CARACALA – UM IMPERADOR PARA OS SOLDADOS

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Nascido a 4 de abril de 188 D.C, em Lugdunum, na província da Gália (atual Lyon), com o nome de Lucius Septimius BassianusCaracala era o filho mais velho do imperador Septímio Severo e da imperatriz Júlia Domna.

Severo foi o primeiro imperador romano que não descendia de uma família de origem italiana (ao menos por parte de pai,) pois a sua tinha origem púnica ou berbere, nativa da cidade de Leptis Magna, na atual Líbia. Porém, a família ascendera à classe Equestre, e dois primos de Severo já tinham ocupado o consulado durante o reinado do imperador Antonino Pio.

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(Septímio Severo, pai de Caracala)

Já a mãe de Caracala, a imperatriz Júlia Domna, uma mulher admirada por sua beleza e inteligência, era filha de Julius Bassianus, sumo-sacerdote do Templo do deus Elagábalo (El-Gabal), em Emesa (moderna Homs), na Síria, e membro da dinastia dos Sempseramidas, governantes daquela cidade, que era a capital de um reino-cliente de Roma, que depois foi anexada pelo Império.

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(Júlia Domna, mãe de Caracala)

Cinco anos após o nascimento de Caracala, em 193 D.C, seu pai Septímio Severo se tornaria imperador e reinaria até 211 D.C. Severo queria fazer crer que era filho ilegítimo do finado imperador Marco Aurélio e, por isso, além  de acrescentar o nome deste imperador ao seu, mudou o nome de Caracala para Marcus Aurelius Severus Antoninus Augustus, numa tentativa de legitimar a si e a sua prole como continuadores da bem-sucedida dinastia dos Antoninos, que terminara de fato com o assassinato do imperador Cômodo.

O apelido Caracala surgiu porque Lucius Septimius Bassianus gostava muito de usar um manto com capuz, de origem gaulesa, chamado de “Caracalla“.

Severo, desde cedo, demonstrou que não iria reviver o costume dos Antoninos, que fora interrompido com a nomeação de Cômodo por seu pai, Marco Aurélio, de se escolher, como herdeiro e sucessor do imperador, o homem público  mais apto, e não o próprio filho biológico.

Assim, em 196 D.C, Caracala foi nomeado “César” (título equivalente ao de príncipe-herdeiro) e, em 28 de janeiro de 198 D.C, ele seria reconhecido como “Augusto“, tornando-se de direito co-imperador junto com seu pai, embora ele tivesse apenas 9 anos de idade.

Em 202 D.C, Severo concordou em casar Caracala com Plautila, filha do seu primo e conterrâneo, o poderoso Prefeito Pretoriano Plauciano.

Caracala odiava o sogro e a esposa e, após o seu casamento, recusou-se a ter qualquer relacionamento com Plautila. Na verdade, consta que Caracala teria chegado a prometer que, quando se tornasse imperador, daria cabo de ambos, o que pode ter levado Plauciano a conspirar contra Severo, ou, ao menos, esse foi o pretexto que Caracala usou para conseguir a queda e execução do sogro e o exílio de Plautila, em 205 D.C.

Parece que Severo pretendia ser sucedido, após a sua morte, conjuntamente por Caracala e por seu filho mais novo, Geta, que era um ano mais novo do que o irmão e foi nomeado César em 198 D.C e, posteriormente, Augusto em 209 D.C.

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(Uma das poucas imagens de Geta que sobreviveram à Damnatio Memoriae ordenada por Caracala)

Os dois irmãos destacavam-se pela dissolução dos costumes, promovendo orgias, e, igualmente, pelo ciúme e ódio que nutriam um pelo outro.

Segundo as fontes antigas, Severo, enquanto encontrava-se em campanha contra os Caledônios na Britânia, caiu gravemente enfermo, e, pressentindo que ia morrer, mandou chamar Caracala e Geta, para dar-lhes a notícia e um derradeiro conselho para o futuro reinado de ambos, que foi este:

Não briguem entre si, deem muito dinheiro aos soldados e desprezem todos os outros“.

No dia 4 de fevereiro de 211 D.C, em Eboracum (atual York), Severo morreu. No mesmo dia, Caracala e Geta foram aclamados imperadores pelas tropas. Ambos decidiram imediatamente interromper a campanha e voltar para Roma.

Porém, a animosidade entre os irmãos-imperadores era tanta que o Palácio teve que ser dividido em dois, e, mesmo assim, não satisfeitos, eles chegaram a cogitar seriamente em dividir o Império Romano em duas metades, cem anos antes de Constantino, que tomou a medida por motivos muito mais relevantes.

Não demorou muito para que Caracala colocasse em prática um plano para se livrar do irmão.  Assim, simulando um falso desejo de reconciliação, ele persuadiu Júlia Domna a convocar um encontro ente ele e Geta. Quando Geta chegou na ala do Palácio ocupada pela mãe,  um grupo de membros da Guarda Pretoriana fiéis a Caracala esfaquearam-no, e Geta morreu nos braços de Júlia Domna, em dezembro de 211 D.C.

Não satisfeito em mandar matar Geta, Caracala quis também eliminar qualquer referência histórica ao irmão, ordenando a sua “Damnatio Memoriae“. Em decorrência, a imagem de Geta deveria ser apagada de qualquer monumento público, o que efetivamente foi feito, como se pode ver em uma famosa pintura que chegou até os nossos dias,  proveniente do Egito, onde o retrato de Geta, ainda criança, junto da família imperial, foi apagado.

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(Painel de madeira pintada com os retratos de Septímio Severo, Júlia Domna e Caracala, ainda criança. A imagem de Geta foi apagada, em obediência à Damnatio Memoriae).

Caracala, que, logo no primeiro ano de reinado, decidira não obedecer o primeiro conselho do pai, matando o irmão, entretanto seguiria à risca o segundo conselho, aumentando em 50% o soldo dos legionários. Não satisfeito, o imperador foi além e passou a cortejar os soldados, marchando junto com eles, comendo com eles o mesmo rancho, e até mesmo moendo grãos para fazer a farinha para o rancho.

Também no início do seu reinado, Caracala ordenou a construção de um gigantesco complexo de banhos públicos, que ficariam conhecidos como as “Termas de Caracala” e seriam as maiores já construídas em Roma,  até a construção das Termas de Diocleciano, 90 anos mais tarde.

Em 213 D.C., Caracala teve que deixar Roma para ir combater os bárbaros Alamanos, que ameaçavam a fronteira da Raetia (província que fazia fronteira com a Germânia, compreendendo parte da atual Suíça e do estado alemão da Baviera, entre outras regiões). Os bárbaros foram contidos e Caracala aproveitou para reforçar as defesas do território romano dos Agri Decumates).

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(Reconstrução em maquete das Termas de Caracala)

Porém, os gastos com os soldados e com as Termas obrigariam Caracala a desvalorizar o denário e a aumentar os tributos, tornando a sua figura, que já era antipática por natureza, detestada pela maioria do povo, e,  sobretudo, pelo Senado, que também frequentemente era desrespeitado por ele. Portanto, podemos dizer que o terceiro conselho de Severo: “desprezar todos os outros‘”, também estava sendo obedecido por Caracala

A principal medida legal do reinado de Caracala foi a promulgação da “Constitutio Antoniniana“, em 212 D.C,  lei também conhecida como Édito de Caracala, concedendo a cidadania romana a todos os homens livres do Império Romano. Contudo, mais do que uma medida democrática ou inclusiva, o real objetivo de Caracala era aumentar a base tributária, já que alguns tributos somente incidiam sobre cidadãos romanos.

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(Papiro com o texto da Constitutio Antoniniana, que sobreviveu até os nossos dias)

Segundo Cássio Dio, para inspirar temor nos seus súditos, Caracala gostava que a propaganda imperial  divulgasse uma imagem dele como um governante temível e implacável , e, de fato, todos os retratos que sobreviveram dele mostram exatamente essa expressão.

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Caracala admirava muito Alexandre, o Grande e, tentando emular o seu ídolo, o imperador promoveu uma campanha contra os Partos. E a fascinação de Caracala com o rei da Macedônia foi tanta que ele chegou a criar uma unidade militar com o nome de Phalangiari, imitando as falanges macedônicas que tinham dado tantas vitórias a Alexandre.

Enquanto Caracala, ausente de Roma, conduzia a campanha contra os Partos, quem se tornou a virtual governante da Cidade foi sua mãe, Júlia Domna. Com ela, começaria uma tendência que caracterizaria a dinastia dos Severos: a predominância das mães dos imperadores como eminências pardas e governantes de fato do Império, o que se acentuou durante os reinados de Elagábalo e de Severo Alexandre.

Entretanto, no dia 8 de abril de 217 D., o Imperador Caracala mandou parar sua comitiva, que marchava da cidade de Edessa para dar andamento à guerra contra a Pártia.

A parada, que ocorreu próximo à cidade de Carras (atual Harran, no sul da Turquia), tinha um motivo bem prosaico: o imperador estava com vontade de urinar…

Caracala afastou-se da comitiva, seguido, apenas, de seu guarda-costas Julius Martialis, que, aparentemente, guardava a distância necessária à privacidade do imperador.

De repente, o líquido amarelo que escorria pelo chão em decorrência do alívio da necessidade fisiológica do imperador, começou a ficar vermelho…

Martialis tinha acabado de atravessar o corpo de Caracala com o seu gládio com um golpe mortal. Os outro guardas perceberam o crime e Martialis tentou fugir, mas foi abatido por uma flecha de um arqueiro. Acredito que esta ação foi uma queima de arquivo, já que o principal suspeito de ter sido o mandante do crime era o Prefeito da Guarda Pretoriana, Macrino, que acabou se tornando o sucessor de Caracala no trono.

Todavia, Macrino logo seria substituído pelo primo de Caracala, Elagábalo, em uma revolta urdida pela sua tia, Júlia Maesa, que se valeu da enorme riqueza e dos contatos dos Sempseramidas na Síria, uma das províncias mais ricas do Império, para subornar o poderoso exército romano naquela província.

Caracala é considerado um dos muitos “maus imperadores” romanos, não apenas para os historiadores antigos, mas também por Edward Gibbon e a maioria dos historiadores modernos. Após a sua morte, ele continuaria popular entre os soldados, os únicos romanos que ele se preocupou em agradar.

FIM

SANTO AMBRÓSIO – UM BISPO TEMIDO ATÉ PELOS IMPERADORES

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Em 4 de abril de 397 D.C, morre, em Milão, cidade que então era a capital do Império Romano do Ocidente, Aurelius Ambrosius, mais conhecido como Santo Ambrósio.

Nascido por volta do ano 340 D.C, na cidade de Augusta Treverorum (atual Trier, na província da Germânia), Ambrósio era filho do Prefeito Pretoriano da Gália, que também se chamava Aurelius Ambrosius. A mãe de Ambrósio era uma cristã devota, e assim, ele e seus irmãos, Satyro e Marcellina, foram criados como cristãos (Posteriormente, os dois últimos também seriam venerados como santos católicos).

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(Porta Nigra, em Trier, portão das muralhas romanas da cidade onde Ambrósio nasceu)

Graças à posição de seu pai, Ambrósio recebeu uma esmerada educação em Roma,  sendo versado em latim, grego, filosofia e direito, e, concluídos os seus estudos, ele seguiu a carreira pública, chegando a ser nomeado governador da Ligúria-Emília, região onde ficava a cidade de MIlão, em 372 D.C.

Em 374 D.C, Ambrósio foi escolhido para ser o Bispo de Milão, por aclamação dos fiéis, embora ele não fosse ainda batizado (era então costume dos cristãos leigos se batizar apenas no fim da vida, mas para os bispos isso era requerido) e, muito menos, ordenado. Apesar de inicialmente recusar a escolha da comunidade, Ambrósio acabou cedendo e, em uma semana, ele foi batizado, ordenado padre e nomeado Bispo!

A Sé de Milão vivia uma disputa entre os devotos que esposavam o Credo Niceno, estabelecido no Concílio de Nicéia, e os que seguiam a doutrina do Bispo Ário, chamados de “Arianos” (nada a ver com o suposto grupo étnico).

Ambrósio uniu a experiência administrativa civil no serviço público, que ele tinha adquirido no cargo de governador, a uma grande eloquência e força de caráter, e, por isso, ele logo atraiu uma enorme legião de seguidores entre os fiéis. Os seus sermões eram famosos e faziam encher a catedral de Milão com uma multidão. Foi durante uma dessas homilias de Ambrósio que um jovem inseguro e  indeciso em sua fé tornou-se um fervoroso convertido: era o futuro Santo Agostinho, que seria batizado por Ambrósio, em 387 D.C.

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(Santo Agostinho, seu retrato mais antigo, do séc. V,  existente na Basílica Laterana, em Roma).

Em 380 D.C., os imperadores Teodósio I, Graciano e Valentiniano II publicaram o Édito de Tessalônica, tornando o Cristianismo a religião oficial do Império Romano.

No Concílio de Aquiléia, em 381 D.C, Ambrósio destituiu os bispos arianos, apesar dos mesmos terem o apoio do imperador Valentiniano II, o colega do imperador Graciano no Ocidente.

Mais tarde, quando o imperador cristão Graciano, em 382 D.C, ordenou a retirada do venerável Altar da Vitória, o santuário com a estátua dourada da deusa que, havia séculos, ficava na Cúria do Senado em Roma. Ambrósio foi o principal responsável por  impedir que esse altar fosse restaurado, apesar dos insistentes pedidos da influente facção de senadores pagãos.

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Interior da Cúria Júlia, sede do Senado Romano. O Altar da Vitória provavelmente ficava no fundo do edifício, no centro, onde está a base de mármore).

Outro episódio em que  Ambrósio teve destacada atuação na defesa da ortodoxia católica, ocorreu quando a imperatriz Justina, mãe de Valentiniano II, exigiu que a Basílica Portia, na cidade de Milão, fosse destinada ao culto dos cristãos arianos. Nessa ocasião, Ambrósio colocou barricadas em torno da mesma e encheu-a de partidários da ortodoxia nicena preparados para resistir, o que acabou levando a imperatriz a desistir do seu intento, em 386 D.C

Em 390 D.C., o imperador do Oriente, Teodósio I, massacrou sete mil pessoas em Tessalônica, ordenando uma brutal represália de uma revolta contra a guarnição de Godos estacionada na cidade. Considerando a ação um grave pecado, Ambrósio excomungou o imperador, que, depois de alguns meses, foi obrigado a fazer uma penitência pública, somente após a qual Ambrósio admitiu que Teodósio pudesse comungar. Esse gesto foi um precursor de uma tendência que se repetiria algumas vezes na Idade Média – o reconhecimento da supremacia do poder espiritual, detido pelo clero, sobre o poder temporal . Após este episódio, Teodósio tornou-se muito mais intolerante com o paganismo, proibindo, em 393 D.C, a celebração de qualquer ritual pagão, incluindo a proibição tácita da realização dos Jogos Olímpicos.

Assim,  Santo Ambrósio foi uma figura fundamental para que o cristianismo se tornasse a religião oficial do Império Romano, sob a direção da Igreja Católica, o que teria influência duradoura na História do Mundo.

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(Foto: Corpo de Santo Ambrósio, preservado ao lado de dois outros mártires, na Catedral de Milão)

GLADIADOR II – LUCIUS VERUS, CARACALA E GETA

Por Eduardo André

Assisti a tão esperada continuação do já clássico filme Gladiador, e, assim como fiz no texto sobre o filme original, escrevo agora sobre Gladiador 2, procurando contextualizá-lo dentro do que se sabe sobre a História de Roma. Porém, ao contrário do que fiz no primeiro artigo, escrito muitos anos depois do primeiro filme, dessa vez vou tentar ao máximo não fazer “spoilers“; mas, se o leitor preferir nada saber e não ler alguma coisa que possa interferir em ter uma experiência de ineditismo e surpresa no cinema, novamente recomendo que não leia este artigo antes de assistir a película. De qualquer modo, a leitura do artigo Maximus Decimus Meridius-Gladiador pode ser útil para melhor entender todo o contexto (é só clicar no nome).

Antes de começar, é preciso ressaltar que Gladiador II, ao contrário do filme antecessor, abandonou quase que completamente qualquer compromisso de fidelidade com os fatos históricos. Com efeito, o enredo de Gladiador I, embora apresente muitas passagens fictícias e algumas inverossimilhanças, em seu cerne não conflitava tanto do que foi relatado pelas fontes acerca dos reinados de Marco Aurélio e Cômodo, sendo que, além dos principais personagens realmente terem existido, parte considerável do que se passa na tela corresponde ao que as fontes antigas relataram sobre eles. Também por esse motivo, este artigo será escrito de uma forma bem diferente do nosso artigo anterior.

Não obstante, há também quatro personagens neste filme que não são fictícios, embora o roteiro divirja bastante do que efetivamente se sabe sobre a vida deles: são eles os imperadores Caracala e Geta, Lucilla e Macrino (que com quase toda certeza foi inspirado na figura do imperador Macrino).

Gostaria de observar que ao apontar as inconsistências entre o enredo do filme e os fatos históricos, não estou fazendo nenhuma crítica negativa ao mesmo. Cinema é entretenimento e arte, e, não se tratando o filme de um documentário, nem tendo sido externada a intenção de contar uma história real, o cineasta e o roteirista devem ter liberdade para utilizar os personagens, ainda que históricos, com finalidades dramáticas.

CONTEXTO

A trama se passa dezesseis anos após a morte de Maximus Decimus Meridius e, obviamente, do imperador Cômodo, já que, no filme, ambos morrem em combate, um contra o outro, no Coliseu. Então, considerando que o Cômodo histórico morreu em 192 D.C., o enredo do filme começaria em 208 D.C.

O filme inicia-se com um impressionante ataque de uma grande frota romana contra uma cidade não identificada situada na região da Numídia, no Norte da África, que corresponde a grosso modo à atual Argélia.

