria sobrevivência do Império Romano…

O primeiro deles foi a ascensão de Ardashir I (Artaxerxes I), nobre persa da Casa de Sassan, em 227 D.C., derrotando a dinastia dos Arsácidas, que fazia séculos governava o Império dos Partas e instalando a dinastia dos Persas Sassânidas, criando o império do mesmo nome. Os Sassânidas eram, por assim dizer, mas “nacionalistas”, centralizadores e muito mais agressivos militarmente do que os seus antecessores. Ironicamente, o principal motivo para a ascensão dos Sassânidas foram as sucessivas invasões que os romanos promoveram na Mesopotâmia parta durante os reinados de Trajano, Septímio Severo e Caracala, saqueando a capital Ctesifonte.

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(Relevo no Irã, retratando Ardashir e o deus Ahura-Mazda)

Em 230 D.C., Ardashir I lançou um ataque contra o sistema defensivo romano na fronteira da Mesopotâmia, sitiando a estratégica fortaleza de Nusaybin (Nísibis), sem, contudo conseguir tomá-la. Em seguida, as tropas persas invadiram as províncias da Síria e da Capadócia.

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Os Romanos foram obrigados a reagir militarmente, e o imperador teve que atender aos reclamos dos governadores.

Para lidar com a agressão persa, Severo Alexandre mandou reunir um exército com soldados das legiões espalhadas pelo Império. O historiador Herodiano de Antióquia narra que a medida causou comoção no Império, provavelmente pelo fato de terem sido recrutados soldados em províncias onde há muito não se faziam conscrições, como, por exemplo, a Itália.

Herodiano também relata que Alexandre e sua comitiva integraram a expedição militar, sendo que, no momento da partida, o imperador pôde ser visto chorando e, repetidamente, olhando para trás enquanto deixava Roma.

Chegando no teatro de operações, o imperador ainda tentou apelar para a diplomacia, enviando embaixadores à Ctesifonte. Os embaixadores não foram recebidos, mas Ardashir mandou sua própria embaixada aos Romanos, com as seguintes exigências, segundo o historiador bizantino João Zonaras:

O Grande Rei Artaxerxes ordena aos romanos que deixem a Síria e toda a Ásia adjacente à Europa e permitam ao Persas governar até o mar“.

Percebe-se, assim, que o objetivo dos Sassânidas era, como se extrai do referido ultimato, restaurar o Império Persa às fronteiras dos gloriosos tempos de Dario e Xerxes, o que implicaria na perda para os Romanos das importantes províncias da Síria, Ásia, Capadócia e Bitínia, entre outras. Logo, a paz obviamente era impossível.

Nessa ocasião, houve mais uma prova de que a disciplina militar do Exército Romano estava seriamente comprometida: Quando as tropas estavam se preparando para cruzar os rios Tigre e Eufrates, para invadir o território persa, vários motins explodiram entre os soldados, especialmente entre os soldados do Egito, e também na Síria, onde as tropas até tentaram proclamar imperador um certo Taurinus,  no verão de 232 D.C., porém esta rebelião foi rapidamente debelada.

Os comandantes militares romanos decidiram dividir o exército em três. O primeiro destacamento invadiria ao norte a Armênia para atacar os Medos, súditos dos Sassânidas. O segundo atacaria a Mesopotâmia na confluência dos rios Tigre e Eufrates e o terceiro, sob o comando direto do imperador, atacaria os Persas no centro. Porém, na Armênia, os romanos tiveram muita dificuldade no terreno montanhoso, mas conseguiram chegar ao território dos Medos, devastando-o. Algumas tropas persas tentaram impedir o avanço, mas o terreno desfavorável à cavalaria impediu-os de engajar os Romanos.

Quando Artaxerxes I soube do avanço do segundo destacamento pelo Tigre e Eufrates, atacou aquele exército com suas tropas principais. Os Romanos avançavam sem muita cautela, pois até então não tinham enfrentado qualquer resistência. Assim, eles foram fragorosamente derrotados pelos Persas.

Para piorar, Alexandre foi aconselhado por Júlia Maméia, que acompanhava a comitiva, a não invadir a Pérsia com o seu exército, contribuindo para que as tropas do segundo destacamento fossem cercadas pelos arqueiros montados persas e aniquiladas.

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Apesar do fracasso da expedição, os Romanos conseguiram infligir muitas baixas entre os Persas, e dois dos três segmentos da força expedicionária devem ter conseguido sobreviver, o que impediu os Persas de explorarem a vitória na Mesopotâmia.

