OS GORDIANOS, PUPIENO, BALBINO E O ANO DOS SEIS IMPERADORES

Em 22 de março de 238 D.C., na pequena, mas próspera, cidade de Thysdrus (atual El-Djem, na Tunísia), na província romana da África Proconsularis, uma multidão armada com machados e porretes invadiu a residência do Procônsul da África, o velho senador Marcus Antonius Gordianus Sempronianus (Gordiano I).

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(Anfiteatro romano de El-Djem, na Tunísia, o maior depois do Coliseu, acomodava 35 mil espectadores)

A turba enfurecida tinha acabado de assassinar, poucas horas antes, um dos Procuradores do Imperador, exasperada pela cobrança de impostos e confiscos de propriedades, que tinham sido ordenados para atender a necessidade do imperador Maximino Trácio (foto de seu busto abaixo) em financiar a guerra contra as tribos germânicas no Danúbio (OBS: o reinado de Maximino Trácio será objeto de um artigo próprio).

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Se o velho Procônsul Gordiano, em seus avançados 79 anos de idade, certamente ficou perplexo com a súbita invasão de sua casa, provavelmente mais apavorado ainda ele ficou quando ouviu os chefes da multidão aclamarem-no imperador, dando-lhe, aos gritos, o título de “Africanus“.

Gordiano tentou desesperadamente recusar o título e até chegou a se prostrar no chão implorando que os revoltosos fossem embora, dizendo-lhes que ele era apenas um velho cansado, que nunca lhes fizera mal, mas os chefes, com armas em riste, disseram que seria melhor para ele arriscar uma futura e incerta punição de Maximino do que a certeza da morte que lhe esperava, caso ele não aceitasse a púrpura imperial naquele exato momento.

Sem alternivas, Gordiano I cedeu, e,  dias depois, acompanhou os revoltosos até Cartago. Não obstante, em algum momento entre a sua aclamação e a entrada em Cartago, Gordiano, lembrando que ele era um homem idoso, entendeu que era conveniente que o seu filho, que também se chamava Gordiano (Gordiano II), igualmente fosse aclamado Augusto e, portanto, co-imperador.

Ao chegar a Cartago, uma grande cidade que, naquela época, no Ocidente, só perdia em tamanho para Roma, e, ainda, disputava com Alexandria o título de cidade mais importante da África, os Gordianos foram entusiasticamente recebidos pela população local e pelos líderes da cidade.

Imediatamente, emissários levando cartas de Gordiano foram despachados para Roma, tendo eles sido bem recebidos pelo presidente do Senado (Princeps Senatus), o senador Públio Licínio Valeriano (que, anos mais tarde, tornaria-se também imperador).

De fato, um grande número de senadores, e também parte do contingente da Guarda Pretoriana, que nunca tinham se conformado com a ascensão de Maximino, cognominado, o Trácio, que era considerado nada mais que um bárbaro que havia assassinado o seu antecessor, Severo Alexandre,  apoiaram a revolta e, por conseguinte, assim que a notícia da rebelião na África chegou em Roma, Vitalianus, o Prefeito Pretoriano nomeado por Maximino, foi assassinado.

Em seguida, o populacho de Roma, acreditando nos boatos de que Maximino teria sido assassinado, perseguiu pelas ruas a maior parte dos funcionários e magistrados que ele havia nomeado e destruiu as estátuas do odiado imperador.

Assim, em 2 de abril de 238 D.C., o Senado confirmou a aclamação de Gordiano I e de Gordiano II como imperadores romanos. Cartas foram enviadas aos governadores das demais províncias anunciando a coroação dos novos imperadores. E, de fato, muitos aderiram ao novo governo; contudo, alguns governadores, com medo da conhecida ferocidade de Maximino, preferiram executar os mensageiros.

No ato de sua elevação ao trono imperial, Gordiano I adotou o nome de Caesar Marcus Antonius Gordianus Sempronianus Romanus Africanus Augustus .

Nascido no ano de 159 D.C., com o nome de Marcus Antonius Gordianus Sempronianus, Gordiano I era supostamente filho de um senador romano, cujo nome, segundo a História Augusta, seria Maecius Marullus (um nome que os historiadores modernos acreditam ser fictício). e de Ulpia Gordiana.

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A família da mãe de Gordiano I provavelmente era radicada na Ásia Menor, o que explicaria a origem do nome “Gordianus“. Por sua vez, o prenome feminino “Ulpia” pode indicar algum parentesco com a família do imperador Trajano, ou, mais provavelmente, que a família recebeu a cidadania romana no reinado deste imperador.

Já o prenome “Marco Antônio”, que parece ter sido um nome de família, pode indicar que a família do pai de Gordiano recebeu a cidadania romana durante o triunvirato de Marco Antônio, que governou o Oriente na 2ª metade do século I A.C. Inscrições funerárias encontradas em Ancyra (atual Ancara, capital da Turquia) demonstram que uma certa  Sempronia Romana, filha de um certo Sempronius Aquila , Secretário da Correspondência Imperial em Grego do Imperador (Secretarius ab epistulis Graecis), que podem ter sido a avó e o bisavô maternas de Gordiano I, ergueu o monumento em honra de seu marido, um Pretor, cujo nome, contudo, não aparece.

Inicialmente, durante a sua juventude e idade adulta, os interesses e atividades de Gordiano parecem ter se limitado à  Literatura e Retórica. Ele, segundo a História Augusta, teria escrito poemas e até as biografias dos imperadores Antonino Pio e Marco Aurélio, embora nenhuma obra dele tenha sido citada por algum historiador antigo.

As atividades literárias de Gordiano podem ser a explicação para a dedicatória feita a “Antonius Gordianus“, na obra “Vidas dos Sofistas”, escrita por Filóstrato, poucos anos antes de Gordiano ser nomeado imperador. Na dedicatória, Filóstrato menciona que esse Antonius Gordianus era descendente de Herodes Ático, uma aristocrata grego que também foi filósofo sofista e chegou a ser Cônsul Ordinário para o ano de 143 D.C., sendo o primeiro grego a atingir este importante posto.