E essa é a primeira incorreção do roteiro: Em 208 D.C, a Numídia já era uma província romana fazia 250 anos. A região foi anexada entre 46 e 42 A.C. e formalmente estabelecida como província romana em 25 A.C. Era habitada pelos Númidas, um povo de etnia berbere, indígena do Norte da África, valendo citar que os Berberes ainda compõem boa parte da população do Marrocos e da Argélia, além de estarem presentes na Líbia, na Tunísia, e, obviamente, em vários outros países para os quais eles emigraram (um representante famoso, dentre inúmeros outros, desta etnia é o jogador Zidane). Antes de ser conquistada pelos romanos, a Numídia chegou a ser um reino poderoso, que, antes de ser unificado, foi aliado deles durante a Segunda Guerra Púnica, quando parte da região era governada pelo rei Massinissa. Mais tarde, os Númidas, liderados pelo rei Jugurtha, travaram uma longa guerra (112-106 A.C) contra a República Romana, que foi vencida graças ao talento dos generais Mário e Sila. Provavelmente o personagem Jubartha, que aparece como chefe militar da cidade atacada pelos Romanos no filme, é uma alusão ao rei Númida, apesar dos séculos que separam os acontecimentos reais do episódio filmado.

Na verdade, a cena inaugural do filme evoca a conquista e destruição de Cartago pelos Romanos, na Terceira Guerra Púnica, em 146 A.C. Os acontecimentos dessa guerra são vividamente descritos pelo historiador grego Políbio, em sua “História”. Efetivamente, o cerco a Cartago envolveu ataques anfíbios combinados, por mar e por terra, chegando a haver combates navais nas muralhas que protegiam o porto da grande cidade (embora seja altamente improvável que as galeras se aproximassem a ponto de bater nas muralhas, o que com certeza as incapacitaria. E os “trebuchets“, as gigantescas catapultas que aparecem na cena defendendo a cidade, ainda não existiam). Mas a invasão deu-se mesmo por terra. o fictício guerreiro Hanno, que será o personagem principal do filme e que vive na cidade atacada pelos romanos, certamente também é uma alusão aos Cartagineses: Este foi o nome de vários comandantes e homens ilustres de Cartago. Finalmente, o comportamento do general romano Marcus Acacius, também um personagem fictício, que comanda a força invasora, também evoca a narrativa do cerco e destruição de Cartago: Políbio relata que Cipião Emiliano, Cônsul de Roma e comandante da campanha, expressou seu pesar e comiseração pela sorte da Cidade e seus habitantes, chegando a derramar lágrimas pelo destino deles. No filme, o general Acacius age de maneira semelhante, pronunciando a expressão: “Ai dos Vencidos” (“Vae Victis“), que, na vida real, teria sido proferida pelo chefe gaulês Breno, quando exigiu uma grande quantidade de ouro pelo resgate da cidade de Roma, que ele havia invadido, segundo o historiador romano Tito Lívio.

OUTRAS INCONSISTÊNCIAS

1- CARACALA E GETA

Os eventos constantes do roteiro se passam durante o reinado dos imperadores Caracala e Geta.

Oficialmente, em 198 D.C, Caracala (que se chamava Marco Aurélio Antonino, sendo Caracalla um apelido, motivado pelo fato dele usar uma capa de origem gaulesa assim chamada) recebeu o título de Augusto (que significava “Imperador”) de seu pai, Septímio Severo (193-211 D.C.), que ainda reinaria por mais treze anos. Já seu irmão Geta (Públio Septímio Geta), que era 11 meses mais novo do que Caracala, foi nomeado Augusto por Severo em 209 D.C. Septímio Severo era de uma família ilustre proveniente da cidade de Leptis Magna, na atual Líbia, de origem púnica e berbere.

Portanto, embora formalmente não seja incorreto considerar que Caracala fosse imperador em 208 D.C, como mencionado no roteiro, na prática, Septímio Severo continuava sendo o imperador com total controle do Império, até a sua morte por doença em Eburacum (atual York, na Inglaterra), em 4 de fevereiro de 211 D.C., quando efetivamente o poder passou para seus dois filhos. Caracala, que na ocasião, tinha 22 anos, e Geta, de 21, Em seu leito de morte, Septímio Severo deixou o seguinte conselho para seus dois sucessores:

Entretanto, as fontes antigas são unânimes sobre o fato de que Caracala e Geta odiavam-se mutuamente. Com efeito, o ódio entre os irmãos era tão grande, que, na jornada de retorno de York para Roma, ambos voltaram em caravanas separadas, sem jamais dividirem a mesma estalagem. Inclusive, após os dois novos imperadores instalarem-se em Roma, o Palácio Imperial (a Domus Severiana, no Palatino) teve que ser dividido em duas partes, não podendo os auxiliares e escravos de um ter acesso à parte do outro.

Não surpreende, assim, que Caracala, na primeira oportunidade que teve, desconsiderou o primeiro conselho do pai: Assim, em 26 de dezembro de 211 D.C, simulando um falso desejo de reconciliação com Geta, ele persuadiu a mãe deles, Júlia Domna, a convocar um encontro ente ele e o irmão. Quando Geta chegou na ala do Palácio ocupada pela mãe, um grupo de membros da Guarda Pretoriana fiéis a Caracala esfaquearam-no, e Geta morreu nos braços de Júlia Domna. Aos demais Pretorianos, bem como ao Senado e ao povo, Caracala divulgou a versão de que ele agiu em legítima defesa, e que foi Geta quem tentou assassiná-lo.

Portanto, o reinado conjunto de Caracala e Geta, de fato e de direito, durou apenas 10 meses, de 4 de fevereiro de 211 D.C até 26 de dezembro de 211 D.C.

Cabeça de Julia Domna, Glipoteca, Munique. foto; Laci3, CC0, via Wikimedia Commons

Não satisfeito em mandar matar Geta, o vingativo Caracala quis também eliminar qualquer referência histórica ao irmão, ordenando a sua “Damnatio Memoriae“. Em decorrência, decretou-se que a imagem de Geta deveria ser apagada de qualquer monumento público, o que efetivamente foi cumprido, como se pode ver em uma famosa pintura que chegou até os nossos dias, proveniente do Egito, onde o retrato de Geta, ainda criança, junto da família imperial, foi apagado.

O chamado “Tondo Severiano”, uma pintura do imperador Septímio Severo, sua esposa Júlia Domna e seus filhos Caracala e Geta, cujo rosto foi apagado em obediência à Damnatio Memoriae. A pintura data de cerca do ano 200 D.C, data da viagem da família imperial ao Egito, de onde ela é proveniente. Foto: © José Luiz Bernardes Ribeiro

Este retrato nos permite notar que Caracala, assim, como seu irmão, deviam ser bem diferentes dos atores que os personificaram no filme, pálidos e ruivos. Não obstante, o historiador Herodiano relata que Caracala tinha o costume de usar uma peruca loura, supostamente pelo fato dele apreciar os Germânicos, e talvez por ser um tanto calvo.

Um raro busto de Geta menino, que de alguma forma escapou à Damnatio Memoriae. Foto: Modussiccandi, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Em seguida ao assassinato do irmão, Caracala, não satisfeito, mandou executar toda e qualquer pessoa que tivesse alguma ligação com Geta, incluindo libertos, escravos, atores e até mesmo alguns senadores. De fato, mesmo antes do falecimento de Septímio Severo, a personalidade de Caracala já denotava alguns traços do que eu considero ser psicopatia: por exemplo, ele odiava Plautianus, primo e auxiliar próximo de seu pai, e, quando Septímio fez com que ele se casasse com Fulvia Plautilla, a filha de seu desafeto, Caracala, prometeu que mataria este e a própria esposa, uma vingança que ele não demorou a obter, implicando o sogro em uma conspiração provavelmente fabricada contra o imperador. motivo pelo qual Plautianus foi executado por soldados subordinados a Caracala. A pobre Plautilla foi exilada para a remota ilha de Lipari, e prontamente executada assim que Caracala assumiu o trono, logo após a morte de seu pai.

O reinado de Caracala caracterizou-se pela excessiva atenção dada ao Exército, tendo os soldados recebido um expressivo aumento nos soldos, que acabou comprometendo o equilíbrio fiscal do Império, obrigando o imperador a desvalorizar a moeda. Nisto, ele parece ter seguido à risca o segundo conselho deixado por seu pai…

Tanto era o seu desejo de agradar aos militares, que Caracala chegava a marchar junto com a tropa, carregando equipamento e estandartes, dormia nas barracas, e até mesmo, fazia as refeições junto com os legionários, comendo com eles o mesmo rancho. Enquanto isso, os assuntos relativos à administração civil e legal do Império foram deixados à cargo de sua mãe, Júlia Domna, com o auxílio de seus libertos.

Todos os retratos de Caracala revelam o propósito dele se apresentar ao povo romano como um governante marcial, másculo e implacável, por isso, a expressão dele nas estátuas era sempre a de um homem sisudo, bem diferente do que se vê no filme.

Busto de Caracala, foto: Naples National Archaeological Museum, CC BY 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by/2.5, via Wikimedia Commons

Segundo os relatos, Caracala logo tornou-se impopular para o povo e para o Senado Romano, e, como não é de surpreender, apenas os soldados o idolatravam. Ele até comandou algumas campanhas militares bem-sucedidas, mas, em muitas ocasiões mostrou-se colérico e sanguinário, e imprevisível, o que acabou atemorizando até mesmo seus auxiliares mais próximos.

Então, em 8 de abril de 217 D.C, no decorrer de uma campanha militar contra o Império Parta, no Oriente, Caracala foi assassinado por um soldado, Julius Martialis. O regicídio ocorreu quando a comitiva de Caracala se dirigia para a cidade de Carrhae, no sul da Turquia. No meio do caminho, o imperador mandou a caravana parar e foi urinar no mato, momento em que Martialis o esfaqueou pelas costas e fugiu, apenas para ser perseguido e morto pelos guarda-costas do imperador. Para muitos historiadores, isso foi uma queima de arquivo, e o principal suspeito de ser o mandante foi o Prefeito Pretoriano, Marcus Opellius Macrinus (Macrino). Mais detalhes sobre o reinado de Caracala podem ser lidos no nosso artigo sobre este imperador (clique no nome).

2- MACRINO

Estou convicto de que a principal inspiração para o personagem Macrino, de Gladiador 2 foi Marcus Opellius Macrinus, que se tornaria o imperador romano Macrino. Apesar disso, o leitor que assistiu ao filme notará que há diferenças entre a trajetória do personagem o da figura histórica que o inspirou. No filme, Macrino é interpretado por Denzel Washington, em mais uma grande atuação.

Segundo o historiador Cássio Dião (Epítome do Livro 79, Macrino nasceu na cidade de Caesarea (atual Cherchell, na Argélia), na província romana da Mauritania Caesariensis. Ele é descrito como um Mouro, o que significa que provavelmente Macrino era de origem berbere, e seus pais, por sua vez, como sendo de “origem obscura”, significando que não se sabia nada sobre a condição social deles. Inclusive, como evidência de sua origem Moura, o historiador menciona que Macrino tinha uma de suas orelhas furada, presumivelmente para usar um brinco ou outro adorno, o que seria um costume dos Mouros.

Busto de Macrino, Palazzo Nuovo, Roma. Aumentando-se a foto notq-se quehaver algo no lóbulo da orelha direita. Seria um brinco? Pretendo inspecionar de perto quando voltar à Roma. foto: <a href=”https://www.flickr.com/photos/mumblerjamie/, CC BY-SA 2.0 https://www.flickr.com/photos/mumblerjamie/, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0&gt;, via Wikimedia Commons

As fontes relatam que, em algum momento de sua vida, Macrino adquiriu um respeitável conhecimento da legislação e jurisprudência romanas, chegando a exercer a advocacia, uma atuação que chamou a atenção de Plautianus, o desafortunado sogro de Caracala, que o contratou para ser ser seu secretário particular. Conseguindo escapar da desgraça de Plautianus, ainda durante o reinado de Septímio Severo, o promissor Macrino foi nomeado Superintendente (Curator) da Via Flamínia, uma estrada importante estrada que ligava Roma à Rimini. Certamente, este era um posto que dava visibilidade política e também permitia ao seu titular amealhar bastante dinheiro, de acordo com as práticas romanas.

Durante o reinado de Caracala, a carreira de Macrino continuou em ascensão, e, após ser nomeador para um cargo não especificado de Procurador, muito provavelmente um cargo de Procurator Augusti, administrando a arrecadação de tributos ou Fiscus (rendas e patrimônio da casa imperial), pois sabemos que Macrino recebeu o anel de ouro que simbolizava o pertencimento à classe dos Equestres (status social que vinha abaixo da nobreza senatorial), sendo que os referidos cargos eram exclusivos deste grupo. De acordo com Cássio Dião, esses cargos foram exercidos por Macrino com eficiência e correção.

Contudo, a História Augusta, uma coleção de biografias imperiais escrita por volta do século IV D.C., e considerada não muito confiável pelos historiadores modernos, devido a vários erros factuais e algumas contradições, apresenta uma versão mais deletéria da vida de Macrino, citando outros autores, não obstante o próprio texto faça questão de advertir que são relatos duvidosos.

Assim, de acordo o que a História Augusta menciona como afirmações feitas por um suposto historiador chamado Aurelius Victor, Macrino, durante o reinado de Cômodo (180-192 D.C.), era um escravo liberto e um “prostituto público”, encarregado de tarefas servis no Palácio, sendo também corrupto. Posteriormente, já no reinado de Septímio Severo, Macrino teria sido banido para a África pelo referido imperador, província onde ele se dedicou a estudar, começando por defender pequenas causas perante os tribunais, dedicou-se à Oratória e finalmente teria tornado-se magistrado. Então, Festus, um outro liberto que tinha sido colega de Macrino, conseguiu que este recebesse o anel de Equestre e, sob Verus Antoninus (um erro crasso do autor da História Augusta, já que Macrino sequer havia nascido quando Lucius Verus foi imperador, sendo que ele provavelmente quis se referir a Caracala, cujo nome era Marcus Aurelius Antoninus) foi nomeado Procurador do Fisco.

E a História Augusta ainda cita outras passagens sobre a vida de Macrino, provenientes de outros autores não identificados, os quais mencionaram que ele teria chegado a lutar na arena como gladiador-caçador (isto é, um venator, tipo de gladiador que capturava feras e outros animais selvagens na arena, além de se apresentar como domador, fazendo-os performar truques) sendo que, após receber o diploma honorário de dispensa da profissão, ele mudou-se para a Província Romana da África.

De qualquer modo, as fontes concordam que Macrino exerceu o cargo de Procurador com zêlo e confiabilidade suficiente para fazer com que Caracala o nomeasse Prefeito Pretoriano, em 214 D.C., tornando-se um dos comandantes da Guarda Pretoriana. Este era um posto que inicialmente compreendia apenas o comando da Guarda, mas que, no decorrer do período imperial foi sendo expandido para abranger também o comando das tropas da Itália e outras unidades mais próximas ao imperador. Posteriormente, tornaria-se um dos cargos mais importantes da administração civil, de certa forma análogo ao de um primeiro-ministro ou grão-vizir. Normalmente, eram dois os Prefeitos Pretorianos, mas, sob Caracala, chegaram a haver três simultaneamente, sendo, um deles, Macrino. O outro era Marcus Oclatinius Adventus, que também havia sido anteriormente Procurator Augusti, algo que talvez demonstre um padrão nas nomeações de Caracala. Observe-se que, pela tradição, o cargo de Prefeito Pretoriano também era destinado à homens pertencentes à Classe Equestre.

Apesar da nomeação, Macrino parece não ter gozado da estima do imperador, que, segundo Herodiano, chegou a criticá-lo por ser adepto demais da boa mesa e também por ser efeminado.

Para não nos alongarmos muito, cumpre relatar que Macrino, na condição de Prefeito Pretoriano, acompanhou, juntamente com seu colega Adventus, Caracala na expedição contra os Parta. Durante a expedição, Flavius Maternianus, que havia ficado em Roma para comandar os Guardas durante a campanha, teria enviado uma carta a Caracala relatando que um vidente teria tido uma visão em que Macrino seria o novo imperador. Entretanto, Macrino, que já estava preocupado com a má disposição que o imperador vinha demonstrando contra ele, teve acesso primeiro à correspondência e, após ler a carta, removendo-a do malote, compreendeu que certamente seria executado se a profecia chegasse ao conhecimento de Caracala.

Assim, visando salvar a própria vida, Macrino abordou o soldado Julius Martialis, integrante da guarda pessoal do imperador, com quem ele tinha uma ligação próxima, o qual estava insatisfeito com Caracala pelo fato deste ter mandado executar injustamente o irmão dele, também soldado e convenceu-o a executar o imperador, da maneira já narrada no tópico antecedente.

Dois dias após o assassinato, e sob a iminência do exército ser atacado pelos Partas, as tropas aclamaram Macrino imperador. Vale observar que, antes, a coroa foi oferecida a Marcus Adventus, porém este recusou, alegando estar muito velho.

Importante notar que Macrino foi o primeiro imperador romano não oriundo da classe senatorial, em quase 250 anos de período imperial. Em uma sociedade marcadamente classista e estratificada como a romana, até aquele período, certamente era uma condição capaz de diminuir a legitimidade do imperador. Não obstante, Caracala era tão detestado pelo Senadores que a notícia da aclamação de Macrino foi bem recebida e confirmada pelo Senado Romano.

Em seguida, Macrino concluiu uma paz com os Partas, mas, ao invés de desmobilizar o Exército reunido para a campanha, mandando-o de voltas para os seus quartéis nas fronteiras, e voltar para Roma, ele preferiu ficar em Antióquia, decisão que foi considerada um erro. Ali, Macrino ficou um tempo desfrutando de luxo e prazeres, vestido com roupas luxuosas e extravagantes, o que, aparentemente, dá alguma pista de que as mencionadas críticas de Caracala não seriam infundadas.

