CONSTÂNCIO CLORO

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Em 31 de março de 250 D.C., na Dardânia, região da Província da Moésia,  nasceu Marco Flávio Valério Constâncio (Constâncio Cloro), filho de um certo Eutrópio, que, segundo a História Augusta, seria um “nobre” daquela região, e de Cláudia, que, supostamente, seria sobrinha do imperador romano Cláudio II Gótico (vale notar que a maior parte dos historiadores modernos acredita que esse suposto parentesco foi inventado pelo escritor da “História Augusta”, com o objetivo de melhorar o “pedigree” da dinastia constantiniana).

Observe-se que na Dardânia,  desde a sua conquista pelos romanos, em 73 A.C, foi estabelecido um acampamento de legionários que deu origem à cidade de Naissus (atual Nîs, na Sérvia) e a região tornou-se um dos principais centros de recrutamento de tropas para o exército romano no século III D.C.

Como outros conterrâneos seus da 2ª metade do século III D.C., Constâncio ingressou no exército e foi galgando postos. Neste progresso, ele recebeu a prestigiosa patente de “Protector Augusti Nostri”, dada a soldados de elite que se destacavam no serviço ao imperador, no reinado do imperador Aureliano, e depois foi promovido a Tribuno, após os Protectori Augusti Nostri se tornarem um corpo de elite do Exército Romano. Nesta condição, ele deve ter conhecido o futuro imperador Diocleciano, que mais tarde comandaria o referido corpo de elite, já no reinado do imperador Caro, em 282 D.C.

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(As tropas que serviam próximo ao Imperador durante a carreira de Constâncio Cloro deviam ter essa aparência)

Deve ter sido no Exército que Constâncio recebeu o apelido de Cloro (Chlorus), que em latim significa “pálido”, devido a sua pele excessivamente clara.

Como Protector Augusti Nostri, Constâncio Cloro participou da campanha de Aureliano contra o Império de Palmira, que tinha se formado a partir da secessão das províncias romanas da Síria, Arábia Pétrea e Egito, além de outras partes da Ásia Menor, entre 272 e 273 D.C, e era governado pela grande rainha Zenóbia.

Foi nessa campanha que Constâncio Cloro conheceu Helena, uma jovem bitínia, nativa da cidade de Drepanus, que trabalhava numa estalagem ao longo da estrada pela qual o exército marchava para dar combate aos rebeldes palmirenos.

Consta que Constâncio Cloro notou que a jovem usava um bracelete de prata idêntico ao que ele estava usando no momento, o que lhe teria dado a certeza de que ela era a sua alma-gêmea enviada por Deus.

Verdadeira ou não a história, o fato é que, finda a sua participação na campanha, Constâncio Cloro, levou Helena consigo para sua terra natal na Dardânia, onde, na cidade de Naissus, ela deu a luz ao seu primeiro filho, que recebeu o nome de Constantino (o futuro imperador Constantino I, o Grande), em 27 de fevereiro de 272 D.C. (considerado o ano mais provável).

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(Estátua de Helena. A obra é do período clássico, mas a cabeça foi alterada  por escultores durante o reinado de seu filho Constantino para retratá-la)

A Bitínia era uma das regiões onde o Cristianismo mais cedo se enraizara no Império. Por exemplo, o apóstolo Pedro já menciona a existência de uma comunidade cristã na Bitínia por volta do ano 60 D.C.. E, no início do século II D.C., Plínio,o Jovem, quando ocupou o cargo de governador da província, chegou a consultar, por meio de uma carta, o imperador Trajano acerca de como ele deveria proceder com os cristãos locais, os quais se encontravam não apenas nas cidades, mas espalhados pelos campos.

E de fato, jovem bitínia Helena se mostraria, anos mais tarde, uma das cristãs mais devotas. Podemos, assim, considerar, com um bom grau de probabilidade, que o filho de Constâncio, o menino Constantino, desde a mais tenra infância sofreu as influências da devoção de sua mãe (Como todos sabem, Constantino, depois de se tornar imperador, favoreceu muito o Cristianismo e a sua conversão mudou a História Mundial).

Até hoje se discute se Constâncio Cloro e Helena se casaram ou se eles viveram em concubinato. Sabemos que Maxêncio, o principal rival de Constantino, o acusaria de ser filho de uma prostituta, mas essa acusação pode  também ser vista como propaganda política negativa. Não obstante, sabe-se que, na Antiguidade, e mesmo na Idade Média, não era prática incomum que mulheres que trabalhassem em estalagens ou pensões tivessem também que dormir com os hóspedes…

Após a união com Helena, Constâncio continuou ascendendo na carreira militar e, no reinado do imperador Caro, ele foi nomeado “Praeses” (governador) da província da Dalmácia, entre 282 e 283 D.C. No mesmo período, Caro nomeou Diocleciano como Comandante dos Protectori Augusti Nostri, que, neste posto, acompanhou o imperador na invasão da Mesopotâmia, coração do império Sassânida.

Não há menção nas fontes se Constâncio participou da bem sucedida campanha de Caro contra os Persas, na qual este imperador acabaria falecendo, em 283 D.C., segundo consta atingido por um raio durante uma tempestade. Caro foi, então, sucedido pelos  seus filhos, Carino e Numeriano.

Porém, em novembro de 284 D.C., Numeriano morreu na Bitínia, em circunstâncias misteriosas, quando voltava para Roma, aparentemente devido a uma doença caracterizada por inflamação nos olhos.

Então, um conselho de generais escolheu Diocleciano como sucessor de Carino e ele foi aclamado imperador pelas tropas em Nicomédia. Assim, Diocleciano, desde o início, se apresentou como adversário de Carino, deslocando-se para dar combate ao rival, cujo exército  ele encontrou na Moésia, na Batalha do rio Margus ( local próximo à atual Belgrado, na Sérvia), em julho de 285 D.C., ocasião em que os principais generais de Carino se passaram para o lado de Diocleciano. Carino foi, em seguida, morto pelos seus próprios homens.

Alguns historiadores acreditam que, durante o avanço de Diocleciano pelos Bálcãs para engajar Carino, Constâncio também teria aderido ao seu velho conterrâneo e camarada dos Protectori Augusti Nostri.

Um dos primeiros atos de Diocleciano no trono foi escolher um colega para governar em conjunto com ele e o escolhido foi seu velho amigo e companheiro de armas, o general e conterrâneo de origem ilíria, Maximiano. Embora ambos compartilhassem a origem humilde, Maximiano, era muito mais áspero e implacável do que Diocleciano, que, no entanto, tinha sobre ele uma considerável ascendência moral e intelectual.  Assim, em 1º de abril de 286 D.C, Maximiano, foi elevado de “César” para “Augusto”.

Sintomaticamente, os dois Augustos se concederam os títulos de “Júpiter” (Diocleciano) e de “Hércules”(Maximiano), em uma espécie de alusão ao papel de ambos no Império, no qual Diocleciano figurava como o “sábio pai dos deuses e chefe do Olimpo” e Maximiano,  como o guerreiro encarregado das tarefas militares.

Entre 287 e 288D.C., Constâncio Cloro já era um dos principais auxiliares, senão o mais importante, de Maximiano, e, nesta condição, liderou a campanha contra os bárbaros Alamanos, chegando a cruzar o Reno para atacá-los, fato que sinalizou o reerguimento do poder romano na região, após vários anos de invasões e rebeliões durante a crise da segunda metade do século III D.C.

Provavelmente por volta de 288 D.C., Maximiano designou Constâncio Cloro para o cargo de Prefeito Pretoriano do Ocidente, cargo que havia sido reformulado dentro das extensas e fundamentais reformas administrativas e militares promovidas por Diocleciano, e que passava a ser uma espécie de Chefe de Gabinete e Chefe do Estado-Maior do Imperador.

Os laços entre o imperador Maximiano e seu subordinado Constâncio Cloro foram ainda mais reforçados com o casamento de Constâncio com Flávia Maximiana Teodora, a filha (ou para alguns, enteada) de Maximiano, união que, segundo um dos Panegíricos Latinos, teria ocorrido em 289 D.C. Assim, Constâncio teve que se divorciar (ou separar-se, caso proceda a versão de que a relação era de concubinato) de Helena, a mãe de seu primogênito, Constantino.

Ainda que motivado por razões políticas, o casamento de Constâncio Cloro com Teodora seria prolífico, gerando 6 filhos (3 homens), nenhum dos quais, contudo, chegaria a ocupar o trono.

Enquanto isso, Maximiano tinha que lidar com os camponeses fora-da-lei chamados de bagaudas, no norte da Gália. Submetida essa insurreição, Constâncio Cloro foi encarregado de combater a insurreição de Caráusio, o comandante da frota do Mar do Norte, a quem Maximiano havia condenado à morte, devido a uma acusação de peculato. Por este motivo, Caráusio, que estava firmemente estabelecido na Grã-Bretanha, e controlava, ainda, o noroeste da Gália, autoproclamou-se “Imperador da Britânia”.

Maximiano e Constâncio Cloro, se preparam para combater o usurpador Caráusio, mas as  fontes sugerem que houve algum incidente com a frota que eles estavam construindo para invadir a Britânia, por volta de 289 D.C., e, assim, Caráusio conseguiria resistir ainda por sete anos, cunhando moedas em que ostentava o título de Imperador e “irmão” de Diocleciano e Maximiano e nas quais louvava a suposta concórdia (paz) entre eles.

A experiência da eclosão de crises simultâneas em diferentes partes do Império Romano certamente contribuiu para inspirar Diocleciano a idealizar a medida mais revolucionária do seu reinado: a chamada Tetrarquia, em 293 D.C., caracterizada pela divisão administrativa do poder imperial,  que antes era centralizado na pessoa de um monarca que governava o Império a partir da cidade de Roma,  e agora seria repartido entre quatro governantes:  dois mais graduados, que teriam o título de “Augusto”, tendo as respectivas capitais em Milão e Nicomédia, e dois, em plano um pouco inferior e subordinados a eles, chamados de “Césares”, instalados em Augusta Treverorum (Trier) e Sirmium. A idéia é que quando os “Augustos” se retirassem ou morressem, fossem substituídos automaticamente pelos “Césares”.

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(Os Tetrarcas, escultura da época imperial, hoje na lateral da Catedral de São Marco, em Veneza)

Em 1º de março de 293 D.C, Diocleciano autorizou Maximiano a nomear Constâncio Cloro como “César” do Ocidente o que caracterizava a sua ascensão ao posto de imperador “júnior” e herdeiro de Maximiano.

Provavelmente naquela mesma data, ou pouco depois, Diocleciano nomeou seu genro, o general Galério, marido de sua filha Valéria (Diocleciano não teve filhos homens), para o posto de “César” do Oriente, e, portanto, seu herdeiro. Sendo o mais antigo dos Césares, Constâncio Cloro, formalmente, teria precedência sobre Galério, sendo o seu nome sempre mencionado na frente de seu colega nos documentos.

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(Cabeça de Galério)

Constâncio Cloro, em decorrência da sua nomeação,  foi obrigado a enviar seu filho Constantino, então um rapaz já no começo dos seus 20 anos, para ir viver na corte de Diocleciano, na cidade de Nicomédia, na Bitínia, acompanhado de sua mãe, Helena, que assim retornava à sua terra natal.

Embora Constantino tenha recebido a melhor educação clássica em Nicomédia (onde certamente teve contato com Lactâncio, professor de retórica latina na Corte, que, posteriormente, se tornaria um dos intelectuais cristãos mais influentes), e iniciado sua carreira serviço público e militar, considera-se que ele,  na verdade, era sobretudo um refém sob a custódia de Diocleciano, visando assegurar a lealdade de seu pai, Constâncio Cloro.

Enquanto isso, na Britânia, o usurpador Caráusio foi assassinado e substituído por seu lugar-tenente Alecto (Allectus), que era apoiado pelos Francos.

Constâncio Cloro teve muito trabalho para conter os Francos e lutar contra os Alamanos, que ameaçavam a fronteira do Reno. Ele ficou baseado em Trier, que, nesse período, começou a ser embelezada com monumentos dignos de uma capital imperial.

Quando Maximiano chegou para reforçar a defesa do Reno, Constâncio Cloro conseguiu expulsar Alecto do norte da Gália, e, com a ajuda de seu prefeito pretoriano, Asclepiodoto, reuniram duas frotas para a invasão da Grã-Bretanha. A frota comandada por Asclepiodoto desembarcou perto da atual Ilha de Wight e derrotou e executou o rebelde, enquanto Constâncio capturou e ocupou a capital da Britânia, Londinium (atual Londres). A entrada de Constâncio em Londres aparece em um medalhão de ouro que seu filho Constantino, mandou cunhar quando já era imperador, e que foi encontrado em Arras, na França).

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(Aureum mostrando Londinium se rendendo a Constâncio Cloro)

Derrotado Alecto, Constâncio Cloro dedicou-se a reorganizar a província da Britânia e e reparar suas fortificações, incluindo a famosa Muralha de Adriano. Em 298, D.C., contudo, ele já estava na Germânia lutando novamente contra os Alamanos, a quem conseguiu derrotar após ser cercado por eles na cidade de Vindonissa (na atual Suíça).

No ano de 303 D.C., Diocleciano decretou a repressão ao Cristianismo, que pelos cristãos seria chamada de “A Grande Perseguição”. Dos quatro tetrarcas, Constâncio Cloro seria o mais que foi mais brando na execução da política de Diocleciano,  limitando-se a demolir algumas igrejas. Talvez a moderação de Constâncio Cloro tivesse alguma influência de sua relacionamento com Helena, mas pode ser também que Lactâncio tenha tido a intenção de fazer média com o pai de Constantino, o futuro primeiro imperador cristão, abrandando o papel que ele desempenhou.

Porém, em 305 D.C, Diocleciano, doente e cansado aos 60 anos de idade, resolveu se aposentar, abdicando em favor de Galério. Foi a primeira vez, durante mais de três séculos de Império, que um Imperador voluntariamente abdicou do trono. Diocleciano foi viver em seu espetacular palácio-fortaleza na cidade de Salona, em sua terra natal ( a atual cidade de Split, na Croácia). Seguindo, naquela oportunidade, a política traçada por Diocleciano, Maximiano também abdicou voluntariamente em prol de Constâncio Cloro.

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(Palácio de Diocleciano em Split)

Em 1º de maio de 305 D.C., em uma cerimônia militar em Milão, Maximiano proclamou Constâncio Cloro o novo Imperador (Augusto), do Ocidente, que passou a se chamar Imperator Caesar Marcus Flavius Valerius Constantius Herculius Augustus .

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Porém, para a surpresa geral, Maximiano, quando foi anunciar o nome do novo “César” do Ocidente,entregou o seu manto púrpura para Severo, um velho amigo e colega de armas de Galério,  o Imperador Romano do Oriente.

Ocorre que todos pensavam que Maxêncio, filho de Maximiano, e Constantino, filho de Constâncio Cloro, naturalmente seriam os novos Césares…

Embora o sistema da Tetrarquia não exigisse o princípio dinástico, obviamente que os filhos dos Augustos eram os candidatos naturais. E, obviamente, a circunstância de um imperador ter herdeiros naturais adultos, já seguindo a carreira militar, preteridos em favor de outros só poderia ser um fator de instabilidade.

Constâncio Cloro e Constantino logo perceberam que não apenas as ambições, mas a própria vida do segundo estariam ameaçadas na corte de Galério, em Nicomédia. Por isso, Constâncio enviou um pedido formal ao colega Galério pedindo que o filho fosse liberado para lhe ajudar na campanha contra os Pictos, que estavam causando problemas no norte da Britânia.

Consta que Galério, quando recebeu a carta de Constâncio Cloro, estava participando de um banquete e, na presença de Constantino, deu o seu consentimento. Naquela mesma noite, Constantino abandonou o palácio a toda velocidade e partiu para encontrar o pai, antes que Galério mudasse de idéia. Assim, quando o imperador acordou, no dia seguinte, Constantino já estava a léguas de distância da corte.

Constantino se juntou ao pai na costa da Gália e ambos cruzaram o canal para comandar uma expedição militar contra os Pictos. Em 7 de janeiro de 306 D.C., Constâncio Cloro recebeu o título de “Britannicus Maximus“. após algumas vitórias contra os bárbaros.

Porém, antes que a campanha fosse completada, a saúde de Constâncio Cloro piorou e ele teve que se retirar para a cidade de Eburacum (York) para passar o inverno. Sentindo que ia morrer, Constâncio resolveu abandonar as regras da Tetrarquia, mandou reunir as tropas e recomendou o seu filho ao Exército como seu sucessor.

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(Restos da muralha romana de Eboracum, foto de Kaly99

Em 25 de julho de 306 D.C., Constâncio Cloro faleceu, em Eboracum. O primeiro a tomar a iniciativa de aclamar Constantino foi o chefe Alamano Chrocus, um bárbaro a serviço de Roma, que, à maneira dos Germanos, mandou seus homens erguerem Constantino de pé em cima de um escudo.

Galério, apesar de ter ficado enfurecido, premido pelas circunstâncias, reconheceu a aclamação de Constantino, mas conferindo-lhe o posto menor de “César“.

