Em 23 de abril de 303 D.C, um soldado romano chamado Georgios foi executado por ordens do Imperador Romano Diocleciano.
Diocleciano havia ordenado que todos os soldados do Exército Romano oferecessem um sacrifício aos deuses do panteão tradicional de Roma e aqueles que se recusassem deveriam ser presos.
Georgios (Jorge), segundo a hagiografia e a tradição cristã seria filho de Gerontius, um oficial romano da ilustre família senatorial dos Anícios, e Pollycronia, uma súdita romana de Lydda, atual Lod, em Israel, então situada na província romana da Síria Palestina. Segundo outro relato, Gerontius seria natural da Capadócia. De qualquer modo, as fontes acordam que Jorge cresceu em Lydda e que sua família era cristã.
(Mosaico romano descoberto em Lod, Israel)
Seguindo a carreira do pai, Jorge se alistou na guarda imperial, servindo na corte de Diocleciano em Nicomédia (atual Izmit, na Turquia), que havia sido elevada pelo imperador à condição de capital imperial, no recém-criado sistema da Tetrarquia.
Jorge acabou sendo promovido ao posto de Tribuno, que hoje seria equivalente ao de coronel. Quando Diocleciano publicou seu Édito exigindo que os soldados cristãos renunciassem ao cristianismo, Jorge anunciou publicamente, perante as tropas formadas na presença do Imperador, sua devoção a Jesus Cristo.
O Imperador, que apreciava Jorge tentou convencê-lo de várias formas a obedecer o Decreto, até oferecendo-lhe terras, dinheiro e escravos, mas Jorge manteve-se irredutível.
Sentindo-se obrigado a reforçar a obediência ao seu Édito, Dioclecianoordenou queJorge fosse torturado em uma roda de afiadas espadas. Após este suplício, Jorge foi decapitado em frente às muralhas de Nicomédia, em 23 de abril de 303 D.C. Seu corpo foi levado para Lydda e logo se tornou foco de devoção como relíquia de umt mártir cristão. Ainda segundo a tradição, a imperatriz Alexandra, esposa de Diocleciano (segundo as fontes históricas, o nome da esposa dele era Prisca), ao assistir o martírio de Diocleciano, converteu-se ao cristianismo, motivo pelo qual ela também foi executada e, posteriormente, canonizada.
(Panorama de Izmit, a antiga Nicomédia, na Turquia)
A associação de São Jorge ao dragão parece ter sido recolhida e trazida à Europa pelos cruzados no Oriente Médio (algumas populações islamizadas inclusive mantiveram a veneração a São Jorge na região).
Segundo a lenda, na cidade de Sylene (que poderia ser Cirene, na Líbia ou, segundo alguns, seria a própria Lydda), um dragão ( originalmente um crocodilo) viveria na fonte de água potável dos habitantes, que eram obrigados a oferecer ao monstro uma ovelha para sacrifício, até que, na falta dos animais, eles foram forçados a oferecer uma virgem. A donzela orou pedindo proteção e São Jorge apareceu e matou o dragão, motivo pelo qual todos os habitantes se converteram ao cristianismo.
Jorge foi canonizado pelo Papa Gelásio I, em 494 D.C. Embora o santo fosse conhecido no Ocidente, a sua popularidade chegou ao ápice com o retorno à Europa dos cruzados, que atribuíram à intervenção de São Jorge várias vitórias obtidas na Terra Santa. Por influência deles, São Jorge acabou virando o santo patrono da Inglaterra, de Portugal, da Geórgia, da Romênia e de Malta. A imagem de São Jorge matando o dragão também compõe a Cota de Armas da Federação Russa.
Em 15 de dezembro de 37 D.C., nasceu, em Anzio, Itália, Lucius Domitius Ahenobarbus (II), que passaria a História com o nome de Nero, filho de Gnaeus Domitius Ahenobarbus e de Agripina Minor (Agripina, a Jovem).
A gens dos Domícios (Domitii), que nos primórdios da República era plebeia, atingiu, ainda durante a fase de expansão de Roma pela península itálica, uma grande proeminência política, ocupando a magistratura do Consulado e fornecendo ao Estado destacados generais.
Já no final do período republicano, o ramo da gens Domitia dos Ahenobarbus (literalmente, os “barbas ruivas”) apoiou a facção senatorial dos Optimates (nobres) contra Júlio César. E, após o assassinato do Ditador, durante o Segundo Triunvirato, eles estiveram associados com o triúnviro Marco Antônio.
(Busto colorizado de Nero, mostrando os cabelos e a barba ruiva, característica da família dos Ahenobarbus)
Apesar de ter apoiado Marco Antônio, a família acabaria ingressando no círculo familiar do grande rival dele na disputa pelo poder supremo – Otaviano (o futuro imperador Augusto), uma vez que o bisavô de Nero, que também se chamava Lucius Domitius Ahenobarbus (I), casou-se com Antonia Major (Antônia, a Velha) que era filha de Antônio e Otávia, a irmã de Otaviano.
Os laços com a dinastia imperial dos Júlios-Cláudios (nome que deriva do fato de Augusto, sobrinho-neto e herdeiro de Júlio César, ter adotado o filho de sua terceira esposa,Lívia Drusila, e que seria o seu sucessor, Tibério.
Agripina, a Jovem, por sua vez, era neta de Augusto (a mãe dela, Agripina, a Velha, era filha de Júlia, a filha única de Augusto com sua segunda esposa Escribônia). Portanto, Nero era descendente direto do primeiro imperador, por parte de mãe, e também era parente de Augusto, por parte de seu pai, Gnaeus Domitius Ahenobarbus.