Então, os soldados passaram a sentir nostalgia de Caracala, que se comportava como um deles. Além disso, a crise fiscal ocasionada pelo aumento dos gastos militares necessitava de medidas urgentes. Macrino, então, decidiu que os novos recrutas do Exército receberiam um soldo menor do que os já engajados. A idéia era não desagradar os soldados já em exercício, mas isso acabou sendo percebido como uma antecipação de futuros cortes nos soldos deles.

A insatisfação das tropas com Macrino não passou despercebida às influentes mulheres da família de Caracala. A imperatriz Júlia Domna havia morrido, de câncer no seio, pouco depois dele assumir o trono. Macrino, então, ordenou que a irmã dela, Júlia Maesa, deixasse Roma e voltasse para a cidade natal delas, Emesa, na Síria, junto com suas filhas, Júlia Soêmia e Júlia Maméia, e seu neto, Sextus Varius Avitus Bassianus, que ficaria conhecido como Elagábalo (ou Heliogábalo), filho da primeira.

Ocorre que Macrino permitiu que Júlia Maesa mantivesse com ela a imensa fortuna que a família, que já era riquíssima pelo fato de governarem a cidade e chefiarem o culto ao deus El-Gabal, tinha amealhado durante mais dos 20 anos em que fizeram parte da família imperial. Certamente, este dinheiro facilitou que Júlia Maesa convencesse os soldados da III Legião Gallica, cujo quartel ficava próximo à Emesa, que seu neto, considerado um adolescente muito bonito, chamado Elagábalo, em homenagem ao referido deus, era filho ilegítimo de Caracala, a quem as tropas tanto adoravam. Assim, em 16 de maio de 218 D.C, o comandante da Legião, Publius Valerius Comazon, aclamou Elagábalo imperador.

A reação de Macrino, que aparentemente não deu a importância devida à rebelião, foi nomear seu filho, Diadumeniano, de dez anos de idade, como co-imperador e enviar um destacamento comandado pelo novo Prefeito Pretoriano, Ulpius Julianus. Porém, ao chegarem ao acampamento dos rebeldes, os soldados de Ulpius, ao verem Elagábalo nos muros e as bolsas cheias de dinheiro dos revoltosos, desertaram e se uniram aos camaradas. A cabeça de Ulpius foi cortada e enviada a Macrino.

Áureo de Diadumeniano. Foto Numismatica Ars Classica NAC AG, CC BY-SA 3.0 CH https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/ch/deed.en, via Wikimedia Commons

Em 8 de junho de 218 D.C, uma força comandada pelo tutor de Elagabálo aproximou-se de Antióquia. Macrino decidiu dar combate ao exército rebelde, mas, durante os combates, o imperador, descrente do resultado, abandonou o campo de batalha e voltou para Antióquia. Na cidade, contudo, estouraram tumultos e Macrino resolveu fugir em direção à Roma, e despachou Diadumeniano para que esse encontrasse abrigo entre os Partas.

Ao chegar à cidade de Calcedônia, Macrino foi reconhecido e capturado, sendo mantido em cativeiro. Por sua vez, a caravana conduzindo Diadumeniano foi interceptada na cidade de Zeugma e o menino assassinado. Quando a notícia chegou ao conhecimento de Macrino, ele tentou fugir, sem sucesso, terminando por ser também executado, ainda em junho de 218 D.C. A cabeça dele foi enviada à Elagábalo, o novo imperador.

3- LUCILLA e LUCIUS VERUS

Novamente, assim, como no primeiro filme a personagem feminina principal da sequência é Lucilla, a irmã do falecido imperador Cômodo. Em Gladiador (1), o espectador fica sabendo que Lucilla, antes ou depois de ficar viúva de seu marido, Lucius Verus (Lúcio Vero), manteve um caso de amor com o principal general de seu pai, Maximus. Mas, percebendo as intenções tirânicas de seu irmão Cômodo, a aflita Lucilla resolve colaborar com influentes senadores que se opunham ao reinado dele, e tramam restaurar a República. Em Gladiador II, novamente Lucilla é interpretada pela atriz Connie Nielsen.

Na vida real, Lucilla, cujo nome completo era Annia Aurelia Galeria Lucilla, de fato era a irmã mais velha de Cômodo (a diferença de idade entre os dois era de cerca de 12 anos) e, efetivamente, ela se casou com Lúcio Vero, que foi aclamado imperador junto com Marco Aurélio, em 161 D.C (o casamento foi celebrado em 164 D.C., ocasião em que ela tinha entre 14 e 16 anos de idade), sendo que o matrimônio durou até o marido morrer vitimado pela Peste, em 169 D.C. Como decorrência de seu casamento com Lúcio Vero, Lucilla recebeu o título de Augusta (Imperatriz), a posição máxima que uma mulher romana poderia aspirar na sociedade patriarcal romana, e todos os privilégios associados a esta posição.

Estátua de Lucilla, caracterizada como a deusa Ceres. Foto: Bardo National Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

Lucilla e Lúcio Vero tiveram três filhos: Aurelia Lucilla, Lucilla Plautia e Lucius Verus (mesmo nome do pai), mas a mais velha e o menino morreram ainda crianças, e somente Lucilla Plautia parece ter alcançado a idade adulta.

O imperador Marco Aurélio, após a morte de Lúcio Vero, decidiu que Lucilla deveria casar de novo, e ele escolheu para ser o novo marido dela o general Tiberius Claudius Pompeianus, um de seus auxiliares mais próximos, que comandara com sucesso as legiões da província romana da Panônia, no norte do Império, e que também derrotara invasões dos bárbaros germânicos Lombardos e Marcomanos. Conforme expusemos no artigo sobre Maximus Decimus Meridius e o filme Gladiador (clicar no nome), Tiberius Claudius Pompeianus foi a principal inspiração para o personagem fictício Maximus.

Porém, embora Pompeianus, na ocasião do casamento com Lucilla, ocorrido em 169 D.C, já fosse senador e tivesse ocupado um consulado, ele era oriundo da Classe Equestre (que pode ser considerado o segundo escalão da nobreza romana), e, portanto, seu status social era inferior ao de Lucilla, filha e parente de imperadores, e esta foi uma circunstância que desagradou tanto a noiva como a sua mãe, conforme relatado na Historia Augusta. Para piorar, Pompeianus, na ocasião do casamento, que ocorreu em 169 D.C, tinha cerca de 44 anos de idade, enquanto que Lucilla tinha por volta de 21 anos…

O principal motivo para Marco Aurélio ter resolvido casar Lucilla com Pompeianus foi o fato de que, naquele momento, seu filho do sexo masculino, Cômodo, ter apenas oito anos de idade. A chamada “Peste Antonina“, uma séria epidemia, começava a grassar em Roma e o velho imperador temia que, se ele morresse, algum senador ou general ambicioso tomasse o trono para si. Pompeianus, além de ser um general respeitado, era um amigo confiável. Inclusive, após o casamento, Marco Aurélio chegou a consultar Pompeianus se ele aceitaria ser nomeado “César”, significando ser o seu herdeiro oficial, porém, o general não aceitou. Certamente, a intenção do imperador era que, caso ele morresse subitamente, o fiel Pompeianus asseguraria que, quando Cômodo atingisse a idade adulta, este assumiria o trono.

A diferença de idade entre Pompeianus e Lucilla, contudo, não impediu que eles tivessem um filho: por volta de 176 D.C, Lucilla deu a luz a um menino, que recebeu o nome de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus.

Marco Aurélio permitiu que Lucilla mantivesse alguns dos privilégios inerentes ao status de imperatriz após a morte de Lúcio Vero, não obstante sua esposa Faustina, a Jovem, a mãe de Lucilla, fosse, desde então, a única Augusta (Imperatriz). Entretanto, ao contrário do enredo do filme Gladiador (1), em 177 D.C, Marco Aurélio decidiu que era já hora de nomear Cômodo, agora com 15 anos (e considerado como adulto pelos costumes romanos) co-imperador, dando-lhe o título de Augusto, consagrando, assim, a posição do filho como seu sucessor natural.

Como não é de surpreender, a elevação de Cômodo afetou diretamente as expectativas que Lucilla poderia acalentar quanto às chances de seu marido, Pompeianus, vir a suceder Marco Aurélio, e, consequentemente, ela voltar a ser, novamente, imperatriz. E quaisquer anseios dela neste sentido restaram ainda mais enfraquecidos quando, em 178 D.C, seu irmão Cômodo casou-se com a rica aristocrata Bruttia Crispina, que imediatamente recebeu o título de Augusta, tornando-se a única imperatriz romana, tendo em vista que Faustina, a Jovem morreu em 175 D.C.

A verdade é que o retrato de Lucilla, pintado nas fontes antigas, mostra que, do mesmo modo que o seu irmão Cômodo, ela era uma mulher ambiciosa e sem escrúpulos.

Assim, após a morte de Marco Aurélio e assunção de Cômodo ao trono, constatando a inaptidão do irmão para governar, a ambição, o ciúme e o orgulho ferido de Lucilla causados pela sua posição inferior à da nova imperatriz Bruttia Crispina, impeliram-na a participar ativamente de uma conspiração que, em 182 D.C, tentou assassinar Cômodo.

Essa conspiração, de acordo com o relato de Herodiano, envolveu diretamente familiares e pessoas próximas à Lucilla, como a sua filha Plautia, e também vários senadores, e o seu objetivo final era assassinar Cômodo e substituí-lo no trono por Tiberius Claudius Pompeianus, o marido de Lucilla, que com isso voltaria à almejada posição de Imperatriz. Ainda segundo Herodiano, Lucilla instigou seu primo, Marcus Ummidius Quadratus Annianus, de quem ela seria amante, a dar andamento ao plano. Este, por sua vez, persuadiu um certo Quintianus, um jovem senador que seria sobrinho, ou mesmo filho do primeiro casamento de Pompeianus, a ser o executor da trama. O local escolhido foi o Coliseu.

Porém, a execução do plano foi mal feita, os guardas pretorianos prenderam Quintianus.

Com o fracasso do atentado, Quintianus e Quadratus foram imediatamente executados, e Lucilla e sua filha foram banidas para a ilha de Capri. Entretanto, antes que o ano de 182 acabasse, Cômodo resolveu mandar executar a irmã e enviou um centurião até a ilha, o qual deu cabo da tarefa e jogou o corpo de Lucilla no mar. Plautia foi poupada, assim como Pompeianus, que, tudo indica, não sabia do plano.

Desse modo, já fazia mais de 25 anos que Lucilla estava morta no ano em que o enredo de Gladiador 2 começa.

Pelo que se depreende das fontes, Lucius Verus, o filho que Lucilla teve com seu primeiro marido, cujo nome era o mesmo do filho, morreu ainda criança, embora não se saiba quando nem como (a causa mais provável seria a Peste que grassava em Roma). Ele foi a terceira criança a nascer do casamento entre os dois, sendo que a primeira, Aurelia Lucilla, nasceu em 165 D.C., sendo seguida por Plautia. Então ele deve ter nascido entre 167 e 169 D.C., ano em que seu pai morreu. Ele não deve ter chegado a idade de vestir a toga virilis, fato que marcava a chegada da idade adulta para os meninos, o que ocorria entre 14 e 15 anos, pois certamente isto teria constado nas fontes, inscrições ou algum objeto comemorativo.

Como já vimos, Lucilla teve um filho com Tiberius Claudius Pompeianus, que deve ter nascido a partir de 170 D.C, uma vez que o casamento ocorreu em 169 D.C, quando Lúcio Vero estava na Síria, e os recém-casados se encontraram em Éfeso. O menino recebeu o nome de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus, e o mais provável é que ele tenha nascido entre 170 D.C e 177 D.C., sendo 176 D.C uma data estimada por alguns historiadores.

Ao contrário do primeiro filho de Lucilla com Lúcio Vero, seu meio-irmão, fruto do casamento dela com Tiberius Claudius Pompeianus, de nome Lucius Aurelius Commodus Pompeianus chegou a ter uma carreira pública de sucesso. Sabe-se que, durante o reinado de Septímio Severo, ele serviu como Tribuno Militar na Legião I Minervia. Provavelmente, a este imperador, que pretendia se legitimar como sucessor dos Antoninos, chegando até a auto-proclamar a sua “adoção retroativa” por Marco Aurélio, interessava demonstrar respeito pelo neto dele, como era o caso de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus. Por isso, em 209 D.C., quando ele tinha entre 32 e 39 anos, Septímio Severo fez com que o filho de Lucilla fosse nomeado Cônsul.

Contudo, com a subida do irascível e sanguinário Caracala ao trono, a sorte de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus estava selada: Logo após o assassinato de Geta, em 212 D.C, Lucius Aurelius, juntamente com muitos outras pessoas que tinham parentesco ou estiveram associadas aos reinados do pai dele e dos Antoninos foram assassinadas.

4- O COLISEU NO FILME

A construção do Coliseu começou em 72 D.C, no início do reinado do imperador Vespasiano (Tito Flávio Vespasiano), ficando pronto em 80 D.C, no reinado de seu filho, Tito. Acredita-se o seu nome oficial era Anfiteatro Flavio, embora isto não conste de nenhuma inscrição ou texto antigo.

O apelido “Coliseu”, do latim Colosseum (em latim: “Do Colosso”), ao contrário do que muitos podem pensar, não decorre do tamanho do anfiteatro, e sim de uma enorme estátua do imperador Nero, de mais de 30 metros de altura (ou seja, quase do tamanho do Cristo Redentor) ao lado da qual ele foi construído, e que era conhecida como “Colossus“. Assim, é bem provável que a plebe romana tenha começado a dizer que ia assistir as lutas no “anfiteatro do Colosso”, e o nome pegou.

A capacidade do Coliseu, quando estava intacto, é estimada entre 55 mil e 70 mil espectadores, alguns falando em 80 mil lugares. As 80 entradas em arco (sendo quatro maiores: uma exclusiva para o imperador e outras três para senadores e outros figurões), as escadarias e os setores eram numerados, assim como em um estádio moderno. O acesso e a saída das arquibancadas se dava, como nos estádios modernos, por túneis e aberturas chamados de vomitórios (vomitoria), e estudos mostram que o Anfiteatro poderia ser esvaziado em poucos minutos, graças ao primoroso projeto arquitetônico. Finalmente, havia um elaborado sistema de cobertura retrátil para proteger os espectadores do inclemente sol italiano, o velarium, tão complexo e de fato semelhante aos cabos e velas de um navio, que tinha que ser manejado pelos marinheiros da Frota Imperial de Misenum. Inicialmente, quando foi inaugurado, o Coliseu podia ser inundado, graças a um canal subterrâneo que trazia água de um aqueduto (sendo que um trecho deste canal ainda existe). A finalidade era encenar batalhas navais com galeras tripuladas por gladiadores e remadores, o que de fato chegou a acontecer. Neste caso, o Coliseu funcionava como uma “Naumaquia“, como eram chamados os espaços construídos para essas exibições.

Entretanto, durante o reinado do imperador Domiciano (81- 96 D.C), decidiu-se construir, embaixo da arena, um imenso labirinto de corredores e de celas para feras, e onde também havia guindastes para içamento de jaulas, criando-se um espaço subterrâneo que foi chamado de “Hipogeu” (palavra grega que tem exatamente o significado de “subterrâneo”). Com isso, o Coliseu não pôde mais ser inundado, perdendo a sua breve funcionalidade como Naumaquia. Ao que se sabe, peixes e outros animais aquáticos jamais foram exibidos neste período.

Segundo o historiador Cássio Dião, nos jogos inaugurais do Coliseu, em 80 D.C, foram mortos 9 mil animais e um número desconhecido de gladiadores. Além dos combates entre gladiadores e execuções de condenados (que podiam ser obrigados a lutar entre si até a morte ou executados de outras formas), no Coliseu eram apresentados espetáculos de caçadas (venationes) e lutas entre animas dos mais diversos tipos: elefantes, leões, tigres, ursos, javalis, e, sim, rinocerontes. Condenados à morte também podiam ser jogados a essas feras como forma de execução.

CONCLUSÃO

Comentamos, assim, os principais aspectos do filme Gladiador 2, a nosso ver, embora um bom filme, bem inferior ao primeiro. Evitamos, como já dissemos no início, falar sobre muitas cenas para não cometermos “spoiler”, já que se trata de um filme ainda em cartaz. Com o passar do tempo, iremos aprimorar este artigo. Espero que tenham “ficado entretidos”.

FIM

IO, SATURNALIA!

A Saturnália era um festival da Antiga Roma em honra ao deus Saturno, que ocorria em 17 de dezembro no Calendário juliano. Mais tarde, as festividades foram estendidas até 23 de dezembro.

Saturno na mitologia romana foi o deus responsável por ensinar a agricultura aos homens, inaugurando uma “Era de Ouro”, de abundância e igualdade, por isso a divindade é habitualmente representada com uma foice na mão. Vale observar, inclusive, que o nome “Saturno” está ligado a raiz da palavra “semear”, em latim.

Afresco do deus Saturno, proveniente da Casa dos Dioscuros, em Pompéia. Carole Raddato from FRANKFURT, Germany, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Era a Saturnália uma das festas religiosas romanas ancestrais, ligada ao fim da sementeira de outono, quando dezembro ainda era para os Romanos o décimo e último mês do ano, antes da adoção do citado Calendário Juliano, que foi implantado pelo Ditador Júlio César e que era baseado no movimento de translação da Terra em torno do Sol durante um ano de 365 dias, dividido em 12 meses.

Com o fim da sementeira, para os agricultores romanos, terminava mais um ano de trabalho, o que era para eles, assim como até hoje é para nós, motivo para celebração e alegria.

Porém, com o passar do tempo e o progressivo distanciamento dos Romanos da Urbe das atividades agrícolas, o sentido inicial do Festival caiu no esquecimento, e a Saturnália transformou-se na prática em um animado Festival de Inverno.

O Feriado era celebrado com um sacrifício no Templo de Saturno, no Fórum Romano, seguido de um banquete público e da troca de presentes nas residências, fazendo-se festa contínua em uma atmosfera semelhante ao carnaval, onde se derrubavam as convenções sociais romanas: por exemplo, os escravos podiam ser servidos à mesa pelos seus senhores, e jogos de dados e outros tipos de jogos de azar eram permitidos em público. A Saturnália era uma das poucas datas festivas em que realmente quase ninguém trabalhava. As ruas da Cidade ficavam cheias de gente e os celebrantes cumprimentavam-se uns aos outros, dizendo: “Io, Saturnalia!”