Herodes Ático ( foto do seu busto abaixo) era amigo do imperador Antonino Pio e foi professor do imperador Marco Aurélio.  A conexão com Gordiano é reforçada pelo fato da já mencionada Sempronia Romana ser filha de Titus Flavius Sempronius Aquila, que foi Secretarius ab epistulis Graecis do Imperador. Mas, como a idade de Gordiano II, que tinha o mesmo nome do pai, encaixa-se melhor nessa cronologia, é bem possível que a homenagem tenha sido feita a este, e não a Gordiano I. De qualquer forma, a genealogia proposta por Cristian Settipani, com base na Prosopografia se mantém plausível.

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Quando resolveu entrar na carreira pública, Gordiano se destacou como Edil, Questor e Pretor pela magnificência dos espetáculos que financiou e apresentou ao Povo. Disto conclui-se que Gordiano deveria ser muito rico, o que é corroborado pelo fato de ele ser proprietário da “Casa dos Bicos”, uma mansão que pertenceu a Pompeu, o Grande. Seguindo o tradicional Cursus Honorum romano (carreira das magistraturas), o exercicio desses cargos possibilitou a entrada de Gordiano no Senado Romano.

Inscrições sobreviventes indicam que Gordiano serviu como  Governador da Britânia Inferior em 216 D.C. e, posteriormente, como Governador da Síria Coele,  ou Comandante da Legião IV Scythica, estacionada nesta última Província. Ele ainda foi Governador da Província da Acaia. E em algum momento, durante o reinado do imperador Elagábalo, Gordiano foi nomeado Cônsul Suffectus.

Em 237 D.C., o cargo de governador da  importante província senatorial da África Proconsularis, uma das que cabia ao Senado Romano, coube a Gordiano mediante sorteio. E assim, voltamos para os dramáticos eventos que se seguiram após a aclamação dele como Imperador, em Cartago, que narramos na abertura deste artigo.

As notícias da revolta na África e da decisão do Senado chegaram aos ouvidos de Maximino, que se encontrava em Sirmium, na Ilíria. No início, o imperador até manifestou desprezo pelo fato,  considerando tratar-se de uma insignificante revolta de provinciais da África e cidadãos de Cartago, os quais não eram muito considerados, naqueles dias, pelo valor militar,  e que, além do mais, tinham aclamado um senador quase octogenário, e o filho deste, cujo estilo de vida não era muito respeitável. Porém, quando soube da chancela do Senado à aclamação dos Gordianos, o imperador ficou realmente furioso e preparou-se para marchar contra Roma.

Enquanto isso, os Gordianos resolveram livrar-se de um velho desafeto, Capelianus, que era o governador da Província da Numídia, vizinha à África Proconsularis, e que tinha sido nomeado por Maximino, substituindo-o por um novo governador.

Porém Capelianus, quando soube do propósito dos Gordianos, reuniu uma tropa de auxiliares Mouros e  declarou fidelidade ao imperador Maximino, partindo em direção a Cartago, disposto a depor os usurpadores.

A população de Cartago, ao ver a chegada das forças de Capelianus, resolveu armar-se e resistir aos atacantes, liderada por Gordiano II. Porém, sem treinamento militar, os civis foram facilmente derrotados, na chamada Batalha de Cartago. O massacre foi tão grande que o corpo de Gordiano II, soterrado por uma montanha de cadáveres, jamais foi encontrado.

Quando a notícia da derrota do filho chegou ao seu conhecimento, Gordiano I recolheu-se ao seu quarto e matou-se, enforcando=se com a faixa que lhe cingia a túnica, em 12 de abril de 238 D.C. O seu reinado durara apenas 21 dias.

Com a notícia da morte dos Gordianos, não restava nenhuma opção aos senadores romanos senão continuar a revolta contra Maximino Trácio, pois eles tinham certeza que assim que o implacável imperador chegasse a Roma mandaria executar a todos.

Assim, o Senado escolheu dois novos imperadores no lugar dos Gordianos, selecionando-os das suas próprias fileiras., aclamando,  em 22 de abril de 238 D.C, os senadores Marcus Clodius Pupienus (Pupieno) e Decimus Caelius Calvinus Balbinus Pius (Balbino). Ambos faziam parte de um comitê de 20 senadores criado pelo Senado para supervisionar os preparativos militares para a defesa contra Maximino ainda durante o reinado dos Gordianos.

O Senado também conferiu ao neto de Gordiano I, Marcus Antonius Gordianus Pius, um menino de 13 anos de idade, o título de “César”, tornando-o herdeiro do trono.

Pupieno, segundo a História Augusta, era um filho de um ferreiro, e ele ingressou na carreira militar, onde obteve sucesso, chegando a primeiro centurião (Primus Pilus) e, de modo incomum para a época, e foi promovido depois a general e, depois, nomeado Pretor. Depois, Pupieno exerceu cargos de Procônsul em várias províncias, culminando com a sua nomeação para Cônsul Suffectus em 207 D.C. e  Cônsul Ordinário, em 234 D.C. O mais provável, contudo, para alguns historiadores, é que Pupieno fosse da pequena nobreza equestre e tenha escolhido a carreira militar. (muitos equestres serviam como centuriões no exército romano).

De qualquer modo, o fato de Pupieno (foto de seu busto abaixo) ter sido escolhido imperador por seus pares senadores, na iminência da chegada das tropas de Maximino, com certeza deve-se ao fato dele ter experiência militar, não obstante ele já ter entre 68 e 73 anos de idade, na data de sua elevação ao trono.