Para suceder o falecido Constâncio Cloro, Galério nomeou o seu velho amigo Severo, que afinal era o César do Ocidente, como Augusto, tornando-o, assim, oficialmente coimperador, ainda durante o verão daquele ano de 306 D.C.

Em uma inusitada consequência da importância do papel de Constâncio Cloro na História e de seus feitos militares na Britânia, a sua figura acabaria sendo também lembrada nas lendas galesas e seu nome mencionado pelos proto-historiadores ingleses medievais.

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CÉSAR – O HOMEM

CÉSAR – O HOMEM

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(Humanização do busto de Tusculum, considerado o único existente que foi feito durante a vida de César, quando ele devia ter cerca de 50 anos de idade. Para mim, o artista conseguiu reproduzir uma expressão carismática e um olhar que eu julgo que pode ser bem fiel ao do estadista)

O nosso propósito neste texto foi discorrer sobre a vida pessoal de César, com base nas fontes históricas e achados arqueológicos que chegaram até nós, porém deixando um pouco de lado os acontecimentos políticos e militares, a não ser quando eles revelem algo sobre o homem Caio Júlio César, tais como: os seus atributos físicos, a sua saúde, a sua personalidade, a sua família, seus gostos, enfim, tudo o que, hoje, como sempre, faz alguém conhecer melhor uma PESSOA. Não se trata, portanto, de um texto sobre a trajetória política dele, embora esta, obviamente, seja diretamente uma consequência de tudo isso.

1- Antecedentes familiares

Consta, para a maior parte dos historiadores, que Caio Júlio César nasceu em 13 de julho do ano 100 A.C., em Roma ( embora haja alguma discordância quanto ao ano e o dia – alguns sustentam que ele pode ter nascido no dia 12 e propõem anos alternativos: 102 ou 103 A.C).

A família de César era uma das que faziam parte da “GensJúlia (“Gens”, ou “gente”, é um termo aproximado a “clã”, devendo ser entendido como um grupo de famílias romanas que era ou se julgava descendente de um ancestral ilustre em comum).

Os Júlios reivindicavam ser descendentes de “Iulus” (também chamado de Ascâneo), filho de Enéias, herói troiano da Guerra de Tróia, e Creusa, filha do rei de Tróia, Príamo.

Segundo a mitologia, Enéias, por sua vez, seria filho de Anquises e da própria deusa Vênus, com quem Anquises teve um caso amoroso.

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(Estátua romana da deusa Vênus)

Conta a lenda que, após a queda de Tróia, Enéas, carregando seu seu pai Anquises, veio para a Itália, sendo os doisrecebidos por Latinus, rei dos primeiros Latinos. Já na Península, Enéas casou-se com Lavínia, filha de Latinus, fundando a cidade de Lavinium, em honra dela, que deu à luz a Ascâneo.

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(Enéas carregando Anquises, estátua romana)

Posteriormente, Ascâneo/Iulus fundou a cidade de Alba Longa, da qual ele foi o primeiro rei, um povoado considerado como sendo o berço ancestral da Gens Júlia. No século VII A.C., o rei de Roma, Tullus Hostilius, destruiu Alba Longa, porém removendo a sua população para a própria Roma, dobrando o número de habitantes e arrolando, entre os patrícios romanos, as principais famílias albanas, entre as quais a dos Júlios.

Os Júlios foram muito importantes no início da República Romana (que se inicia em 509 A.C.), tendo obtido seis consulados entre 489 e 379 A.C.. Em 352 A.C., Gaius Julius Iulus foi nomeado Ditador,  que era um cargo temporário somente concedido por motivos emergenciais.

A gens Júlia, como acontecia com as demais, multiplicou-se em várias famílias que foram adquirindo a sua identidade, marcada por um cognomen. Em algum momento, uma dessas famílias integrantes da gens Júlia recebeu o cognome de “Caesar” (pronuncia-se, “ káisar ”, em latim – ou “César ”, em português.

Segundo Plínio, o Velho, o nome Caesar deriva da palavra latina “caedere”, que significa “cortar“, indicando o procedimento cirúrgico de cortar o ventre da mulher grávida para se dar luz a uma criança,  o qual chegou até nós com o nome de “cesariana”. Assim, o primeiro “César”, séculos antes de seu descendente mais famoso, teria nascido de uma cesariana.

Porém, a “História Augusta” aponta outras três teorias para o nome César: (a) o originador do nome da família seria cabeludo (“caesaris”); (b) ou ele teria “olhos cinzentos” (“oculis caesiis”); ou, então, (c) o nome derivaria da palavra de suposta origem berbere “caesai”, que significa “elefante“, devido ao fato de um integrante da família ter matado um elefante em batalha. Pode ser que esta última seja a explicação mais acertada, pois o primeiro ancestral conhecido da família foi Sextus Julius Caesar (I), que lutou durante a Segunda Guerra Púnica contra Aníbal (que invadira a Itália levando elefantes) e foi eleito Pretor em 208 A.C.. Além disso, seu descendente, Caio Júlio César cunhou vários denários de prata com a imagem de um elefante, talvez evocando a história familiar que ele próprio ouvira sobre a origem do seu nome.

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No período que antecedeu as Guerras Púnicas, os Júlios tinham perdido um pouco da importância, pois, desde a mencionada Ditadura de Gaius Julius Iulus, em 352 A.C., não ocupavam nenhuma magistratura importante, até que Lucius Julius Libo ocupou o consulado, em 267 A.C. obtendo um triunfo contra o povo italiota meridional dos Salentinos.

Provavelmente ajudados pelo prestígio pessoal que Sextus Julius Caesar (I) obteve na guerra contra Cartago (2ª Guerra Púnica), seu filho, Lucius Julius Caesar, obteve o cargo de Pretor, em 183 A.C., e seu outro filho, Sextus Julius Caesar (II), foi eleito Cônsul para o ano de 157 A.C., o posto mais importante até então ocupado pela família dos “Júlios Césares”. Acredita-se, ainda, que houve um terceiro irmão, que além de também senador, era historiador, chamado Gaius Julius Caesar (I) e que seria o bisavô do nosso Caio Júlio César.

O período que sucede esse consulado de Sextus Julius Caesar (II) assiste Roma dominar a Grécia e derrotar definitivamente Cartago. O afluxo de riquezas acelerou as contradições do sistema político romano e a desigualdade entre patrícios e plebeus. A tentativa de reforma empreendida pelos Tribunos da Plebe, Tibério e Caio Graco, foi combatida através da violência pelos nobres, que se aglutinam na facção dos Optimates, os quais, assassinando os dois irmãos, entre 132 e 121 A.C., conseguiram, momentaneamente, obstaculizar os partidários da primazia política pelos Comícios da Plebe, que se reuniram no Senado na facção dos Populares.

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Nesse quadro, que dura uns 50 anos, os “Júlios Césares” novamente perderam posição política, exceto pelo exercício de um cargo de pretor urbano por Sextus Julius Caesar (III), filho do Sextus acima citado, em 123 A.C..

Foi uma época em que a massa de proletários expulsos de suas terras aumentava em decorrência dos latifúndios que utilizavam a mão de obra escrava, acompanhada pelo cada vez maior número de cidades e territórios controlados pela República Romana, sem que, contudo, os aliados italianos, que forneciam uma boa parte do contingente militar, tivessem qualquer participação política, além dos mesmos não poderem gozar de inúmeros direitos conferidos aos cidadãos romanos.

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Esse período é marcado pela ascensão de Caio Mário, um brilhante general, que, sem pertencer a nenhuma família nobre, devido aos seus feitos militares conseguiu ser eleito Cônsul pela primeira vez, em 107 A.C., tornando-se, assim, um “homem novo ” (novus homo). Mário era hostil ao Senado e é considerado um integrante da facção dos Populares.

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A principal reforma de Mário, fundamental na História de Roma, foi a reorganização do Exército Romano. Até então, somente cidadãos livres proprietários de terras podiam ser recrutados como soldados, porém, Mário instituiu que o Estado deveria pagar um salário e fornecer armas e vestuário para os soldados, criando um exército permanente que recrutaria, basicamente, os proletários urbanos de Roma e das cidades italianas.

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Em 113 A.C., quando Mário era Pretor, e após ter exercido o cargo de governador na província da Hispânia, ele se casou com Júlia, que era filha de Gaius Julius Caesar (II), que havia ocupado um cargo de Pretor, e de Márcia, filha do Pretor Quintus Marcius Rex, que, em 144 A.C., havia sido encarregado da obra do aqueduto que posteriormente levou o seu nome, a Acqua Marcia.

Júlia, a esposa de Mário, tinha como irmãos, Gaius Julius Caesar (III) e Sextus Julius Caesar (IV). Provavelmente, o casamento de Mário com uma integrante de uma das famílias mais ilustres da nobreza, ainda que, naquele momento, pouco poderosa, deve ter facilitado a sua ascensão política.

2- Nasce Caio Júlio César

Em 100 A.C., Mário foi eleito para o seu sexto consulado, o quinto seguido, um fato sem precedentes na História de Roma. Naquele mesmo ano de 100 A.C., no dia 13 de julho, nascia, em uma casa (domus), no bairro popular da Suburra (Subura), em Roma, o primeiro filho homem de seu cunhado Gaius Julius Caesar (III), o irmão mais velho de sua esposa Júlia.

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O recém-nascido era filho de Gaius Julius Caesar (III) com Aurelia Cotta, filha de Lucius Aurelius Cotta, Cônsul no ano de 119 A.C., e cujo avô paterno também havia sido Cônsul, em 144 A.C. Eles deram ao menino o mesmo nome do pai, Gaius Julius Caesar (IV), o nosso Caio Júlio César, que foi o terceiro filho do casal, que já tinha então duas filhas, ambas chamadas Julia, que, para distinguir uma da outra, eram chamadas de Julia Major e Julia Minor.

Nos primeiros anos da infância de Júlio César, o Senado Romano havia conseguido confrontar um pouco o poder de Mário, mas a eclosão da chamada “Guerra Social”, uma revolta dos aliados italianos de Roma (socii) contra as leis que lhes impediam de ter cidadania romana plena, obrigou os senadores a recorrerem novamente a Mário, dando-lhe o comando da campanha contra os rebeldes, sendo que esta guerra durou de 91 a 88 A.C.

Assim, não surpreende que os “Júlios Césares”, que agora eram parentes do homem mais poderoso da República, prosperassem no período que vai de 103 A.C. a 90 A.C. Sextus Julius Caesar (III), tio do menino César e cunhado de Mário, foi Pretor, em 94 A.C., e Cônsul no ano seguinte. Depois disso, exerceu, ainda o cargo de Procônsul. Gaius Julius Caesar (III), pai de César e cunhado de Mário, foi também Questor, Pretor em 92 A.C. e Procônsul da Ásia.

A facção dos Optimates encontrou o seu campeão na figura de Lucius Cornelius Sulla (Lúcio Cornélio Sila), um general ultraconservador e tradicionalista general que também havia se destacado na Guerra Social. Os Optimates conseguiram eleger Sila Cônsul, no ano de 88 A.C.

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O conflito entre Mário e Sila espelhava a disputa entre os Populares e os Optimates. E, quando ambos disputaram o importante comando da Campanha contra Mitridates, Rei do Ponto, na atual Turquia, Mário, ilegalmente, ignorou a designação de Sila pelo Senado, levando o rival a se insurgir, e logo as forças militares de ambos entraram em conflito.

Após derrotar as forças de Mário em combate, Sila marchou contra a própria Roma e entrou, à testa de suas forças, no “pomerium” (fronteiras sagradas da cidade), conduta que era expressamente proibida pela lei romana. Em seguida, Sila perseguiu os partidários de Mário e revogou a maior parte dos seus atos. Mário conseguiu escapar e se exilou na África.

Porém, Sila foi obrigado a deixar Roma e ir combater a Mitridates que havia massacrado milhares de civis romanos no Ponto.

Aproveitando a situação, Mário voltou da África e, apoiado por seus veteranos, conseguiu assumir de novo o governo, sendo eleito para o seu sétimo consulado. Mas, já velho e doente, ele morreu no meio do 1º mês de seu mandato, em 86 A.C., deixando no poder seu colega de consulado, Cina, um correligionário que apoiava a facção dos Populares. A última volta ao poder de Mário foi marcada pela perseguição sangrenta aos seus inimigos políticos.

Com a morte de Mário, Cina ficou no poder, ocupando sucessivos consulados, até 84 A.C.. Neste período, ele adotou medidas que faziam parte do ideário dos Populares, como a concessão de cidadania aos italianos, até ser morto pelas suas próprias tropa, quando eles se preparavam para ir lutar contra Sila.

Curiosamente, a divisão política do Senado Romano em duas facções não poupou sequer a família dos Júlios Césares, pois sabemos que Lucius Julius Caesar e seu irmão, Gaius Julius Caesar Strabo Vopiscus, apoiaram Sila (Sulla), motivo pelo qual eles seriam mortos pelos partidários de Mário, em 87 A.C. Sabemos que a irmã dos dois, também chamada Júlia, foi a primeira esposa de Sila, de cerca de 110 A.C. até a morte dela, em 104 A.C., o que provavelmente explica a divisão no meio da família

3- Infância/Educação do jovem César

Essa era a posição social e política de sua família quando Caio Júlio César nasceu, no dia 12 ou 13 de julho do ano 100 A.C., na casa de seu pai, no bairro romano da Suburra, em um imóvel que, segundo observou Suetônio, era modesto.

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(A casa dos pais de César na Suburra era modesta, segundo Suetônio. Talvez fosse um antigo exemplo de  primitiva domus itálica, imagem por Tobias Langhammer )

A Suburra era um bairro habitado por pessoas de baixa classe social, que viviam em ínsulas ( Insulae – prédios multi-familiares de cômodos alugados), algumas das quais talvez pertencessem à própria família de César. A região era também conhecida em Roma como zona de prostituição, onde se instalaram vários lupanares, ou bordéis, muitos, quem sabe, talvez também explorados, direta ou indiretamente, pelos próprios “Júlios Césares”, já que as escavações em Pompéia mostram que muitas domus aristocráticas tinham lojas (tabernae) voltadas para a rua, as quais eram alugadas para a exploração de vários negócios, incluindo, comprovadamente, casas de prostituição.

Certamente, em sua modesta casa na Suburra, o pai de César deveria, frequentemente pela manhã, receber dezenas de clientes, cidadãos pobres que viam lhe pedir favores e prestar reverência. Assim, desde o início, o menino César deve ter tido contato com humildes plebeus que constituíam o eleitorado da facção popular, à qual, a partir da união familiar com Mário, o seu clã estava intimamente ligado.

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Quando César nasceu, seu pai, Gaius Julius Caesar (III), e sua mãe, Aurélia Cotta já eram pais, como já dito, de duas meninas, ambas chamadas de Júlia, sendo a mais velha, apelidada de Major (“A Maior” ou “A Velha”), para diferenciá-la da mais nova, apelidada de Minor (“A Menor” ou “A Jovem”), que nasceu um ano antes de César, em 101 A.C.

Júlia, a Jovem casou-se, por volta de 86 A.C, com Marcus Attius Balbus, primo de Cneu Pompeu, então um jovem partidário de Sila. Júlia teve com Attius Balbus três filhas, sendo que a segunda, Attia Balba Secunda, em 63 A.C deu à luz a Gaius Otavius, fruto de seu casamento com o Questor do mesmo nome. Assim, Gaius Otavius, filho de Attia, era sobrinho-neto de Júlio César, o qual, décadas mais tarde, em seu testamento, adotaria o rapaz e o nomearia herdeiro, ocasião em que este passaria a se chamar Caio Júlio César Otaviano, e, mais tarde, receberia o título de Augusto, o primeiro imperador romano.

Segundo sabemos, e nos confirma Tácito, era costume das famílias romanas deixar os cuidados com a criança e a educação infantil dos filhos a cargo da mãe e o grande historiador cita, como um dos melhores exemplos dos benefícios dessa prática, a criação de César por Aurélia. Ainda segundo Tácito (que nesta passagem pretende criticar as famílias da sua época, o final do século I D.C, quando os filhos da nobreza eram desde o nascimento cuidados somente por escravas e tutores), César, como os demais “filhos-família” de seu tempo, estudava em casa, supervisionado e dirigido pela mãe, que determinava não apenas os estudos e ocupações da criança, mas também suas brincadeiras e jogos, O normal é que esse papel preponderante da mãe durasse até os oito anos de vida, quando a tarefa passava para o pai.

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É bem possível que Aurélia tenha cuidado quase que sozinha da educação do filho, pois os relatos apontam que o pai de César deve ter ficado fora por um tempo considerável, principalmente após ele ter sido nomeado Procônsul na Ásia.

Assim, provavelmente foi Aurélia que contratou o grande gramático e professor de retórica, Marcus Antonius Gnipho (Gnifo) para ser tutor do menino César. Gnifo era um gaulês que foi abandonado pelos pais no nascimento e, depois de ganhar a liberdade, estudou em Alexandria, tendo grande conhecimento de latim e grego. Após trabalhar na casa de César, Gnifo fundou uma famosa escola que, posteriormente, como prova da excelência do tutor, chegou a ser frequentada pelo maior orador romano, Cícero, quando este foi Pretor, em 66 A.C. (época em que César então já tinha mais de 30 anos).