File:Temple Saturne - Rome (IT62) - 2021-08-27 - 1.jpg
O Tempço de Saturno, no Fórum Romano Chabe01, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

O poeta Catulo chamava a Saturnália de “o melhor dos dias“.(Da Wikipedia).

Muitos estudiosos acreditam que a Saturnália está na origem do costume das pessoas darem-se presentes no Natal e ela teria, até mesmo, influenciado a própria existência desta festividade cristã em si.

Fontes:

  1. Gods and Myths of the Romans, Mary Barnett, Grange Books, 1999
  2. Roma, Biblioteca dos Grandes Mitos e Lendas Universais, Stewart Perowne, Verbo, 1987
  3. Saturnalia, verbete Wikipedia, inglês

NERO, IMPERADOR E ARTISTA

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Nascimento e infância 

Em 15 de dezembro de 37 D.C., nasceu, em Anzio, Itália, Lucius Domitius Ahenobarbus (II), que passaria a História com o nome de Nero, filho de Gnaeus Domitius Ahenobarbus e de Agripina Minor (Agripina, a Jovem).

A gens dos Domícios (Domitii), que nos primórdios da República era plebeia, atingiu, ainda durante a fase de expansão de Roma pela península itálica, uma grande proeminência política, ocupando  a magistratura do Consulado e fornecendo ao Estado destacados generais.

Já no final do período republicano, o ramo da gens Domitia dos Ahenobarbus (literalmente,  os “barbas ruivas”) apoiou a facção senatorial dos Optimates (nobres) contra Júlio César. E, após o assassinato do Ditador, durante o Segundo Triunvirato, eles estiveram associados com o triúnviro Marco Antônio.

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(Busto colorizado de Nero, mostrando os cabelos e a barba ruiva, característica da família dos Ahenobarbus)

Apesar de ter apoiado Marco Antônio, a família acabaria ingressando no círculo familiar do grande rival dele na disputa pelo poder supremo – Otaviano (o futuro imperador Augusto), uma vez que o bisavô de Nero, que também se chamava Lucius Domitius Ahenobarbus (I), casou-se com  Antonia Major (Antônia, a Velha) que era filha de Antônio e Otávia,  a irmã de Otaviano.

Os laços com a dinastia imperial dos Júlios-Cláudios (nome que deriva do fato de Augusto, sobrinho-neto e herdeiro de Júlio César, ter adotado o filho de sua terceira esposa, Lívia Drusila, e que seria o seu sucessor, Tibério.

Agripina, a Jovem, por sua vez, era neta de Augusto (a mãe dela, Agripina, a Velha, era filha de Júlia, a filha única de Augusto com sua segunda esposa Escribônia). Portanto, Nero era descendente direto do primeiro imperador, por parte de mãe, e também era parente de Augusto, por parte de seu pai, Gnaeus Domitius Ahenobarbus.

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Todavia, a despeito de possuir tão ilustre ascendência, a princípio não parecia que o destino de Nero prometia muito. Com efeito, o seu pai, que tinha sido Cônsul em 32 D.C.,  foi acusado de traição, assassinato e adultério no final reinado de Tibério e ele somente se safou graças à morte do velho imperador, em 37 D.C., alguns meses antes do nascimento do próprio Nero. Todavia, Gnaeus Domitius Ahenobarbus acabaria morrendo poucos anos depois, de um edema, em janeiro de 40 ou 41 D.C.

O historiador romano Suetônio escreveu que Gnaeus Domitius Ahenobarbus era um homem cruel e desonesto. Talvez por isso, ao receber os cumprimentos dos amigos pelo nascimento de Nero, o historiador registra que ele teria dito:

“Nada que não seja abominável e uma desgraça pública pode nascer de Agripina e de mim”

A sorte de Agripina, a mãe de Nero, não foi melhor no período. Embora ela fosse irmã do novo imperador, Gaius Julius Caesar Germanicus, mais conhecido como Calígula, (ambos eram filhos de Germânico, o falecido sobrinho e herdeiro de Tibério, adorado pelo povo e supostamente envenenado a mando de Lívia, viúva de Augusto e mãe de Tibério), este logo entrou em um processo de paranoia e loucura que o levou a suspeitar e perseguir de quase todos, inclusive os integrantes de seu círculo mais íntimo.

Assim, em 39 D.C., Agripina foi acusada de fazer parte de uma conspiração, fictícia ou verdadeira, contra o seu irmão, sendo condenada ao exílio nas ilhas Ponzianas, ao largo da Itália. Então, Calígula aproveitou esse pretexto para confiscar a herança do seu jovem sobrinho Nero.

Nero, portanto, no espaço de dois anos, quando ainda era uma criança de tenra idade, além de ter sido afastado do convívio com a mãe, exilada, teve a sua herança confiscada e também perdeu o pai. Ele foi então morar com sua tia, Domícia Lépida, que era irmã de seu pai.

Reabilitação de Agripina e Nero

Todavia, a sorte de Agripina e Nero mudaria com o assassinato de Calígula pelo centurião Cássio Queréa, em 41 D.C., em uma conspiração engendrada pela Guarda Pretoriana. Logo após o tiranicídio, os guardas descobriram, escondido atrás de uma cortina, o tio da imperial vítima, Cláudio, até então tido como imbecil e incapaz de ocupar qualquer cargo público, e o aclamaram como novo Imperador.

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Cláudio era irmão de Germânico e, portanto, não surpreende que uma das primeiras medidas de Cláudio tenha sido chamar de volta do exílio a filha deste, Agripina, que era sua sobrinha. Assim reuniram-se, novamente, Nero e sua mãe. O novo imperador mandou também devolver ao seu sobrinho-neto, Nero, a herança confiscada por Calígula.

Ao contrário das expectativas, Cláudio mostrou-se um administrador competente das questões de Estado. Todavia, o mesmo não se pode dizer quanto à sua vida conjugal… Após dois casamentos fracassados, Cláudio casou-se com Valéria Messalina (filha de Domícia Lépida), esposa que se mostrou dominadora e notabilizou-se pela infidelidade e promiscuidade sexual, segundo os relatos antigos, que talvez sejam um tanto exagerados (ver Tácito, Suetônio, Plínio e Juvenal).

O fato importante é que Messalina deu a Cláudio, em 41 D.C., um filho, que recebeu o nome de Britânico, e a nova imperatriz imediatamente percebeu que o jovem Nero era uma ameaça às pretensões do seu filho natural ao trono. Consta, inclusive, que Messalina, certa vez, teria encomendado a morte de Nero a assassinos que chegaram a entrar no quarto do menino, e somente não completaram a tarefa porque se assustaram com o que eles pensaram ser uma cobra.

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(Messalina segurando Britânico, estátua no Museu do Louvre, foto de Ricardo André Frantz)

A grande popularidade de Agripina e Nero foi atestada quando, durante os concorridos Jogos Seculares, em 47 D.C., eles foram ovacionados pelo povo, que demonstrou por eles muito mais simpatia do que em relação a Messalina e Britânico, que também estavam presentes no evento.

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(Estátua de Nero criança, foto de Prioryman )

Se a conduta pretensamente escandalosa de Messalina foi ou não a causa da sua desgraça, o fato é que ela foi sentenciada à morte em 49 D.C., supostamente por ter se casado secretamente com um senador, Gaius Silius, no que seria uma conspiração para assassinar o seu marido e imperador. Há relatos de que, ainda assim, Cláudio teria relutado em ordenar a execução dela, que somente teria sido levada a cabo por iniciativa de seus auxiliares.

Agripina, imperatriz

Naquele mesmo ano de 49 D.C., Cláudio casaria com sua sobrinha, Agripina, a Jovem. Este pode muito bem ter sido um casamento político, já que nenhuma mulher, naquele momento, tinha linhagem mais ilustre. Há, contudo, quem acredite que Agripina, valendo-se da intimidade familiar que a condição de jovem e bonita sobrinha lhe propiciava, tenha astuciosamente seduzido o seu velho tio.

Em verdade, para os romanos, o casamento de Cláudio e Agripina tinha um caráter incestuoso, já que o casamento de tio e sobrinha era quase tão inaceitável como o de um pai com a filha.

Portanto, o custo político dessa união deve ter sido considerável e é possível que somente o fato de Cláudio ter sido seduzido explique ele ter descartado as consequências políticas negativas de mais esse escândalo em sua vida conjugal. O passado do velho imperador nos inclina para essa última hipótese, pois houve episódios anteriores nos quais ele parece ter sido emocionalmente manipulado por mulheres dominadoras…

Seja como for, o fato é que Agripina não titubeou em tratar de se tornar a pessoa mais poderosa na corte imperial, afastando aqueles que não lhe parecessem leais e, sobretudo, os concorrentes de seu filho Nero à sucessão de Cláudio.

Ainda em 49 D.C., a imperatriz Agripina recebeu o título de “Augusta“, sendo esta a primeira vez que esse título era conferido a uma mulher em vida (as suas duas antecessoras, Lívia e Antônia, o receberam como honra fúnebre). Neste mesmo ano, Cláudio batizou em sua homenagem uma cidade recém-fundada na Germânia, que recebeu o nome de Colonia Claudia Ara Agrippinensis ( a atual Colônia, na Alemanha – Agripina nasceu ali, quando o local ainda era um quartel militar comandado por seu pai, Germânico).  Vale citar que nunca, antes ou depois  na História de Roma, uma cidade romana foi batizada em homenagem a uma mulher.

Nero, herdeiro do trono

Em 50 D.C., Lucius Domitius Ahenobarbus (Nero) foi adotado por Cláudio, tornando-se oficialmente seu herdeiro, passando a se chamar Nero Claudius Caesar Drusus Germanicus. No ano seguinte, Nero, então com 14 anos, foi declarado maior de idade (assumindo a “toga virilis”), foi nomeado Proconsul e entrou para o Senado. A partir daí, ele começou a participar das cerimônias públicas junto com o Imperador, e até moedas foram cunhadas com a efígie de ambos.

Antecipando a necessidade futura de Nero contar com o apoio da Guarda Pretoriana para alcançar o trono, Agripina persuadiu Cláudio a nomear o militar Sextus Afranius Burrus (Burro) como único Prefeito Pretoriano (Comandante), no lugar de Lusius Geta e Rufius Crispinus.

Agripina supervisionava cuidadosamente a preparação de Nero para a futura ascensão ao trono imperial,  designando, por exemplo, o afamado filósofo estoico Sêneca, o Jovem para ser o tutor do rapaz. Ela também não poupou esforços para fazer o filho querido pelo populacho. Além disso tudo, Agripina manobrou para que Cláudia Otávia, a filha de Cláudio e irmã de Britânico, e Nero se casassem, em 9 de junho de 53 D.C.

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(Cláudia Otávia, primeira esposa de Nero)

A adoção de Nero por Cláudio é um episódio que suscita muita discussão entre os historiadores, já que Cláudio tinha um filho natural do sexo masculino, Britânico, que era apenas quatro anos mais novo do que Nero.  E não há nada que indique, fora, obviamente, esse fato, que Cláudio não nutrisse pelo rapaz o amor paternal.

Seja como for, as fontes relatam que, à medida que Britânico ia chegando à idade de assumir a “toga virilis”, Cláudio começou a dar seguidas demonstrações de afeto pelo filho natural. Segundo os historiadores Tácito, Suetônio e Cássio Dião, Cláudio somente estaria esperando a maioridade do filho natural para nomeá-lo como seu novo herdeiro, e ele teria declarado isso na presença de outros, sendo esse o fato que levou Agripina a tramar a sua morte

Cláudio morreu em 13 de outubro de 54 D.C., aos 63 anos – uma idade avançada para a época – no que pareceu ser uma indisposição gástrica após ele ter comido um prato de cogumelos, o qual lhe ocasionou vômitos. As fontes antigas dão crédito a versão de que aqueles cogumelos, comida muito apreciada por Cláudio, teriam sido envenenados, por uma poção preparada pela famosa envenenadora Locusta, que tinha sido contratada por Agripina. O motivo para o assassinato era óbvio: impedir que Britânico fosse nomeado herdeiro pelo pai.

Imperador Nero – primeiros anos

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(Agripina, personificada como a deusa Ceres, coroa Nero. A mensagem devia ser evidente para todos)

No mesmo dia em que Cláudio morreu, Nero foi saudado imperador pela Guarda Pretoriana, e, em seguida, ele foi reconhecido como tal pelo Senado Romano. Nero não sabia, mas seria o último imperador da dinastia dos Júlios-Claúdios.

O reinado de Nero começou promissor. Ele tinha apenas 17 anos, mas era aconselhado pelo filósofo Sêneca (que, segundo Cássio Dião), redigiu seu primeiro discurso ao Senado), e por Burro, que foi mantido como Prefeito da Guarda Pretoriana, e, de fato, as suas primeiras medidas como imperador suscitaram aprovação geral.

Vale notar que, ainda durante o reinado de Cláudio, a administração dos assuntos de Estado começou a ser desempenhada cada vez mais pelos escravos libertos do Imperador que trabalhavam nas dependências do Palácio e que passaram a constituir o embrião de verdadeiros ministérios, no sentido administrativo moderno, assumindo tarefas que antes estavam a cargo dos antigos magistrados da República. Nero herdou esse sistema, e muitos libertos de Cláudio continuaram a exercer seus cargos no seu reinado, como por exemplo o liberto Marcus Antonius Pallas, que ocupava um cargo equivalente ao de Secretário do Tesouro, uma circunstância que assegurou certa continuidade administrativa.

Sêneca e Burro, sensatamente, procuraram assegurar que o imperador mantivesse boas relações com o Senado Romano, comparecendo às sessões desta assembleia e levando em consideração as recomendações dos senadores. Os dois preocuparam-se especificamente em abolir o costume implementado por Cláudio, de conduzir julgamentos em sessões privadas realizadas no próprio Palácio (“in camera”), o que era considerado contrário aos princípios jurídicos romanos tradicionais, que previam audiências públicas..

Foram promulgados decretos visando prevenir que os governadores extorquissem demasiadamente as províncias e também outros relativos à ordem pública e urbana. Nero também postulou, sem levar em consideração as despesas públicas, abolir vários tributos, sendo, entretanto, demovido desse propósito pelo Senado. Muitas das medidas de Nero, aliás, demonstravam um grande desejo dele aumentar a sua popularidade.

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Os dois conselheiros procuraram, ainda, diminuir a excessiva intervenção de Agripina nos assuntos do governo, e, com esse propósito, eles chegaram até a incentivar a paixão que Nero nutria pela liberta Acte, que virou amante do Imperador. Dessa forma, além de afastar Nero da influência da mãe, eles também visavam diminuir a inclinação ao desregramento sexual que já se percebia no jovem imperador, impulsos que o casamento com a imperatriz  Cláudia Otávia parecia incapaz de arrefecer.

Observe-se que Suetônio acusa diretamente Nero e Agripina de manterem uma relação incestuosa, mencionando até que isso costumava ocorrer quando os dois viajavam pelas ruas romanas em liteiras, um comportamento que seria denunciado pelas manchas suspeitas na toga do filho… Outros autores, de fato, também citam este costume que ambos tinham de andar na mesma liteira, mas muitos historiadores consideram que a obra de Suetônio, em muitas passagens, tende a reproduzir e aumentar boatos escandalosos, sem muita preocupação com a verdade histórica.

A tônica, porém, em todas as fontes, é de que Nero não nutria muito entusiasmo pelas tarefas governamentais, preferindo dedicar-se ao canto, ao teatro e às competições esportivas, sobretudo corridas de cavalos. Progressivamente, também, o poder absoluto lhe permitiu experimentar as mais variadas práticas sexuais.

Assim, a falta de aptidão para o cargo, a juventude e a onipotência uniram-se para empurrar Nero para uma ilimitada devassidão. Por outro lado, o avanço dos anos deu-lhe confiança para cada vez mais afirmar a sua vontade e ignorar os conselhos de Sêneca e Burro, ao passo que a repetida intromissão de Agripina em sua vida começou a lhe parecer insuportável, notadamente a oposição que a mãe externava em relação ao seu romance com Acte.

Morte de Britânico e Agripina. Nero governa por conta própria

Outro fator de discórdia entre mãe e filho, e talvez mais importante, foi o fato de Agripina, certa vez, ter insinuado que Britânico aproximava-se da maioridade, dando a entender a Nero que ela poderia apoiar o rapaz como sendo o legítimo herdeiro de Cláudio. Por isso, em 55 D.C., Nero demitiu o liberto Pallas, que tinha sido um fiel aliado de Agripina desde os tempos de Cláudio.

Ainda em 12 de fevereiro de 55 D.C., Britânico morreu, no dia exato em que ele completaria a maioridade. Segundo os autores antigos, ele foi envenenado a mando de Nero, que teria também recorrido aos serviços da envenenadora Locusta.

Mas a relação de Nero com a mãe azedou de vez quando, em 58 D.C., a nobre Popéia Sabina, a Jovem, tornou-se amante dele. Agripina, opondo-se ao romance, aproximou-se da imperatriz Cláudia Otávia, que, em oito anos de casamento com Nero, não tinha gerado filhos, muito em função do desinteresse do marido pela esposa.

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(Popéia Sabina, segunda esposa de Nero)

Popéia Sabina, que era casada com Marcus Salvius Otho (o futuro imperador Otão), grande amigo de Nero, em vingança à oposição de Agripina ao seu romance com o imperador, teria aconselhado Nero a assassinar a mãe,  segundo Tácito (Nota: Popéia seria natural de Pompéia, e a sua magnífica Villa, na cidade de Oplontis, foi soterrada pela erupção do Vesúvio e descoberta em excelente estado de conservação -vide fotos abaixo).