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Balbino (foto de seu busto abaixo) era de uma família da nobreza senatorial e ele ocupou vários postos de governador de província, culminando com sua nomeação para dois consulados, um deles em companhia do imperador Caracala.

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Enquanto Pupieno se encarregou de partir para Ravena no norte da Itália para preparar a defesa e recrutar tropas contra Maximino, Balbino ficou em Roma para cuidar da administração civil e da ordem pública na Cidade.

As perspectivas para Pupieno eram as piores possíveis, pois ele teria que enfrentar o experimentado exército de Maximino, que estava em campanha contra os Sármatas, no Danúbio, após derrotar os Alamanos. mas ele fez o melhor que pode reunindo uma tropa de auxiliares germânicos  com os quais ele tinha servido quando fora legado imperial na Germânia.

Porém, quando Maximino chegou ao norte da Itália, necessitando de suprimentos em razão da rapidez com que saíra de Sirmium, a cidade de Aquiléia, na rota para Roma, fechou os portões das suas muralhas,  tomando o partido de Pupieno e Balbino.

As tropas já famintas de Maximino ficaram irritadas durante o inesperado cerco à Aquiléia. Em maio de 238 D.C., soldados da Legião II Parthica invadiram o acampamento de Maximino e o assassinaram,  juntamente com seu filho e seus auxiliares, decapitando-os e enviando as cabeças de todos para Roma.  O reinado de Maximino havia durado pouco mais de três anos.

Parecia, naquele momento, que Pupieno tinha conseguido vencer o seu  maior desafio sem sequer precisar  ter lutado.

Entretanto, em Roma, as coisas degeneraram para Balbino. A plebe se enfureceu com a execução de dois soldados desarmados, e tumultos se espalharam pelas ruas. Parece que alguns senadores insuflaram os protestos, sustentando que o neto de Gordiano I, o César Marcus Antonius Gordianus Pius (Gordiano III) deveria ser o imperador. Para piorar o quadro, em junho de 238 D.C, um grande incêndio irrompeu em Roma.

Como se tudo isso não bastasse, quando Pupieno chegou a Roma, com uma guarda de soldados germânicos, Balbino ficou receoso e as relações entre os dois esfriaram.

Por outro lado, a Guarda Pretoriana, já acostumada em várias oportunidades a fazer e desafazer imperadores, não estava nada satisfeita com o incomum protagonismo do Senado na nomeação de Pupieno e Balbino.

Desse modo, quando os Pretorianos perceberam que Pupieno e Balbino não gozavam da aprovação geral, a sorte de ambos estava decidida.  Assim, no dia 29 de julho de 238 D.C., um grupo de Pretorianos invadiu o Palácio e capturou os dois imperadores. Pupieno e Balbino foram arrastados para o Quartel da Guarda Pretoriana, torturados e executados. Eles tinham reinado por apenas três meses.

Gordiano III, de apenas 13 anos de idade, foi  imediatamente aclamado imperador pelos Pretorianos. Ele nasceu em 20 de janeiro de 225 D.C e era filho de Antonia Gordiana, filha de Gordiano I e de um senador cujo nome é desconhecido, mas que para alguns estudiosos poderia se chamar Junius Balbus.

Entretanto, o controle do governo de fato de Roma, no início, ficou nas mãos do Senado Romano, tendo em vista a menoridade do imperador.

Em 241 D.C, com apenas 16 anos, Gordiano III casou-se com Furia Sabinia Tranquillina, filha de Gaius Furius Sabinius Aquila Timesitheus, um integrante da classe equestre que teve uma carreira de sucesso e exerceu vários cargos militares e civis importantes até ser nomeado Prefeito Pretoriano, tornando-se a eminência parda do Reinado de Gordiano III.

O reinado de Gordiano III também não seria tranquilo. Inicialmente, o governo teve que enfrentar a revolta do governador da África, Marcus Asinius Sabinianus (Sabiniano), que se declarou imperador mas logo foi derrotado pelo governador da província vizinha da Mauretania.

O próximo contratempo foi a invasão do renovado Império Persa Sassânida, sobre a liderança do belicoso Xá Ardashir e seu filho Sapor I, que invadiu o Império Romano e tomou as estratégicas cidades de Hatra, Carras, Singara e Nísibis.

Como muitas vezes se repetiu na História Romana, a partir do século III, quando os romanos deslocavam tropas para a fronteira oriental para combater os Partas ou Persas, os bárbaros germânicos aproveitavam para atacar a fronteira Reno-Danubio, e nesta ocasião, não foi diferente: a tribo dos Carpi aproveitou a oportunidade e fez uma incursão no Baixo Danúbio, mas eles foram derrotados na Trácia por tropas destacadas por Thimesiteus.

O contra-ataque romano aos Sassânidas foi liderado por Thimesiteus e Gordiano III em pessoa e foi bem-sucedido, com a vitória romana na Batalha de Reasena, em 243 D.C e a reconquista das cidades tomadas pelos Persas. Em comemoração, foi celebrado um Triunfo em Roma.

Porém, enquanto o imperador preparava a invasão do Império Persa, seu sogro Thimesiteus morreu em circunstâncias ignoradas. Agora privado do auxílio do sogro, um militar experiente e que era o homem-forte do seu governo, Gordiano III foi obrigado a prosseguir na campanha.

Assim, Thimesiteus foi substituído pelo irmão de Gaius Julius Priscus, o outro Prefeito Pretoriano, de nome Marcus Julius Philipus, mais conhecido como Filipe, o Árabe, devido à sua origem.

Em seguida, o exército romano invadiu a Pérsia, e, repetindo o desenrolar de campanhas militares anteriores e futuras contra o mesmo inimigo, rumou em direção à capital Ctesifonte.

Porém, os romanos foram derrotados na Batalha de Misiche, próximo à Fallujah, no atual Iraque, conforme mencionado nas inscrições persas existentes nos monumentos persas em Naqsh-e Rustam.