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Sabemos, devido a Suetônio, que o ensino esmerado que César recebeu de Gnifo fez nascer no primeiro, já na adolescência, o amor pelas letras. César teria, ainda menino, composto um texto chamado de “Louvores a Hércules”, uma tragédia com o título de “Édipo” e uma “Coleção de Apotegmas” (Aforismos).

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César também escreveu alguns poemas, mas, de acordo com a observação sarcástica de Tácito, felizmente eles não chegaram a ser lidos por muitos.

Não descurando do famoso ditado romano, “mens sana in corpore sano”, César também se empenhava nas atividades físicas. Ele aprendeu a montar e se tornou, desde menino, um grande cavaleiro. Tudo indica que, de fato, ele provavelmente deve ter sido muito incentivado a se exercitar. Com efeito, sabemos que César, mesmo em sua maturidade, era um grande nadador, capaz de verdadeiras proezas, como, por exemplo, constatamos que ocorreu ao ser cercado pelo exército egípcio em Alexandria, ocasião em que ele pulou na água e nadou com apenas uma das mãos, segurando na outra papiros valiosos, para que não se molhassem. Portanto, essa prática deve ter começado já em sua infância ou adolescência, quando César também começou a aprender a manejar as armas romanas mais usadas, nas quais ele também era muito hábil, segundo Suetônio e Plutarco.

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4- Adolescência e juventude/Aparência, saúde e costumes de César

Quando Mário voltou para o seu último consulado, seu sobrinho César tinha entre 14 e 15 anos de idade e estava entrando na idade de abandonar a sua “toga praetexta” para vestir a “toga virilis”, cerimônia que marcava para os meninos romanos o fim da infância e o início da idade adulta (não existia, por assim dizer, adolescência na antiguidade; isso, aliás é uma criação contemporânea, a partir do segundo quarto do século XX). Quem decidia tal momento era o pai da criança (pater familiae), que, segundo o costume, podia retardar a referida cerimônia até os 16 anos.

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Não sabemos a data exata em que César vestiu a “toga virilis” e virou adulto, e nem sequer sabemos se isto foi por vontade do seu pai, uma vez que, em 85 A.C., Gaius Julius Caesar (III) morreu subitamente, em Roma, quando se abaixava para calçar suas sandálias.

Curiosamente, Plínio, o Velho, que é quem nos conta como o pai de César morreu, escreveu também que um outro “César”, ex-pretor (muito provavelmente o avô de Júlio César), morreu exatamente da mesma forma, em Pisa.

Como depois veremos, é muito provável que ambos sofressem de uma doença hereditária, talvez um aneurisma ou tumor cerebral, o que explicaria os vários episódios de ataques e desmaios de César que foram considerados, pelos autores antigos, como uma manifestação de epilepsia.

Aos 16 anos, já adulto e órfão de pai, César tornou-se, assim, formalmente, não apenas o chefe da sua família nuclear, constituída dele, da mãe Aurélia e das irmãs, e de todo o patrimônio herdado do pai como primogênito, mas também de toda a família dos “Júlio Césares”, já que seu tio, Sextus Julius Caesar (III) também já havia anteriormente morrido de doença, quando comandava o cerco à cidade de Asculum, em 89 A.C.

No ano seguinte, 84 A.C., sendo Lúcio Cornélio Cina ainda Cônsul, e, portanto, estando os integrantes da facção dos Populares no poder, César foi nomeado “flamen dialis”, ou seja, um dos quinze sacerdotes de Júpiter, que era uma posição de muito prestígio para os jovens.

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(Relevo romano mostrando uma procissão dos flamen dialis, com o seu característico chapéu, chamado apex)

Naquele mesmo ano, conta Suetônio, César rompeu seu compromisso com Cossutia, uma jovem da classe equestre que lhe tinha sido arranjada por seu pai ainda na infância e que era de família muito rica. Não se tem certeza se o casamento de César com Cossutia chegou realmente a se consumar, ou se apenas houve o rompimento de uma promessa de casamento celebrada por seu pai.

Não obstante, essa menção de Suetônio à união ou compromisso de César com Cossutia é muito relevante para confirmar um fato: Quando César nasceu, e durante a sua infância, a situação financeira do seu pai devia ser mesmo muito ruim, pois sendo César neto e bisneto de Cônsules e pertencendo a uma das famílias mais tradicionais da nobreza romana, o casamento dele com uma integrante da classe equestre representava uma diminuição do prestígio de seu pai, o que somente pode ser explicado pela necessidade do dinheiro que adviria do dote da rica Cossutia

De qualquer forma, todavia, não temos dúvidas sobre o motivo do fim da ligação de César com Cossutia: pouco tempo depois ele próprio decidiu se casar com Cornélia, filha do Cônsul de Roma, Lúcio Cornélio Cina, o chefe da facção dos Populares, da qual os “Júlio Césares” eram integrantes. Assim, claramente, César demonstrava ter ambições muito maiores do que as preocupações financeiras do seu pai…

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Mas o futuro do jovem César, que parecia radiante e promissor, ficou completamente nublado quando, como já vimos, o Cônsul Cina, seu sogro, mais ou menos na mesma época de seu casamento com Cornélia, em 84 A.C., foi morto em um motim do exército que ele reuniu para ir para a Ilíria para interceptar Sila, que havia obtido uma trégua com Mitridates.

Quando soube da morte de Cina, após estabilizar a situação no Oriente, Sila partiu para a Itália, conseguindo derrotar o exército dos partidários de Cina e dos Populares na Batalha de Porta Collina, em novembro de 82 A.C. Sila, imediatamente, assumiu o governo, sendo nomeado Ditador, e desencadeou uma grande perseguição aos simpatizantes de Mário e aos Populares, chegando a executar 1.500 nobres e 9 mil pessoas no total, além de exilar outros tantos.

Um dos que tiveram que fugir para preservar a vida, apesar de ser apenas um rapaz de 17 anos, foi o próprio Júlio César. Neste momento, Aurélia, a mãe de César, cuja família era ligada às Virgens Vestais, sacerdotisas da deusa Vesta, conseguiu que elas, em caravana, a acompanhassem para apelar a Sila que poupasse a vida do filho. Sila, enfim, cansado de ouvir as súplicas de tantas mulheres ilustres, desistiu de mandar matar o jovem. Porém, tendo em vista que César era casado com a filha de seu grande inimigo Cina, o implacável Ditador exigiu que César se divorciasse de Cornélia.

Para a surpresa geral, inclusive dos autores antigos, César recusou a exigência de Sila e decidiu continuar casado com Cornélia. Furioso, Sila demitiu César do posto de sacerdote de Júpiter (flamen dialis), decretou a perda da herança paterna de César e a perda do dote de Cornélia. Consta que, dessa vez a muito custo, Sila foi novamente demovido da idéia de executar César, sem deixar, entretanto, de fazer a famosa advertência aos que advogavam pela vida do rapaz:

há vários Mários em César “…

Em outra alusão à César, consta que Sila costuma também advertir os senadores para que eles “desconfiassem do rapaz mal cingido”, devido ao gosto que César de usar um cinto frouxo na cintura.

Esse episódio evidencia uma das facetas da personalidade de César: a sua extrema preocupação com a sua aparência,  ainda desde bem jovem, o que mostrava ser ele muito vaidoso.

Com efeito, César, em seu tempo, pode ser comparado ao que, no século XIX, chamava-se de “dândi”: um jovem aristocrata ou burguês sofisticado, que gostava de se vestir com roupas caras, perfumar-se e enfeitar-se com penteados, tudo de forma um tanto extravagante, um rapaz que hoje também poderia ser classificado como um “It boy”.

Suetônio nos transmitiu a seguinte descrição de César:

Afirma-se que César era alto, de pele clara, com membros bem proporcionados, rosto algo redondo, olhos negros de olhar penetrante, e tinha boa resistência física, ainda que, no final de sua vida, ele tenha sido acometido por desmaios repentinos e pesadelos noturnos que lhe perturbavam o sono. Experimentou também duas vezes ataques de epilepsia, enquanto desempenhava suas funções públicas. Dava muita importância ao cuidado do seu corpo e não satisfeito em ter o cabelo cortado e ser barbeado com frequência, ainda se fazia depilar, mesmo sendo criticado, e não suportava pacientemente a calvície, que, mais de uma vez, o deixou exposto a gozações de seus inimigos. Por este motivo, ele penteava para frente o cabelo ralo da parte posterior; e por isso, de tantas honrarias que lhe foram concedidas pelo Senado, nenhuma lhe agradou mais do que a de usar constantemente uma coroa de louros. Preocupava-se também com a sua roupa; ele usava uma túnica laticlava guarnecida de mangas, que lhe chegavam até as mãos, e colocava sempre sobre esse traje um cinto bem frouxo. Sobre esse costume, Sila costumava dizer, dirigindo-se aos nobres: “Desconfiem desse rapaz tão mal cingido.”

Cícero, mais tarde, também, implicaria com a vaidade de César, como se viu em um discurso no Senado, que assim foi preservado:

Quando eu considero essa cabeleira tão bem penteada e tão esquisitamente cheia de adereços, e o vejo coçar a cabeça, apenas com a ponta de um dedo, eu imagino o contrário, que tal homem jamais poderia ter imaginado um infeliz empreendimento como o de querer destruir toda a República Romana”.

A descrição que Plutarco faz de César prende-se mais à descrição de algumas características físicas, saúde, dieta e preocupação com a forma física:

“Ele era magro, de pele macia e clara; era sujeito a dores de cabeça e, às vezes, era atacado de epilepsia, que contraíra, pela primeira vez, conta-se, em Córdoba, cidade da Espanha; mas ele não usou a sua saúde frágil como desculpa para uma vida preguiçosa, mas, ao contrário, usou o serviço militar como um remédio para ela, uma vez que, mediante longas caminhadas, dieta sóbria, frequente sono ao relento e aguentando o cansaço, ele lutou contra a sua enfermidade e tornou o seu corpo resistente aos ataques dela”.

Não existem imagens sobreviventes de César na infância ou juventude. Dos bustos que restaram, quase todos foram produzidos após a sua morte, quando ele já tinha mais de 50 anos.

Os especialistas de fato acham que o único retrato produzido em vida foi o chamado Retrato de Túsculo, um busto de mármore, que seria cópia de um original em bronze, achado nesta cidade italiana e que se acredita ter sido produzido por volta de 45 A.C. ( E, possivelmente, uma cabeça de estátua encontrada em 2007, no Rio Ródano, na França).

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( O Retrato de Túsculo, considerado o único busto existente de César feito em vida)

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(Os especialistas concordam que as efígies de César nas moedas cunhadas durante o seu governo devem ser as imagens mais fiéis à sua verdadeira aparência)
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(Esta cabeça foi descoberta no fundo do Rio Ródano, em 2007, e, segundo uma tese, é um retrato de César, feito ainda durante a vida do Ditador)

Com relação à saúde de César, tanto Suetônio quanto Plutarco afirmam que os ataques de desmaios dos quais ele sofria, tradicionalmente descritos como epiléticos, apareceram na idade madura, provavelmente a partir dos 50 anos de idade, ou seja, nos últimos anos da vida de César, como diz Suetônio. Segundo Plutarco, os primeiros desmaios teriam aparecido durante o cerco à Córdoba. Esta cidade, quando mencionada na vida de César, aparece relacionada à Batalha de Munda, em 45 A.C., na guerra civil contra os partidários de Pompeu e do Senado (época em que César tinha cerca de 55 anos de idade), muito embora o próprio Plutarco relate um episódio ocorrido na Batalha de Thapsus, um ano antes.

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De qualquer modo, esses relatos parecem afastar que a causa seja uma epilepsia congênita ou adquirida na juventude, ou, ainda, alguma doença infecciosa. Caso se tratassem mesmo de ataques epiléticos, então eles possivelmente teriam sido causados por traumas, tumores ou condições extremas enfrentadas durante a idade madura de César.

Não devemos ignorar que o pai e o avô de César faleceram subitamente na idade madura exatamente em circunstâncias idênticas: enquanto calçavam suas sandálias, algo que requer um certo esforço e posição que, sem dúvida, podem contribuir para um derrame ou AVC, decorrentes de uma predisposição hereditária a ter aneurismas cerebrais, que pode muito bem ter sido transmitida a César.

Seja como for, vários autores antigos comentam que César tinha um intelecto privilegiado, valendo citar as menções feitas por Cícero, em sua oração Filípicas, contra Marco Antônio, e, especialmente, a afirmação de Plínio, o Velho, que, ao tratar da memória do ser humano, em seu tratado “História Natural”, citou César como exemplo extraordinário de capacidade da mente:

O exemplo mais impressionante de vigor mental inato eu considero ser do Ditador César; e eu não estou cogitando de valor ou resolução, mas de vigor nativo e rapidez alada como se estivesse propelida pelo fogo. Conta-se que ele costumava escrever ou ler, ditar ou ouvir simultaneamente, e ditar de uma vez, quatro cartas para os seus secretários acerca de assuntos importantes – ou, se não estivesse ocupado com outras coisas, sete cartas de uma vez”.

De fato, a memória excepcional de César lhe seria muito útil na sua carreira política e militar. Por exemplo, ele, em várias ocasiões, costumava se lembrar imediatamente do nome dos eleitores mais humildes e de simples soldados que havia brevemente conhecido décadas antes, e estes, obviamente, ficavam lisonjeados com o fato.

Sobretudo, o seu raciocínio rápido fazia com que César não vacilasse em decidir e executar imediatamente um plano para qualquer circunstância espinhosa que se apresentasse, como ocorreu centenas de vezes durante a sua carreira, notadamente na Guerra das Gálias e na Guerra Civil, antecipando-se sempre a seus inimigos, que, quase sempre, eram pegos de surpresa pelas suas ações.

A frugalidade da dieta de César também chamou a atenção de vários historiadores antigos, como é o caso de Veleio Patérculo, que narrou que:

César comia muito pouco e sempre comidas triviais. Gostava de pão recheado, de pescados pequenos, queijos feitos à mão e de figos frescos, da espécie que dá frutos duas vezes por ano; que ele beliscava antes da hora tradicional das refeições, em qualquer hora e lugar, segundo as necessidades do seu estômago”.

Veleio Patérculo narra, ainda, que César uma vez escreveu: Comi na carruagem pão e passas” e, em outra carta: “Ao voltar do palácio de Numa para minha casa, comi em uma liteira uma onça de pão (cerca de 30 g) e algumas passas.

Em outra carta, dirigida a um certo Tibério, César escreveu:

Não existe judeu que respeite com maior rigor o jejum do que eu observei hoje: até a primeira hora da noite não comi senão duas porções no banho, antes que me perfumassem”.

Patérculo conta, ainda, que César somente comia de acordo com o seu apetite: às vezes jantando sozinho, antes ou depois de seus convidados, permanecendo durante os banquetes sem provar nada.

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Quanto à bebida, César também era moderado. De fato, sobre isso, Suetônio escreveu:

“Que ele bebia pouquíssimo vinho, nem mesmo os seus inimigos contestam: Há o dito de Marco Catão de queCésar foi o único homem que tentou derrubar a República enquanto estava sóbrio”.

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Após a retaliação de Sila, as fontes narram que César achou mais prudente fugir de Roma, valendo-se de um disfarce, e tendo que subornar o líder dos soldados de Sila, chamado Cornélio, pela quantia considerável de 2 talentos, não precisando se eram de ouro ou prata. Nesta fuga, Suetônio conta que César chegou a ser acometido de uma “febre quartã”, termo que na antiguidade se referia a uma febre que durava quatro dias. Provavelmente, isso foi apenas um resfriado ou virose, facilitados pelo estado de stress e pelo cansaço decorrente de uma súbita viagem desconfortável (há, contudo, quem defenda que essa febre era efeito de malária e que essa doença mais tarde explicaria os ataques, supostamente epiléticos, de César).

Plutarco narra que após fugir de Roma, César ficou escondido no antigo território dos Sabinos, não muito longe de Roma.