Os historiadores narram que Nero teria engendrado vários esquemas engenhosos para matar Agripina, que iam desde o naufrágio em um navio previamente sabotado para se desmanchar no mar, ao desabamento provocado do teto de um aposento que ela ocupava, todas sem sucesso.

Finalmente, em 23 de março de 59 D.C., Nero conseguiu que a mãe morresse, embora não seja claro de que forma ela foi morta. Aparentemente, após sobreviver ao naufrágio, Nero enviou assassinos para matar a mãe. Segundo um relato, quando o executor ergueu a espada, Agripina teria dito, como se lamentasse ter parido o filho, apontando para o próprio ventre:

“Fira o meu útero!”

Afastada a influência, diga-se de passagem, raramente benigna, da mãe, Nero sentiu-se livre para fazer tudo o que lhe apetecesse. Ele entregou-se totalmente à sua paixão pelas artes, apresentando-se publicamente cantando e tocando a lira. Ocorre que os recitais dele eram intermináveis, e Tácito comenta que, em algumas ocasiões, mulheres chegaram a dar à luz e pessoas chegaram a falecer enquanto assistiam os longos espetáculos. Ficou famoso o caso do futuro imperador Vespasiano, que, apesar de ser um militar de prestígio, caiu em desgraça após dormir durante um recital de Nero.

É importante ressaltar que, segundo os padrões de conduta morais vigentes na aristocracia romana à época, um nobre apresentar-se publicamente como artista ou esportista era considerado degradante.

Em 62 D.C., Burro faleceu, e Sêneca foi obrigado a se afastar do governo devido a acusações de enriquecimento ilícito (que aparentemente eram verdadeiras), as quais vieram somar-se à suspeita, já existente, de que Sêneca teria mantido relações amorosas com Agripina.

Naquele mesmo ano de 62 D.C., Popéia ficou grávida de Nero, que finalmente decidiu divorciar-se de Cláudia Otávia, sob o pretexto de infertilidade da imperatriz. Assim, doze dias depois do divórcio, Nero casou-se com Popéia.

A infeliz Cláudia Otávia foi exilada na ilha de Pandatária, mas a opinião pública protestou e exigiu que Nero a trouxesse de volta à Roma. Logo em seguida, porém, ela morreria, tendo apenas cerca de 23 anos de idade, assassinada a mando do imperador, embora os executores tenham tentado fazer a morte dela parecer um suicídio.

Em 21 de janeiro de 63 D.C.Popéia deu à luz a uma menina que recebeu o nome de Cláudia Augusta e ela seria o único descendente que Nero teria na vida. Porém, a menina morreria com somente quatro meses de idade.

Conflitos nas fronteiras

Nos assuntos de política exterior, o principal desafio enfrentado pelo Império no reinado de Nero foi a disputa pela Armênia com a Pártia. O general Gnaeus Domitio Corbulo (Corbulão) obteve inicialmente sucesso militar, mas a campanha não foi concluída. Em 63 D.C., porém, o Império obteve um bom acordo com a Pártia, em que Roma teria a palavra final sobre a escolha do rei da Armênia, Foi um bom tratado e que garantiria a paz na região até 114 D.C.

Nero também teve que enfrentar a séria revolta da rainha dos Icenos, Boudica (Boadicéia), na Britânia, que foi derrotada pelo general Gaius Suetonius Paulinus (Suetônio Paulino), em 61 D.C.

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(Estátua da rainha Boudica, dos Icenos, em Londres)

O Grande Incêndio de Roma

Em julho de 64 D.C., ocorreu o Grande Incêndio de Roma, que durou seis dias e causou uma grande destruição.  Com efeito, dos 14 distritos de Roma, somente 4 foram poupados do fogo.

A responsabilidade de Nero pelo incêndio é muito debatida. Algumas fontes antigas citam boatos de que Nero teria mandado provocar o incêndio, visando sobretudo reconstruir a cidade de acordo com a sua vontade, e, especialmente,  para possibilitar a construção de sua espetacularmente enorme e suntuosa “Domus Aurea“, cujas ruínas ainda hoje impressionantes dão uma ideia do seu esplendor.

Consta que Nero, após o palácio ficar pronto, teria dito :

“Finalmente, agora eu posso morar como um ser humano” 

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(Domus Aurea, reconstituição)

Tácito e Cássio Dião também relatam, o primeiro expressamente como sendo um boato, que, enquanto Roma queimava, Nero teria subido no telhado do Palácio e cantado a ode grega “A Destruição de Tróia“.

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(Tela “O incêndio de Roma”, de Hubert Robert, (1785)

Porém, eu acredito que, provavelmente, essa tragédia foi apenas o mais catastrófico dos frequentes e periódicos incêndios que assolavam uma Roma que havia crescido demasiada e desordenadamente.

Diga-se de passagem, os posteriores decretos assinados por Nero relativos ao ordenamento urbano, especialmente visando evitar a repetição de incêndios, descritos por Tácito e Suetônio, são muito razoáveis, na verdade, excelentes até (eles dispõem sobre o espaço entre os prédios de apartamentos, do uso de materiais de construção resistentes ao fogo e da previsão de reservatórios de água, entre outras coisas).

Após o incêndio, Tácito relata que Nero abriu os jardins dos palácios para abrigar os flagelados pelo incêndio, em abrigos temporários. Vale a pena citar o seguinte trecho do historiador:

Nero, naquele momento, estava em Antium, e não retornou à Roma até o fogo aproximar-se de sua casa, que ele havia construído para conectar o palácio com os jardins de Mecenas. Não foi possível, entretanto, impedir o fogo de devorar o palácio, a casa e tudo em volta deles. Todavia, para aliviar o povo, que tinha sido expulso desabrigado, ele mandou que fossem abertos para eles o Campo de Marte e os edifícios públicos de Agripa, e até mesmo os seus próprios jardins, e ergueu estruturas temporárias para receber a multidão despossuída. Suprimentos de comida foram trazidos de Óstia e das cidades vizinhas, e o preço do grão foi reduzido para três sestércios. Essas ações, embora populares, não produziram nenhum resultado, uma vez que espalhou-se por todo lugar um rumor de que, enquanto a cidade estava em chamas, o imperador apresentou-se em um palco particular e cantou a destruição de Tróia, comparando os infortúnios presentes com as calamidades da antiguidade”. (Anais, XV, 39)

Um episódio notório, ainda relativo ao incêndio, foi o martírio da nascente comunidade cristã de Roma, que teria sido apontada oficialmente como bode expiatório pelo incêndio. Hoje, há opiniões de que esta perseguição não teria ocorrido, a despeito dela também fazer parte da tradição cristã. Há, no entanto, uma bem fundamentada tese de que o número 666, que seria o nome da besta do Apocalipse citado no Evangelho, seria o código alfanumérico relativo ao nome de Nero, de acordo com um antigo jogo comum na época romana, numa vinculação que o evangelista João poderia ter feito em função da referida perseguição.

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(Tela de Henryk Siemiradzki, retratando o martírio dos cristãos, que, segundo o relato de Tácito, foram utilizados como tochas humanas)

O fato é que as excentricidades e os crimes de Nero, somados à desconfiança pública de que o incêndio estava relacionada à construção da magnífica Domus Aurea, começaram a minar o reinado dele.

Some-se a isso a morte de Popéia, ocorrida em 65 D.C., tendo se espalhado o boato de que a morte dela fora causada após a imperatriz levar um pontapé de Nero na barriga, quando estava grávida, o que causou indignação no povo (curiosamente, a mesma acusação seria feita, milênios mais tarde, ao imperador D. Pedro I, e,  igualmente, ela contribuiu para agravar o clima que resultou na abdicação de nosso primeiro imperador)

A Conspiração Pisoniana

Ignorando todo esse quadro de insatisfação, Nero começou a retirar o que restava das prerrogativas do Senado. Isso deflagrou, também em 65 D.C., a denominada “Conspiração Pisoniana“, assim chamada porque liderada pelo respeitado senador Gaius Calpurnius Piso, e que visava derrubar o imperador. Porém, essa conspiração, que envolvia senadores e membros da guarda pretoriana, foi denunciada a tempo, e Nero mandou executar os participantes. Entre os punidos, estava o seu ex-tutor e conselheiro, o filósofo Sêneca, apesar de não haver certeza se ele estava mesmo envolvido.

Outro que teria sido executado na repressão à Conspiração foi o poeta Lucano. Mas a morte mais sentida pela aristocracia romana foi a do senador Públio Clódio Trásea Peto, um crítico contumaz do  reinado de Nero, que também foi obrigado a cometer suicídio, em 66 D.C., após ser condenado pelo Senado com base em acusações vagas em uma sessão  de julgamento na qual a Cúria foi cercada pelos Pretorianos.

Para poupar Sêneca, e a própria imagem do imperador, perante a opinião pública, do embaraço de uma execução, Nero ordenou que ele cometesse suicídio. O mesmo ocorreu com outro implicado no esquema, o escritor satírico Petrônio (A cena da morte de Petrônio, em uma banheira, com o sangue esvaindo-se das veias cortadas enquanto conversava rodeado dos  seus melhores amigos, está brilhantemente retratada no filme “Quo Vadis“).

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(O Suicídio de Sêneca, tela de Manuel Domínguez Sánchez (1871), no Museu do Prado)

Quem teve atuação implacável na repressão à referida conspiração foi Ofonius Tigellinus, o sucessor de Burro como Prefeito da Guarda Pretoriana, que era um amigo e parceiro de Nero no desfrute de corridas de carros e orgias,  e que fora nomeado para o cargo em 62 D.C.

O início do fim

Em 66 D.C., Nero casou-se com sua terceira esposa, Statilia Messalina (não confundir com a esposa de Cláudio).

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(Statilia Messalina, terceira esposa de Nero)

A Conspiração Pisoniana, não obstante tenha sido debelada, marcou o início da queda de Nero. Deve ter havido uma percepção geral entre as lideranças do Senado e do Exército de que o reinado dele não iria durar muito e que o caos se aproximava. As despesas com a reconstrução de Roma tinham exaurido o Tesouro do Estado e, em decorrência, a moeda teve que ser desvalorizada e os impostos aumentados.

Ainda em 66 D.C., estourou uma grande revolta na Judéia, No meio dessa grave crise, Nero resolveu fazer uma excursão triunfal pela Grécia, visitando os pontos turísticos mais célebres, apresentando-se como artista e participando dos Jogos Olímpicos de 67 D.C., como competidor. Para os gregos, a visita foi um sucesso, pois Nero chegou a proclamar a liberdade das cidades gregas, mas para a elite em Roma, ela deve ter sido percebida como mais uma prova da insanidade do Imperador.

Logo, outras rebeliões começariam a pipocar nas províncias…

Em 67 D.C., Nero enviou o respeitado general Titus Flavius Vespasianus (o futuro imperador Vespasiano) para combater a Grande Revolta Judaica. Nessa ocasião, suspeitando da lealdade do general Corbulão, o imperador o convocou-o à sua presença na Grécia, e ordenou que ele cometesse suicídio para não ser executado, sendo fiel e surpreendentemente obedecido.

Porém, em março de 68 D.C., o governador da importante província da Gália Lugdunense, Gaius Julius Vindex, revoltou-se contra os pesados tributos impostos à província. Em seguida, Vindex tentou, sem êxito, convencer o governador da Hispânia, Servius Sulpicius Galba (o futuro imperador Galba), a se juntar à rebelião. No decorrer da rebelião, em maio, as legiões da Germânia, sob o comando de Lucius Verginius Rufo, seguindo as ordens de Nero, derrotaram Vindex, na Batalha de Vesontio (atual Besançon), que, em razão disso, cometeu suicídio.

Todavia, as legiões vitoriosas imediatamente declararam-se em rebelião contra Nero, embora Rufo tenha permanecido leal ao imperador, recusando-se a aderir ao movimento. Parece que nesse momento, os soldados já começavam a farejar a oportunidade de, como em ocasiões anteriores, obterem polpudas recompensas caso um novo imperador assumisse o trono.

Enquanto isso, Nero, que havia voltado para Roma em janeiro de 68 D.C., recebeu a notícia de que, além das legiões de Vindex, as legiões da África também tinham se revoltado.

Galba, entretanto, aguardava cautelosamente o desenrolar dos acontecimentos, mas os seus partidários em Roma não ficaram imóveis. Assim, em algum momento entre maio e junho de 68 D.C., o outro Prefeito da Guarda Pretoriana, Ninfídio Sabino (consta que Tigellinus estaria doente naquele mometo), persuadiu os pretorianos em Roma a se declararem a favor de Galba. Para o azar de Nero, isso ocorreu antes da chegada da notícia da vitória de Rufo contra Vindex, o que daria ao imperador certa esperança de readquirir o controle da situação.

A morte de Nero

Em 9 de junho de 68 D.C., em uma villa suburbana, situada a apenas 6 km de Roma, chegou um mensageiro galopando à  toda velocidade. O cavaleiro desmontou e entrou no luxuoso átrio da propriedade, sendo recebido por Phaon, um  liberto do Imperador Nero que exercia o cargo de Secretário de Finanças imperial.

Acompanhado de outros três homens, Phaon ingressou na área privada da residência e, pouco tempo depois, ouviu-se um um grito desesperado, acompanhado da frase:

“Que grande artista o mundo irá perder!”

Um dos homens pergunta que notícia o mensageiro havia trazido e o outro respondeu que o Senado Romano havia declarado Nero  era um “Inimigo Público“.

Aquele era, sem dúvida, o ponto culminante da tensão que Nero vinha vivendo nas últimas semanas, desde que soube que Julius Vindex havia sido aclamado imperador pelas tropas dele, em março, e iniciara sua marcha para a Itália, e o Prefeito Pretoriano Ninfídio Sabino manifestara o seu apoio a Galba, deixando o imperador totalmente indefeso dentro da Capital.

Ao saber da adesão de Ninfídio Sabino ao general Galba, Nero chegou a deixar o Palácio e tentar fugir para o porto de Óstia, onde ele planejava embarcar em um navio da frota, que ele esperava que tivesse se mantido leal, e partir para as províncias do Oriente, onde ele tinha certeza de que ainda era muito popular e poderia organizar um contra-ataque.

Todavia, Nero, temeroso, concluiu que era grande a possibilidade dele  não conseguir chegar ao porto ileso, e, assim, deu meia-volta e voltou para o Palácio, onde ele até tentou dormir um pouco. O sono contudo, seria breve. Com efeito, durante a meia-noite, já na virada do dia 08 para o dia 09 de junho de 68 D.C., o Imperador acordou e, aterrorizado, constatou que não havia sequer um guarda na porta dos aposentos imperiais.

Nero percorreu, então, esbaforido, os corredores desertos do palácio, sem encontrar viva alma, gritando:

“Não terei eu amigos ou inimigos?

Até que, alertados pela gritaria,  finalmente acudiram os mais próximos e fiéis libertos de Nero: Epafrodito, Phaon, Neophytus e Esporo (Nota: Esporo (Sporus) era um garoto que se tornou favorito de Nero por ter uma notável semelhança com a falecida imperatriz Popéia Sabina. Segundo Suetônio, Nero mandou castrar Esporo e chegou até a casar com o rapaz, por volta de 67 D.C.).

Phaon, então, ofereceu a Nero a sua villa nos arredores de Roma,  para que o imperador se escondesse lá, pois ainda havia a esperança de que o Senado não reconhecesse os usurpadores, tendo em vista que outros comandantes ainda não haviam aderido à rebelião. A villa não era longe e o grupo deve ter chegado lá ainda antes do amanhecer.

Porém, no decorrer do dia 09 de junho, a referida chegada do mensageiro tirou todas as esperanças de Nero. Ele, então, implorou que um dos quatro fiéis libertos tirasse a própria vida primeiro, alegando que isso lhe daria coragem para fazer o mesmo, além de lhe ensinar o método, mas nenhum deles topou a proposta.

Então, enquanto o imperador relutava, ouviu-se o galopar de vários cavalos, e, premido pelo temor da chegada da tropa que estava vindo para lhe prender ou executar,  Nero ordenou que Epafrodito o ajudasse a se matar. Assim, Nero, com a ajuda de Epafrodito, enfiou uma faca na própria garganta.

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Quando os cavaleiros entraram no aposento, Nero já havia perdido muito sangue. Um dos soldados tentou colocar um pano na garganta dele, à guisa de estancar o sangue,  e Nero ainda teve forças para balbuciar, dramático como ele sempre fora durante toda a vida:

“Tarde demais. Isso é que é fidelidade!” 

Nero morreu aos 30 anos de idade. O corpo dele foi cremado à maneira tradicional romana e as cinzas depositadas no Mausoléu dos Domícios,  então situado nos limites da cidade de Roma e onde hoje, ironicamente, fica um templo da arte, a Galeria Borghese.

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(Villa Borghese, que hospeda a Galeria Borghese e onde ficava o Mausoléu dos Domícios, lugar do sepultamento das cinzas de Nero)

As fontes relatam que, várias décadas depois de sua morte, pessoas do povo ainda adornavam a tumba de Nero com flores…

Conclusão

A ascensão e queda de Nero são expressões gritantes das contradições do sistema inaugurado por Augusto.

Com efeito, o Império nasceu como fruto da incapacidade das instituições republicanas de moderar os conflitos de poder  e as disputas políticas  decorrentes da tensão entre a defesa da manutenção dos privilégios da nobreza (facção política dos “Optimates“) e a afirmação das vontades e consideração das necessidades dos cidadãos plebeus livres, mal arbitradas por regras criadas originalmente para se gerir uma Cidade-Estado, sem contudo, adaptar-se à existência de um crescente proletariado não-proprietário em Roma, e que também eram inapropriadas  para acomodar os anseios de uma enorme população de colonos romanos e cidades aliadas, muitos dos quais estavam espalhadas por um enorme território fora da Itália, (anseios e interesses esses que encontravam algum acolhimento na facção senatorial dos chamados “Populares“).