Todavia, a despeito de possuir tão ilustre ascendência, a princípio não parecia que o destino de Nero prometia muito. Com efeito, o seu pai, que tinha sido Cônsul em 32 D.C., foi acusado de traição, assassinato e adultério no final reinado de Tibério e ele somente se safou graças à morte do velho imperador, em 37 D.C., alguns meses antes do nascimento do próprio Nero. Todavia, Gnaeus Domitius Ahenobarbus acabaria morrendo poucos anos depois, de um edema, em janeiro de 40 ou 41 D.C.
O historiador romano Suetônio escreveu queGnaeus Domitius Ahenobarbus era um homem cruel e desonesto. Talvez por isso, ao receber os cumprimentos dos amigos pelo nascimento de Nero, o historiador registra que ele teria dito:
“Nada que não seja abominável e uma desgraça pública pode nascer de Agripina e de mim”
A sorte de Agripina, a mãe de Nero, não foi melhor no período. Embora ela fosse irmã do novo imperador, Gaius Julius Caesar Germanicus, mais conhecido como Calígula, (ambos eram filhos de Germânico, o falecido sobrinho e herdeiro de Tibério, adorado pelo povo e supostamente envenenado a mando de Lívia, viúva de Augusto e mãe de Tibério), este logo entrou em um processo de paranoia e loucura que o levou a suspeitar e perseguir de quase todos, inclusive os integrantes de seu círculo mais íntimo.
Assim, em 39 D.C., Agripina foi acusada de fazer parte de uma conspiração, fictícia ou verdadeira, contra o seu irmão, sendo condenada ao exílio nas ilhas Ponzianas, ao largo da Itália. Então, Calígula aproveitou esse pretexto para confiscar a herança do seu jovem sobrinho Nero.
Nero, portanto, no espaço de dois anos, quando ainda era uma criança de tenra idade, além de ter sido afastado do convívio com a mãe, exilada, teve a sua herança confiscada e também perdeu o pai. Ele foi então morar com sua tia, Domícia Lépida, que era irmã de seu pai.
Reabilitação de Agripina e Nero
Todavia, a sorte de Agripina e Nero mudaria com o assassinato de Calígula pelo centurião Cássio Queréa, em 41 D.C., em uma conspiração engendrada pela Guarda Pretoriana. Logo após o tiranicídio, os guardas descobriram, escondido atrás de uma cortina, o tio da imperial vítima, Cláudio, até então tido como imbecil e incapaz de ocupar qualquer cargo público, e o aclamaram como novo Imperador.
Cláudio era irmão de Germânico e, portanto, não surpreende que uma das primeiras medidas de Cláudio tenha sido chamar de volta do exílio a filha deste, Agripina, que era sua sobrinha. Assim reuniram-se, novamente, Nero e sua mãe. O novo imperador mandou também devolver ao seu sobrinho-neto, Nero, a herança confiscada por Calígula.
Ao contrário das expectativas, Cláudio mostrou-se um administrador competente das questões de Estado. Todavia, o mesmo não se pode dizer quanto à sua vida conjugal… Após dois casamentos fracassados, Cláudio casou-se com Valéria Messalina (filha de Domícia Lépida), esposa que se mostrou dominadora e notabilizou-se pela infidelidade e promiscuidade sexual, segundo os relatos antigos, que talvez sejam um tanto exagerados (ver Tácito, Suetônio, Plínio e Juvenal).
O fato importante é que Messalina deu a Cláudio, em 41 D.C., um filho, que recebeu o nome de Britânico, e a nova imperatriz imediatamente percebeu que o jovem Nero era uma ameaça às pretensões do seu filho natural ao trono. Consta, inclusive, que Messalina, certa vez, teria encomendado a morte de Nero a assassinos que chegaram a entrar no quarto do menino, e somente não completaram a tarefa porque se assustaram com o que eles pensaram ser uma cobra.
(Messalina segurando Britânico, estátua no Museu do Louvre, foto de Ricardo André Frantz)
A grande popularidade de Agripina e Nero foi atestada quando, durante os concorridos Jogos Seculares, em 47 D.C., eles foram ovacionados pelo povo, que demonstrou por eles muito mais simpatia do que em relação a Messalina e Britânico, que também estavam presentes no evento.
Se a conduta pretensamente escandalosa de Messalina foi ou não a causa da sua desgraça, o fato é que ela foi sentenciada à morte em 49 D.C., supostamente por ter se casado secretamente com um senador, Gaius Silius, no que seria uma conspiração para assassinar o seu marido e imperador. Há relatos de que, ainda assim, Cláudio teria relutado em ordenar a execução dela, que somente teria sido levada a cabo por iniciativa de seus auxiliares.
Agripina, imperatriz
Naquele mesmo ano de 49 D.C., Cláudio casaria com sua sobrinha, Agripina, a Jovem. Este pode muito bem ter sido um casamento político, já que nenhuma mulher, naquele momento, tinha linhagem mais ilustre. Há, contudo, quem acredite que Agripina, valendo-se da intimidade familiar que a condição de jovem e bonita sobrinha lhe propiciava, tenha astuciosamente seduzido o seu velho tio.
Em verdade, para os romanos, o casamento de Cláudio e Agripina tinha um caráter incestuoso, já que o casamento de tio e sobrinha era quase tão inaceitável como o de um pai com a filha.
Portanto, o custo político dessa união deve ter sido considerável e é possível que somente o fato de Cláudio ter sido seduzido explique ele ter descartado as consequências políticas negativas de mais esse escândalo em sua vida conjugal. O passado do velho imperador nos inclina para essa última hipótese, pois houve episódios anteriores nos quais ele parece ter sido emocionalmente manipulado por mulheres dominadoras…
Seja como for, o fato é que Agripina não titubeou em tratar de se tornar a pessoa mais poderosa na corte imperial, afastando aqueles que não lhe parecessem leais e, sobretudo, os concorrentes de seu filho Nero à sucessão de Cláudio.