Gordiano III morreu em 11 de fevereiro de 244 D.C, por volta do do mês em que ocorreu a Batalha de Misiche, sem que exista, contudo, uma fonte confiável que possa dizer que se o imperador pereceu em combate, como alegam as fontes persas, ou se ele foi assasinado por seus oficiais, antes, durante ou logo após a referida Batalha.

O imperador Gordiano III (foto de seu busto abaixo) foi sucedido por Filipe, o Árabe, que enterrou o corpo do antecessor na cidade de Zaitha e providenciou a sua deificação.

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Conclusão

Por tudo isso, o ano de 238 D.C. ficaria conhecido como “O Ano dos Seis Imperadores” e ele traça com fidelidade um grande retrato dos problemas que o Império Romano estava começando a enfrentar, em meio à chamada “Crise do Século III“, marcada pela instabilidade interna e crescente pressão militar externa nas fronteiras.

O período dos reinados dos Gordianos e de Pupieno e Balbino também ilustra o início da transição do período do Principado inaugurado por Augusto, que era caracterizado ainda por uma predominância da elite senatorial tradicional romana entre os aspirantes ao trono, bem como no exercício dos principais comandos militares e governos de províncias (elite esta que, após a Crise do Século III teria suas fileiras muito diminuídas e seria praticamente afastada do Exército, que passaria a ser também o principal ator político e praticamente o único caminho de acesso para os cargos públicos mais importantes) em direção ao Dominado, que seria implantado com as reformas introduzidas por Diocleciano nas últimas décadas do século III.

FIM

SEPTÍMIO SEVERO – DÉSPOTA APLICADO

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Em 4 de fevereiro de 211 D.C., morreu, aos 65 anos de idade, em Eburacum (atual York, na Inglaterra), o imperador Lucius Septimius Severus Eusebes Pertinax Augustus, mais conhecido como Septímio Severo (e, também, Sétimo ou Setímio Severo).

Quando Severo morreu, na longínqua província da Britânia, ele estava no curso de uma operação contra os bárbaros Caledônios, que acossavam a província romana a partir do outro lado da Muralha de Adriano. Esta era mais uma campanha militar de um imperador que, em seus 18 anos de reinado, passara quase todo o tempo incansavelmente em guerra, contra vários inimigos externos, e também alguns internos.

O futuro imperados Lucius Septimius Severus nasceu em 11 de abril do ano de 145 D.C, na cidade de Leptis Magna, na Província Romana da Tripolitania (atual Líbia), filho de Publius Septimius Geta e Fulvia Pia. O pai dele era integrante de uma família de ancestralidade púnica, ou seja, ligada aos fundadores de Cartago, oriundos da Fenícia, mas que, provavelmente, tinha também algum sangue berbere, a população nativa da região.

O avô de Severo, também chamado Lucius Septimius, era da classe equestre, o segundo nível da nobreza romana. Já a esposa deste último, e avó paterna de Severo, Victoria, era filha de Marcus Vitorius Marcellus, que foi senador e consul suffectus, em 105 D.C, e de Hosidia, filha de Gnaeus Hosidius Geta, que também foi general, senador e consul suffectus, no ano de 49 D.C.

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Vista de Leptis Magna, foto de SashaCoachman

Por sua vez, a mãe de Severo, Fulvia Pia, era de uma antiga família plebeia que, ainda em meados do período republicano, ingressou na nobreza, tendo seus antepassados exercido, inclusive, vários consulados. Alguns Fúlvios, provavelmente, se mudaram para Leptis Magna quando a cidade foi reorganizada e recebeu políticas de incentivo por ordem de Júlio César, quando este tornou-se Ditador.

Leptis Magna, originalmente fundada pelos Púnicos, ou Cartagineses, no século VII A.C, era uma cidade rica que governava um território fértil, extensamente cultivado. E, portanto, sendo uma das famílias mais ilustres da cidade, certamente os Severos deveriam ser eles também muito ricos.

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Consequentemente, o jovem Septímio Severo recebeu a melhor educação que a cidade de Leptis Magna poderia fornecer, tendo sido educado em latim e grego. Entretanto, sabemos que ele também falava o idioma púnico local, que talvez fosse até a sua língua de infância, pois as fontes relatam que ele falava latim com forte sotaque púnico. Severo deve também com certeza ter aprendido Oratória, pois sabe-se que, ainda em Leptis, ele fez o seu primeiro discurso público, aos 17 anos.

Depois disso, obviamente almejando horizontes mais amplos na vida do que os que a provinciana Leptis poderia lhe oferecer, Severo, por volta de 162 D.C, partiu para Roma, a Meca de todos os jovens bem-nascidos do Império.

E quando Severo chegou a Roma, ele foi recomendado por um parente ilustre ao imperador Marco Aurélio, que, em virtude disso, mandou arrolá-lo, já que era descendente de cônsules, como membro da ordem senatorial, o cume da nobreza romana.

Com isso, abriram-se para Severo as portas do “cursus honorum” – a carreira das magistraturas – e ele foi nomeado um dos “Vigintivir”, membro de um colégio de 26 magistrados juniores, que cuidavam, entre outras coisas, de casos judiciais menores e também da manutenção de estradas, ruas ou prédios públicos. Posteriormente, Severo foi nomeado advocatus fiscus, uma espécie de procurador público imperial.

Contudo, sendo ele ainda muito jovem para ocupar cargos mais elevados e, sobretudo, em função da chegada a Roma de uma epidemia de peste, Severo resolveu voltar para Leptis Magna.

Enquanto isso, durante o tempo em que esteve de volta em sua terra natal, Severo completou 25 anos, que era a idade requerida para o cargo de Questor, e, pouco depois, por sorte, a epidemia em Roma abrandou, permitindo que ele voltasse para Roma e assumisse, em 169 D.C, este prestigioso cargo.