Essas crises degeneraram na resolução das disputas pela guerra entre generais-políticos filiados as referidas facções representadas no Senado, que recrutavam cidadãos entre o proletariado, os quais eram mais leais aos seus comandantes do que ao Estado. O conflito parecia ter se resolvido na concentração de poderes em torno do vencedor da guerra civil, o líder dos Populares, Caio Júlio César, que, contudo, foi assassinado antes de poder implementar uma nova constituição politica (se é que ele tinha mesmo essa intenção), tarefa esta que foi retomada por seu sucessor Augusto.

Como se fosse uma “marca de nascença” do principado, o assassinato de César sempre pairou sobre o regime imperial. César, alegadamente, foi morto por se acreditar que ele queria ser rei e os seus assassinos, integrantes dos Optimates, reivindicaram a restauração da República. Vencidos os Optimates por Augusto, herdeiro de César, ele, por sua vez, da mesma forma se apresentou como o “Restaurador da República“.

Desse modo, o Império por séculos seria assombrado pelo paradoxo de ser uma “Monarquia que não ousa dizer o seu nome“.

Contudo, a constituição não-escrita elaborada por Augusto padecia de duas graves contradições:

1) A ambiguidade de, formalmente, querer-se restaurar a República, concentrando as mais importante das antigas magistraturas republicanas nas mãos do “Princeps“, mas dividindo, ao menos na aparência, o governo do Estado com o Senado, sem contudo, jamais delimitar precisamente qual o papel e o poder desta assembleia. Isto se tornaria um grande fator de instabilidade.

A prática inaugurada por Augusto, e seguida em parte e confusamente por Tibério, de simular que o poder continuava com o Senado, sendo o poder de fato exercido no Palácio, propiciava que, quando personalidades imperiais menos afetas às aparências e deferências devidas ao Senado ocupassem o trono, eles fossem percebidas como tiranos, situação que deu margens a inúmeras conspirações, reais ou imaginárias.

2) A já aludida “marca de nascença” (assassinato de César), que expressava a prevalência da tradicional repulsa cultural romana à monarquia, impediu que Augusto estabelecesse uma regra clara quanto à sucessão imperial. Como o regime não podia e não devia ser considerado uma monarquia, jamais o princípio dinástico foi formalmente estabelecido. Embora o costume fosse que o imperador escolhesse o seu herdeiro, a existência de descendentes ou parentes próximos ameaçava a legitimidade do escolhido, sendo isso uma nova fonte de conspirações, e de temor da existência delas por parte do imperador.

A incerteza quanto ao critério sucessório também gerava instabilidade. Os imperadores Júlios-Cláudios costumavam nomear os parentes sanguíneos ou afins mais velhos como herdeiros formais ou presumidos, quando aqueles mais próximos ainda eram muito jovens. Mas, quando estes iam crescendo, os títulos e honrarias que caracterizavam a condição de herdeiro eram retirados dos primeiros e conferidas aos mais novos. O temor ou a insatisfação dos inicialmente escolhidos normalmente resultava na eliminação dos rivais mais novos ou na do próprio imperador. Tal fato ocorreu com Augusto, com Tibério e com Cláudio, e somente não ocorreu com Calígula devido ao seu reinado ter sido muito curto, e com Nero, porque ele não tinha herdeiros.

Somente a partir do reinado de Nerva começou a ser implantada uma regra consuetudinária, com bases filosóficas, de que o governante deveria adotar como sucessor o melhor homem público, ainda que este fosse seu parente, de quem se esperava que demonstrasse a sua competência, costume que também não sobreviveu à morte de Marco Aurélio.

A avaliação do reinado de Nero é controversa na visão dos historiadores. A visão tradicional, de de que ele seria um louco e um monstro, hoje é temperada pela leitura crítica que se faz dos historiadores Tácito e Suetônio, tidos como membros da classe senatorial, nostálgica da República e antipática ao Principado, dando destaque às perseguições do monarca contra os senadores e enfatizando boatos ou, mesmo, fofocas, de teor escandaloso sobre os hábitos privados dos imperadores.

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Sintomaticamente, essas mesmas fontes relatam que, para uma boa parte da massa de cidadãos pobres e das províncias, a imagem de Nero era diferente. Como já observamos, Suetônio narra que, décadas após a morte de Nero, populares adornavam a sua tumba com flores e que, nas províncias,  chegou a surgiu uma lenda, ao estilo de Dom Sebastião de Portugal, de que Nero, um dia, iria retornar.

Essa também é a opinião de muitos historiadores, valendo transcrever as palavras da historiadora clássica Mary Beard (“SPQR”, pág. 398):

Vários historiadores modernos têm apresentado Nero, particularmente, mais como uma vítima da propaganda da dinastia Flaviana, que começa com Vespasiano, seu sucessor, do que como um piromaníaco assassino da própria mãe, a quem se atribui ter iniciado o grande incêndio de 64 D.C., não só para apreciar o espetáculo, mas também para limpar a área e poder construir seu novo palácio, a Casa Dourada (Domus Aurea). Mesmo Tácito admite, apontam os reabilitadores, que Nero foi o patrocinador de medidas de ajuda efetivas para os desabrigados após o incêndio; (…). Além disso, nos vinte anos após a morte e Nero, em 68 D.C., pelo menos três falsos Neros, com lira e tudo, apareceram nas regiões orientais do Império, reivindicando o poder e apresentando-se como o imperador em pessoa, ainda vivo, apesar de todas as notícias do seu suicídio. Foram todos rapidamente eliminados, mas o engodo sugere que, em algumas áreas do mundo romano, Nero era lembrado afetuosamente: Ninguém buscaria alcançar o poder fingindo ser um imperador odiado por todos.”

FIM

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HORÁCIO – CARPE DIEM

Em 8 de dezembro de 65 A.C, nasceu, em Venusia (atual Venosa), no sul da Itália, Quintus Horatius Flaccus (Horácio), filho de um escravo liberto que conseguiu tornar-se leiloeiro público. A cidade ficava na região do Samnium, que deu nome ao povo itálico dos Samnitas.

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(Panorâmica de Venosa, terra natal de Horácio, By D.N.R. – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3978388)

Embora tivesse origem humilde, o pai de Horácio conseguiu amealhar dinheiro suficiente para lhe dar uma esmerada educação, inclusive propiciando que ele fosse estudar em Roma.

Horácio nunca deixou de demonstrar sua extrema gratidão à formação que seu pai lhe proporcionou, referindo-se a ele afetuosamente na sua obra Sátiras:

“Se meu caráter é maculado por algumas pequenas falhas, mas, fora isso, é decente e moral, se tu podes apontar apenas algumas manchas numa superfície que, de resto, é imaculada, se ninguém pode me acusar de cobiça, lascívia ou desregramento, se vivo eu uma vida virtuosa, livre de corrupção (perdoem-me, por um instante, a minha auto emulação), e se sou eu para meus amigos, um bom amigo, meu pai merece todo o crédito…Como agora ele merece de mim irrestrita gratidão e exaltação. Eu jamais poderei me envergonhar de tal pai, nem sinto eu qualquer necessidade, como tanta gente sente, de me desculpar por ser filho de um liberto” (Sátiras, 1.6.65-92).

Depois de estudar em Roma, onde o pai havia se juntado a ele, Horácio foi completar a sua formação em Atenas, estudando na famosa Academia, fundada por Platão. Ali, ele foi influenciado pela escola filosófica de Epicuro e também pelos filósofos estoicos. É provável que, antes ou durante a viagem, o pai de Horácio tenha falecido, deixando-lhe uma boa herança.

Em seguida, Horácio alistou-se, entre 44 e 42 A.C., no exército de Marcus Junius Brutus (Bruto), o líder dos conspiradores e assassinos do Ditador Júlio César, e que se autointitulavam “Os Libertadores” (Bruto após o assassinato tinha fugido para a Grécia, onde procurou angariar adeptos para a causa dos Optimates – a facção dos partidários da nobreza no Senado Romano que se opunha ao Ditador).

Tendo sido nomeado para o alto posto de tribuno militar, normalmente reservado para jovens da nobreza romana, Horácio chegou a combater na Batalha de Fílipos, travada em outubro de 42 A.C. contra os sucessores políticos de César, integrantes do Segundo Triunvirato, Otaviano, Marco Antonio e Lépido. Com a derrota dos “Libertadores“, Horácio teve as suas propriedades confiscadas pelos Triúnviros.

Apesar de ter escolhido o lado dos perdedores na Guerra do Segundo Triunvirato, Horácio, graças à sua esmerada educação, conseguiu um emprego como escrivão do Tesouro da República (Aerarium), cargo que lhe permitiu começar a sua produção literária sem ter que se preocupar com a própria subsistência.

Então, a sorte somou-se ao talento de Horácio, quando, em 38 A.C., ele foi apresentado pelo seu amigo Virgílio, que, então, já era um festejado poeta, ao rico Mecenas, um entusiasmado patrono das artes que, por sua vez, era amigo íntimo de Otaviano, o herdeiro de César, que se tornaria o futuro imperador Augusto.

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(Busto de Mecenas, By Cgheyne – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6644246)

Horácio caiu nas graças de Mecenas, que inclusive deu-lhe de presente uma villa em Tívoli, e ele foi introduzido no círculo de poetas protegidos de Otaviano. Consequentemente, Horácio começou a receber encomendas de odes e poemas alusivos a eventos importantes para a propaganda imperial. Ele compunha seus versos em hexâmetros (métrica poética) e iambos (unidade rítmica).

Mecenas e Otaviano gostavam tanto de Horácio que o segundo, já transformado no imperador Augusto, convidou-o para ser seu secretário particular, o que era uma honra incomensurável, mas que foi delicadamente recusada pelo Poeta.

Em uma de suas Epístolas, datada 21 A.C., Horácio descreve a si mesmo como:

“tendo 44 anos e sendo baixo, bronzeado, prematuramente grisalho, de pavio-curto, mas facilmente acalmado.

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Em 27 de novembro de 8 A.C.Horácio faleceu, poucos meses depois de Mecenas, e, em obediência às instruções de Augusto, o Poeta foi sepultado no Mausoléu do seu falecido amigo e benfeitor, situado na colina do Esquilino, em Roma.

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(Construção circular da época romana, chamada de “Auditório de Mecenas!”, ficava provavelmente nos famosos jardins do magnata romano, na colina do Esquilino, onde ele e Horácio foram sepultados).

As obras mais famosas de Horácio são as Sátiras e as Odes, além da Ars Poetica A poesia de Horácio, em muitas passagens, denota a influência da corrente filosófica do Epicurismo. Um dos versos mais famosos, de uma das “Odes”, é

Carpe diem, quam minimum credula postero” (aproveite o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã)

O conhecido verso, vale notar, voltou a ficar célebre em nosso tempo na fala do Professor de Literatura Keating, personagem de Robin Williams, no filme “Sociedade dos Poetas Mortos“.

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Já na Antiguidade, Horácio foi reconhecido como um dos maiores poetas latinos. O retórico Quintiliano considerava as Odesos únicos versos latinos que mereciam ser lidos“.

A obra de Horácio atravessou os séculos e influenciou importantes poetas e pensadores como Montaigne, Garcilaso de la Vega, Milton e muitos escritores e poetas da língua inglesa, além do grande filósofo Immanuel Kant, que usou um verso de Horácio – “Sapere aude” (“Ouse saber!”) – como o lema para a Era do Iluminismo em um ensaio.

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Segundo as palavras do próprio Horácio, o seu objetivo ao compor versos era o de dizer a verdade de um modo satírico:

“O que impede de dizer a verdade, rindo?”.

Os seguintes versos são um exemplo da refinada veia satírica do Poeta:

Há um defeito comum a todos os cantores: entre os seus amigos, eles nunca cantam quando se pede; e jamais param de cantar quando não é“.

Ajudar um homem contra a vontade dele é fazer o mesmo que matá-lo“.

Até um verso de Horácio foi citado recentemente em latim pelo juiz Sérgio Moro para minimizar as revelações do site Intercept (vide https://newsba.com.br/2019/06/23/moro-ironiza-the-intercept-em-latim-parturiunt-montes-nascetur-ridiculus-mus/):

As montanhas pariram um ridículo rato.” (parturiunt montes, nascetur ridiculus mus.)

Horácio provavelmente acharia graça na citação, uma vez que aquilo que o juiz chamou de “rato” terminou por mostrar-se ser animal muito maior e poderoso…

SANTO AGOSTINHO

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Infância e juventude

No dia 13 de novembro de 354 D.C., nasceu, na cidade de Taghaste (atual Souk Ahras, na Argélia), na província romana da Numídia, Aurelius Augustinus, filho de um pequeno proprietário rural e de sua esposa Mônica, cristã fervorosa e mãe possessiva (que, posteriormente, assim como o próprio filho, seria canonizada como Santa Mônica).

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(Os locais acreditam que essa oliveira, na atual Souk Ahras foi plantada por Santo Agostinho)

Augustinus, que ficaria conhecido como Santo Agostinho, seria o principal filósofo cristão durante o Império Romano, e a influência do seu pensamento moldaria não só a doutrina da Igreja Católica até os nossos dias, mas a própria civilização ocidental.

Agostinho estudou em Cartago, o maior centro urbano do Norte da África (sem contar o Egito). Financiado a duras penas pelo pai, o jovem cursou retórica, visando obter um cargo público. Mas, embora ele se aprofundasse nos autores latinos, sobretudo Cí­cero (Inclusive, Agostinho foi muito influenciado pela obra de CíceroHortensius“, que não sobreviveu até os nossos dias), Agostinho detestava estudar grego, língua que  ele não conseguiu aprender, e este fato prejudicou consideravelmente o seu desempenho acadêmico.

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Mas Agostinho também se negava a ler a Bí­blia, apesar de muita insistência da mãe. Tudo isso, somado às suas travessuras de jovem, suas dúvidas, paixões e ansiedades, e também a sua contí­nua aventura intelectual, é narrado magistralmente, de forma autobiográfica, em suas “Confissões“.

Após a morte do pai, Agostinho voltou para Thagaste, com o encargo de, agora na condição de chefe da famí­lia, administrar a propriedade paterna. Todavia,  no lugar dessas tarefas mais mundanas, Agostinho resolveu abrir uma escola.

Primeiras influências

Enfim, depois de resolvidas as questões sucessórias,  Agostinho voltou para Cartago para assumir um cargo de professor de retórica. Durante esse tempo, ele leu a obra de Aristóteles, traduzida para o latim.

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(Vista atual de Souk Ahras, antiga Tagaste, foto de Omaislam)
 

Por volta dessa época, Agostinho teve contato com os ensinamentos do sábio persa Mani, que afirmava ser o universo governado pelo conflito entre dois princí­pios: a Luz ( o Bem) e a Escuridão (o Mal), uma doutrina que ficaria conhecida pelo nome de Maniqueí­smo.

Em 384 D.C., sentindo-se limitado pela estreiteza da vida intelectual na província, Agostinho, contra a vontade da mãe, que fez de tudo para demovê-lo, decidiu ir para Roma. Porém, naquele tempo, as melhores oportunidades para  jovens ambiciosos estavam em Milão, que era a capital do Império Romano do Ocidente e onde ficava a corte imperial.  Ali, Agostinho conseguiu um cargo de professor de retórica.

No entanto, agora, Agostinho estava imerso em indagações intelectuais e à procura de um sentido para as questões existenciais.  Ele flertou por algum tempo com o Ceticismo platônico, até conhecer o Neoplatonismo, através dos discí­pulos de Plotino, cuja doutrina era, então, popular entre os católicos em Milão, porque lhes parecia conferir uma base argumentativa racional para a fé cristã.

Agostinho tinha se aproximado dos católicos após conhecer (Santo) Ambrósio, o célebre bispo da cidade, uma pessoa que lhe causaria forte impressão e que já era idolatrado pela sua mãe.

Não obstante, Agostinho não escondeu o entusiasmo que ele teve ao ler a filosofia de Plotino, um filósofo de origem greco-egí­pcia, cujo cerne era a prática da ascensão da alma ao Uno – o princí­pio único, eterno, indivisí­vel, imutável e transcendente que era a fonte de todas as coisas – pela contemplação interior. Segundo este filósofo,  a partir do Uno a realidade fluiria constantemente, como a água de uma fonte, e as  suas principais emanações seriam o Intelecto e a Alma. Consta que as últimas palavras de Plotino antes de morrer foram:

Estou tentando devolver o Divino que há em mim para o Divino que há em Tudo“.

Coincidentemente ou não, o Uno de Plotino era bem parecido com o Deus Cristão descrito no Novo Testamento…

Conversão

Até que um dia, em agosto de 386 D.C., em um momento de grande angústia pessoal, para a qual certamente contribui o fato dele ter sido obrigado a se separar da mulher que ele amara desde a juventude na África, que lhe dera um filho, chamado Adeodato, e com a qual ele vivera em concubinato, Agostinho contou que ouviu uma voz infantil repetindo como um mantra as palavras:

tolle, lege, telle lege” (“pega e lê, pega e lê”).

Assim, ele levantou-se e viu um livro caído aberto. Imediatamente,  Agostinho pegou o volume e leu o seguinte texto da Carta de São Paulo aos Romanos:

Andemos honestamente como de dia, não em orgias e bebedices, não em impudicí­cias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não vos preocupeis com a carne para não excitardes as suas cobiças”).

Livre da angústia e com o rosto iluminado, Agostinho foi contar a boa nova à sua mãe. Eu não tenho dúvidas que este deve ter sido o dia mais feliz da existência de Mônica: Após 32 anos de continuados esforços maternos, Agostinho tinha se convertido ao Cristianismo! Logo em seguida, Agostinho pediu demissão do cargo de professor e saiu de Milão para um retiro na fazenda do amigo Verecundo, junto com a mãe, o filho e  os seus grandes amigos Nebrí­dio e Alí­pio.

Então, na páscoa de 387 D.C., o poderoso bispo de Milão, Ambrósio, batizou Agostinho e Adeodato, como era costume entre os cristãos. Poucos meses depois, Mônica, finalmente realizada por ter atingido o seu maior objetivo, a conversão do filho, faleceria em Óstia.