5- Auto-exílio e início da carreira militar

César, então achou mais prudente afastar-se para valer de Roma e procurar alguma colocação nas colônias, já que, ao menos formalmente, ele havia sido perdoado por Sila das Proscrições de 82 A.C. Talvez, na minha opinião, o suborno de 2 talentos,  anteriormente referido como tendo sido feito por César ao líder dos soldados de Sila, Cornélio, para permitir que ele fugisse de Roma, refira-se, na verdade, ao valor pago por César para não ser incluído na lista dos proscritos, já que sabemos que a execução das Proscrições de 82 A.C. ficou a cargo do liberto de Sila, Lucius Cornelius Chrisogonus…(Nota: um talento de ouro equivale a cerca de 70 libras de ouro, e hoje isso valeria mais de 1 milhão de dólares; já um talento de prata valeria hoje cerca de 22 mil dólares – assim, dois talentos de ouro, ou mesmo, de prata, parece ser uma soma muito grande para  subornar um simples líder de um bando de soldados para ele fazer vista grossa para um fugitivo, porém, não para se obter um favor legal do braço direito de um Ditador…)

Isso explicaria como foi possível que César, pouco depois de sua saída de Roma, conseguisse se alistar nas tropas sob o comando do Pró-Pretor romano para a Província da Ásia, Marcus Minucius Thermus, que, logicamente, não se arriscaria a alistar um fugitivo desafeto de Sila

Servindo sob o comando de Thermus, César se destacou no cerco à cidade grega de Mitilene, que havia se rebelado contra Roma. Nesse cerco, ocorrido em 81 A.C., César, que então tinha, apenas, entre 18 e 19 anos de idade, destacou-se nas operações de assalto às muralhas da cidade sitiada, quando chegou a salvar a vida de um colega, razão pela qual ele foi condecorado com a prestigiosa “Coroa Cívica”, honraria concedida àqueles que salvassem a vida de um cidadão romano em batalha.

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Logo depois, no ano seguinte, Thermus encarregou o seu jovem comandado, César, de ser o emissário que levaria ao rei aliado Nicomedes IV, da Bitínia, um pedido para que este monarca contribuísse com navios e recursos para a Guerra Contra os Piratas que infestavam a região.

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O rei Nicomedes tinha sido obrigado a se asilar em Roma, em 88 A.C., durante a guerra que lhe moveu o rei Mitridates VI, grande inimigo de Roma. Após Mitridates pedir a trégua aos romanos, Nicomedes voltou para assumir o seu reino na Bitínia, em 84 A.C.

6- Sexualidade de César

As fontes não contam se, no período que passou em Roma, Nicomedes chegou a conhecer o jovem César, mas isso não seria impossível, já que César assumiu o posto de sacerdote de Júpiter em 84 A.C., e ambos podem ter se conhecido em alguma cerimônia pública, da qual ambos participaram.

Nicomedes era famoso por ter inclinação sexual por jovens rapazes, dos quais ele se fazia rodear em sua corte na cidade de Nicomédia.

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As fontes contam que César ficou um tempo considerável na Bitínia, talvez mais do que fosse esperado, e foi admitido no círculo mais íntimo da Corte de Nicomedes. E, certa vez, em um banquete no Palácio, segundo os autores antigos, César teria aparecido publicamente como parte da “entourage” de jovens rapazes que rodeavam a mesa real, servindo o rei como copeiros.

Quando, posteriormente, o fato se tornou conhecido em Roma, César foi muito criticado por esse fato, e, pelo resto da vida, jamais se livraria das insinuações, ironias e acusações diretas de seus inimigos políticos, e até de piadas do povo em geral, de que ele tivesse sido um dos amantes de Nicomedes. O tom dos ataques e pilhérias era sempre depreciativo, pois, naqueles tempos, considerava-se humilhante para o homem livre romano praticar sexo com outro homem na condição de sujeito passivo da relação sexual.

Tirando esse episódio, que seus antagonistas políticos fizeram questão de perpetuar para a posteridade (Cícero, especialmente, que era famoso pela língua ferina, comprazia-se em relembrar o episódio em discursos no Senado), todos os demais relatos da vida sexual de César o mostram como sendo um contumaz mulherengo (womanizer), daquele tipo que não podia ver “um rabo de saia”.

Suetônio, historiador romano que por vezes mais parece um colunista de revista de fofocas, relaciona várias amantes de César, além de suas esposas legítimas Cornélia, Pompéia e Calpúrnia, nas três passagens abaixo:

Que César era desenfreado e extravagante em seus casos amorosos é a opinião geral, e ele seduziu muitas mulheres ilustres, entre elas Postumia, esposa de Servius Sulpicius, Lollia, esposa de Aulus Gabinius, Tertulla, esposa de Marcus Crassus, e até mesmo a esposa de Pompeu, Mucia. (…) Mas, acima de todas, César amou Servília, a mãe de Marcus Brutus, para quem, em seu sexto Consulado, ele comprou uma pérola no valor de seis milhões de sestércios. Durante a Guerra Civil também, junto com outros presentes, ele adquiriu alguns ótimos imóveis em um leilão público pelo preço estipulado e, quando alguns expressaram surpresa pelo pequeno valor pago, Cícero espirituosamente comentou: “é um negócio ainda melhor do que você pensa, pois é ainda uma terça parte menor do que isso…” e de fato acreditava-se que Servília estaria prostituindo a sua própria filha, Tertia, para César”.

(…)

“E que ele não se abstinha de casos amorosos nas províncias é evidenciado em particular por esse coro, que também era cantado pelos soldados em seu Triunfo da Gália: “ Homens de Roma, aqui vem um adúltero careca, mantenham suas esposas trancadas!; Você gastou na Gália em namoros, as bolsas de ouro que em Roma pegou emprestadas! ”.

(…)

“Ele também teve casos com rainhas, incluindo Eunoe, a Moura, esposa de Bogudes, para quem ele deu vários presentes esplêndidos, como escreve Naso; mas acima de todas com Cléopatra, com quem ele frequentemente festejava até o amanhecer e com quem ele teria ido, através do Egito, na sua barcaça real até a Etiópia, se os seus soldados não tivessem se recusado a segui-lo. No final, ele a chamou para Roma e não deixou-a ir até que ele a enchesse de honras e ricos presentes, e ele permitiu que ela desse o nome dele à criança que ela concebeu. De fato, de acordo com certos autores gregos, esta criança parecia muito com César, fisicamente e no jeito de andar. Marco Antônio declarou ao Senado que César tinha realmente reconhecido o menino e que Gaius Matius, Gaius Oppius e outros amigos de César sabiam disso”.

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É verdade que Marco Antônio, após a morte de César, quando disputou a primazia política em Roma com Otaviano, o sobrinho-neto e filho adotivo nomeado pelo Ditador como sucessor em seu testamento, acusou o rival de prestar favores sexuais ao tio, enquanto ainda adolescente. Esta acusação certamente tinha o objetivo de desmoralizar Otaviano, pois, de acordo com a moral da época helenística, paulatinamente adotada pelas classes altas romanas, o adulto mais velho (“erastes”), que no caso seria César, assumia a condição de ativo em um relacionamento com um adolescente (“eromenos”) não tinha a sua masculinidade comprometida.

Tudo indica, porém, que esse ataque de Antônio não tinha nenhum fundamento, tendo o mero intuito de difamar Otaviano, pois esta acusação só foi feito muito tempo depois da morte de César, e não encontrou respaldo em nenhuma outra fonte que não fosse o próprio Antônio. O mesmo pode ser dito no que se refere ao alegado reconhecimento de Cesarion.

Desse modo, pensamos que a inclinação de César era heterossexual, sendo que o episódio com Nicomedes IV na Bitínia pode ter alguma dessas três explicações:

a) uma aleivosia inventada pelos seus políticos rivais Optimates, já que desde a juventude, César identificava-se com a facção dos Populares, com o objetivo de desmoralizar o jovem político, que, ademais, era conhecido pelo excesso de vaidade no vestir, o que poderia ter lhe granjeado a fama, de acordo com os preconceitos de todas as épocas, de afeminado, mentira que, ainda, obteve credibilidade devido ao fato de Nicomedes ser notório pederasta; b) César, efetivamente, chegou a ter relações sexuais com o rei, para obter dele algum favor, seja a cessão da frota de Nicomedes, ou alguma vantagem financeira, sem que ele tivesse, de fato, inclinações homossexuais; ou c) César seria, efetivamente, bissexual (neste último caso, procederia o famoso comentário de seu inimigo político Gaio Escribônio Curião, de que César seria “o marido de todas as mulheres e a mulher de todos os maridos”).

7- Morte de Sila e cativeiro em Pharmacusa

Na Ásia, César, agora, estava servindo sob as ordens de Publius Servilius Isauricus, um correligionário de Sila, que havia sido apontado como cônsul no ano anterior e, em 78 A.C., estava comandando a Guerra Contra os Piratas, os quais infestavam a costa da Cilícia, na qualidade de Procônsul.

Enquanto servia na Cilícia, ocorreu um episódio que contribuiu para a fama de César como homem de temperamento inquebrantável: O barco que o levava foi interceptado por piratas, próximo à ilha de Pharmacusa (atual Farmakonisi, um território grego na costa da Turquia) e ele foi feito refém.

César, durante o cativeiro, mostrou-se altivo e zombeteiro, chegando a exigir que os piratas elevassem o preço do seu resgate de 20 para 50 talentos de prata, para que o mesmo estivesse de acordo com a importância da sua pessoa, e, ainda, prometendo crucificá-los depois que eles o libertassem. E, de fato, assim que foi libertado, após 38 dias de cativeiro, com o pagamento do resgate, César, valendo-se de recursos próprios, armou uma pequena frota, perseguiu, capturou e, cumprindo a sua promessa, crucificou os piratas. Porém, como sinal de sua compaixão (para os padrões da época), que mais tarde se tornaria célebre, César ordenou que eles fossem degolados, antes de serem colocados na cruz, para que não sofressem as agruras daquela terrível forma de execução.

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Não sabemos quanto tempo durou essa perseguição aos piratas, que, penso eu, pode ter ocorrido como parte da campanha de Servilius Isauricus e não, exclusivamente, da sua iniciativa individual, como contam Plutarco, Suetônio e Veleio Patérculo.

Durante a sua ditadura, Sila decretou a restauração dos privilégios do Senado e a restrição do poder legislativo dos Comícios e dos Tribunos da Plebe, que foram transformados praticamente em defensores públicos dos indivíduos de condição humilde. Ele também regulamentou o cursus honorum e o número das magistraturas, aumentando em consequência o número de senadores de 300 para 600, com a finalidade de cimentar a coesão da elite e proporcionar que o Senado pudesse executar mais funções. E Sila também declarou Mário, “Inimigo do Estado“, mandando banir quaisquer referências à sua memória.

Todavia, para a surpresa geral, acreditando ter restaurado o poder do Senado, Sila decidiu voluntariamente se retirar da vida pública e voltar para suas propriedades em 81 A.C., falecendo, provavelmente de cirrose ou úlcera gástrica, em 78 A.C.

Quando Sila morreu, César ainda estava na Cilícia, e, com a morte do Ditador e algoz da facção dos Populares, ele sentiu-se seguro para voltar à Roma. Segundo Suetônio, o retorno de César também foi estimulado pelo fato do cônsul para o ano de 78 A.C., Marco Emílio Lépido (pai do Triúnviro de mesmo nome), após a morte de Sila, ter tomado uma série de medidas revertendo as leis do Ditador, bem como adotando outras em favor da causa dos Populares.

Aliás, a cronologia desses eventos é confusa, entre Suetônio e Plutarco. De acordo com a “Vida de César”, de Suetônio, César retornou a Roma e tornou-se acusador público, como  uma espécie de promotor, destacando-se na acusação ao político Dolabela, partindo, depois, para Rodes para estudar, sendo, então, capturado pelos piratas. Já Plutarco adota a narrativa mais próxima a que fazemos neste texto, colocando a chegada de César à Roma posteriormente à sua captura pelos piratas da Cilícia, sendo que, antes de voltar à Cidade, ele foi estudar em Rodes.

Entretanto, a narrativa de Suetônio é mais plausível geograficamente, já que uma rota marítima de Roma para Rodes, beirando a costa, que é como os antigos costumavam navegar, passaria antes por Pharmacusa, onde o navio de César foi interceptado. Os textos contam que os barcos utilizados pelos piratas eram pequenos e, portanto, o grupo que capturou César não devia ser muito grande. Logo, não é impossível que a versão de Suetônio seja a correta, colocando o episódio no contexto da viagem particular de César para Rodes, após sua volta para Roma e atuação como acusador de Dolabela. Em qualquer caso, estaria ao alcance de César, após a sua soltura, armar alguns barcos e liderar uma pequena expedição particular para capturar e punir os piratas.

8- Término de sua formação em Rodes, volta à Roma e atuação como “Promotor Público”

Feita essa pequena digressão, nos parece mais plausível que a atuação de César na acusação contra Dolabela, a qual lhe granjeou fama pela eloquência apurada, tenha ocorrido após o aprofundado estudo da arte da retórica em Rodes, onde aprimorou suas habilidades de oratória e argumentação para uso nos tribunais romanos.

Em Rodes, César foi estudar com Apolônio Molon, um célebre retórico que também foi professor daquele que é considerado o maior orador romano de todos os tempos, Marco Túlio Cícero (Cícero era seis anos mais velho do que César e ambos parecem ter, algumas vezes, compartilhado os mesmos mestres, como Gnifo eApolônio).

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Concluídos os seus estudos, César finalmente regressou à Roma, atendendo ao insistente chamado dos amigos, que estavam estimulados pela morte de Sila e a consequente melhoria das perspectivas políticas para os partidários dos Populares.

Seus dons e a sua recém-adquirida formação conduziram naturalmente César para o exercício do cargo de acusador público. Não havia, entre os romanos, a figura do Promotor Público, como funcionário do Estado encarregado da acusação. Assim, eram advogados privados especializados que exerciam a tarefa de acusar as pessoas suspeitas de crimes perante o tribunal. Essa era uma função que dava muito prestígio popular, já que os julgamentos contra pessoas importantes eram públicos, realizados no Fórum Romano, e os mesmos atraíam multidões para assisti-los.

César resolveu fazer, por volta do ano 77 A.C., a acusação pública de Gnaeus Cornelius Dolabella (Dolabela), um partidário de Sila que havia sido Cônsul, em 81 A.C., que, durante o seu governo como Procônsul da Macedônia, entre 80 A.C. e 78 A.C., foi acusado de extorsão contra os provinciais e de malversação de fundos.

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Dolabela acabou sendo absolvido, mas o libelo acusatório de César foi aclamado como uma brilhante peça de oratória. Outras cidades gregas resolveram contratar César para acusar outros governantes romanos corruptos e, pouco a pouco, César foi ficando famoso entre o público romano, pela eloquência e pela sua empostação de voz, de tom agudo, bem como o seu gestual elaborado nos tribunais.

Cícero, ao discorrer sobre os oradores romanos, disse não ver nenhum para quem César tivesse que abrir mão do troféu de melhor orador, afirmando que “o estilo dele era ao mesmo tempo elegante e transparente, grandioso e, de certo modo, nobre”. E o mesmo Cícero, que foi considerado o maior orador romano, também escreveu sobre César, em uma carta a Cornélio Nepos:

“Agora, que orador você classificaria à frente dele, daqueles que não devotaram sua vida a outra atividade? Quem tem epigramas mais inteligentes ou frequentes? Quem é mais descritivo, ou mais seletivo em sua fala?”

9- Ingresso na política e vida familiar: o César pai e esposo e o seu Estilo de Vida

Agora César já tinha se tornado conhecido pelo povo de Roma, não só pela brilhante oratória, mas também pelo estilo de vida glamuroso, evidenciado pelas roupas elegantes e, sobretudo, pelo jeito afetuoso de tratar os possíveis eleitores e, não menos ainda, pela generosidade nos presentes e banquetes que ele frequentemente oferecia. Assim, ele resolveu concorrer, e foi eleito, para o seu primeiro cargo público, o de Tribuno Militar. Esse cargo, após as reformas militares de Mário, representava o primeiro passo na carreira das magistraturas da República Romana (cursus honorum), sendo elegíveis jovens da nobreza romana.

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Por volta de 76 A.C., Cornélia, a jovem esposa de César, que tinha apenas 21 anos, deu à luz a primeira filha, que seria a sua única descendente oficialmente reconhecidauma menina que recebeu o nome de Júlia.

A menina cresceria e, futuramente, se tornaria uma mulher linda e, tudo indica, de personalidade encantadora, e muito devotada ao pai. Ela não hesitaria em se casar, em 59 A.C., quando tinha apenas 17 anos, com Pompeu, então 30 anos mais velho, em obediência às conveniências políticas do pai. Porém, apesar disso, as fontes relatam que esta foi uma união bem-sucedida, e que ambos se amavam. As delícias de um casamento feliz teriam até afastado Pompeu da política.

Quando Júlia morreu, devido a complicações no parto de seu primeiro filho (ou filha, não se tem certeza), o viúvo, Pompeu, e o pai  ela, César, publicamente deram demonstrações de sua tristeza. (Nota: É possível que, antes de se casar com Pompeu, Júlia estivesse prometida a Marco Júnio Bruto (que passou a usar o nome de Quintus Servilius Caepio, após ser adotado por seu tio, de mesmo nome) e quem, ironicamente, seria, muitos anos mais tarde, o líder da conspiração que assassinaria o pai dela).

Após o nascimento de Júlia, César, no exercício do cargo de Tribuno, teria, por volta de 73 A.C, segundo Veléio Patérculo, diligenciado para que fosse votada a Lex Plautia, uma lei que visava anistiar os romanos que tinham sido exilados por Sila (outros autores mencionam que isso teria ocorrido mais tarde).