Então, como Questor, Severo conseguiu, enfim, ingressar legalmente no Senado Romano.

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Edifício da Cúria do Senado no Fórum Romano

Vale ressaltar que muitos cargos haviam ficado vagos em função da virulência da referida Peste, que havia ceifado muitas vidas, o que permitiu que Severo progredisse ainda mais no serviço público. Assim, ele foi nomeado Questor pela segunda vez.

Porém, logo após esses progressos, Severo foi surpreendido pelo repentino falecimento de seu pai e ele foi obrigado a voltar para Leptis para resolver assuntos ligados à sucessão e ao inventário do falecido.

Resolvidas as questões sucessórias, Severo foi cumprir o resto do mandato de Questor na ilha da Sardenha, que estava temporariamente sob administração do Senado Romano.

Em seguida, Severo foi servir com seu parente Gaius Septimius Severus, que tinha sido apontado Proconsul da África, na qualidade de Legatus pro Praetor, ou seja, governador.

Novamente de volta à Roma, em 174 D.C,  Severo foi escolhido, como candidato do próprio Imperador, Tribuno da Plebe.

Sem dúvida, Severo, até então, estava tendo uma carreira notavelmente promissora: Com efeito, apesar dos relatos dos historiadores de que ele era alvo de piadas em Roma por causa do seu forte sotaque púnico, restava claro que Severo estava sendo visto com simpatia pelos poderosos, e até pelo próprio Imperador, fato que não é de surpreender, pois, como relatamos no início, o seu pedigree genealógico era suficiente para competir com outros candidatos aos cargos mais importantes.

Severo era um homem forte, embora de baixa estatura, e de pele bem morena, como os naturais do Norte da África. E um dos traços mais marcantes da sua personalidade era ser muito supersticioso, acreditando em sonhos premonitórios e astrologia, que frequentemente lhe prediziam um futuro brilhante.

Ele também sentia-se muito ligado à sua Leptis Magna natal e por isso, parece natural que, quando Severo resolveu se casar, aos 30 anos de idade, ele tenha escolhido uma esposa natural de Leptis, chamada Paccia Marciana, originária de uma família de origem púnica, como a sua.

O casamento com Marciana durou dez anos e, se eles tiveram filhos (a História Augusta, considerada pouco confiável, relata duas meninas), os mesmos não sobreviveram até a idade adulta. Marciana morreu por volta de 186 D.C.

Ainda segundo a História Augusta, o sempre supersticioso e agora viúvo Severo, querendo casar-se novamente, recorreu à ajuda de astrólogos para encontrar uma nova esposa. Nessa busca, Severo, então, teria ouvido falar de uma mulher síria acerca de quem se falava da existência de uma previsão de que ela se casaria, um dia, com um rei…

Severo foi até a Província da Síria e encontrou a mulher em questão, Júlia Domna, que era, ela mesma, descendente da casa real dos Sempsiceramidas e Soêmios, reis-sacerdotes da cidade síria de Emesa (atual Homs, na Síria) que era habitada por um povo de origem semítica árabe-beduína que falava aramaico.

Além do incentivo da previsão astrológica, certamente Severo foi incentivado a casar-se com Júlia pelo fato de ser ela muito bonita. E, para completar, Emesa, e os seus governantes sempsiceramidas, eram riquíssimos…

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Cabeça de estátua de bronze de Septímio Severo

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Cabeça de Júlia Domna

Com a aprovação do pai de Júlia Domna, Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus El-Gabal (Elagabalus, ou Heliogábalo, em latim), em Emesa, Severo e Júlia casaram-se em 187 D.C, logo seguindo-se o nascimento dos filhos Lucius Septimius Bassianus (que ficaria conhecido como o futuro imperador Caracala), ocorrido em 188 D.C, quando Severo governava a Gália, e Publius Septimius Geta, em 189 D.C., nascido quando Severo era governador da Sicília.

Vale notar que, desde 180 D.C., o imperador era Cômodo, que sucedera o pai, Marco Aurélio, mas, pelo visto, o nome de Severo continuou a gozar de prestígio junto ao trono.

De fato, o casamento parece ter dado uma nova turbinada na carreira de Severo e, em 190 D.C, ele foi nomeado Cônsul, a mais alta magistratura romana, sob recomendação do imperador Cômodo. E, no ano seguinte, Cômodo nomeou Severo governador da importante província da Panônia, na fronteira do rio Danúbio, o que implicava no comando de várias experimentadas legiões do Exército.

Foi nessa privilegiada posição que Severo encontrava-se quando o imperador Cômodo, após um reinado de anos de tirania e de vários excessos, foi assassinado em um complô palaciano, em 31 de dezembro de 192 D.C.

O ano de 193 D.C começou com um novo imperador, Pertinax (Pertinace). Porém, antes que o ano terminasse, os romanos ainda veriam mais outros quatro ocuparem o trono, motivo pelo qual aquele ano passaria à História como “O Ano dos Cinco Imperadores”…

Com efeito, o  ambicioso Pertinace, Prefeito Urbano de Roma, ao saber da morte de Cômodo, na qual talvez ele até estivesse implicado, correu para o Quartel da Guarda Pretoriana, prometendo um grande donativo aos soldados, caso o aclamassem imperador. Eles assim o fizeram e o Senado, exultante pelo fim da tirania de Cômodo, imediatamente reconheceu o pretendente como Imperador. Porém, depois de quatro meses de um reinado promissor, um outro grupo dos insaciáveis pretorianos, sequiosos de dinheiro, assassinou Pertinace , que teve a sua cabeça fincada e exibida em um poste.