Ainda em 49 D.C., a imperatriz Agripina recebeu o título de “Augusta“, sendo esta a primeira vez que esse título era conferido a uma mulher em vida (as suas duas antecessoras, Lívia e Antônia, o receberam como honra fúnebre). Neste mesmo ano, Cláudio batizou em sua homenagem uma cidade recém-fundada na Germânia, que recebeu o nome de Colonia Claudia Ara Agrippinensis ( a atual Colônia, na Alemanha – Agripina nasceu ali, quando o local ainda era um quartel militar comandado por seu pai, Germânico). Vale citar que nunca, antes ou depois na História de Roma, uma cidade romana foi batizada em homenagem a uma mulher.
Nero, herdeiro do trono
Em 50 D.C., Lucius Domitius Ahenobarbus (Nero) foi adotado por Cláudio, tornando-se oficialmente seu herdeiro, passando a se chamar Nero Claudius Caesar Drusus Germanicus. No ano seguinte, Nero, então com 14 anos, foi declarado maior de idade (assumindo a “toga virilis”), foi nomeado Proconsul e entrou para o Senado. A partir daí, ele começou a participar das cerimônias públicas junto com o Imperador, e até moedas foram cunhadas com a efígie de ambos.
Antecipando a necessidade futura de Nero contar com o apoio da Guarda Pretoriana para alcançar o trono, Agripina persuadiu Cláudio a nomear o militar Sextus Afranius Burrus (Burro) como único Prefeito Pretoriano (Comandante), no lugar de Lusius Geta e Rufius Crispinus.
Agripina supervisionava cuidadosamente a preparação de Nero para a futura ascensão ao trono imperial, designando, por exemplo, o afamado filósofo estoico Sêneca, o Jovem para ser o tutor do rapaz. Ela também não poupou esforços para fazer o filho querido pelo populacho. Além disso tudo, Agripina manobrou para que Cláudia Otávia, a filha de Cláudio e irmã de Britânico, e Nero se casassem, em 9 de junho de 53 D.C.
(Cláudia Otávia, primeira esposa de Nero)
A adoção de Nero por Cláudio é um episódio que suscita muita discussão entre os historiadores, já que Cláudio tinha um filho natural do sexo masculino, Britânico, que era apenas quatro anos mais novo do que Nero. E não há nada que indique, fora, obviamente, esse fato, que Cláudio não nutrisse pelo rapaz o amor paternal.
Seja como for, as fontes relatam que, à medida que Britânico ia chegando à idade de assumir a “toga virilis”, Cláudio começou a dar seguidas demonstrações de afeto pelo filho natural. Segundo os historiadores Tácito, Suetônio e Cássio Dião, Cláudio somente estaria esperando a maioridade do filho natural para nomeá-lo como seu novo herdeiro, e ele teria declarado isso na presença de outros, sendo esse o fato que levou Agripina a tramar a sua morte
Cláudio morreu em 13 de outubro de 54 D.C., aos 63 anos – uma idade avançada para a época – no que pareceu ser uma indisposição gástrica após ele ter comido um prato de cogumelos, o qual lhe ocasionou vômitos. As fontes antigas dão crédito a versão de que aqueles cogumelos, comida muito apreciada por Cláudio, teriam sido envenenados, por uma poção preparada pela famosa envenenadora Locusta, que tinha sido contratada por Agripina. O motivo para o assassinato era óbvio: impedir que Britânico fosse nomeado herdeiro pelo pai.
Imperador Nero – primeiros anos
(Agripina, personificada como a deusa Ceres, coroa Nero. A mensagem devia ser evidente para todos)
No mesmo dia em que Cláudio morreu, Nero foi saudado imperador pela Guarda Pretoriana, e, em seguida, ele foi reconhecido como tal pelo Senado Romano. Nero não sabia, mas seria o último imperador da dinastia dos Júlios-Claúdios.
O reinado de Nero começou promissor. Ele tinha apenas 17 anos, mas era aconselhado pelo filósofo Sêneca (que, segundo Cássio Dião), redigiu seu primeiro discurso ao Senado), e por Burro, que foi mantido como Prefeito da Guarda Pretoriana, e, de fato, as suas primeiras medidas como imperador suscitaram aprovação geral.
Vale notar que, ainda durante o reinado de Cláudio, a administração dos assuntos de Estado começou a ser desempenhada cada vez mais pelos escravos libertos do Imperador que trabalhavam nas dependências do Palácio e que passaram a constituir o embrião de verdadeiros ministérios, no sentido administrativo moderno, assumindo tarefas que antes estavam a cargo dos antigos magistrados da República. Nero herdou esse sistema, e muitos libertos de Cláudio continuaram a exercer seus cargos no seu reinado, como por exemplo o liberto Marcus AntoniusPallas, que ocupava um cargo equivalente ao de Secretário do Tesouro, uma circunstância que assegurou certa continuidade administrativa.
Sêneca e Burro, sensatamente, procuraram assegurar que o imperador mantivesse boas relações com o Senado Romano, comparecendo às sessões desta assembleia e levando em consideração as recomendações dos senadores. Os dois preocuparam-se especificamente em abolir o costume implementado por Cláudio, de conduzir julgamentos em sessões privadas realizadas no próprio Palácio (“in camera”), o que era considerado contrário aos princípios jurídicos romanos tradicionais, que previam audiências públicas..
Foram promulgados decretos visando prevenir que os governadores extorquissem demasiadamente as províncias e também outros relativos à ordem pública e urbana. Nero também postulou, sem levar em consideração as despesas públicas, abolir vários tributos, sendo, entretanto, demovido desse propósito pelo Senado. Muitas das medidas de Nero, aliás, demonstravam um grande desejo dele aumentar a sua popularidade.