Em 69 A.C., ano em que vários eventos significativos em sua vida ocorreriam, César concorreu e venceu a eleição para o importante cargo de Questor, que era um cargo com atribuições judiciárias e militares. Nessa eleição, ficou evidenciado que ele não costumava medir gastos para cair nas boas graças dos eleitores.

Eleito César Questor, em 69 A.C., em seguida,  morreram naquele mesmo ano, praticamente ao mesmo tempo, a sua esposa Cornélia e a sua tia Júlia, viúva do Ditador Mário, o grande campeão da causa dos Populares e a quem a sua família devia o retorno aos altos escalões da política romana.

César aproveitou a oportunidade para fazer do velório público das duas mulheres um ato político combinado com uma manifestação de veneração pela esposa, esta um fato pouco comum em uma sociedade patriarcal e machista como a romana.

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A procissão e os discursos que acompanharam o funeral ocorreram nos “Rostra” – o célebre palanque público situado no coração do Fórum Romano, adornado com os esporões dos navios inimigos capturados em batalha (“rostrum”).

Apesar de Mário haver sido declarado “Inimigo Público” por seu inimigo e sucessor, Sila, estando proibida qualquer alusão pública à sua memória, César mandou que a efígie de cera do marido de sua falecida tia integrasse a procissão fúnebre dela. Era, evidentemente, uma declaração política de apoio à causa dos Populares, o que muito irritou os Optimates (facção aristocrática do Senado), mas, talvez,  tão desafiadora quanto isso tenha sido a apologia que ele fez à própria família. Suetônio preservou uma parte do discurso laudatório de César à sua tia Júlia:

“A família de minha tia Júlia descende, por parte de mãe, dos reis e, por parte de pai, é aparentada com os deuses imortais; pois os Márcios recuam até Anco Márcio (rei mítico de Roma), e os Júlios, dos quais nossa família é um ramo, até Vênus. Nosso sangue, consequentemente, tem ao mesmo tempo a santidade dos reis, cujo poder é supremo entre os mortais, e o direito à reverência que se prende aos deuses, que reinam sobre os próprios reis”.

A multidão que acompanhou o cortejo aplaudiu entusiasticamente o discurso, e recebeu com simpatia a oração e as preces do viúvo César pela falecida Cornélia, apesar de não ser costume fazer discursos fúnebres em homenagem a mulheres jovens, sendo que, segundo as fontes, César foi a primeira pessoa importante a fazer isso, o que lhe granjeou a fama de homem sensível e de bom coração.

Assumindo as funções de Questor, César, ainda no ano de 69 A.C., acompanhou Gaius Anstitius Vetus à Hispânia, Província para a qual este havia sido nomeado Pró-pretor.

Voltando para Roma, ainda viúvo, César, por volta do ano 67 A.C., casou-se pela segunda vez, escolhendo como sua nova esposa, Pompéia, filha de Quintus Pompeius Rufus e de Cornélia Sila, filha mais velha do finado Ditador Sila. Vale notar que o pai de Pompéia havia sido assassinado pelos partidários de Mário, em um tumulto, no ano de 88 A.C.

Não há como negar que o casamento de César com a neta de Sila foi também um ato político que visava a uma conciliação com os Optimates e melhorar a aceitação do jovem César, que era um herdeiro político presuntivo de Mário, pela facção dos aristocratas.

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Se o casamento efetivamente rendeu algum resultado político proveitoso para César é difícil saber. O fato é que, em 65 A.C. ele conseguiu ser eleito, sucessivamente, Curador da Via Ápia e Edil Curul, dois cargos importantes que lhe permitiram administrar verbas públicas, realizar obras e, no caso do último, oferecer espetáculos ao povo.

Como Curador da Via Ápia (“curator”), César mandou fazer vários reparos e embelezamentos nesta importante estrada, pagando-os de seu próprio bolso.

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Já no exercício da edilidade, César manteve a consistência de sua adesão à causa dos Populares e determinou a restauração ou reconstrução dos monumentos erguidos em homenagem ao seu tio Mário.

No entanto, o que realmente chamou a atenção e agradou à plebe foi a magnificência dos espetáculos que César bancou como Edil. Plutarco nos conta que ele custeou 320 pares de gladiadores, além de apresentações de teatro, procissões e banquetes públicos, superando todos os seus antecessores, caindo assim nas graças do povo.

De fato, Cássio Dio conta que, durante a edilidade de César, ele apresentou os Jogos Romanos (“Ludi Romani”) e os Jogos Megalenses em uma escala suntuosa. As lutas de gladiadores provavelmente foram oferecidas  por ele em homenagem à memória do falecido pai (esse era um costume etrusco que foi herdado pelos romanos – as lutas, ou jogos funerais, faziam parte das homenagens aos falecidos).

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Plínio, o Velho, de fato, relata que César, quando Edil, nos jogos funerais que ofereceu em honra do pai, foi a primeira pessoa a apresentar todo o aparato dos gladiadores em prata, sendo também a primeira vez que criminosos enfrentaram animas selvagens, também adornados com prata, na arena, sendo que, mais de um século depois, esta prática continuava a ser imitada até mesmo nas cidades das províncias.

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Toda essa “generosidade” de César, no entanto, começava a agravar um problema inevitável para quem não nascera no seio das famílias mais ricas de Roma…Dívidas!

Com efeito, para poder fazer tudo isto o que ele fazia, em escala poucas vezes vista anteriormente, com o propósito de obter prestígio popular, César teve que pegar dinheiro emprestado. E os cargos públicos exercidos na cidade de Roma, não permitiam, como ocorria nas Províncias, que os seus ocupantes extorquissem o dinheiro dos provinciais via tributos, ficando com uma parte deles para si, renda com a qual contavam para pagar as liberalidades que tinham feito para obter o cargo. E, mais importante, a acirrada política da Cidade Eterna fazia com que os adversários aproveitassem qualquer irregularidade para processar sem piedade o oponente apanhado em alguma malversação.

Aliás, segundo Plutarco, antes mesmo que César exercesse qualquer cargo público, os débitos dele já alcançavam a estratosférica soma de 1.300 talentos!

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E, para isso, certamente, concorria o estilo de vida glamuroso que César fazia questão de cultivar. Parece-nos que César fazia isso não porque ele não conseguisse viver sem conforto (embora ele apreciasse as coisas belas), mas, sobretudo,  como parte da imagem pública de “superstar” que ele fazia questão de ostentar.

Por exemplo, sabemos que, segundo Suetônio, César, quando ele ainda era pobre (para os padrões dos grandes aristocratas romanos), e endividado, após construir e decorar a casa de campo dele (ou villa), às margens do Lago de Nemi, mandou demolir tudo de uma vez apenas porque ele não gostou de como ela havia ficado depois de pronta.  E, ainda de acordo com o historiador citado, César, quando em campanha, levava em sua bagagem pisos de mármore e de mosaico para forrar seus aposentos!

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Suetônio também conta que César era um colecionador de pedras preciosas, gravuras, estátuas e pinturas de artistas antigos,  sendo, assim, podemos dizer, um apreciador de Arte e de antiguidades. Segundo o historiador, até os escravos dele eram escolhidos entre aqueles de melhor aparência e treinamento.

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Obviamente que o apreço de César pelas coisas belas e valiosas aumentou junto com a sua ascensão aos cargos mais altos da República.

Como exemplo, consta, segundo Plínio, o Velho, que César, quando já era Ditador, comprou duas pinturas, “Medéia” e “Ajax”, do pintor Timomachus, por 80 talentos, para colocá-las no Templo de Vênus Genitrix, que ele construiu para honrar a divindade de quem a sua família reivindicava descendência.

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E Plínio conta também que, para os seus banquetes triunfais, César comprou 6 mil peixes da rara espécie Murena. Para esses mesmos banquetes, ele mandou colocar, em cada mesa, uma ânfora cada dos afamados vinhos Falérnio, Quiano, Lésbio e Mamertino, sendo esta considerada a primeira vez em Roma que quatro tipos diferentes de vinho foram servidos na mesma refeição!

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César também era perfeccionista e detalhista no que se refere as regras de etiqueta então vigentes na sociedade romana, preocupando-se sempre se os eventos que patrocinava atendiam os ditames da arte de bem receber.

10 – Pontifex Maximus e César, o bom filho.

Com a popularidade em alta após o exercício da edilidade, César decidiu concorrer, em 63 A.C, ao posto de Pontifex Maximus (Sumo Pontífice), que era o chefe da religião romana, e, além disso, verificava a legalidade dos casamentos, adoções, enterros e funerais, sucessão testamentária, regulava o calendário e também supervisionava a moralidade pública. Era um cargo tão importante que foi um dos últimos a serem franqueados aos plebeus, sendo, até 254 A.C., exclusivo dos patrícios.

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Consta que, no dia da eleição, segundo Plutarco, a mãe de César, Aurélia Cota, em lágrimas, acompanhou-o até a porta da casa onde eles moravam na Subura, ocasião em que César, despedindo-se,  beijou a mãe, dizendo-lhe:

“Mãe, hoje tu verás o teu filho Pontífice Máximo… ou um exilado”.

Para a surpresa de muitos, César, apesar de ser bem mais jovem e ilustre do que os dois outros concorrentes, ganhou a eleição, onde também gastou muito dinheiro, razão pela qual disse a frase dramática com a qual se despediu da mãe no dia do pleito (se ele perdesse, teria que se exilar para escapar dos credores). Um dos derrotados era Quinto Lutácio Catulo, chamado de “Capitolino”, porque ele havia cuidado da restauração do Templo de Júpiter Optimus Maximus na colina do Capitólio. Este era um velho partidário de Sila e inimigo dos Populares. Já o principal contribuinte para a campanha de César ao Pontificado foi Marco Licínio Crasso, então o homem mais rico de Roma.

No aspecto privado desse episódio, podemos constatar que César, aos 37 anos, ainda morava junto com Aurélia. Com efeito, essa cena do dia da eleição para Sumo Pontífice é mais uma das que demonstram a forte ligação entre César e sua mãe. Já vimos, por exemplo, como ela ousadamente fez a defesa do filho junto ao Ditador Sila.

Aurélia Cota morreria, ironicamente, em 31 de julho de 54 A.C (mês do nascimento de César e que, posteriormente, recebeu esse nome em homenagem ao filho dela), na casa em que ambos moravam. Ela então deveria ter cerca de 65 anos de idade.

Assumindo o cargo de Pontífice Máximo, César mudou-se para a Domus Publica, uma habitação destinada aos Sumos Pontífices, que era um venerável ex-palácio dos reis de Roma e que teria sido construído pelo rei Numa Pompílio. A Domus Publica ficava entre a Casa das Virgens Vestais e a Via Sacra, no Fórum Romano.

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(Ruínas da Domus Publica, no Fórum Romano)

Aurélia, após César se casar com Pompéia, foi com eles morar na Domus Publica na Régia e, como sempre havia feito, continuou administrando ali a casa do filho.

A afeição e os laços estreitos que César tinha com a mãe, mesmo depois de já ter uma longa carreira de homem público, também eram manifestados com os parentes e amigos em geral. Com efeito, César, segundo Cássio Dio:

“César possuía uma forte afeição por todos os seus parentes, exceto os mais ímpios. Por isso, ele não ignorou nenhum deles nas suas vicissitudes, nem invejou aqueles que gozavam de boa fortuna, e sim, ajudou a estes a aumentarem as posses que eles já tinham, e deu para os outros o que lhes faltava, dando a alguns deles dinheiro, algumas terras, alguns cargos e alguns sacerdócios. Novamente, a sua conduta em relação aos seus amigos e outros aliados foi notável. Ele jamais escarneceu deles ou insultou-os, mas sempre foi cortês com todos.

Suetônio, igualmente, escreveu sobre isso:

“Ele tratava seus amigos com invariável gentileza e consideração. Quando Gaius Oppius acompanhou-o em uma viagem através de uma região selvagem e florestada, e ficou subitamente doente, César lhe deu o único abrigo que havia”.

O fato acima também foi relatado por Plutarco, que especifica que ele ocorreu durante uma tempestade, sendo que César deixou Oppius dormir dentro de uma pobre cabana, onde somente cabia uma pessoa, enquanto ele e o resto de sua comitiva foram dormir ao relento. Segundo Plutarco, naquela ocasião, César disse aos amigos:

As honrarias devem ser concedidas aos mais fortes, mas o que é de necessidade, aos mais fracos

Em dezembro de 62 A.C, ocorreu o famoso episódio dos ritos da Bona Dea (a Boa Deusa), celebrados na casa do Pontifex Maximus, organizados pelas Virgens Vestais e pelas anfitriãs, Pompéia, a esposa de César, e Aurélia Cota, sua mãe.

Somente mulheres podiam participar da celebração (na verdade, sequer o nome da deusa poderia ser pronunciado por homens, daí o eufemismo “Boa Deusa”), porém o senador Públio Clódio Pulcher, um partidário dos Populares que tinha fama de devasso, conseguiu entrar na casa de César, disfarçando-se de mulher, supostamente com a intenção de seduzir Pompéia.

Clódio foi descoberto e o escândalo público que se seguiu foi tão grande que César viu-se obrigado a se divorciar de Pompéia, apesar de aparentemente a esposa não ter culpa de nada. Os Optimates, adversários políticos de César e dos Populares, não perderam a oportunidade de aproveitar ao máximo o fato, e um processo criminal por “incestum” foi instaurado contra Clódio. Pompéia e Aurélia, inclusive, prestaram depoimento como testemunhas. César tentou defender seu correligionário político, ao mesmo tempo alegando que nada tinha ocorrido. Quando os adversários lhe perguntaram porque motivo então ele tinha se divorciado de Pompéia, César disse a célebre frase: “A mulher de César tem que estar acima de qualquer suspeita”, que acabou sendo imortalizada como:

“À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta”.

Com esse último episódio, que demonstra que a característica mais prevalente da personalidade dele era a de ser um “animal politico” nato, terminamos este texto sobre Júlio César.

Depois do cargo de Pontífice Máximo e o grande impulso que o exercício dessa função deu em sua carreira política, César foi para a província da Hispânia como governador (Procônsul), o que além de lhe dar a experiência de comando militar, lhe permitiria obter os recursos para saldar suas vultosas dívidas. Então, ele já tinha quase quarenta anos de idade e todos os aspectos de sua personalidade já estavam delineados.

ADRIANO – ANIMA VAGULA BLANDULA

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NASCIMENTO, ORIGEM FAMILIAR, INFÂNCIA E JUVENTUDE

Em 24 de janeiro de 76 D.C, nascia Publius Aelius Hadrianus (Adriano),  em Roma, ou, segundo algumas fontes, em Itálica, cidade na província romana da Hispania Betica a 9 km da atual Sevilha, que foi fundada por Cipião, o Africano ainda durante a 2ª Guerra Púnica, que ali assentou colonos romanos de origem italiana, entre os quais provavelmente estava a família dos Élios.

O pai de Adriano, Publius Aelius Hadrianus Afer, era um senador romano e primo de Marcus Ulpius Trajanus, seu conterrâneo de Itálica que se tornaria, em 98 D.C, o imperador Trajano (o primeiro imperador nativo de uma província fora da Itália;  já a sua mãe, Domícia Paulina, também vinha de uma família da classe senatorial radicada na Espanha.

Quando Adriano tinha apenas 10 anos de idade, no ano de 86 D.C, os seus pais faleceram e ele ficou sob a tutela de Trajano e de Publius Acilius Attianus, um conterrâneo de seu pai. E aos 14 anos de idade, Adriano, que estava em Itálica, foi chamado para ir morar em Roma por Trajano. Na capital do Império, Adriano recebeu uma esmerada educação, em companhia de outros rapazes da alta aristocracia romana.

Consta que, ainda na infância, chamou a atenção o grande interesse de Adriano pela cultura grega, chegando ele a receber o apelido de”graeculus” (“greguinho”), não se olvidando que esse termo também era, entre os romanos, por vezes usado como uma forma jocosa de chamar alguém de efeminado ou “gay”.

Com cerca de 18 anos, Adriano entrou para o serviço militar na condição de tribuno, mas sem muito destaque. Ele serviu por cerca de três anos em legiões na Mésia, na Dácia e na Germânia.

INGRESSO NA FAMÍLIA IMPERIAL DE TRAJANO E INÍCIO DA CARREIRA PÚBLICA

Em 98 D.C, o imperador Nerva, que, ao assumir o trono, havia adotado Trajano como sucessor faleceu. Adriano, então ao receber a notícia, fez questão de ser o primeiro a comunicar o momentoso fato a Trajano, que estava em campanha, e cavalgando com velocidade espantosa para a época, conseguindo chegar na frente do emissário oficial, motivo pelo qual Trajano ficou muito grato e sua carreira começou a decolar.