De volta a Antióquia, Alexandre distribuiu grandes donativos para as tropas e informou ao Senado, em Roma, que ele tinha vencido os Persas. E ao chegar em Roma, em 233 D.C., o imperador ainda chegou a celebrar um Triunfo.

De fato, como nenhuma inscrição ou texto persa relata uma vitória na ocasião, Artaxerxes I deve der ficado decepcionado com o desfecho da guerra, sobretudo porque as fronteiras do Império Romano no Oriente permaneceram inalteradas.

Assim, o conflito pode ser considerado um empate e Artaxerxes I somente voltaria a atacar o território romano em 237 D.C, dois anos após a morte de Severo Alexandre.

O conflito entre o Império Romano e o Império Persa duraria, com alguns intervalos de paz e vitórias e derrotas para ambos os lados, até a vitória final dos Romanos na Batalha de Nínive, em 628 D.C., no reinado do imperador romano-bizantino Heraclius.

O segundo evento que assolaria o reinado de Severo Alexandre foi a aparição nas fronteiras romanas dos rios Reno e Danúbio, da poderosa confederação de tribos germânicas dos Alamanos, que atacaram as fortificações romanas na fronteira e devastaram as cidades das províncias fronteiriças, em 234 D.C., ameaçando a província da Ilíria e, consequentemente, a própria Itália.

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Os Germanos, desde o final do século II A.C., vinham mostrando serem capazes de infligir grandes derrotas aos Romanos em batalhas isoladas, porém, os seus sucessos tinham duração efêmera, pois eles estavam organizados em inúmeras tribos pequenas, que não costumavam colaborar entre si, quando não guerreavam umas contra as outras. E, material e taticamente, em geral, os Germanos eram bem inferiores aos Romanos.

Todavia, assim como nós mencionamos acima com relação aos Persas e o Império Parta, foram os próprios Romanos que contribuíram para mudar a correlação de forças entre os Germanos.

Com efeito, de modo crescente, a partir de meados do século I A.C., os Romanos vinham empregando como soldados auxiliares tribos inteiras de Germanos. Muitos desses Germanos passavam 20 anos servindo no Exército Romano. Ao final do período, muitos adquiriam a cidadania romana, mas, ao contrário da maioria de outros povos que também forneciam tropas aos Romanos, muitos deles voltavam para as suas terras na Germânia, trazendo armamentos e táticas do exército romano. Com o tempo, os Germanos, que já eram tradicionalmente um povo de índole guerreira, foram adquirindo o conhecimento das táticas romanas e reunindo um grande arsenal de armas romanas, aprendendo também técnicas para o seu fabrico.

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A partir do século II D.C, começou a se observar que os chefes militares germânicos, muitos, provavelmente, egressos do Exército Romano, foram dominando as tribos vizinhas, que começaram a se aglutinar em forma de confederações de tribos.

Os achados arqueológicos, notadamente os provenientes de enterros em pântanos de turfa, mostram que, na virada do século II para o século III D.C., os bandos de guerreiros germânicos já demonstravam um grau de especialização (cavalaria, infantaria e arqueiros) e dispunham de espadas, elmos, armaduras (ao menos os chefes) e lanças que não ficavam a dever a dos Romanos, ou até mesmo eram de fabricação romana. Por sua vez, a nobreza germânica consumia produtos de origem romana e entesourava moedas de ouro romanas. Parece, neste particular, que os Romanos incentivaram a formação de verdadeiros reinos-clientes entre os Germanos.

Feita essa pausa digressiva, com a invasão dos Alamanos, mais uma vez, Severo Alexandre foi obrigado a se deslocar para o front de batalha. As tropas, cuja disciplina, como vimos, era problemática, estavam reclamando, especialmente as oriundas das províncias atacadas, pelo fato de Severo Alexandre tê-las feito lutar a campanha na Pérsia,  o que, no entender deles, provavelmente deve ter facilitado o ataque dos bárbaros germânicos.

Em Mogúncia, base das operações contra os Alamanos, Severo Alexandre, novamente, foi aconselhado por sua mãe a tentar conter a ameaça militar com a diplomacia. Nesse particular, não havia nada de absurdo naquele conselho, pois, há muito tempo, os Romanos costumavam pagar dinheiro aos Germanos para que estes ficassem sossegados e não atacassem o Império.