Em seguida, Agostinho decidiu voltar para Thagaste, vender as terras que herdara do pai e fundar uma comunidade religiosa, para viver em recolhimento e dedicar-se aos estudos teológicos na casa em que nascera.

Entretanto, a já famosa trajetória de Agostinho como religioso não lhe permitiria viver muito tempo em retiro e ele acabou sendo eleito assistente do Bispo de Hippo Regius (Hipona), cidade que ficava na atual Argélia. Quatro anos depois, em 395 D.C., Agostinho foi consagrado Bispo de Hipona, cargo que ele ocuparia pelos próximos 35 anos, até o fim de sua vida.

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(Ruínas de Hippo Regius (Hipona), foto de Oris)

A função de bispo, no final do Império Romano, combinava a atuação pastoral, com atribuições administrativas, notadamente a gestão do crescente patrimônio das sés católicas, e também assistenciais e judiciárias, as quais vinham sendo atribuí­das à Igreja Católica desde o reinado de Constantino I, o primeiro imperador cristão (Não é a toa que, até hoje, o organograma da Igreja Católica reproduz, em boa parte, a divisão do Baixo Império Romano, com as suas dioceses). Para Agostinho, porém, essas tarefas constituíam um fardo pesado, que competia com a sua atividade intelectual intensa e a produção literária. Não obstante, Agostinho foi um assíduo pregador no púlpito – sobreviveram, até os dias de hoje, cerca de 500 homilias ou sermões que ele ministrou em Hipona.

Foi como Bispo de Hipona que Agostinho escreveu as suas maiores obras: De Trinitate, Contra os Acadêmicos, Solilóquios, Do Livre-Arbítrio, De Magistro, Confissões, Espírito e Letra, A Cidade de Deus e Retratações.

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Obra

Antes de Agostinho, o Cristianismo era uma religião revelada pela vida e pelos ensinamentos legados por Jesus Cristo, considerado pelos seus seguidores o Messias previsto pela Bíblia Judaica, que, contudo se apresentara e por eles fora percebido, não como o santo rei de Israel, mas como o filho do deus único, Jeová, adorado pelos hebreus. Agostinho, porém, pode ser considerado o fundador de uma filosofia cristã – um termo que ele mesmo criou – e, ainda que se discorde disso, de fato ele dotou o Cristianismo de uma coerência lógica que pela primeira vez foi sistematizada em bases racionais que poderiam inserir-se na especulação filosófica greco-romana. E embora esse fato talvez não significasse muito para o homem simples do campo, foi algo muito importante para  atrair para a Igreja os membros da elite romana.

Entre as contribuições filosóficas de Agostinho ao Cristianismo, está o conceito de Beatitude, entendida como o estado de felicidade plena, somente encontrável em Deus. Agostinho tentou conciliar a fé e a razão, sendo a fé a forma de se atingir a verdade eterna, a qual, não sendo demonstrável pela razão, somente através da fé podemos demonstrar, a nós e aos outros, a certeza de acreditar:

“intellige ut credas, crede ut intelligas” (É preciso compreender para crer, e crer para compreender“).

Contra os céticos, Agostinho afirmou que a percepção através dos sentidos não era falsa ou imperfeita (motivo pelo qual aqueles acreditavam que não era possível conhecer de forma absoluta ou indiscutível, sendo todo o conhecimento imperfeito e passível apenas de afirmar uma verdade provável). Para o Bispo de Hipona, a sensação sempre é verdadeira, o erro pode estar no juízo que se extrai das sensações. Assim, a sensação é absoluta. Ninguém pode dizer que o sujeito não sentiu, a sensação é uma verdade interna ao sujeito. Assim, em certo grau, na obra “Cidade de Deus“, Agostinho antecipou o pensamento de Descartes:

“Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”.

O pensamento, assim, era uma realidade em si mesma e uma prova da existência – não só do homem, mas de Deus.

Não obstante, para ele, a inefável natureza divina não poderia ser compreendida pelo homem, transcendendo ao pensamento, como bem exemplifica a resposta de Jeová a Moisés: “Eu sou o que sou” (IHVH), assemelhando-se, assim, em sua imutabilidade, inamovibilidade, indivisibilidade e eternidade, ao Uno de Plotino.

Para Agostinho, Deus é perfeito e toda a criação é perfeita, pois tudo o que existe foi criado por Deus. O mal, portanto, somente pode consistir no oposto do bem, ou seja, no “não-ser“. Portanto, para o filósofo cristão, onde houver mal, não há Deus. O pecado, por via de consequência, é o afastar-se de Deus e é possibilitado pelo livre-arbítrio com que Ele dotou o Homem à Sua imagem e semelhança.

Nessa linha, Agostinho também elaborou sobre o insondável mistério da multiplicidade das 3 pessoas na unidade da Santíssima Trindade, iguais e consubstanciais, sendo o Pai, a essência divina; o Filho, o Verbo e a Razão, através da qual Deus se manifesta; e o Espírito Santo, de onde flui o amor que tudo criou:

“Onde existe o Amor existe a Trindade: Um que ama, Um que é amado e uma Fonte de Amor”.

Na concepção de Agostinho, a criação do universo coincide com a criação do tempo, antecipando intuitivamente o próprio Einstein, ao demonstrar que tempo e espaço são uma mesma dimensão. De fato, para Agostinho, tudo no universo teria sido criado simultaneamente, isto é, de uma só vez e não em 6 dias, como escrito na Bíblia, que. neste particular, para ele não deveria ser entendida em sentido literal. Da mesma forma, o conceito de Agostinho sobre o Pecado Original, a Graça e Predestinação influenciaram a Teologia desde o século V D.C. até o presente.

Com efeito, a concepção de Agostinho sobre o Pecado Original, por exemplo, influenciou posteriormente o Protestantismo. Ele o via como resultado da influência de Satã sobre os os sentidos e carne (“a semente do mal“), afetando a inteligência e o livre-arbítrio do homem, decorrente da concupiscência e libido.

Para rebater a acusação dos pagãos de que o Saque de Roma, ocorrido em 24 de agosto de 410 D.C, devia-se ao abandono pelos romanos dos deuses pagãos e à corrupção das virtudes romanas pelo Cristianismo, Agostinho escreveu a obra Civitas Dei (“A Cidade de Deus”), onde, desenvolvendo todos as suas ideias, ele elabora a história da Humanidade como sendo a da “Cidade dos Homens”, terrena e fadada à destruição pelos pecadores, que eram continuamente castigados através dos tempos, e da “Cidade de Deus”, a ser erguida pelos cristãos.

Porém, em 430 D.C, chegara a vez de Hipona ser destruída pelos bárbaros Vândalos, que cruzaram o Estreito de Gibraltar e invadiram a rica África romana, até então poupada dos saques e da destruição das incursões germânicas.

Assim, em 28 de agosto de 430 D.C., durante o primeiro cerco vândalo, Santo Agostinho morreu, aos 75 anos de idade.

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(Afresco do século VI da Basílica de Laterano, em Roma, a mais antiga representação de Agostinho)

CONCLUSÃO

Santo Agostinho foi um dos intelectuais romanos mais importantes e influentes, cujas obras repercutem até o século XXI, e certamente ecoarão muito além. O seu pensamento representa uma ligação intelectual do mundo helenístico greco-romano, que agonizava, com a civilização cristã-ocidental que, da reciclagem das cinzas do primeiro, se desenvolveria na Idade Média. A obra dele também demonstra a força do Cristianismo em atrair não só os excluídos materiais da civilização greco-romana, mas também os exilados espirituais daquela sociedade, para quem a velho modo de vida pagão não oferecia mais respostas adequadas às inquietações existenciais.

FIM

NERVA – O INVOLUNTÁRIO FUNDADOR DA IDADE DE OURO DE ROMA

 1- Ancestralidade e nascimento 

Em 8 de novembro do ano 30 D.C. (ano estimado), nasceu, em Narni, na região italiana da Úmbria, Marcus Cocceius Nerva (Nerva), membro de uma tradicional família da nobreza italiana, sendo ele filho, neto e bisneto de ex-Cônsules.

Consta que o bisavô de  Nerva foi partidário do Triúnviro Marco Antônio, mas em algum momento, durante as guerras do Segundo Triunvirato, ele passou a apoiar Otaviano, o futuro imperador Augusto, que, em recompensa, incluiu a família dos Cocceii Nerva no novo Patriciado, meramente honorífico, que começou a ser formado após as Guerras Civis. Por sua vez, o avô e o pai de Nerva tinham sido afamados juristas, sendo que o primeiro chegou a ser amigo pessoal do imperador Tibério.  

2- Carreira Pública 

Pouco se sabe acerca da carreira política de Nerva no serviço público. Na verdade, parece que o único campo em que ele se destacou em sua juventude foi a poesia, pela chegou a receber elogios do imperador Nero. E foi no reinado deste imperador que Nerva foi indicado para o cargo de Pretor, no ano de 65 D.C., ocasião em que ele recebeu os ornamentos triunfais. Vale observar, contudo, que a História não registra nenhuma campanha militar nesse período, sendo, então aceitável a crença de que Nerva recebeu aquela recompensa pelo fato dele ter ajudado a debelar a chamada Conspiração Pisoniana, que foi uma trama para assassinar Nero liderada por Calpúrnio Pisão,  a qual envolveu senadores e integrantes da guarda pretoriana, que estavam fartos das excentricidades e do comportamento cada vez mais tirânico daquele imperador (Nero finalmente cometeria suicídio ao ser destronado, em 68 D.C.).

NERO

Tudo indica que Nerva, apesar de não ter se destacado como homem público ou na carreira militar, tinha um grande talento para atrair ou se aproximar de pessoas importantes, e há vários indícios de que ele, de fato, devia ser  considerao um amigo ou conselheiro confiável, tanto é que, para o ano 71 D.C., Nerva foi escolhido para ocupar o consulado junto com o imperador Vespasiano (que, após os breves reinados de Galba, Oto e Vitélio, tornou-se imperador romano em 69 D.C., inaugurando a dinastia dos Flávios).

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Vale observar que ser escolhido pelo imperador para ser o seu colega de consulado era uma honra excepcional, somente conferida a pessoas muito importantes e próximas do imperador (dois cônsules eram escolhidos para cada ano, e a identificação dos anos do calendário romano era feita de acordo com o nome dos cônsules que serviram naquele ano (ex: “no consulado de Vespasiano e Nerva“, era como os romanos identificavam o que hoje classificamos como o ano 69).

Então, em 90 D.C., Nerva,  agora já era um senador veterano, foi escolhido novamente para ser cônsul junto com o imperador Domiciano, o filho de Vespasiano que sucedera o seu irmão mais velho, o adorado Tito, como Imperador, no ano de 81 D.C. Novamente, alguns historiadores acreditam que Nerva deve ter tido um papel importante ajudando o imperador a debelar  outra séria revolta, agora capitaneada pelo governador da Germânia, o general Lúcio Antônio Saturnino e suas legiões. É possível que Nerva  tenha atuado para assegurar o apoio do Senado, ou talvez ele tenha denunciado a trama, não se sabe ao certo.

Domiciano, embora não possa ser considerado, como governante do Império, um mau imperador, adotou, ao longo do seu reinado de 15 anos, um comportamento crescentemente despótico em relação à aristocracia senatorial, a quem, de acordo com a constituição não-escrita legada pelo primeiro imperador, Augusto, cabia um papel importante no governo imperial, inclusive administrando diretamente algumas províncias menos importantes, além de, reunida no Senado, funcionar de certa forma como um órgão consultivo, sendo, finalmente, destinatária de algumas honrarias e de uma deferência protocolar pelo imperador.

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Assim, na História do Alto Império Romano, toda vez que um imperador não respeitava as aparências ligadas à essa fictícia permanência dos elementos de um regime republicano (que em verdade estava defunto), ele recebia a hostilidade dos senadores mais ciosos de suas prerrogativas, oposição que, em alguns casos, podia deflagrar uma conspiração, que, normalmente, era reprimida com rigor implacável. 

Nesse particular, os historiadores antigos que escreveram sobre o  reinado de Domiciano afirmam que ele teria abandonado o título de “Princeps” (que, originalmente, tinha o significado de primeiro senador ou primeiro cidadão do império) e, abandonando todos os escrúpulos, teria exigido ser tratado como “Dominus et Deus” (Senhor e Deus).

Os historiadores do reinado de Domiciano, a maioria oriundos da classe senatorial, caracterizam-no como um governante desconfiado e paranoico, tendo o seu reinado acarretado para a aristocracia romana uma época de perseguições, instauração de processos por traição e execuções de Senadores,  sendo um período em que prosperaram os informantes e os delatores.

Afinal, com o passar do tempo, o comportamento de Domiciano acabou tornando-se insuportável para o seu próprio círculo íntimo, tendo ele sido finalmente assassinado em uma conspiração que foi arquitetada por seus cortesãos mais próximos, incluindo altos funcionários que eram seus escravos libertos domésticos, e até mesmo a sua própria esposa, Domícia Longina, em 96 D.C, o que pôs fim à dinastia dos Flávios.  

3- Ascensão ao Trono

Se dermos crédito aos historiadores antigos, após o assassinato de Domiciano, ao contrário das conspirações e rebeliões que resultaram no suicídio de Nero, e acarretaram, sucessivamente, os reinados de Galba, Otão, Vitélio e Vespasiano, dessa vez não houve generais em revolta dirigindo-se à Roma para assumir o trono.  Assim, ainda segundo os relatos oficiais, pela primeira vez, coube ao Senado assumir as rédeas da sucessão e nomear o novo imperador. E o escolhido foi o velho senador Marcus Cocceius Nerva.

Não obstante a supresa que deve ter sido para os habitantes do Império a sua escolha, existe praticamente um consenso entre os historiadores sobre os motivos pelos quais Nerva, entre vários possíveis pretendentes, foi aclamado imperador:

Em primeiro lugar, ele era um senador respeitado e membro de uma família ilustre o suficiente para estar à altura da dignidade máxima do Estado. Vale notar que Nerva  conviveu com o imperadorTibério quando criança, e o seu tio era parente afim deste imperador. E quatro gerações da família dele já tinham exercido o consulado, a magistratura suprema na carreira do serviço público.

Considero que, de certa forma deve ter contado também o fato de que a figura de Nerva fazia um elo de ligação entre o final da República, o início do Principado e o final da dinastia Flaviana. Politicamente, por sua vez, Nerva não estava ligado a nenhuma facção que fosse inaceitável para os militares.

Porém, talvez mais relevante do motivo acima mencionado, era o fato de que Nerva era um homem velho, quase um ancião para os padrões antigos, tendo cerca de 65 anos de idade, e além disso, ele não gozava de boa saúde (a História conta que ele sofria de uma doença que o fazia vomitar com frequência).

E, mais importante ainda do que tudo isso, Nerva não tinha filhos…

Consequentemente, Nerva era um “imperador-tampão” ideal, pois não havia risco de que ele fundasse uma dinastia que reivindicasse, posteriormente, seu direito hereditário ao trono, caso a situação política presente naquele momento se modificasse e aparecesse algum general poderoso o suficiente para assumir o Império…E,  com efeito, como muitos talvez esperassem, o reinado de Nerva seria curto: de setembro de 96 D.C. a janeiro de 98 D.C 

4-Reinado 

Nerva, obviamente não desapontou quem esperava o fim da tirania de Domiciano: as suas primeiras medidas foram a anulação de todos os processos de traição, a devolução das propriedades confiscadas, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos. E as prerrogativas do Senado e dos seus membros voltaram a ser respeitadas.

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O recém-aclamado imperador também reduziu alguns tributos, uma medida sempre bem vista em todos os tempos e lugares, reduziu gastos com espetáculos e também vendeu propriedades do Estado, promovendo o que pode ser considerado um verdadeiro  “ajuste fiscal”.

No campo das obras públicas, procedeu-se à inauguração do chamado “Forum Transitorium“, que foi iniciado por Domiciano, mas concluído e inaugurado por Nerva, em 97 D.C., motivo pelo qual ficou conhecido como Fôro de Nerva. O nome Forum Transitorium, tudo indica, deve-se ao fato de que ele ficava adjunto aos Fôros de César e de Augusto, maiores e mais antigos,  podendo passar-se de um ao outro através do Fôro de Nerva. Ainda subsistem, em Roma, alguns vestígios da colunata deste fórum (vide foto abaixo).

 

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Ironicamente, o reinado de Nerva também seria caracterizado como “um reinado transitório”

Em outubro de 97 D.C., estourou uma revolta da Guarda Pretoriano, liderada por seu comandante, Casperius Aelianus, exigindo a punição dos assassinos de Domiciano. Os pretorianos chegaram a cercar o palácio imperial, praticamente colocando o imperador na situação de refém. Acossado e humilhado, Nerva teve que ceder, e dois implicados na conspiração contra Domiciano foram executados.

Assim, indubitavelmente, foi a precariedade de sua situação como governante que obrigou Nerva a adotar o general mais prestigiado do Exército Romano, o hispânico Marcus Ulpius Trajanus (o futuro imperador Trajano), comandante das legiões romanas na Germânia, como filho e sucessor.

Cassius Dio (Livro LXVIII 3, 4

Segundo a narrativa consagrada, esta adoção na ocasião representou a escolha do homem mais capaz para a sucessão imperial, em uma fórmula sucessória que seria a marca da dinastia dos Nerva-Antoninos. Porém, nos bastidores, não se sabe se Trajano pressionou Nerva a adotá-lo ou se esta foi uma decisão voluntária do imperador.

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(Denário de Nerva, com a inscrição Concórdia no Exército, provavelmente cunhada para simbolizar o apoio do Exército Romano ao imperador, após a crise com os Pretorianos e a adoção do general Trajano como sucessor)

5- Morte

No primeiro dia do seu quarto consulado, no dia  1º de janeiro de 98 D.C. em uma audiência privada, Nerva sofreu um derrame. A sua saúde frágil certamente sucumbiu à tensão gerada pela revolta dos pretorianos.