Os dois conselheiros procuraram, ainda, diminuir a excessiva intervenção de Agripina nos assuntos do governo, e, com esse propósito, eles chegaram até a incentivar a paixão que Nero nutria pela liberta Acte, que virou amante do Imperador. Dessa forma, além de afastar Nero da influência da mãe, eles também visavam diminuir a inclinação ao desregramento sexual que já se percebia no jovem imperador, impulsos que o casamento com a imperatriz Cláudia Otávia parecia incapaz de arrefecer.
Observe-se que Suetônio acusa diretamente Nero e Agripina de manterem uma relação incestuosa, mencionando até que isso costumava ocorrer quando os dois viajavam pelas ruas romanas em liteiras, um comportamento que seria denunciado pelas manchas suspeitas na toga do filho… Outros autores, de fato, também citam este costume que ambos tinham de andar na mesma liteira, mas muitos historiadores consideram que a obra de Suetônio, em muitas passagens, tende a reproduzir e aumentar boatos escandalosos, sem muita preocupação com a verdade histórica.
A tônica, porém, em todas as fontes, é de que Nero não nutria muito entusiasmo pelas tarefas governamentais, preferindo dedicar-se ao canto, ao teatro e às competições esportivas, sobretudo corridas de cavalos. Progressivamente, também, o poder absoluto lhe permitiu experimentar as mais variadas práticas sexuais.
Assim, a falta de aptidão para o cargo, a juventude e a onipotência uniram-se para empurrar Nero para uma ilimitada devassidão. Por outro lado, o avanço dos anos deu-lhe confiança para cada vez mais afirmar a sua vontade e ignorar os conselhos de Sêneca e Burro, ao passo que a repetida intromissão de Agripina em sua vida começou a lhe parecer insuportável, notadamente a oposição que a mãe externava em relação ao seu romance com Acte.
Morte de Britânico e Agripina. Nero governa por conta própria
Outro fator de discórdia entre mãe e filho, e talvez mais importante, foi o fato de Agripina, certa vez, ter insinuado que Britânico aproximava-se da maioridade, dando a entender a Nero que ela poderia apoiar o rapaz como sendo o legítimo herdeiro de Cláudio. Por isso, em 55 D.C., Nero demitiu o liberto Pallas, que tinha sido um fiel aliado de Agripina desde os tempos de Cláudio.
Ainda em 12 de fevereiro de 55 D.C., Britânico morreu, no dia exato em que ele completaria a maioridade. Segundo os autores antigos, ele foi envenenado a mando de Nero, que teria também recorrido aos serviços da envenenadora Locusta.
Mas a relação de Nero com a mãe azedou de vez quando, em 58 D.C., a nobre Popéia Sabina, a Jovem, tornou-se amante dele. Agripina, opondo-se ao romance, aproximou-se da imperatriz Cláudia Otávia, que, em oito anos de casamento com Nero, não tinha gerado filhos, muito em função do desinteresse do marido pela esposa.
(Popéia Sabina, segunda esposa de Nero)
Popéia Sabina, que era casada com Marcus Salvius Otho(o futuro imperador Otão), grande amigo de Nero, em vingança à oposição de Agripina ao seu romance com o imperador, teria aconselhado Nero a assassinar a mãe, segundo Tácito (Nota: Popéia seria natural de Pompéia, e a sua magnífica Villa, na cidade de Oplontis, foi soterrada pela erupção do Vesúvio e descoberta em excelente estado de conservação -vide fotos abaixo).
Os historiadores narram que Nero teria engendrado vários esquemas engenhosos para matar Agripina, que iam desde o naufrágio em um navio previamente sabotado para se desmanchar no mar, ao desabamento provocado do teto de um aposento que ela ocupava, todas sem sucesso.
Finalmente, em 23 de março de 59 D.C., Nero conseguiu que a mãe morresse, embora não seja claro de que forma ela foi morta. Aparentemente, após sobreviver ao naufrágio, Nero enviou assassinos para matar a mãe. Segundo um relato, quando o executor ergueu a espada, Agripina teria dito, como se lamentasse ter parido o filho, apontando para o próprio ventre:
“Fira o meu útero!”
Afastada a influência, diga-se de passagem, raramente benigna, da mãe, Nero sentiu-se livre para fazer tudo o que lhe apetecesse. Ele entregou-se totalmente à sua paixão pelas artes, apresentando-se publicamente cantando e tocando a lira. Ocorre que os recitais dele eram intermináveis, e Tácito comenta que, em algumas ocasiões, mulheres chegaram a dar à luz e pessoas chegaram a falecer enquanto assistiam os longos espetáculos. Ficou famoso o caso do futuro imperador Vespasiano, que, apesar de ser um militar de prestígio, caiu em desgraça após dormir durante um recital de Nero.
É importante ressaltar que, segundo os padrões de conduta morais vigentes na aristocracia romana à época, um nobre apresentar-se publicamente como artista ou esportista era considerado degradante.
Em 62 D.C., Burro faleceu, e Sêneca foi obrigado a se afastar do governo devido a acusações de enriquecimento ilícito (que aparentemente eram verdadeiras), as quais vieram somar-se à suspeita, já existente, de que Sêneca teria mantido relações amorosas com Agripina.
Naquele mesmo ano de 62 D.C., Popéia ficou grávida de Nero, que finalmente decidiu divorciar-se de Cláudia Otávia, sob o pretexto de infertilidade da imperatriz. Assim, doze dias depois do divórcio, Nero casou-se com Popéia.
A infeliz Cláudia Otávia foi exilada na ilha de Pandatária, mas a opinião pública protestou e exigiu que Nero a trouxesse de volta à Roma. Logo em seguida, porém, ela morreria, tendo apenas cerca de 23 anos de idade, assassinada a mando do imperador, embora os executores tenham tentado fazer a morte dela parecer um suicídio.