Não obstante, os militares tinham se acostumado com anos de condescendência, fraqueza e de mão-aberta dos imperadores em relação às suas demandas, e a insatisfação deles ao que parece, foi agravada pelos vexames de Elagábalo e pela falta de aptidão militar de Severo Alexandre, que, para piorar, parece que não era mesmo muito generoso nos donativos, em decorrência da sua política de austeridade fiscal, a qual era atribuída à mãe do imperador.

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Assim, quando eles souberam que Severo Alexandre, seguindo as instruções de Júlia Maméia, estava disposto a dar dinheiro aos bárbaros Alamanos, as legiões aclamaram imperador o comandante da Legião IV Italica, Gaius Julius Verus Maximinus (Maximino Trácio).

Maximino era um Trácio da Moesia que quando criança trabalhara como pastor, mas, após entrar no exército romano, foi galgando postos, destacando-se nas batalhas devido a sua incrível força física. Há relatos de que ele teria cerca de 2m 40cm de altura e, de fato, as suas estátuas apresentam caracteristicas físicas de acromegalia. Ironicamente, ele havia sido promovido a comandante pelo próprio Severo Alexandre.

Entretanto, não podia ser maior o contraste entre a figura frágil do imperador e a virilidade castrense de Maximino, que parecia aos soldados muito mais adequada para comandar o Exército naqueles tempos belicosos.

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Assim, no dia  19 de março de 235 D.C, quando se avistou a coluna de poeira deslocada pelas legiões que aclamaram Maximino, que se aproximavam do quartel-general em Mogúncia, só restou a Severo Alexandre apelar, sem sucesso, à lealdade dos soldados da Legião XII Primigenia,  que logo matariam ele e sua mãe. Era o fim da dinastia dos Severos, que governava Roma, com o breve intervalo de Macrino, desde 193 D.C.

Após saberem da execução de Severo Alexandre e Júlia Maméia, a Guarda Pretoriana também aclamou Maximino imperador e o Senado, constrangido, confirmou o nome dele, apesar dos senadores o considerarem pouco mais do que um camponês bárbaro.

Maximino, sem deixar a Germânia, partiu para enfrentar os Alamanos, os quais conseguiu derrotar, apesar do exército sofrer pesadas baixas, no território romano dos Agri Decumates.

O reinado de Maximino marcaria o início da chamada “Crise do Século III“, o período  de grande instabilidade verificado entre 235 e 284 D.C quando 30 imperadores ocuparam o trono em 49 anos, ou seja, uma média de apenas 18 meses de reinado por imperador. Nesse período, vários imperadores foram assassinados, dois mortos no campo de batalha e um deles capturado vivo pelos Persas. Para se ter uma comparação, entre os reinados de Augusto e de Severo Alexandre, foram 28 imperadores para um período de 266 anos, com uma média de 9 anos e seis meses para cada reinado…

No ano de 238 D.C., ano que Maximino foi assassinado, houve cinco imperadores diferentes no trono, motivo pelo qual ficaria conhecido como “O Ano dos Cinco Imperadores“. E, em um futuro próximo, durante um bom período, a Gália e a Síria ficariam independentes, fazendo parte dos chamados “Império Gaulês” e “Império de Palmira“.

O principal motivo de tudo isso foi a duradoura incapacidade de Roma lidar com pesadelo estratégico da guerra em dois fronts naquele período. Embora haja também causas econômicas (especialmente déficit público causado pelos gastos militares e déficit comercial com a China) e demográficas (diminuição da população notadamente por epidemias).

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(Mapa do Império dividido – Blank map of South Europe and North Africa.svg: historicair

Para terminar nossa narrativa, é interessante citar, com a devida cautela quanto à veracidade do relato, da frequentemente imprecisa História Augusta, e também do historiador cristão Eusébio, ambos os textos datando provavelmente do reinado do imperador Constantino, o Grande, as passagens abaixo, que afirmam que Severo Alexandre era simpático ao Cristianismo.

Segundo Eusébio, no período que passaram em Antióquia, Júlia Maméia, que era muito religiosa, mandou Severo Alexandre estudar com o afamado teólogo cristão Orígenes.

Já a História Augusta (Lampridius) relata que Severo Alexandre colocou em seu “lararium” (oratório doméstico) imagens do patriarca Abraão e de Jesus Cristo, entre outros místicos famosos, como Apolônio de Tiana.

Ainda segundo a História Augusta, Severo Alexandre chegou a pensar em erguer um Templo em honra a Cristo em Roma e teria mandado gravar no Palácio dos Césares “as famosas palavras de Cristo”:

Não faças aos outros o que não gostarias que fizessem contigo.”