Fortalecendo seus laços com a casa imperial, Adriano, em 100 D.C, casou-se com Víbia Sabina, que era filha de Matídia, sobrinha de Trajano, mas que tiha sido criada como se fosse filha do imperador, que, aliás, nunca teve filhos naturais. Este foi um casamento arranjado por Matídia e pela própria imperatriz Plotina, duas mulheres que sempre demonstraram um grande afeto por Adriano. E, com efeito, os estreitos laços emotivos entre Plotina e Adriano ainda favoreceriam muito o jovem no futuro…

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(Busto da Imperatriz Plotina, a protetora de Adriano)

Pouco depois do casamento, Adriano acompanhou Trajano na primeira grande empreitada militar deste imperador: A Primeira Guerra contra a Dácia (101-102 D.C). Contudo, no decorrer desta campanha, Adriano foi dispensado para assumir os cargos de Questor, em 101 D.C, e, posteriormente, de Tribuno da Plebe, em 105 D.C., seguindo os passos da tradicional carreira das magistraturas (cursus honorum) romana.

Na Segunda Guerra contra os Dácios (105-106 D.C), Adriano também integrou a comitiva de Trajano e recebeu o comando da I Legião Minervia. Novamente, Adriano deixou a campanha em seu desenrolar e foi para a Roma assumir o cargo de Pretor, em 106 D.C. Em seguida, ele foi nomeado governador da Panônia Inferior. Não obstante, Adriano recebeu menções honrosas do Imperador pelo seu desempenho na referida segunda campanha na Dácia. Posteriormente, em 108 D.C, Adriano foi nomeado cônsul suffectus (equivalente a cônsul substituto –  um posto somente inferior ao consulado ordinário. Um cônsul suffectus era designado para completar o período do consulado ordinário quando este ficava vago).

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(Relevo da Coluna de Trajano, em Roma, com cena da Guerra contra os Dácios)

Depois do consulado, Adriano integrou os colégios sacerdotais dos setêmviros e dos sodalis augustales, este último um prestigiado ofício religioso encarregado do culto a Augusto.

Nos anos seguintes, que parecem ter sido “sabáticos”, sabemos que Adriano viajou para a sua adorada Grécia, onde estudou com o filósofo estóico Epicteto, na Hélade, como mais um exemplo e reconhecimento do seu amor pela cultura grega, Adriano conseguiu ser eleito cidadão de Atenas e ocupou o cargo de Archon, uma magistratura ateniense, entre 112 e 113 D.C.

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(Arco de Adriano, em Atenas, foto de Carole Raddato)

Nesse ponto, parece estranho que a carreira pública de Adriano tenha ficado em segundo plano em relação à sua viagem existencial pela Grécia. Alguns acreditam que Trajano nunca tenha tido muito entusiasmo pela possibilidade de Adriano tornar-se seu sucessor. Se por um lado, a sucessão de cargos ocupados por ele  (bem como o seu casamento com Sabina) demonstra que Adriano era bem considerado e próximo ao Imperador, por outro é certo que ele ainda não recebera nenhuma distinção inegável para que fosse considerado um herdeiro escolhido, tal como, por exemplo, o Poder Tribunício, a adoção oficial ou, mesmo, a designação para sucessivos consulados ordinários. Poderia-se até cogitar que o fato de Adriano ter ficado tanto tempo em Atenas para se dedicar a estudos filosóficos, quando já tinha mais de 35 anos de idade e sem ocupar nenhum cargo de cúpula, equivaleria à nossa expressão: “ficar na geladeira”…

Porém,  eu entendo que não há dúvidas de que Adriano jamais deixou de gozar da confiança de Trajano, pois, quando, em 114 D.C. este embarcou em sua campanha contra a Pártia, ele integrou a comitiva imperial, e, no decorrer da guerra, foi nomeado governador da importantíssima província da Síria. Esse cargo tornava Adriano virtualmente o comandante militar do Exército Romano no Oriente, pois Trajano, gravemente doente, teve que deixar a campanha e partir para Roma, em 117 D.C.

ASCENSÃO AO TRONO

Assim, foi enquanto era governador da Síria que Adriano recebeu, em Antióquia, a notícia de que Trajano havia falecido, na viagem de retorno à Roma, em Selinos, na Cilícia, ainda na Ásia Menor, em 8 de agosto de 117 D.C, nomeando-lhe como sucessor.

As fontes antigas atribuem a investidura de Adriano à imperatriz Plotina, que, contando também como o auxílio de seu velho tutor Attianus, teriam mantido a morte de Trajano em segredo por alguns dias, aproveitando para forjar os documentos em que Trajano designava Adriano como o herdeiro que deveria sucedê-lo no trono do Império Romano. A História Augusta até menciona que Trajano pretendia nomear o famoso jurista Neratius Priscus como sucessor, mas isso é altamente improvável, até porque, posteriormente, Priscus ocupou importantes cargos durante o reinado de Adriano e foi encarregado de várias reformas legais. Mas, certamente, Priscus teria sido logo eliminado por Adriano, caso a escolha dele por Trajano como sucessor tivesse mesmo ocorrido.

O fato é que Adriano era o parente vivo mais próximo de Trajano e ocupava o importante governo da Síria, o que o colocaria, mesmo na ausência de testamento, como o comandante militar mais poderoso do Império naquele momento. Assim, ainda que Trajano não tenha expressamente designado Adriano como sucessor, essa condição era natural pelas circunstâncias, e não se pode condenar a “interpretação” que, supostamente, Plotina teria dado à vontade do marido falecido…

REINADO

Um dos primeiros atos de Adriano foi livrar-se de quatro importantes senadores, que tinham sido grandes colaboradores de Trajano. As fontes relatam que ele depois sempre se ressentiria dessa “mancha” na sua, em geral, reputação de monarca tolerante e ilustrado. A desagradável tarefa foi executada pelo seu ex-tutor Attianus, que havia sido nomeado Prefeito Pretoriano, ainda por Trajano, em Roma. Adriano sempre colocaria a culpa desses assassinatos políticos em Attianus, alegando que ele mesmo de nada sabia, chegando até a removê-lo do cargo, mas essa alegação não se coaduna com com o fato de, logo após a essa “punição”, Adriano ter nomeado Attianus para o Senado Romano e lhe honrado com os ornamentos consulares…

Entrementes, logo ficou claro que Adriano promoveria uma guinada de 180° em relação à política exterior de Trajano.

Todas as conquistas no Oriente duramente obtidas por Trajano, mas onde já espoucavam revoltas, foram abandonadas, inclusive a província da Mesopotâmia, o que gerou certa insatisfação na opinião pública. Esse sentimento é compreensível, sobretudo porque o domínio romano na Mesopotâmia evocava de certo modo as conquistas de Alexandre, o Grande na Pérsia, mas provavelmente esta decisão de Adriano foi correta, pois dificilmente os romanos conseguiriam mantê-la.

Adriano entendia que o Império devia fortalecer as fronteiras estabelecidas na época de Augusto, com exceção a rica Dácia, que também estabelecia um colchão de segurança para a estratégica fronteira do Danúbio.

O Império, assim, embarcou na construção de uma rede de muralhas, torres fortificadas, quartéis e paliçadas visando assegurar essas fronteiras. O exemplo mais famoso desse programa são as Muralhas de Adriano, na Grã-Bretanha (construída entre 122 e 125 D.C).

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Não obstante, Adriano cuidou para que o Exército Romano fosse cuidadosamente mantido em estado de excelência, seja em equipamentos, disciplina e prontidão, tendo sido extensivamente empregado em projetos de construção e manobras militares constantes.m Com efeito, uma das grandes preocupações de Adriano era o evidente relaxamento da disciplina militar pelo excesso de confortos e luxos nos quartéis, situação que ele combateu.

Já na esfera social, Adriano expandiu o programa dos “Alimenta” (fornecimento gratuito de gêneros alimentícios aos cidadãos pobres de Roma).

O imperador externou que seu propósito era visitar todas as províncias do Império Romano, a fim de verificar pessoalmente as condições dos cidadãos romanos, conhecer os problemas das províncias e fiscalizar a administração regional. E com efeito, Adriano visitou a Gália e o Reno (120-121 D.C), a Bretanha (121-122 D.C), a Espanha (122 D.C), a Ásia (123 D.C), a Grécia (125 D.C), e, após voltar à Roma, a África (128 D.C), novamente a sua amada Grécia (Atenas, 128 D.C), a Cária, Cilícia, Capadócia e Sìria (129 D.C) e o Egito (130 D.C), voltando à Roma em 131 D.C. Essas viagens também demonstrariam a visão do Império Romano como uma comunidade de povos que compartilhavam a civilização helenística, ao invés de ser meramente um território conquistado pelos romanos e governado por Roma para os de origem italiana.

Aliás,foi muito provavelmente durante a estadia de Adriano na Bitínia que ele conheceu o belo adolescente Antinoos, ou Antinous,  que foi enviado para Roma para ser educado como pajem e que se tornaria seu notório amante.

Outra reforma importante implementada por Adriano foi a designação de integrantes da classe equestre para os cargos da burocracia imperial (Seu antecessor, Trajano, dava preferência aos membros da classe senatorial), assegurando-lhes, a partir daí, a promoção para os mais altos cargos da magistratura. Esse passo foi seguido pela profissionalização do Conselho do Imperador (Consilia Princeps), corpo consultivo que passaria a ser integrado por conselheiros pagos e não mais por libertos ou servos domésticos do Imperador.

No campo do Direito, Adriano foi o primeiro a editar um Código de Leis publicado para ser conhecido para todos os cidadãos. Esse Código, elaborado pelo célebre jurtsta Sálvio Juliano, chamado de Édito do Pretor (depois conhecido com Editum Perpetuum), marcou uma profunda alteração no sistema jurídico-legal romano, pois, até então, tradicionalmente, os juízes (pretores) publicavam seus éditos com a sua interpretação jurídica das leis e costumes romanos, que era considerada como uma fonte do Direito. Agora, todos os éditos anteriores ao Editum Perpetuum estavam sendo fixados no Código e, a partir daí, somente o Imperador poderia alterar a legislação mediante a expedição de decretos ou de leis ratificadas pelo Senado. Esta era uma mudança revolucionária: do sistema de direito de precedente judiciário e judge men’s law (direito dos juízes) para o direito codificado ou legislado, que, ainda hoje, marca a divisão entre os sistemas jurídicos existentes no mundo.

Adriano foi também um grande construtor, e os edifícios mais famosos em Roma construídos durante o seu reinado foram: o Templo de Vênus e Roma, o seu próprio Mausoléu ( que ainda existe, na forma do Castelo de Santo Ângelo), e o muito bem preservado Pantheon, no qual, pretendendo demonstrar humildade, Adriano manteve a inscrição ostentada na fachada do prédio antecessor, que havia sido destruído havia tempos, declarando que havia sido construído por Marcus Agrippa. Espetacular também foi a sua Villa, em Tìvoli, que constituía praticamente um grande parque temático sobre o mundo helenístico.

(Pantheon e Templo de Vênus e Roma – este reconstituído por Franck devedjian)

PERSONALIDADE

A personalidade de Adriano era certamente refinada, complexa e contraditória. Ele queria ser visto como, e, tudo indica, se esforçava mesmo para ser,  um monarca esclarecido, humano, tolerante, pio e dedicado ao serviço público, mas era excessivamente vaidoso, de temperamento colérico e emotivo.

Os seguintes casos preservados pelas fontes podem dar uma idéia:

Sabe-se que Adriano publicou leis visando melhorar a condição dos escravos. Contudo, consta que certa vez, irritado com um seu escravo doméstico, Adriano cravou o seu estilete de escrita no olho do infeliz escravo. Logo depois, tomado de remorso, Adriano pediu perdão ao escravo e, visando reparar essa violência, disse que o escravo poderia pedir qualquer coisa que quisesse, que ele, Adriano, lhe daria. Resposta do escravo: “Só quero o meu olho de volta“.

Outra vez, quando viajava, uma mulher abordou a comitiva e quis fazer um pedido, ao que Adriano respondeu: “Não tenho tempo para te ouvir“. A mulher então, ousadamente, replicou: “então, não seja imperador!“. Adriano, envergonhado, parou e ouviu o requerimento da mulher .

Cássio Dião descreve Adriano como sendo um homem agradável de se encontrar e dotado de um certo charme. Segundo a História Augusta, ele tinha muito interesse em poesia e nas letras e era expert em aritmética, geometria e pintura. Adriano sabia tocar bem a flauta e cantar. Porém, ele excedia-se ao satisfazer seus desejos e escreveu muitos versos aos objetos de suas paixões. Adriano também sabia manejar diversas armas.

Ainda, segundo Cássio Dião, Adriano:

“na mesma pessoa, era austero e genial, solene e brincalhão, ativo e preguiçoso, sovina e generoso, dissimulado e direto, cruel e compassivo e, sempre, em todas as coisas, volúvel“.

Certamente, Adriano era muito vaidoso intelectualmente, o que deu margem a algumas estórias sobre a inveja que sentiria de outros homens admirados pelo talento. Consta que até que ele teria mandado matar o arquiteto Apolodoro de Damasco porque este debochara de seus desenhos e desdenhara das suas sugestões para o Pantheon e o Templo de Vênus e Roma. Mas alguns duvidam que essa narrativa seja verdadeira.

Sobre a vida afetiva de Adriano, parece que o casamento com a imperatriz Sabina era de fachada, Ela inclusive teria tido um relacionamento amoroso com o célebre historiador Suetônio. Em todo caso, o casamento imperial não gerou filhos e ela morreu um pouco antes do imperador, em 136 ou 137 D.C.

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(Busto da imperatriz Víbia Sabina)

O relacionamento amoroso mais conhecido de Adriano foi com o belo jovem bitínio Antínoo, natural da cidade de Claudiópolis, que ele deve ter conhecido em 123 D.C, durante a sua viagem pelas províncias da Ásia. O menino deveria ter, então, cerca de 13 anos e foi levado para Roma para ser educado. Sendo ele grande admirador da cultura grega, é provável que a relação íntima de Adriano com o rapaz tenha se desenvolvido como a relação entre as figuras do “eraster” e do “eromenos“, onde um homem adulto assume o papel de mentor educacional de um pupilo,  ocasião em que se admitia, na Grécia, o relacionamento sexual entre eles (pederastia). Considerando que a elite romana, no período, era fortemente influenciada pelo helenismo, provavelmente a relação entre Adriano e Antinoos, naquele momento, não foi considerada escandalosa, ao menos enquanto o rapaz era adolescente.

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Porém, em 130 D.C, durante a viagem de Adriano pelo Egito, quando eles navegavam pelo Nilo, a flotilha imperial parou na cidade de Hermópolis e durante essa parada, Antinoos afogou-se no rio. Consta que Adriano chorou copiosamente a perda do amante. Pouco depois, Adriano conseguiu que os gregos deificassem Antinoos e ordenou que uma cidade no Egito fosse construída no local da morte do amante, batizando-a de Antinoopolis.  Inúmeras estátuas do jovem foram espalhadas pelo Império (muitas ainda existem).

As fontes antigas divergem sobre a causa da morte de Antinoos. As versões variam entre suicídio, assassinato, sacrifício e acidente. Para alguns, o próprio rapaz, percebendo que em breve a relação terminaria devido á sua condição de homem adulto, já que a relação amorosa aberta entre homens adultos livres não era aceita pela sociedade romana, teria se matado. Esse também seria o motivo pelo qual ele poderia ter sido assassinado. Para outros, Antinoos teria sido voluntariamente sacrificado em algum misterioso ritual religioso ou vítima de um acidente. O fato é que as homenagens prestadas pelo imperador a Antinoo foram consideradas excessivas e expuseram Adriano ao ridículo, ao menos segundo nos conta a História Augusta.

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O conflito militar mais importante do reinado de Adriano foi a revolta judaica liderada por Simão Bar-kohba, entre 132 e 136 D.C, que foi implacavelmente reprimida, com a destruição de Jerusalém, a morte estimada de 580 mil judeus e a deportação de grande parte da população judaica , vendida como escrava, episódio chamado pelo povo hebreu de “A Grande Diáspora“. Sobre as ruínas de Jerusalém, Adriano ordenou a construção de uma nova cidade, batizando-a de Élia Capitolina.

MORTE

O final da vida de Adriano foi atormentado por uma grave doença que lhe causou muito sofrimento, ao ponto de seus assessores mais íntimos se preocuparem em evitar que ele tivesse qualquer instrumento potencialmente letal à sua disposição, por medo de que ele se matasse.

Adriano escolheu como sucessor Lucius Ceionus Commodus, em 136 D.C, um senador que era filho de um dos quatro consulares que ele havia executado no início do seu reinado. Porém, Lucius, que adotou o nome de Lucius Aelius Caesar, morreu no início de 138 D.C. Adriano, então, adotou Titus Aurelius Fulvus Boionius Arrius Antoninus (o futuro imperador Antonino Pio), que era casado com Faustina, uma sobrinha da imperatriz Sabina e filha de Marco Ânio Vero, grande amigo de Adriano e membro de uma família conterrânea da Hispânia, como novo herdeiro.

Segundo a História Augusta, em seu leito de morte, Adriano compôs o célebre poema Anima, Vagula, Blandula (Pequena alma terna e flutuante), uma belíssima peça lírica que ilustra a riqueza do espírito do moribundo Imperador:

“Pequena alma terna e flutuante,

hóspede e companheira de meu corpo,

vais descer a lugares pálidos, duros, nús,

onde renunciarás aos jogos de outrora.