Em um dos episódios mais vergonhosos da História de Roma, os gananciosos Pretorianos abordaram na rua o rico senador Dídio Juliano e insistiram para que ele aceitasse ser aclamado imperador, obviamente em troca do pagamento de uma grande soma de dinheiro. Ato contínuo, os soldados levaram Dídio Juliano para o Quartel da Guarda Pretoriana, onde, para a surpresa do pretendente, lá já estava outro candidato à púrpura imperial, Flávio Sulpiciano. Na presença dos dois, os Pretorianos promoveram um infame leilão do trono, que, após vários lances, foi ganho por Juliano, que ofereceu a cada soldado a quantia de 25 mil sestércios.

Aproveitando-se da debilidade do novo imperador, uma série de governadores de província, rebelaram-se, incluindo o próprio Severo, que foi aclamado imperador pelas próprias tropas, em 14 de abril de 193 D.C.

Antecipando-se aos seus rivais na sucessão, Severo, prometendo vingar a ignominiosa morte de Pertinax, marchou contra Roma, não sem antes assegurar-se de que um potencial rival, Clódio Albino (também ele um romano nascido na África, em Hadrumeto), o governador da Britânia, não reivindicasse o trono. Então, para obter a lealdade de Albino, o astuto Severo ofereceu-lhe o título de “César” (que equivalia, grosso modo, ao de príncipe-herdeiro), que foi aceito.

Entretanto, as legiões do Oriente  também aclamaram o seu comandante, Pescenius Niger (Pescênio Nigro), governador da Síria, imperador.

Antes de Severo chegar à Roma, contudo, boa parte do Senado já o estava apoiando. Assim, em 1º de junho, Dídio Juliano foi destituído pelo Senado e condenado à morte, após reinar por meros 66 dias. Esta sentença foi prontamente executada pelos próprios Pretorianos, aterrorizados com a aproximação das experimentadas legiões de Severo, as quais eles bem sabiam que não tinham a menor condição de enfrentar em batalha.

Desse modo, Severo entrou em Roma sem oposição, no dia 9 de junho de 193 D.C.

Cumprindo a sua promessa, Severo imediatamente puniu os pretorianos, mas de uma forma sorrateira: ele convidou a guarda pretoriana a um banquete no seu acampamento. Porém, quando os pretorianos chegaram, eles foram desarmados por uma força de soldados de Severo, que executaram os assassinos de Pertinace. Mais tarde, Severo substituiu os pretorianos por soldados originários da Panônia.

No Oriente,  Pescênio Nigro, governador da província da Síria, recusou aceitar Severo como imperador e ainda obteve o apoio da província do Egito. Severo marchou imediatamente para o leste e esmagou o indisciplinado exército de Nigro. A batalha decisiva aconteceu em Issos, na primavera de 194 D.C, e Nigro foi morto em Antióquia. A cabeça dele foi enviada à Severo, que estabelecera seu quartel-general em Bizâncio.

Aureus de Pescênio Niger, foto de Numismatica Ars Classica NAC AG, CC BY-SA 3.0 CH https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/ch/deed.en, via Wikimedia Commons

Outra característica marcante de Severo era ser implacável com os inimigos, e isso se aplicava às províncias e cidades que haviam apoiado Nigro, que foram severamente punidas, bem como aos reinos estrangeiros hostis.

Assim, em 195 D.CSevero iniciou uma campanha contra o Império Parta e invadiu a Mesopotâmia, subjugando os árabes osroenes, adiabenes e cenitas, no que também era um acerto de contas pelo fato destes terem apoiado Nigro. Em um gesto simbólico de afirmação de sua origem púnica, Severo, nessa passagem pelo Oriente, mandou reformar com mármore o túmulo de Aníbal Barca, o grande general cartaginês e inimigo mortal de Roma, mas também o seu mais ilustre conterrâneo, que morreu exilado na Bitínia, no longínquo ano de 183 A.C.

Enquanto isso,  Clódio Albino, levando a sério o seu título de César,  começou a cunhar moedas como se fosse imperador, autointitulando -se Augusto.

Severo, que provavelmente sempre tivera a intenção de se livrar do rival, deu a seu filho Lucius Septimius Bassianus, conhecido como Caracala (um apelido dado pelo fato dele usar, costumeiramente, um manto de origem gaulesa, que tinha esse nome) o mesmo título de César, o que, na prática, significava a cassação do status de Albino, que, em seguida, foi declarado “Inimigo Público”.

Foi também 195 D.C que Severo proclamou que ele era filho adotivo do imperador Marco Aurélio, razão pela qual alterou o nome de seu filho Caracala para Marcus Aurelius Severus Antoninus Augustus, numa tentativa de se legitimar como continuador da bem-sucedida dinastia dos Antoninos, que terminara com o assassinato de Cômodo.

Em verdade, Severo e Albino, desde a revolta contra Dídio Juliano, provavelmente sempre estiveram tentando ganhar tempo até terem todas as condições de eliminarem um ao outro. Quando chegou a notícia de sua proscrição pelo Senado, em 196 D.CAlbino já estava preparado para invadir a Gália e, após derrotar o legado de SeveroVinius Lupus, assumiu o controle da importante província, instalando-se em Lugdunum (Lyon).

Na inevitável guerra que se seguiu, Severo conseguiu derrotar Albino, na Batalha de Lugdunum, em 19 de fevereiro de 197 D.C. Foi uma batalha duríssima, segundo Dio Cassio, envolvendo 150 mil soldados de cada lado (número provavelmente exagerado). Severo ganhou o dia utilizando a sua cavalaria. Albino se matou ou foi capturado e executado, não se sabe ao certo. Porém, as fontes narram que Severo dispensou um tratamento cruel ao cadáver, que foi exposto nu e pisoteado pelo seu cavalo. E a cabeça do rival foi decepada e enviada à Roma, como um alerta para futuros pretendentes. Por sua vez, a desafortunada Lyon, como punição pelo apoio a Albino, foi saqueada.

Entre 197 e 199 D.C, foram travadas com sucesso uma série de campanhas contra o Império Parta que derivaram no estabelecimento da nova província da Mesopotâmia.