Em 21 de janeiro de 63 D.C., Popéia deu à luz a uma menina que recebeu o nome de Cláudia Augusta e ela seria o único descendente que Nero teria na vida. Porém, a menina morreria com somente quatro meses de idade.
Conflitos nas fronteiras
Nos assuntos de política exterior, o principal desafio enfrentado pelo Império no reinado de Nero foi a disputa pela Armênia com a Pártia. O general Gnaeus Domitio Corbulo(Corbulão) obteve inicialmente sucesso militar, mas a campanha não foi concluída. Em 63 D.C., porém, o Império obteve um bom acordo com a Pártia, em que Roma teria a palavra final sobre a escolha do rei da Armênia, Foi um bom tratado e que garantiria a paz na região até 114 D.C.
Nero também teve que enfrentar a séria revolta da rainha dos Icenos, Boudica(Boadicéia), na Britânia, que foi derrotada pelo general Gaius Suetonius Paulinus (Suetônio Paulino), em 61 D.C.
(Estátua da rainha Boudica, dos Icenos, em Londres)
O Grande Incêndio de Roma
Em julho de 64 D.C., ocorreu o Grande Incêndio de Roma, que durou seis dias e causou uma grande destruição. Com efeito, dos 14 distritos de Roma, somente 4 foram poupados do fogo.
A responsabilidade de Nero pelo incêndio é muito debatida. Algumas fontes antigas citam boatos de que Nero teria mandado provocar o incêndio, visando sobretudo reconstruir a cidade de acordo com a sua vontade, e, especialmente, para possibilitar a construção de sua espetacularmente enorme e suntuosa “Domus Aurea“, cujas ruínas ainda hoje impressionantes dão uma ideia do seu esplendor.
Consta que Nero, após o palácio ficar pronto, teria dito :
“Finalmente, agora eu posso morar como um ser humano”
(Domus Aurea, reconstituição)
Tácito e Cássio Dião também relatam, o primeiro expressamente como sendo um boato, que, enquanto Roma queimava, Nero teria subido no telhado do Palácio e cantado a ode grega “A Destruição de Tróia“.
Porém, eu acredito que, provavelmente, essa tragédia foi apenas o mais catastrófico dos frequentes e periódicos incêndios que assolavam uma Roma que havia crescido demasiada e desordenadamente.
Diga-se de passagem, os posteriores decretos assinados por Nero relativos ao ordenamento urbano, especialmente visando evitar a repetição de incêndios, descritos por Tácito e Suetônio, são muito razoáveis, na verdade, excelentes até (eles dispõem sobre o espaço entre os prédios de apartamentos, do uso de materiais de construção resistentes ao fogo e da previsão de reservatórios de água, entre outras coisas).
Após o incêndio, Tácito relata que Nero abriu os jardins dos palácios para abrigar os flagelados pelo incêndio, em abrigos temporários. Vale a pena citar o seguinte trecho do historiador:
“Nero, naquele momento, estava em Antium, e não retornou à Roma até o fogo aproximar-se de sua casa, que ele havia construído para conectar o palácio com os jardins de Mecenas. Não foi possível, entretanto, impedir o fogo de devorar o palácio, a casa e tudo em volta deles. Todavia, para aliviar o povo, que tinha sido expulso desabrigado, ele mandou que fossem abertos para eles o Campo de Marte e os edifícios públicos de Agripa, e até mesmo os seus próprios jardins, e ergueu estruturas temporárias para receber a multidão despossuída. Suprimentos de comida foram trazidos de Óstia e das cidades vizinhas, e o preço do grão foi reduzido para três sestércios. Essas ações, embora populares, não produziram nenhum resultado, uma vez que espalhou-se por todo lugar um rumor de que, enquanto a cidade estava em chamas, o imperador apresentou-se em um palco particular e cantou a destruição de Tróia, comparando os infortúnios presentes com as calamidades da antiguidade”. (Anais, XV, 39)
Um episódio notório, ainda relativo ao incêndio, foi o martírio da nascente comunidade cristã de Roma, que teria sido apontada oficialmente como bode expiatório pelo incêndio. Hoje, há opiniões de que esta perseguição não teria ocorrido, a despeito dela também fazer parte da tradição cristã. Há, no entanto, uma bem fundamentada tese de que o número 666, que seria o nome da besta do Apocalipse citado no Evangelho, seria o código alfanumérico relativo ao nome de Nero, de acordo com um antigo jogo comum na época romana, numa vinculação que o evangelista João poderia ter feito em função da referida perseguição.
(Tela de Henryk Siemiradzki, retratando o martírio dos cristãos, que, segundo o relato de Tácito, foram utilizados como tochas humanas)
O fato é que as excentricidades e os crimes de Nero, somados à desconfiança pública de que o incêndio estava relacionada à construção da magnífica Domus Aurea, começaram a minar o reinado dele.
Some-se a isso a morte de Popéia, ocorrida em 65 D.C., tendo se espalhado o boato de que a morte dela fora causada após a imperatriz levar um pontapé de Nero na barriga, quando estava grávida, o que causou indignação no povo (curiosamente, a mesma acusação seria feita, milênios mais tarde, ao imperador D. Pedro I, e, igualmente, ela contribuiu para agravar o clima que resultou na abdicação de nosso primeiro imperador)
A Conspiração Pisoniana
Ignorando todo esse quadro de insatisfação, Nero começou a retirar o que restava das prerrogativas do Senado. Isso deflagrou, também em 65 D.C., a denominada “Conspiração Pisoniana“, assim chamada porque liderada pelo respeitado senador Gaius Calpurnius Piso, e que visava derrubar o imperador. Porém, essa conspiração, que envolvia senadores e membros da guarda pretoriana, foi denunciada a tempo, e Nero mandou executar os participantes. Entre os punidos, estava o seu ex-tutor e conselheiro, o filósofo Sêneca, apesar de não haver certeza se ele estava mesmo envolvido.