Animula,_vagula,_blandula_(13307208213)(Lápide moderna em mármore com o poema de Adriano em latim, colocada no interior do seu Mausoléu, hoje Castello Sant’Angelo, em Roma. Foto: Carole Raddato)

Em 10 de julho de 138 D.C., o coração de Adriano parou de bater em sua villa no tradicional balneário de Baiae. Ele tinha 62 anos de idade e seu reinado durou  21 anos, um dos mais longos da História, então somente superado por seus predecessores Augusto e Tibério. Ele inicialmente foi sepultado em uma villa que havia pertencido a Cícero, e depois seus restos foram trasladados para Roma, onde foram cremados e depositados no seu magnífico Mausoléu de Adriano, juntamente com os de sua esposa Sabina e seu filho adotivo Lúcio Élio, pelo seu sucessor Antonino, que, por ter conseguido convencer o relutante Senado Romano a deificar Adriano, recebeu o cognome de “Pio”.

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F I M

ROMA E SEUS MUROS

Os muros voltaram!

Em pleno século XXI, governantes voltam a investir na construção de barreiras, sejam cercas ou muros.

Nos Estados Unidos, o polêmico e contestado Presidente Trump elegeu-se tendo com uma de suas promessas a construção de um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México; Israel constrói muros separando o país e o território controlado pela Autoridade Palestina; e na Hungria, o governo construiu uma cerca na fronteira sul do país para impedir a entrada de refugiados  vindos do Oriente Médio…

 

A construção de barreiras contra inimigos, reais ou ilusórios, é uma medida recorrente na história dos povos através dos tempos, com maior ou menor sucesso.

Quase todas as cidades do Velho Mundo, e até mesmo do Novo Mundo, tiveram muralhas. Com efeito, até o século XIX, elas faziam parte da paisagem urbana européia: é verdade que Londres, a precursora, derrubou as suas por volta de 1760, mas as de Viena duraram até 1857. Paris as teve até 1860, e Madri, até 1868.

Em Roma, as primeiras muralhas teriam sido construídas pelo seu sexto rei, Sérvio Túlio, que reinou de 575 a 535 A.C. Essas muralhas provavelmente foram destruídas ou abandonadas durante o domínio etrusco, sendo que, após a invasão gaulesa e o saque de Roma, em 390 A.C, foram levantados novos muros.

Entretanto, durante a sua longa História, os soldados romanos, normalmente, estiveram muito mais acostumados a estarem do lado de fora das muralhas citadinas, na posição de atacantes, tentando ultrapassá-las para conquistar uma cidade inimiga cercada, do que guarnecendo muros.

Com efeito, uma das mais importantes condecorações militares romanas era a “corona muralis” – uma coroa de ouro com o formato de um muro que era concedida ao primeiro soldado romano que conseguisse galgar uma muralha.

Em verdade, impérios em expansão, por razões óbvias, não necessitam, de muralhas…

Assim, após a implantação da “pax romana”, quando Roma dominou todo o Mediterrâneo e não tinha inimigos à altura, as cidades romanas passaram a negligenciar o reparo e a construção de muralhas, chegando muitas a desmoronarem ou terem o seu perímetro ultrapassado pela expansão urbana, sem que novas fossem edificadas.

Somente após a derrota das legiões de Varo, na Germânia, que significou o abandono do projeto de incorporação daquele território e de expansão romana além do Reno, sentiu-se a necessidade de se estabelecer uma linha de fortificações, torres de vigilânciae paliçadas para prevenir incursões dos bárbaros germânicos, o “limes germanicus”, que, porém, nunca chegou a ser uma muralha continua de alvenaria, em sentido literal.

Da mesma forma, depois de invadirem a Grã-Bretanha, os romanos perceberam que os custos econômicos e militares de uma expansão até ao norte da ilha também não se justificavam, face a resistência das tribos dos Pictos e Escotos, antepassados dos escoceses. Então, o imperador romano Adriano, que era avesso à política expansionista de seu antecessor Trajano, construiu a primeira muralha fronteiriça contínua de Roma, a chamada “Muralha de Adriano”, no século II D.C.

 

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Porém, mais do que uma estrutura defensiva, a Muralha de Adriano era uma declaração política e uma exibição de poder. Com efeito, além de significar que a expansão romana terminava ali naquele lugar, pela vontade do imperador, ela servia também como propaganda da divisão do mundo entre civilização e barbárie: e de fato, estudos mostram que a muralha era coberta de argamassa caiada de branco, para parecer mais vistosa e impressionante para os bárbaros do outro lado.

Para muitos estudiosos militares, as muralhas, entretanto, são uma declaração de fraqueza: nações poderosas não precisam de muralhas, pois seus exércitos são poderosos e temidos o suficiente para intimidar e derrotar os seus vizinhos, invadindo o território inimigo quando for necessário.

Quando o Império Romano passou a ser alvo frequente das invasões germânicas, em meados do século III D.C, as muralhas voltaram à moda: Por todo o Império, as cidades começaram a reparar os seus muros ou a construir novas muralhas.

A própria Roma não escapou. Após a invasão dos Vândalos, que saquearam a cidade de Placência, no norte da Itália, o imperador Aureliano ordenou a construção na capotando Império das impressionantes muralhas que levam o seu nome, com 19 km de extensão, construídas entre 271 e 275 D.C.

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Reforça a tese dos especialistas antipáticos à estratégia militar baseada em muralhas, o fato de que, durante toda a existência das suas muralhas anteriores, ditas Servianas, a cidade de Roma passou 800 anos sem ser invadida por inimigos estrangeiros. Contudo, apenas 140 anos após a construção das Muralhas Aurelianas, Roma foi invadida e saqueada pelos Godos, em 410 D.C.  E, apenas 45 anos depois disso, a Cidade Eterna seria saqueada, ainda mais brutalmente, pelos Vândalos, 455 D.C.

Por outro lado, agora como um caso de sucesso de uma muralha, a nova capital do Império, Constantinopla, que, em 405 D.C recebeu as formidáveis Muralhas Teodosianas, resistiu por mais de mil anos ao cerco dos mais variados inimigos, somente vindo a cair em 1453 D.C, quando os Turcos empregaram os mais poderosos canhões da época (a cidade foi conquistada antes pelos cruzados, em 1204, mas eles tiveram auxílio de opositores internos).

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Enquanto isso, no moribundo Império do Ocidente, começava uma tendência que se acentuaria na Idade Média: a população civil circunvizinha, para se proteger, se mudou para quartéis militares fortificados (castra), para pequenos fortes militares (castellum) ou para pequenos povoados situados em colinas e morros (oppidae). Com a Queda do Império, essas posições fortificadas, agora ocupadas principalmente pelos nobres germânicos vitoriosos, passaram a ser a controlar as terras e a população rural vizinhas, dando origem aos onipresentes castelos que dominaram a paisagem européia medieval.

No século XX, entretanto, o conceito de estratégia militar baseada em muralhas recebeu dois grandes baques: a) a humilhante inutilidade da “Linha Maginot”, contornada com facilidade pelo exército alemão na 2º Guerra Mundial; e b) a queda do “Muro de Berlim”, abatido a golpes de picareta pelos próprios cidadãos da Alemanha Oriental.

Agora, em nossos próprios dias, em pleno século XXI, novamente países levantam barreiras tentando evitar a entrada de grupos de forasteiros indesejados, uma medida criticada por muitos especialistas.

E você, leitor, o que acha das muralhas?

AVITO – A ESPERANÇA DA GÁLIA ROMANA

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(Solidus do imperador Avito, foto de Numismatica Ars Classica NAC AG)

 

Em 9 de julho de 455 D.C, na cidade de Ugernum, na província romana da Gália Lugdunense, o senador galo-romano Marcus Maecilius Flavius Eparchius Avitus (Avito) foi aclamado imperador por uma assembleia de notáveis da aristocracia galo-romana.

Avito, que deve ter nascido por volta de 395 D.C, era membro de uma família ilustre da nobreza galo-romana, classe que, já a partir dos tempos de Júlio César, assimilou profundamente a cultura clássica romana. Vale notar que a Gália era a maior e mais produtiva província da metade ocidental do Império Romano. Apesar disso, o Senado Romano continuou a ser controlado pelas famílias tradicionais da nobreza italiana.

Além de Avito, que nasceu  na cidade de Clermont (atual Clermont-Ferrand), vários outros influentes aristocratas galo-romanos nasceram  na região gaulesa do Auvergne,  tais como o seu genro, o poeta, diplomata e político Sidônio Apolinário e, após a Queda do Império Romano do Ocidente, o historiador Gregório de Tours.

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(Panorama da atual Clermont-Ferrand)

Após a derrota na Batalha de Adrianópolis, em 378 D.C., para os invasores Godos, e o profundo enfraquecimento militar romano que se seguiu, a Gália, que já tinha sido a principal vítima das invasões germânicas durante a crise de meados do século III D.C, passou a ser o alvo principal da nova onda de incursões bárbaras, que culminou com a grande invasão dos Vândalos, Alanos e Suevos no inverno de 406 D.C, que atravessaram o Reno e, após devastar a referida província, alojaram-se na vizinha Hispânia. Para piorar, após o saque de Roma, em 410 D.C, os Godos também escolheram a rica Gália como presa.

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Consequentemente, o Imperador Honório, em 418 D.C, visando apaziguar a ameaça mais premente representada pelos Godos, acabou assinando com eles um tratado em que reconhecia aos bárbaros a condição de “foederati” (povo aliado governado por seus próprios chefes), concedendo-lhes o direito de se assentarem na Gália Aquitânia, em um arranjo que, ainda que precariamente, funcionou por algum tempo.

Observe-se que, ainda durante as invasões dos Alamanos, na chamada Crise do Século III D.C, a insegurança dos galo-romanos levou-os a apoiar os usurpadores Póstumo e Tétrico, que chegaram a governar durante alguns anos a Gália, a Hispânia e a Britânia como integrantes do chamado “Império Gálico” (ou “Império das Gálias“), que durou, no total, de 260 a 274 D.C.

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Com a recuperação econômica e militar do Império Romano, a partir do reinado de Diocleciano, a Prefeitura da Gália foi criada, na reestruturação administrativa do Império continuada por Constantino, e compreendia, além da Gália e dos territórios que tinham sido controlados pelo malfadado Império Gálico, a Germânia e parte da África, ficando subordinada ao Imperador do Ocidente.

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Em algum momento entre o final do século IV e o início do século V, provavelmente em função das demandas da aristocracia galo-romana, notadamente no que tange ao agravamento da segurança da fronteira, estabeleceu-se uma “Assembleia” da Gália (“Concilium Septem Provinciarum“),  com periodicidade anual, que era integrada pelos membros da aristocracia senatorial galo-romana. O Prefeito Pretoriano Julius Agricola, que, acredita-se, era parente, ou, até mesmo, o próprio pai de Avito, presidiu esta “Assembleia dos Gauleses“, em 418 D.C.

Sabe-se que Avito, como se esperava de um jovem de sua estirpe, estudou Direito Romano, tendo provavelmente destacando-se como advogado, pois, pouco antes de 421 D.C, ele foi enviado pelos seus compatriotas para apresentar uma petição ao general Flávio Constâncio (o futuro imperador Constâncio III) na Itália,  solicitando uma redução de impostos para a sua Província natal. Avito foi bem sucedido, obtendo a redução pedida (nota: Flávio Constâncio era o homem forte durante o reinado do Imperador do Ocidente, Honório, e pouco  tempo antes da viagem de Avito, o general tinha estado na Gália para negociar o Tratado com os Visigodos, onde havia obtido também a libertação de Galla Placidia, irmã do Imperador, que depois disso, casou-se com ele).

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(Moeda de Constâncio III)

Enquanto isso, após a súbita morte de Constâncio III, o poder passou a ser exercido pela Imperatriz Galla Placidia, em nome de seu filho Valentiniano III, ocasião em que o general Flávio Aécio alcançou o o posto de Comandante Militar da Gália.

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Por volta de 425 D.C., Avito foi para a cidade de Tolosa (atual Toulouse), então capital do Reino dos Visigodos na Aquitânia, tentar negociar a libertação de seu parente Theodorus junto ao rei Teodorico I. No tempo em que passou entre os Visigodos, Avito fez vários contatos, chegando até a frequentar o círculo mais íntimo da corte de Teodorico.

Alguns anos depois, ocorreu um novo grande revés para os romanos : a travessia dos Vândalos para a África do Norte, em 429 D.C. Após prolongada guerra, os bárbaros conseguiram conquistar a grande cidade romana de Cartago, em 439 D.C., e se apropriar da parte mais rica e próspera da Província da África. Isso representou uma perda considerável de receita para o Imperador do Ocidente, além da perspectiva da interrupção do vital suprimento de trigo para a cidade de Roma, e, certamente, o encarecimento daquele produto, já que, como bem observa J.Bury:

“o que antes era enviado como tributo, agora era produto de exportação”.

Aécio, a quem a História concederia o título de “O Último dos Romanos“, tornou-se, em 432 D.C., Comandante-em-chefe do Exército Romano do Ocidente e foi, entre 433 e 451 D.C., o homem mais poderoso do Império. Um fator importante para a ascensão de Aécio foi a rede de contatos que ele estabeleceu com os Hunos, após ter vivido entre eles como refém. Os Hunos naquele momento eram a força militar mais poderosa da Europa.

A estratégia militar seguida por Aécio visava proteger preferencialmente a Gália, a maior e mais rica província do Ocidente, já bem devastada pelas invasões bárbaras. Ele, de fato, conseguiu derrotar os Burgúndios e conter os chamados Bagaudas, na Gália (Acredita-se que os Bagaudas eram habitantes da própria província que, fartos de serem atacados pelos bárbaros e também do pagamento dos impostos, formaram bandos criminosos que controlavam áreas fora-da-lei).

Após uma série de derrotas e vitórias contra os Visigodos,  Aécio conseguiu firmar com eles um novo tratado delimitando a área que seria destinada aos Germânicos. Com efeito, sem ter tropas suficientes para subjugar todos os bárbaros, Aécio passou a se valer da tática de usar as tribos bárbaras que tivessem sido derrotadas ou apaziguadas e assentá-las  para conter as outras que fossem julgadas mais perigosas para Roma.

Sabemos que Avito exerceu diversos postos militares sob o comando de Aécio, culminando com sua nomeação para um importante cargo de comando, provavelmente o de “Magister Militum per Gallias”, em 437 D.C.

Avito, vale mencionar, teve participação decisiva na renegociação do Tratado de Amizade com os Visigodos  que Aécio pretendeu fazer. Em 439 D.C., já na condição de Prefeito Pretoriano da Gália, foi ele quem viajou a Toulouse para encontrar-se com Teodorico, Lá, ele conheceu o filho do rei, o futuro rei Teodorico II, e chegou a incentivar o jovem a estudar os poetas latinos.

Depois desse relevante serviço público, Avito retirou-se para a vida privada, retornando para sua grande propriedade de Avitacum, nas cercanias de Clermont. Muito provavelmente, em Avitacum, Avito deve ter gozado as delícias da vida de um aristocrata romano em sua adorada villa, que foi tão bem descrita por seu genro Sidônio Apolinário em suas cartas. Sidônio era casado com Papianilla, filha de Avito, que, inclusive, foi quem herdou a propriedade após a morte do pai. É muito conhecida a carta de Sidônio em que ele descreve para um amigo a enorme propriedade, enfatizando a excelência de suas termas privadas e as belezas do lago – vide: http://www.tertullian.org/fathers/sidonius_letters_02book2.ht)

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(Avitacum, a villa de Avito, tinha vista para o Lago Aydat, in Puy-de-Dome, próximo a Clermont)

Porém, em 451 D.C, uma ameaça ainda maior do que a dos Visigodos e das outras tribos germânicas pairou sobre a Gália: Átila, que tinha se tornado rei dos Hunos em 435 D.C, resolveu atacar o Império do Ocidente…O irresistível avanço da horda huna rapidamente tomou Metz, Reims, Mogúncia, Estrasburgo, Colônia, Worms e Trier, que foram impiedosamente saqueadas e incendiadas.

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Obrigado a sair do seu retiro dourado, Avito, valendo-se de seus contatos com Teodorico, colaborou na vital aliança entre os Romanos e os Visigodos, que incluiu também os Alanos, Francos e outros bárbaros, em menor escala. Na Batalha de Châlons, ainda em 451 D.C. as tropas combinadas dos aliados, lideradas por Aécio e Teodorico conseguiram derrotar os Hunos, que foram obrigados a se retirar. Teodorico, porém, foi morto durante a batalha e os Godos voltaram para a Aquitânia. Assim, Teodorico foi inicialmente sucedido por seu filho Torismundo, que era hostil aos romanos e pretendia quebrar o Tratado de Paz anteriormente assinado pelo pai.

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Átila, recuperado da derrota em Châlons, no ano seguinte invadiu a Itália, que foi devastada. Valentiniano III e a Corte se protegeram atrás dos pântanos de Ravenna. Aécio, sem tropas romanas suficientes para oferecer batalha campal, adotou uma estratégia de atrasar o avanço huno, evitando confrontos diretos. As fontes não dizem se as táticas de Aécio tiveram algum resultado, mas o fato é que, após receber uma delegação romana integrada pelo Papa Leão I, Átila resolveu dar meia-volta e abandonar a Itália. Muitos historiadores acreditam que essa decisão de Atila deveu-se a existência de uma grave epidemia de peste na Itália.