Então, ainda no mesmo mês, em 27 de janeiro de 98 D.C, o imperador Nerva faleceu, aos 67 anos de idade, em sua casa situada nos Jardins de Salústio, em Roma, após uma prolongada febre, que surgiu depois do citado derrame. Trajano, o sucessor legal de Nerva, foi comunicado da morte na Germânia, mas, contrariando as expectativas, ele não se deslocou imediatamente para Roma, preferindo assegurar a lealdade das legiões do Reno antes de sua entrada triunfal na capital, o que somente ocorreria no ano seguinte. 

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CONCLUSÃO

A sucessão pacífica entre Nerva e Trajano seria o paradigma do principado até o fim do reinado do imperador Marco Aurélio (que escolheu como sucessor o próprio filho natural, Cômodo, em 177 D.C, antes de falecer, em 180 D.C), oficialmente deixando de lado o princípio dinástico baseado no nascimento, optando-se pela escolha do homem mais capaz como sucessor. Este pareceu ser um ideal caro à dinastia dos Nerva-Antoninos, apesar de, na realidade, as coisas serem um pouco diferentes: todos os chamados “Imperadores Antoninos” em geral tinham entre si algum laço de parentesco, fosse sanguíneo ou por afinidade, ainda que distante, com os herdeiros que adotaram.

Com efeito, os anos de governo de Nerva até Marco Aurélio seriam os mais prósperos e internamente pacíficos da História de Roma, sendo o período batizado de “Seculum Aureum” (O SÉCULO DE OURO).

FIM

SÃO CRISPIM E SÃO CRISPINIANO

Crispinus e Crispinianus, segundo a hagiografia cristã, seriam dois irmãos, provavelmente gêmeos, provenientes de uma ilustre família da nobreza romana, que se converteram ao Cristianismo, na segunda metade do século III D.C. Após sua conversão, os dois irmãos foram morar na província romana da Gália Bélgica, na cidade de Augusta Suessionum (atual Soissons), com o objetivo de converter os habitantes locais. Ali, eles exerceram com sucesso a profissão de sapateiro, para se manter e também ajudarem os pobres da região.

No reinado do imperador Diocleciano, antes mesmo que fosse iniciada a chamada Grande Perseguição, Crispinus e Crispinianus foram trazidos à presença do colega dele, o Imperador do Ocidente Maximiano, que lhes exortou a renunciar à fé cristã, mediante ameaças e promessas de vantagens.

Ante a negativa veemente dos dois irmãos, Maximiniano enviou-os para o governador da província, um certo Rictiovarus, que os fez torturar e, após, ordenou que ambos fossem jogados ao rio Aisne com pedras de moinho amarradas ao pescoço. Não obstante, Crispinus e Crispinianus conseguiram nadar até a margem do rio, apenas para serem novamente capturados e decapitados por ordem do imperador, em 25 de outubro de 286 D.C.

Martírio de São Crispim e São Crispiniano (1494), Aert van den Bossche, Public domain, via Wikimedia Commons

A estória de Crispinus e Crispinianus basicamente repete a de muitos outros mártires cristãos do período: soldados ou romanos nobres que se convertem à religião cristã, são perseguidos, resistem à renegar Cristo e são executados, não sem antes resistir milagrosamente aos castigos ou formas de execução inicialmente aplicados. Que houve uma grande perseguição no reinado de Diocleciano e Maximiano é um fato inconteste, e não há porque duvidar que houve muitas execuções de cristãos que se recusaram a cumprir a exigência de que fizessem sacrifícios ao culto imperial. Presumivelmente, a crença inabalável de tantos mártires parece ter tido efeito contrário ao desejado pelos imperadores, inspirando a conversão de muitos pagãos. Já os relatos de ocorrências milagrosas consistem mais em uma questão de fé e não há como comprová-los.

Uma grande basílica foi erguida em Soissons em homenagem a São Crispim e São Crispiniano no século VI D.C., supostamente sobre as sepulturas dos dois mártires. Durante a Idade Média, eles tornaram-se os santos padroeiros dos sapateiros, dos curtidores e dos que trabalham com couro e selaria, que eram artesãos importantes no período pré-industrial. Com a Revolução Industrial, o culto aos dois santos perdeu um pouco a popularidade, mas a festa dos Santos Crispim e Crispiniano continua sendo comemorada em 25 de outubro.

Em 25 de outubro de 1415 foi travada a Batalha de Agincourt, entre os exércitos do rei Henrique V e do rei Carlos VI, da França, estas comandadas pelo condestável Carlos D’Albret. Embora inferiorizados numericamente, os ingleses infligiram uma terrível derrota aos franceses. O epísódio foi imortalizado por William Shakespeare, na peça Henrique V.

Em uma das peças mais célebres da literatura da língua inglesa, na véspera da Batalha de Agincourt, o rei Henrique V da Inglaterra faz o famoso discurso de motivação às suas tropas, conhecido como “‘Discurso do Dia de São Crispim (também chamado de “Discurso do Bando de Irmãos” ou “Band of Brothers Speech“). Vou transcrever aqui em inglês mesmo, porque sinceramente acho que nenhuma tradução em português consegue transmitir a força do original, mas o leitor pode utilizar qualquer ferramenta online para traduzir:

Westmoreland:
O that we now had here
But one ten thousand of those men in England
That do no work to-day!

King:
What’s he that wishes so?
My cousin, Westmoreland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmoreland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.
This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester
Be in their flowing cups freshly rememb’red.
This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

A peça Henrique V e o discurso foram admiravelmente filmados por Kenneth Branagh no filme homônimo, que pode ser visto abaixo (enquanto o youtube permitir):

A BATALHA DE ZAMA – ROMA ESTÁ VINGADA

Estamos em 19 de outubro de 202 A. C.

Nas proximidades da cidade de Zama Regia, a aproximadamente 130 km ao sudoeste da antiga Cartago, e da moderna Túnis, os exércitos romanos e cartagineses esperam na planície as ordens dos seus comandantes, Públio Cornélio Cipião e Aníbal Barca.

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Os protagonistas acreditam que a batalha será o round final da Segunda Guerra Púnica, que já durava 16 anos, um conflito que havia se iniciado com o ataque dos africanos à Sagunto, uma cidade ibérica aliada de Roma, e, ganhado proporções épicas quando o cartaginês Aníbal deixando a Espanha em uma marcha surpreendente, cruzou os Alpes e invadiu a Itália, ali derrotando, uma após uma, as legiões romanas enviadas contra ele.

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PRELÚDIO

Após a grande vitória de Aníbal na Batalha de Canas, no sul da Itália, em 216 A.C., em que, adotando uma tática magistral, o exército cartaginês destruiu quatro exércitos consulares, matando mais de 60 mil soldados romanos em apenas um dia, todos acreditavam que o cerco e captura de Roma seria uma questão de tempo. Aníbal , inclusive, esperava que as cidades italianas aliadas à Roma iriam passar para o seu lado.

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Porém, os aliados de Roma se mantiveram fiéis. Diante da situação desesperadora, o Senado nomeou um comandante, com poderes ditatoriais, o general Quinto Fábio Máximo, que retomou a sua estratégia de guerrilha e de terra arrasada, evitando confrontos diretos com o multinacional exército cartaginês, que além dos povos púnicos, de origem fenícia e berberes, incluía ibéricos, gauleses e mercenários gregos.

Fábio Máximo, devido a estratégia que adotou, ganhou o apelido de “Cuntator“, ou seja, “protelador” (ou “contemporizador”), com o qual ele passaria a História. E de fato, a “estratégia fabiana” funcionou bem:

Assim, Aníbal perambulou à vontade durante quase 10 anos pela península italiana, entretanto, o tempo trabalhava a favor dos romanos, já que, longe da pátria, com poucas fontes de reforços, o exército cartaginês aos poucos ia diminuindo e se enfraquecendo.

Até que, em 207 A.C., os cartagineses decidiram mandar para a Itália o seu importante exército que continuava na Espanha, sob o comando de Asdrúbal, irmão de Aníbal, que também  marchou para cruzar os Alpes e juntar-se às forças do irmão ilustre, com o fim de ambos darem o golpe final em Roma.

Desta vez, contudo, os romanos estavam melhor preparados. Asdrúbal acreditava que ele iria enfrentar apenas um exército consular, no Rio Metauro, na Úmbria. Entretanto, os romanos, secretamente, enviaram  para  juntar-se a este mais um exército, iludindo Aníbal e Asdrúbal, sendo que este segundo exército romano conseguiu ficar escondido no acampamento do primeiro.

Assim, valendo-se dessa dessa oculta superioridade numérica, os romanos conseguiram derrotar a força expedicionária cartaginesa, na Batalha do Rio Metauro. Como recado, a cabeça de Asdrúbal foi cortada e enviada para seu irmão, no sul.

Desse modo, Aníbal perdeu definitivamente a oportunidade de liquidar a campanha na Itália: Ele não receberia mais reforços, e, com os recursos humanos que ele dispunha, ele era incapaz de derrotar Roma, muito embora os romanos ainda não se atrevessem a atacá-lo diretamente.

Concomitante ao quadro acima descrito, os exércitos romanos na Espanha eram comandados por Públio Cornélio Cipião. Sentindo-se confiante com a situação favorável aos romanos na Península Ibérica, após a vitória na Batalha de Ilipa, em 206 A.C., o prestigiado Cipião resolveu voltar para Roma, onde ele conseguiu ser eleito Cônsul.

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Cipião, como primeira medida no mais importante cargo executivo da República, propôs a política de mudar o teatro de operações da Itália para a África, defendendo um ataque direto a Cartago. Assim, ao invés de arriscar uma incerta vitória contra o temido Aníbal na Itália, onde uma nova derrota teria consequências desastrosas, Cipião acreditava que um desembarque nas costas africanas obrigaria o próprio cartaginês a vir em socorro da pátria-mãe.

Todavia, o Senado Romano, influenciado por Fábio “Cuntator, opôs-se ao plano de Cipião, julgando-o muito arriscado. Ocorre que as sucessivas vitórias de Cipião na Espanha deram-lhe muito prestígio junto ao povo e o Senado, pressionado pela opinião pública, acabou autorizando a expedição idealizada por Cipião, porém negando que os soldados conscritos, recrutados para os exércitos consulares, fossem utilizados.

Assim, Cipião partiu, seguido, inicialmente, por apenas 7 mil voluntários, atraídos pelo seu prestígio, para a Sicília, onde ele ficou durante um ano treinando o seu exército para o confronto na África.

Em 203 A.C., com o seu novo exército pronto, Cipião desembarcou próximo à cidade de Útica, na moderna Tunísia, onde  ele prontamente derrotou um exército cartaginês de cerca de 30 mil homens enviado para repelir a invasão romana.

Essa derrota inicial dos cartagineses consagrou a eficácia da estratégia de Cipião, pois em função dela o Senado de Cartago chamou Aníbal de volta para a África e pediu a paz aos romanos. Observe-se que o próprio general cartaginês foi favorável à capitulação, até porque os termos do tratado proposto pelos romanos, dada a presente situação militar dos cartagineses, eram bem razoáveis: Cartago permaneceria com todos os seus territórios na África, mas perderia suas colônias na Espanha, Sicília e Sardenha (que, de qualquer forma já estavam em mãos romanas), pagaria uma indenização e, finalmente, teria sua frota reduzida para apenas 40 galeras.

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Entretanto,  durante as tratativas; uma frota romana com suprimentos enviados para as tropas de Cipião acabou encalhando no golfo de Túnis e os cartagineses se apropriaram dos navios e da carga. Era, sem dúvida, uma óbvia violação da trégua, e, provavelmente, os cartagineses se sentiram encorajados  a fazer isso devido ao retorno de Aníbal, embora o grande general continuasse a favor do fim das hostilidades.

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Consequentemente, o Senado de Cartago votou pela rejeição do tratado e pela continuação da guerra. Obediente, Aníbal reuniu o máximo de tropas disponíveis e partiu para interceptar os romanos, sendo o primeiro a chegar nas planícies próximas à Zama, seguido pelos romanos…

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A BATALHA

Consta que os dois maiores generais que o mundo havia conhecido depois da morte de Alexandre, o Grande, encontraram-se antes da batalha para negociar. Aníbal propôs que o tratado anterior fosse restabelecido. Contudo, Cipião respondeu que, agora, somente a rendição incondicional seria aceita pelo Senado Romano. A paz, portanto, era impossível, e ambos os  generais se retiraram para seus acampamentos.

Os cartagineses tinham cerca de 36 mil soldados de infantaria, 4 mil cavaleiros e 80 elefantes, que deveriam ser os primeiros a atacar. Segundo as fontes, entre as tropas cartaginesas, havia 4 mil soldados macedônios que teriam sido cedidos pelo rei Filipe V, da Macedônia, monarca que já estava incomodado com o aumento do poder romano no Mediterrâneo.

Aníbal dispôs as suas tropas formadas em três linhas: as tropas de seu outro irmão Mago, retiradas da Itália, na primeira linha, as tropas domésticas alistadas para essa campanha, na segunda linha, e, na terceira, na retaguarda, os veteranos que vinham servindo com Aníbal desde a Itália. No flanco esquerdo, ficava a eficiente cavalaria númida e, no flanco direito, a cavalaria cartaginesa, menos experiente.

Já o exército romano tinha cerca de 29 mil homens e 6 mil cavaleiros, sendo a maioria deles númidas fornecidos pelo agora aliado rei Masinissa, que havia sido capturado por Cipião na Espanha e, tinha sido, pelos reconhecidos talentos diplomáticos do general romano, convencido a lutar contra Cartago. A forte cavalaria númida ficou na ala esquerda, e a cavalaria italiana na ala esquerda. Observe-se que os romanos sempre foram fracos em cavalaria, arma que vinha se mostrando muito importante nos combates anteriores,  e, portanto, o apoio de Masinissa era crucial.

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( A ordem de batalha em Zama, diagrama de Mohammad adil)

Preocupado com a ameaça representada pelos elefantes de Aníbal, Cipião, engenhosamente, dispôs as tradicionais três linhas das legiões em blocos espaçados (com exceção das primeiras, para que o estratagema não fosse percebido), como que criando avenidas por onde os elefantes passariam, e no meio das quais os enormes bichos poderiam ser atacados pelos lados. Para assustar os elefantes, o general romano instruiu a cavalaria a soprar suas trombetas a plenos pulmões, fazendo um ruído ensurdecedor.

Quando a batalha começou, assim como previsto, parte dos elefantes se apavorou com o barulho e voltou em direção aos próprios cartagineses, criando confusão em suas linhas, e a outra parte passou pelos corredores sem causar danos de monta.

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Masinissa atacou a cavalaria númida cartaginesa, que já tinha sido desorganizada pela fuga dos elefantes, fugindo esta do campo de batalha. Por sua vez, Aníbal ordenou que a cavalaria cartaginesa remanescente desengajasse para atrair a cavalaria romana para fora do campo de batalha, com a intenção de impedir que esta fosse utilizada contra a sua infantaria.

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Cipião, então, ordenou que a infantaria romana avançasse. Como sempre, as linhas cartaginesas não conseguiam resistir muito tempo ao assalto dos legionários. Porém, ao contrário do que ocorrera na Batalha de Canas, os cartagineses agora não tinham mais o apoio da cavalaria para ajudar a montar a mesma armadilha usada naquela oportunidade: o falso recuo do centro da linha visando fazer os romanos serem cercados pelas tropas cartaginesas nos flancos da sua formação, e pela cavalaria cartaginesa na retaguarda. Aníbal, notando a situação difícil, ordenou que a sua segunda linha não permitisse o recuo da primeira, e a batalha recrudesceu com a massa de tropas envolvidas. Temendo ser flanqueado pelo número superior de tropas cartaginesas, Cipião ordenou que as legiões formassem agora uma só linha. Era uma manobra complicada que, em meio à confusão do campo de batalha, somente era possível devido ao excepcional treinamento e disciplina do legionário romano e ao excelente nível dos oficiais subalternos (centuriões graduados).

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Não obstante, a batalha restou indecisa até o momento que a cavalaria de Cipião retornou, após haver perseguido os inimigos, e atacou a infantaria cartaginesa pela retaguarda. Agora acossados pela frente e por trás, as linhas cartaginesas foram sendo desmanteladas e destruídas. No final, vinte e cinco mil soldados de Cartago foram mortos e o restante foi feito prisioneiro.

EPÍLOGO

Aníbal conseguiu escapar com uma escolta de cavalaria para Hadrumeto, e dali ele alcançou Cartago, onde ele recomendou ao Senado que se rendessem aos romanos, o que acabou sendo aceito, apesar de muita oposição. Deve ter sido um momento devastador para aquele menino que, décadas antes, jurara ao seu pai, Amílcar Barca, perante um altar, que ele seria inimigo de Roma para sempre!

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Banido de Cartago, em 195 A.C., Aníbal foi asilar-se na corte de Antíoco III, rei da Selêucia e outro grande adversário de Roma. Quando Roma derrotou também esse reino, em 183 A.C., Aníbal fugiu para a Bitínia, onde, após o seu anfitrião, o rei Prúsias, ser intimado a a entregá-lo aos romanos, ele cometeu suicídio.

Públio Cornélio Cipião voltou para Roma onde ele celebrou um magnífico Triunfo e foi agraciado com o congnome “Africano“. Disputas políticas, entretanto, fariam com que o grande herói romano da Segunda Guerra Púnica fosse banido da vida pública, falecendo, coincidentemente, também em 183 A.C.

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CONCLUSÃO

Com a vitória, Roma tornou-se a potência suprema no Mediterrâneo ocidental,  governando a Península Itálica, a Sicília, a Sardenha, a Espanha e o sul da França. Assegurada a supremacia naquela vasta região, em poucos anos Roma seria capaz de derrotar, um a um, na Grécia, na Ásia e no Egito, os Estados helenísticos, herdeiros do vasto império de Alexandre, iniciando, por conseguinte, uma hegemonia política e cultural que duraria 500 anos, ou mesmo 1500, se contarmos o período relativo ao Império Romano do Oriente,  centrado em Constantinopla.

FIM