Outro que teria sido executado na repressão à Conspiração foi o poeta Lucano. Mas a morte mais sentida pela aristocracia romana foi a do senador Públio Clódio Trásea Peto, um crítico contumaz do reinado de Nero, que também foi obrigado a cometer suicídio, em 66 D.C., após ser condenado pelo Senado com base em acusações vagas em uma sessão de julgamento na qual a Cúria foi cercada pelos Pretorianos.
Para poupar Sêneca, e a própria imagem do imperador, perante a opinião pública, do embaraço de uma execução, Nero ordenou que ele cometesse suicídio. O mesmo ocorreu com outro implicado no esquema, o escritor satírico Petrônio (A cena da morte de Petrônio, em uma banheira, com o sangue esvaindo-se das veias cortadas enquanto conversava rodeado dos seus melhores amigos, está brilhantemente retratada no filme “Quo Vadis“).
(O Suicídio de Sêneca, tela de Manuel Domínguez Sánchez (1871), no Museu do Prado)
Quem teve atuação implacável na repressão à referida conspiração foi Ofonius Tigellinus, o sucessor de Burro como Prefeito da Guarda Pretoriana, que era um amigo e parceiro de Nero no desfrute de corridas de carros e orgias, e que fora nomeado para o cargo em 62 D.C.
O início do fim
Em 66 D.C., Nero casou-se com sua terceira esposa, Statilia Messalina (não confundir com a esposa de Cláudio).
(Statilia Messalina, terceira esposa de Nero)
A Conspiração Pisoniana, não obstante tenha sido debelada, marcou o início da queda de Nero. Deve ter havido uma percepção geral entre as lideranças do Senado e do Exército de que o reinado dele não iria durar muito e que o caos se aproximava. As despesas com a reconstrução de Roma tinham exaurido o Tesouro do Estado e, em decorrência, a moeda teve que ser desvalorizada e os impostos aumentados.
Ainda em 66 D.C., estourou uma grande revolta na Judéia, No meio dessa grave crise, Nero resolveu fazer uma excursão triunfal pela Grécia, visitando os pontos turísticos mais célebres, apresentando-se como artista e participando dos Jogos Olímpicos de 67 D.C., como competidor. Para os gregos, a visita foi um sucesso, pois Nero chegou a proclamar a liberdade das cidades gregas, mas para a elite em Roma, ela deve ter sido percebida como mais uma prova da insanidade do Imperador.
Logo, outras rebeliões começariam a pipocar nas províncias…
Em 67 D.C., Nero enviou o respeitado general Titus Flavius Vespasianus (o futuro imperadorVespasiano) para combater a Grande Revolta Judaica. Nessa ocasião, suspeitando da lealdade do general Corbulão, o imperador o convocou-o à sua presença na Grécia, e ordenou que ele cometesse suicídio para não ser executado, sendo fiel e surpreendentemente obedecido.
Porém, em março de 68 D.C., o governador da importante província da Gália Lugdunense, Gaius Julius Vindex, revoltou-se contra os pesados tributos impostos à província. Em seguida, Vindextentou, sem êxito, convencer o governador da Hispânia, Servius Sulpicius Galba (o futuro imperador Galba), a se juntar à rebelião. No decorrer da rebelião, em maio, as legiões da Germânia, sob o comando de Lucius Verginius Rufo, seguindo as ordens de Nero, derrotaram Vindex, na Batalha de Vesontio (atual Besançon), que, em razão disso, cometeu suicídio.
Todavia, as legiões vitoriosas imediatamente declararam-se em rebelião contra Nero, embora Rufo tenha permanecido leal ao imperador, recusando-se a aderir ao movimento. Parece que nesse momento, os soldados já começavam a farejar a oportunidade de, como em ocasiões anteriores, obterem polpudas recompensas caso um novo imperador assumisse o trono.
Enquanto isso, Nero, que havia voltado para Roma em janeiro de 68 D.C., recebeu a notícia de que, além das legiões de Vindex, as legiões da África também tinham se revoltado.
Galba, entretanto, aguardava cautelosamente o desenrolar dos acontecimentos, mas os seus partidários em Roma não ficaram imóveis. Assim, em algum momento entre maio e junho de 68 D.C., o outro Prefeito da Guarda Pretoriana, Ninfídio Sabino (consta que Tigellinus estaria doente naquele mometo), persuadiu os pretorianos em Roma a se declararem a favor de Galba. Para o azar de Nero, isso ocorreu antes da chegada da notícia da vitória de Rufo contra Vindex, o que daria ao imperador certa esperança de readquirir o controle da situação.
A morte de Nero
Em 9 de junho de 68 D.C., em uma villa suburbana, situada a apenas 6 km de Roma, chegou um mensageiro galopando à toda velocidade. O cavaleiro desmontou e entrou no luxuoso átrio da propriedade, sendo recebido por Phaon, um liberto do Imperador Nero que exercia o cargo de Secretário de Finanças imperial.
Acompanhado de outros três homens, Phaon ingressou na área privada da residência e, pouco tempo depois, ouviu-se um um grito desesperado, acompanhado da frase:
“Que grande artista o mundo irá perder!”
Um dos homens pergunta que notícia o mensageiro havia trazido e o outro respondeu que o Senado Romano havia declarado Nero era um “Inimigo Público“.