O prestígio de Aécio, porém, ficou abalado com a devastação causada pelos Hunos na Itália. Os senadores italianos ressentiam-se do fato de que a Gália tinha sido poupada, em função do sucesso da estratégia de Aécio no ano anterior.

Seguiram-se intrigas palacianas que incentivaram o Imperador Valentiniano III a tomar a iniciativa de, pessoalmente, matar o velho general. Porém, pouco depois da morte de Aécio,  seus antigos guarda-costas resolveram vingar a morte do chefe e, por sua vez, em 455 D.C, dois dele assassinaram Valentiniano III, segundo consta, instigados pelo ambicioso senador Petrônio Máximo.

Com a morte de Aécio, boa parte das forças recrutadas por ele, basicamente mercenários bárbaros, dispersaram-se. Os inimigos de Roma, que tinham aprendido a respeitar Aécio, tais como os Visigodos, Francos e Alamano,  sentiram-se estimulados a atacar o que restava do Império.

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Assim, foi provavelmente a falta de tropas para a defesa da Gália, e o renovado medo da ameaça bárbara, que fez o imperador Petrônio Máximo, o ambicioso sucessor de Valentiniano III, chamar Avito de volta à ativa, nomeando-lhe “Magister Militum Praesentalis” e enviá-lo em uma embaixada à Teodorico II, que  havia se tornado o rei visigodo após o assassinar o irmão Torismundo, tendo em vista a proximidade que Avito tinha com o novo rei.

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(Solidus de Petrônio Máximo)

Quando Avito estava na Corte de Teodorico II, em Toulouse, chegou a notícia de que Petrônio Máximo havia sido linchado, em 31 de maio de 455 D.C., por uma turba revoltada com sua tentativa de fugir de Roma, decorrente da invasão da Itália pelos Vândalos do rei Geiserico. O pretexto para a invasão era o fato de Eudocia, filha de Valentiniano III, que, desde a infância tinha sido prometida ao herdeiro do trono vândalo,  Hunerico,  tinha se casado com o filho de Petrônio.

O Saque de Roma pelos Vândalos durou de 02 a 16 de junho de 455 D.C. Eles levaram para Cartago tudo o que puderam, incluindo as telhas de bronze dourado do Templo de Júpiter Capitolino, e até mesmo o candelabro de ouro do Templo de Jerusalém, que, por sua vez, tinha sido levado para Roma pelo imperador Tito, quase 400 anos antes. Junto com os tesouros, os Vândalos levaram para Cartago a imperatriz Licínia Eudóxia, que tinha sido a viúva de Valentiniano III e, agora, era a de Petrônio Máximo e, obviamente, também a filha dela, Eudocia.

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Ao tomar conhecimento da morte de Petrônio Máximo, Teodorico II tomou a iniciativa de aclamar Avito como novo Imperador Romano, pois certamente, era do interesse dos Visigodos ter no trono um romano que sempre lhes parecera confiável e simpático.

Desse modo, foi graças ao apoio dos Visigodos que Avito foi aclamado Imperador Romano do Ocidente, em Ugernium (atual Beaucaire), localidade nas proximidades de Arelate (atual Arles), por uma assembleia de senadores galo-romanos e também pelos soldados presentes (provavelmente remanescentes das tropas de “limitanei” ou guarda fronteiriça da Gália), em 9 de julho de 455 D.C, valendo notar que uma fonte relata a presença de Teodorico II no evento. Também é interessante observar que,  segundo um relato, na cerimônia, Avito, além das insígnias imperiais e de uma coroa, ostentava um “torque“, que era uma espécie de colar de ouro, em formato trançado, que costumava ser usado pelos antigos gauleses e pelas tribos celtas em geral, o que, na opinião de muitos, denota um componente nativista, senão patriótico, na coroação de Avito como sendo um imperador nascido na Gália.

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(vista de Beaucaire, antiga Ugernum, onde Avito foi aclamado imperador)

Antes de chegar à Roma, em 21 de setembro de 455 D.C., ocasião em que estava acompanhado do genro Sidônio Apolinário, Avito foi oficialmente reconhecido pelo Senado Romano como Imperador,  o que, segundo uma fonte, ocorreu em 5 de agosto daquele ano. O fato de nenhum pretendente italiano ao trono ter surgido indica que, provavelmente, o Senado Romano entendia que ninguém possuía no momento melhores credenciais do que Avito para assumir a Púrpura Imperial.

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(solidus de Avito, foto de Classical Numismatic Group(

Certamente Avito, nos dois meses que decorreram entre a sua aclamação na Gália, e a sua entrada em Roma, deve ter recebido um reforço de tropas visigodas, que vieram se juntar a outras tropas que ele conseguiu reunir na Gália. No caminho, parece que Avito, aproveitando o fato de que ninguém controlava a região do Danúbio vizinha à Itália, devido ao recente falecimento de Átila e a derrota dos Hunos para seus antigos vassalos germânicos, conseguiu temporariamente restaurar algum grau de autoridade romana na região.

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Em Ravenna, Avito nomeou o Visigodo Remistus como “Magister Militum“, cargo anteriormente ocupado por Aécio e que desde a morte dele estava vago. Remistus foi o primeiro bárbaro sem qualquer gota de sangue romano a ser nomeado para o posto.

A primeira medida de Avito em Roma foi tentar obter o reconhecimento de seu imperial colega, o Imperador Romano do Oriente, Marciano. As fontes são dúbias sobre se Avito obteve ou não a chancela de Marciano. Um indício de que não houve um reconhecimento é o fato de que, em 456 D.C, Avito exerceu o consulado sozinho (Normalmente, o Imperador de cada metade do Império nomeava um Cônsul, do total de dois que, desde o inicio da República Romana, em 509 A.C, serviam a cada ano), sendo que, para o ano em questão, Marciano nomeou os dois Cônsules, Johannes e Varanes, demonstrando não reconhecer o consulado “sine collega” (sem colega) de Avito.

Era vital para a viabilidade do reinado de Avito, ainda, obter a simpatia do Senado Romano e das tropas italianas; porém, neste particular, muitos consideram que Avito cometeu um grave erro: Ele preferiu nomear para os cargos mais altos apenas os seus conterrâneos galo-romanos.  E ignorar o bairrismo da aristocracia italiana que, desde ainda os tempos de Júlio César, sempre demonstrou acreditar ter direito manifesto a ocupara os cargos mais importantes e sempre se julgou credora das maiores honrarias. Portanto, essa foi, no mínimo, uma decisão imprudente…

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(Os senadores nunca deixaram de ter influência,  e, no final do Império, quando o poder imperial se enfraqueceu, a classe senatorial até recuperou parte do protagonismo nos destinos do Império)

Com efeito, os senadores romanos da Itália podiam não ter, diretamente, nenhum poder militar, mas eram, como já demonstrou A.H.M. Jones, incomensuravelmente ricos, muito mais abastados do que os galo-romanos, ou que os seus colegas orientais, em Constantinopla, onde, aliás, eles continuavam a ter muitos contatos, quando não parentes. O Senado Romano tinha meios para aliciar generais ambiciosos e se aproveitar de quaisquer insatisfações com a política do Imperador e, assim, urdir conspirações para derrubar os monarcas que fossem seus desafetos.

Durante o reinado de Avito, o exército da Itália era controlado por dois generais: Majoriano, um romano de família originária da Ilíria, o tradicional esteio militar de Roma durante o Baixo Império Romano; e Ricimer, que era um guerreiro germânico de estirpe nobre, pois era filho de Rechila, rei dos Suevos, e neto de Wallia, que tinha sido rei dos Visigodos. Após a morte de Wallia, Ricimer teve que deixar a corte, e ele foi se asilar em Roma, onde passou a servir o exército e foi, ainda que parcialmente, “romanizado”.

Enquanto isso, na Lusitânia, os Suevos estavam fazendo incursões nas terras ainda controladas por Roma. Para lidar com essa agressão, Avitus acionou seu amigo Teodorico II, que, agindo nominalmente em nome do Imperador Romano do Ocidente, combateu os Suevos e  conseguiu matar o rei deles, Rechila, em Portocale (atual cidade do Porto).

Militarmente, porém, o problema mais grave era a ameaça dos Vândalos, que, desrespeitando o Tratado de 442 D.C, avançavam sobre o diminuído território romano que restava na África. Avito enviou uma embaixada ao rei Geiserico, advertindo para que este se mantivesse fiel ao Tratado, sob pena de sofrer retaliação militar, uma ameaça que, dificilmente , o imperador romano poderia fazer valer…

Os Vândalos, obviamente, não se intimidaram e, afrontando a advertência romana, ainda submeteram a Sicília a uma onda de ataques; porém, o general Ricimer obteve uma vitória naval próximo à Ilha da Córsega, estancando momentaneamente a agressão.

A QUEDA DE AVITO

A retaliação vândala ao ultimato de Avito provavelmente veio também na forma da interrupção do suprimento de grãos da África, já que, antes mesmo da vitória na Córsega, a população começou a protestar contra a ameaça premente da fome (note-se que, ainda naquele tempo, talvez mais de 100 mil habitantes de Roma dependiam, para comer, do suprimento de trigo gratuito provido pela instituição da “anonna).

Premido pelos protestos, Avito acabou tendo que dispensar seus soldados godos, além de seus aliados galo-romanos, para que estes não sobrecarregassem os já escassos estoques de alimentos. Mais importante, a situação acabou por exaurir completamente as já bem desfalcadas finanças do Estado.

Sem ter dinheiro para pagar as tropas godas pelos relevantes serviços prestados à sua causa, Avito resolveu mandar retirar muitas das várias estátuas de bronze que adornavam os logradouros públicos, as quais eram um dos orgulhos dos romanos, e as vendeu para negociantes de metais, visando obter os recursos necessários para fazer face às despesas mais prementes.

A população se revoltou com a situação e Majoriano e Ricimer, encorajados pela retirada dos Godos de Avito, apoiaram os protestos. Avito, percebendo o perigo que sua posição e a sua própria vida corriam, fugiu de Roma em direção à Arles, capital de sua fiel Gàlia, onde certamente julgava poder encontrar suporte e reagrupar suas forças. Nesse meio tempo, antes ou depois de Avito ter alcançado Arles, se é que ele conseguiu mesmo sair da Itália, Remistus, o seu Magister Militum, foi derrotado e morto em Ravenna, em 17 de setembro de 456 D.C.

Nesse ponto, as fontes variam: uma chega a relatar que Avito de fato conseguiu chegar à Arles, de onde ele até conseguiu enviar um pedido de ajuda a Teodorico II, e depois ele teria voltado para a Itália, onde ele foi cercado e derrotado nas cercanias de Piacenza. Porém, ao invés de ser executado, como era costumeiro,  Avito teria sido obrigado a se ordenar Bispo da cidade, em 17 de outubro de 456 D.C. (numa prática que, posteriormente, se tornaria comum nos conflitos subsequentes até durante a Idade Média). Segundo Gregório de Tours, após ser Avito ordenado Bispo de Piacenza, ao saber que o Senado tencionava mandar executá-lo, ele fez uma viagem até o túmulo de São Juliano, na cidade de Brioude, em sua nativa Auvergne, levando oferendas, mas acabou morrendo no caminho, terminando por ser enterrado aos pés do relicário do referido mártir cristão, na Basílica de Saint Julien, na referida cidade.

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Tudo indica que Avito tenha de fato sido forçado a abdicar em Piacenza por Majoriano e Ricimer, tendo ele sido poupado como um gesto de boa vontade para com a aristocracia galo-romana. Acredito que a informação de que Avito foi nomeado bispo da cidade é verdadeira, pois esse fato seria facilmente verificável  nos registros da Igreja, pelos contemporâneos das fontes que assim relataram.

Gregório de Tours é bem específico sobre o fato de Avito ter morrido no caminho para Brioude, onde, certamente, ele deveria ter muitos partidários, como em toda a Auvergne, e Gregório, inclusive, relata onde o finado imperador foi enterrado. Porém, ao invés de uma peregrinação ao túmulo de Saint Julien, como o famoso historiador da Gália do século VI escreveu, eu acredito que o mais provável é que o objetivo da viagem de Avito tenha sido se refugiar em sua terra natal e, provavelmente, buscar apoio para recuperar o trono, e a citada peregrinação seria apenas um pretexto.

Inclusive, Sidônio Apolinário relata a existência de uma conspiração na Gália, chamada de Marcellana, da qual pouco se sabe, mas que pode ter tido o intuito de restaurar Avito no trono. Porém, na viagem para a Auvergne, Avito deve ter sido alcançado pelas tropas de Majoriano, o sucessor de Avito no posto de Imperador, e de Ricimer, o novo “Magister Militum” e eminência parda do Império pelas próximas duas décadas. Em 457 D.C, em data desconhecida, Avito deve ter sido executado e sepultado no local mencionado por Gregório de Tours.

A Igreja original de Saint Julien em Brioude onde Avito teria sido enterrado não existe mais. O rei visigodo Eurico construiu um basílica no local, por volta de 480 D.C. Esta, por sua vez, foi substituída por uma bela catedral em estilo românico, entre 1060 e 1180 e que ainda existe, onde estão as relíquias de São Juliano. Não há notícia acerca do túmulo de Avito.

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CONCLUSÃO

Com o fim do reinado de Avito falhou a última estratégia coerente que o Império Romano do Ocidente tentou implementar: A aliança com os Visigodos poderia ter preservado, ainda que não integralmente, uma Gália romana, que, junto com a Itália, poderia ter constituído o núcleo de um Império Romano viável no Ocidente. É fato que faltou sensibilidade a Avito para seduzira aristocracia senatorial italiana para esse projeto e, para piorar as coisas, o favorecimento dos seus conterrâneos gauleses para a nomeação dos cargos teve o efeito contrário..

Mas, no final, o egoísmo e cegueira dos senadores italianos foram mais relevantes para a catástrofe. Eles sabotaram quase todos os bons comandantes do Exército do Ocidente, como Estílico e Aécio, não cooperaram com Constantinopla quando mais deviam tê-lo feito e, ao contrário de seus colegas galo-romanos, jamais se empenharam diretamente na defesa do Império.

No crepúsculo final do Império, foram os galo-romanos os últimos romanos a se renderem, protagonizando uma resistência heroica aos bárbaros. O filho de Avito, Eccidius Avitus combateu os novamente hostis Visigodos até o fim, chegando a, inclusive, levantar um cerco à Clermont comandando apenas 18 cavaleiros, por volta de 474 D.C.

Segundo Thomas Hodgkin, Avito

“foi a pedra fundamental de uma grande e importante combinação política, uma combinação que, tivesse ela durado, certamente teria mudado a face da Europa e poderia ter antecipado o Império de Carlos Magno, favorecendo uma nação mais nobre do que a dos Francos, e sem a interposição de três séculos de barbarismo”.

Em nosso próximo artigo, falaremos dos possíveis laços sanguíneos entre a atual nobreza europeia e os senadores galo-romanos, incluindo a família de Avito.

 

JULHO – O MÊS DE JÚLIO

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(Mosaico de uma casa romana de Tysdrum (El Djem), na Tunísia, foto de Ad Meskens )

No antigo calendário romano, de dez meses, que começava no mês de março, Quintilis era o nome do quinto mês, que vinha depois de Junius (junho), assim chamado para homenagear a deusa Juno, e antes do mês Sextilis.

Devido a imprecisão desse calendário primitivo, os romanos passaram a adotar um calendário de doze meses, introduzindo-se os meses de janeiro, quer passou a ser o primeiro mês, e de fevereiro. Assim, Quintilis passou a ser o sétimo mês do ano, mas, mesmo assim, ele manteve esse nome, com o qual o povo já estava acostumado.

Apesar disso, persistindo ainda consideráveis discrepâncias entre aquele calendário romano, de apenas 355 dias e o ano solar (período de translação da Terra em torno do Sol, ordinariamente de 365 dias), o ditador Caio Júlio César, em 46 A.C., assistido por uma comissão de astrônomos notáveis, determinou a adoção do calendário de um novo calendário, inspirado pelo mais preciso Egípcio, de 365 dias, ajustando o número de dias dos diversos meses, que passou a ser chamado de “Calendário Juliano“.

Após o assassinato de Júlio César, nos Idos de março de 44 A.C., entre as homenagens póstumas decretadas em sua memória, o mês Quintilis foi rebatizado de “Julius“, que, na língua portuguesa, transformou-se em “Julho“. O motivo da escolha de Quintilis para homenagear César é o fato dele ter nascido no dia 12 de julho de 100 A.C.

No mês de Julho, a data mais importante compreendia os oito dias dos Ludi Apollinares, jogos em honra do deus Apolo, a divindade associada com o Sol, entre 06 e 13 de julho, homenagem muito apropriada, afinal, em julho começa o verão no Hemisfério Norte!