Após a conquista de Ctesifonte, a capital dos Partas, em cujo cerco faleceram cerca de 100 000 pessoas, os romanos apoderaram-se dos tesouros inimigos.

Em seguimento à vitória, Severo dedicou os cinco anos posteriores a organizar a administração da nova província, cuja existência, entretanto, jamais seria pacífica e teria curta duração, fadada a ser retomada pelos persas sassânidas, que destronariam os partas arsácidas, fundando um novo império.

Não obstante, as vitórias de Severo na região asseguraram o controle das estratégicas cidades de Nísibis e Síngara e a supremacia regional de Roma até o ano de 251 D.C, ou seja, por quase 50 anos. Ficaria, como testemunho dessa campanha, o Arco do Triunfo de Setímio Severo, no Fórum Romano, ainda existente.

Com efeito, a preocupação com o Exército e as questões militares foram o cerne da política governamental de Severo.

Severo começou por extinguir a Guarda Pretoriana e dispensar, com desonra, os seus integrantes. Em substituição, ele formou uma guarda com 10 coortes (cerca de 10 mil homens), com seus veteranos da Panônia. Depois, o imperador ainda acantonou, nas cercanias de Roma, uma legião. Na prática, com essas últimas iniciativas, a Guarda acabou sendo reconstituída.

Depois, Severo decretou um aumento de um terço para o salário dos soldados, o qual passou de 300 para 400 denários e aumentou o número de legiões de 30 para 33, medidas que, entretanto, provocaram um grande déficit público, causando inflação e prejudicando a economia imperial..

Severo também ampliou a “Anona” militar, organizando-a oficialmente como uma instituição permanente de previdência social dos soldados.

O imperador reformou, ainda, o estatuto civil dos militares:

De fato, até o reinado de Cláudio, os soldados não podiam deixar os quartéis enquanto duravam os seus anos de serviço. Consequentemente, exigia-se que eles não tivessem família por um número determinado de anos, variando o tempo em função da unidade a que pertenciam: os Pretorianos durante 15 anos, os legionários durante 20 anos e os auxiliares durante 30 anos.

Cláudio reformara o sistema a fim de permitir aos soldados saírem do acampamento quando não estivessem de serviço, facilitando-lhes assim fundarem uma família; porém, ainda assim, até o reinado de Severo, eles não tinham direito a casar-se legalmente e reconhecer os seus filhos antes de concluir o seu tempo de serviço militar. Então, Severo autorizou que os militares oficializassem a sua vida conjugal.

Como consequência dessa política, aumentou-se o número de cidadãos romanos, pois, com o status de casamento legal, os filhos dos soldados com as mulheres não-romanas que habitavam as proximidades dos acampamentos podiam aspirar à cidadania romana. Desse modo, podemos entender a “Constitutio Antoniniana” – lei editada pelo filho de Severo, Caracala, estendendo a cidadania romana a todo homem livre nascido no Império – como uma continuação desta política de Severo.

Severo também estabeleceu novas honras militares, autorizando aos oficiais portar um anel de ouro, privilégio até então reservado aos cavaleiros.

Além dos assuntos militares, Severo também dedicou-se aos assuntos administrativos e civis.

Vale citar que Severo tinha como seu principal auxiliar o seu primo, Gaius Fulvius Plautianus, nomeado Prefeito Pretoriano, e era também assessorado por juristas célebres, como Ulpiano e Papiniano.

Na Síria, de onde era natural a sua esposa, Severo criou duas novas províncias, para facilitar a administração local e, não menos importante, diminuir o poder do seu respectivo governador, que comandava várias legiões, as quais foram divididas entre as duas novas unidades político-administrativas.

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Depois de concluir a campanha no Oriente, Severo visitou o Egito, onde ele rendeu homenagem ao corpo de Alexandre o Grande, no Mausoléu no qual o famoso rei macedônio foi sepultado, em Alexandria;e, depois, ele navegou o rio Nilo até Tebas. Em seguida, o imperador dedicou-se aos assuntos de sua África natal, onde as tribos nativas dos Garamantes estavam causando problemas. Derrotados os inimigos, com a expansão do Limes Africanus, Severo pode estabelecer oficialmente a província da Numídia, agora separada administrativamente da África, e, finalmente após esse périplo pelo Oriente e África, o imperador retornou à Roma, em 203 D.C.

Painel de madeira pintada (tondo), com as figuras de um Severo já grisalho, da imperatriz Júlia Domna e de seus filhos Caracala e Geta (rosto apagado). A pintura é proveniente do Egito e provavelmente foi pintada quando da viagem da família imperial pela Província, por volta do ano 200 D.C. Posteriormente, quando Caracala sucedeu ao pai e assassinou Geta, foi decretada a “damnatio memoriae” deste e, obedientemente, a imagem de Geta foi apagada dos monumentos públicos, bem como deste painel. É o único retrato pintado de um imperador e ele é valiosíssimo pois nos permite ver as cores das vestimentas e dos ornamentos imperiais, inclusive o cetro e a coroa, além da tez da pele e dos cabelos.

Na capital do Império, Septímio Severo erigiu uma série de importantes construções: ele embelezou o lado sul do Palatino mediante a construção de uma monumental fonte chamada Septizódio, dedicada aos sete principais astros do firmamento. Além disso, foi ampliado o palácio imperial, com a construção de uma nova ala, a Domus Severiana, e ele também começou a construção dos banhos públicos que seriam conhecidos depois como Termas de Caracala, já que foram terminados no reinado de seu filho. Procedeu-se, ainda, à restauração de muitos edifícios danificados pelos incêndios que ocorreram no final do reinado de Cômodo, entre os quais: o Templo da Paz, o Teatro de Pompeu, o Pórtico de Otávia e o Arco de Nero.

A cidade natal de Severo, Leptis Magna, também beneficiou-se amplamente em seu reinado, sendo embelezada com vários monumentos suntuosos: o Fórum de Severo, a Basílica de Severo, o Mercado e  grandes instalações portuárias.