Aquele era, sem dúvida, o ponto culminante da tensão que Nero vinha vivendo nas últimas semanas, desde que soube que Julius Vindex havia sido aclamado imperador pelas tropas dele, em março, e iniciara sua marcha para a Itália, e o Prefeito Pretoriano Ninfídio Sabino manifestara o seu apoio a Galba, deixando o imperador totalmente indefeso dentro da Capital.
Ao saber da adesão de Ninfídio Sabino ao general Galba, Nero chegou a deixar o Palácio e tentar fugir para o porto de Óstia, onde ele planejava embarcar em um navio da frota, que ele esperava que tivesse se mantido leal, e partir para as províncias do Oriente, onde ele tinha certeza de que ainda era muito popular e poderia organizar um contra-ataque.
Todavia, Nero, temeroso, concluiu que era grande a possibilidade dele não conseguir chegar ao porto ileso, e, assim, deu meia-volta e voltou para o Palácio, onde ele até tentou dormir um pouco. O sono contudo, seria breve. Com efeito, durante a meia-noite, já na virada do dia 08 para o dia 09 de junho de 68 D.C., o Imperador acordou e, aterrorizado, constatou que não havia sequer um guarda na porta dos aposentos imperiais.
Nero percorreu, então, esbaforido, os corredores desertos do palácio, sem encontrar viva alma, gritando:
“Não terei eu amigos ou inimigos?
Até que, alertados pela gritaria, finalmente acudiram os mais próximos e fiéis libertos de Nero: Epafrodito,Phaon, Neophytus e Esporo (Nota: Esporo (Sporus) era um garoto que se tornou favorito de Nero por ter uma notável semelhança com a falecida imperatriz Popéia Sabina. Segundo Suetônio, Nero mandou castrar Esporo e chegou até a casar com o rapaz, por volta de 67 D.C.).
Phaon, então, ofereceu a Nero a sua villa nos arredores de Roma, para que o imperador se escondesse lá, pois ainda havia a esperança de que o Senado não reconhecesse os usurpadores, tendo em vista que outros comandantes ainda não haviam aderido à rebelião. A villa não era longe e o grupo deve ter chegado lá ainda antes do amanhecer.
Porém, no decorrer do dia 09 de junho, a referida chegada do mensageiro tirou todas as esperanças de Nero. Ele, então, implorou que um dos quatro fiéis libertos tirasse a própria vida primeiro, alegando que isso lhe daria coragem para fazer o mesmo, além de lhe ensinar o método, mas nenhum deles topou a proposta.
Então, enquanto o imperador relutava, ouviu-se o galopar de vários cavalos, e, premido pelo temor da chegada da tropa que estava vindo para lhe prender ou executar, Nero ordenou que Epafrodito o ajudasse a se matar. Assim, Nero, com a ajuda de Epafrodito, enfiou uma faca na própria garganta.
Quando os cavaleiros entraram no aposento, Nero já havia perdido muito sangue. Um dos soldados tentou colocar um pano na garganta dele, à guisa de estancar o sangue, e Nero ainda teve forças para balbuciar, dramático como ele sempre fora durante toda a vida:
“Tarde demais. Isso é que é fidelidade!”
Nero morreu aos 30 anos de idade. O corpo dele foi cremado à maneira tradicional romana e as cinzas depositadas no Mausoléu dos Domícios, então situado nos limites da cidade de Roma e onde hoje, ironicamente, fica um templo da arte, a Galeria Borghese.
(Villa Borghese, que hospeda a Galeria Borghese e onde ficava o Mausoléu dos Domícios, lugar do sepultamento das cinzas de Nero)
As fontes relatam que, várias décadas depois de sua morte, pessoas do povo ainda adornavam a tumba de Nero com flores…
Conclusão
A ascensão e queda de Nero são expressões gritantes das contradições do sistema inaugurado por Augusto.
Com efeito, o Império nasceu como fruto da incapacidade das instituições republicanas de moderar os conflitos de poder e as disputas políticas decorrentes da tensão entre a defesa da manutenção dos privilégios da nobreza (facção política dos “Optimates“) e a afirmação das vontades e consideração das necessidades dos cidadãos plebeus livres, mal arbitradas por regras criadas originalmente para se gerir uma Cidade-Estado, sem contudo, adaptar-se à existência de um crescente proletariado não-proprietário em Roma, e que também eram inapropriadas para acomodar os anseios de uma enorme população de colonos romanos e cidades aliadas, muitos dos quais estavam espalhadas por um enorme território fora da Itália, (anseios e interesses esses que encontravam algum acolhimento na facção senatorial dos chamados “Populares“).
Essas crises degeneraram na resolução das disputas pela guerra entre generais-políticos filiados as referidas facções representadas no Senado, que recrutavam cidadãos entre o proletariado, os quais eram mais leais aos seus comandantes do que ao Estado. O conflito parecia ter se resolvido na concentração de poderes em torno do vencedor da guerra civil, o líder dos Populares, Caio Júlio César, que, contudo, foi assassinado antes de poder implementar uma nova constituição politica (se é que ele tinha mesmo essa intenção), tarefa esta que foi retomada por seu sucessor Augusto.
Como se fosse uma “marca de nascença” do principado, o assassinato de César sempre pairou sobre o regime imperial. César, alegadamente, foi morto por se acreditar que ele queria ser rei e os seus assassinos, integrantes dos Optimates, reivindicaram a restauração da República. Vencidos os Optimates por Augusto, herdeiro de César, ele, por sua vez, da mesma forma se apresentou como o “Restaurador da República“.
Desse modo, o Império por séculos seria assombrado pelo paradoxo de ser uma “Monarquia que não ousa dizer o seu nome“.