Septímio Severo tomou, ainda, algumas  significativas medidas judiciárias e assistenciais: A Presidência dos tribunais de apelação foi transferida aos Prefeitos Pretorianos, função antes realizada pelo imperador,  e foi instituída a distribuição gratuita de azeite de oliva, que se unia à tradicional repartição de trigo para a plebe.

A fim de consolidar a sua sucessão, Severo casou o seu filho Caracala com Plautilla, filha do Prefeito Pretoriano Plautianus (Plauciano). Este casamento arranjado, porém, foi o início da discórdia entre Severo e seu antigo amigo e parente, e agora sogro do seu filho.

De fato, Caracala odiava Plauciano, e, após o casamento, ele recusou-se a ter qualquer relacionamento com a esposa. Na verdade, consta que Caracala prometeu que, quando se tornasse imperador, daria cabo de ambos, esposa e sogro, o que pode ter levado Plauciano a conspirar contra Severo, ou, ao menos, este foi o pretexto que Caracala usou para conseguir a queda e execução do sogro. Plautiano foi acusado de traição por alguns centuriões em 205 D.C, subornados provavelmente por Caracala. Severo mandou executá-lo e Plautilla foi exilada na ilha de Lipari.

As relações de Severo com o Senado nunca foram boas, devido ao caráter marcadamente ditatorial do seu reinado. O imperador mandou executar dúzias de senadores sob variadas acusações de corrupção e conspiração, substituindo-os por homens fiéis ao trono.

Não obstante, entre a plebe romana, Septímio Severo gozava de popularidade, devido às medidas que ele tomou contra a corrupção generalizada que havia aumentado durante o reinado de Cômodo, e Severo ganhou a boa reputação de ter restabelecido a moralidade pública após os anos de decadência do governo anterior.

Contudo, o aumento vertiginoso das despesas militares, obrigou Severo a promover a maior desvalorização do denário desde o reinado de Nero, o que causaria uma grande inflação.

Nos anos finais do reinado de Severo, ocorreram muitos ataques das tribos caledônias que viviam além da Muralha de Adriano, que foram estimuladas pelo fato de Albino, quando da disputa com Severo pelo trono, haver zarpado para a Gália com praticamente todo o efetivo militar da Britânia.
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Em 207 D.C, o incansável Septímio Severo foi para a Britânia combater os Caledônios, levando consigo a esposa e os dois filhos, realizando várias campanhas ao norte da Muralha de Adriano, que foi reforçada por ele. Todavia, esse esforço não foi suficiente para subjugar aquelas ferozes tribos, antepassadas dos escoceses.

As fontes narram que, preocupado com a instabilidade mental demonstrada por Caracala, Severo nomeou, em 209 D.C, seu filho mais novo, Geta, como “César”.

A campanha contra os Caledônios prosseguiu, com resistência maior do que se poderia supor, e a saúde do já sexagenário Severo não aguentou o tranco. Ele caiu gravemente enfermo, e, pressentindo que ia morrer, mandou chamar Caracala e Geta, para dar-lhes um último conselho, em seu leito leito de morte, o qual ficaria célebre:

Não briguem entre si, deem dinheiro aos soldados e desprezem todos os outros“.

No dia 4 de fevereiro de 211 D.C, em Eboracum(York), aos 65 anos de idade, Septímio Severo morreu e Caracala e Geta foram aclamados imperadores pelas tropas. Ambos decidiram interromper imediatamente a campanha e voltar para Roma.

Nove meses depois, Caracala mataria seu irmão Geta, que se refugiara nos braços da mãe de em pleno palácio, para reinar sozinho. Portanto, Caracala somente seguiria fielmente o segundo e o terceiro conselhos de seu pai…

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Busto de Caracala, o sucessor de seu pai Severo, cuja expressão parece corresponder ao seu caráter violento.

CONCLUSÃO

Septímio Severo é um imperador controverso e o seu reinado é um dos mais difíceis de avaliar:  por um lado, ninguém pode negar que ele foi um servidor público incansável e muito dedicado aos assuntos públicos, tarefa que jamais foi por ele deixada de lado em prol dos prazeres e lazeres que Roma oferecia. De fato, Severo expandiu as fronteiras do Império Romano, visitou inúmeras províncias, venceu guerras e construiu importantes monumentos.

Mas Severo falhou em fazer uma reforma administrativa e tributária capaz de sustentar o aumento no efetivo e no orçamento militar, sendo que o aumento dos soldos acentuou uma tendência que comprometeria as finanças públicas dos reinados que se seguiram. E, ironicamente, tantas benesses dadas aos soldados podem ter comprometido a disciplina militar, estimulando os vários episódios de insubordinação que seriam observados durante os reinados da dinastia inaugurada por ele.

Outra medida  que se considera negativa foi a proibição de que os senadores exercessem comandos militares. Essa vedação, que seria reforçada nos reinados seguintes, afastou a elite romana do serviço militar e acabou contribuindo para criar ou ampliar um estranhamento entre o Exército e o Senado, afastando completamente a aristocracia da carreira das armas, o que no futuro se revelaria nocivo.

E Severo falhou mais amplamente em seguir os quase cem anos de boa política sucessória dos Antoninos, dinastia que ele tinha a pretensão de fazer parte, ao escolher os incompetentes e despreparados Caracala e Geta como herdeiros, mas este, diga-se de passagem, foi um erro no qual o próprio “imperador-filósofo e déspota esclarecido” Marco Aurélio também incorreu.

Quanto às numerosas execuções de senadores e rivais, talvez Severo não tenha sido tão diferente da maior parte de seus antecessores e sucessores. O fato é que ser imperador romano, especialmente no século III, como logo seria constatado, era uma das profissões mais perigosas do mundo.

FIM