Contudo, a constituição não-escrita elaborada por Augusto padecia de duas graves contradições:
1) A ambiguidade de, formalmente, querer-se restaurar a República, concentrando as mais importante das antigas magistraturas republicanas nas mãos do “Princeps“, mas dividindo, ao menos na aparência, o governo do Estado com o Senado, sem contudo, jamais delimitar precisamente qual o papel e o poder desta assembleia. Isto se tornaria um grande fator de instabilidade.
A prática inaugurada por Augusto, e seguida em parte e confusamente por Tibério, de simular que o poder continuava com o Senado, sendo o poder de fato exercido no Palácio, propiciava que, quando personalidades imperiais menos afetas às aparências e deferências devidas ao Senado ocupassem o trono, eles fossem percebidas como tiranos, situação que deu margens a inúmeras conspirações, reais ou imaginárias.
2) A já aludida “marca de nascença” (assassinato de César), que expressava a prevalência da tradicional repulsa cultural romana à monarquia, impediu que Augusto estabelecesse uma regra clara quanto à sucessão imperial. Como o regime não podia e não devia ser considerado uma monarquia, jamais o princípio dinástico foi formalmente estabelecido. Embora o costume fosse que o imperador escolhesse o seu herdeiro, a existência de descendentes ou parentes próximos ameaçava a legitimidade do escolhido, sendo isso uma nova fonte de conspirações, e de temor da existência delas por parte do imperador.
A incerteza quanto ao critério sucessório também gerava instabilidade. Os imperadores Júlios-Cláudios costumavam nomear os parentes sanguíneos ou afins mais velhos como herdeiros formais ou presumidos, quando aqueles mais próximos ainda eram muito jovens. Mas, quando estes iam crescendo, os títulos e honrarias que caracterizavam a condição de herdeiro eram retirados dos primeiros e conferidas aos mais novos. O temor ou a insatisfação dos inicialmente escolhidos normalmente resultava na eliminação dos rivais mais novos ou na do próprio imperador. Tal fato ocorreu com Augusto, com Tibério e com Cláudio, e somente não ocorreu com Calígula devido ao seu reinado ter sido muito curto, e com Nero, porque ele não tinha herdeiros.
Somente a partir do reinado de Nervacomeçou a ser implantada uma regra consuetudinária, com bases filosóficas, de que o governante deveria adotar como sucessor o melhor homem público, ainda que este fosse seu parente, de quem se esperava que demonstrasse a sua competência, costume que também não sobreviveu à morte de Marco Aurélio.
A avaliação do reinado de Nero é controversa na visão dos historiadores. A visão tradicional, de de que ele seria um louco e um monstro, hoje é temperada pela leitura crítica que se faz dos historiadores Tácito e Suetônio, tidos como membros da classe senatorial, nostálgica da República e antipática ao Principado, dando destaque às perseguições do monarca contra os senadores e enfatizando boatos ou, mesmo, fofocas, de teor escandaloso sobre os hábitos privados dos imperadores.
Sintomaticamente, essas mesmas fontes relatam que, para uma boa parte da massa de cidadãos pobres e das províncias, a imagem de Nero era diferente. Como já observamos, Suetônio narra que, décadas após a morte de Nero, populares adornavam a sua tumba com flores e que, nas províncias, chegou a surgiu uma lenda, ao estilo de Dom Sebastião de Portugal, de que Nero, um dia, iria retornar.
Essa também é a opinião de muitos historiadores, valendo transcrever as palavras da historiadora clássica Mary Beard (“SPQR”, pág. 398):
“Vários historiadores modernos têm apresentado Nero, particularmente, mais como uma vítima da propaganda da dinastia Flaviana, que começa com Vespasiano, seu sucessor, do que como um piromaníaco assassino da própria mãe, a quem se atribui ter iniciado o grande incêndio de 64 D.C., não só para apreciar o espetáculo, mas também para limpar a área e poder construir seu novo palácio, a Casa Dourada (Domus Aurea). Mesmo Tácito admite, apontam os reabilitadores, que Nero foi o patrocinador de medidas de ajuda efetivas para os desabrigados após o incêndio; (…). Além disso, nos vinte anos após a morte e Nero, em 68 D.C., pelo menos três falsos Neros, com lira e tudo, apareceram nas regiões orientais do Império, reivindicando o poder e apresentando-se como o imperador em pessoa, ainda vivo, apesar de todas as notícias do seu suicídio. Foram todos rapidamente eliminados, mas o engodo sugere que, em algumas áreas do mundo romano, Nero era lembrado afetuosamente: Ninguém buscaria alcançar o poder fingindo ser um imperador odiado por todos.”
FIM
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No dia 13 de novembro de 354 D.C., nasceu, na cidade de Taghaste (atual Souk Ahras, na Argélia), na província romana da Numídia, Aurelius Augustinus, filho de um pequeno proprietário rural e de sua esposa Mônica, cristã fervorosa e mãe possessiva (que, posteriormente, assim como o próprio filho, seria canonizada como Santa Mônica).
(Os locais acreditam que essa oliveira, na atual Souk Ahras foi plantada por Santo Agostinho)
Augustinus, que ficaria conhecido como Santo Agostinho, seria o principal filósofo cristão durante o Império Romano, e a influência do seu pensamento moldaria não só a doutrina da Igreja Católica até os nossos dias, mas a própria civilização ocidental.
Agostinho estudou em Cartago, o maior centro urbano do Norte da África (sem contar o Egito). Financiado a duras penas pelo pai, o jovem cursou retórica, visando obter um cargo público. Mas, embora ele se aprofundasse nos autores latinos, sobretudo Cícero(Inclusive, Agostinho foi muito influenciado pela obra de Cícero “Hortensius“, que não sobreviveu até os nossos dias), Agostinho detestava estudar grego, língua que ele não conseguiu aprender, e este fato prejudicou consideravelmente o seu desempenho acadêmico.
Mas Agostinho também se negava a ler a Bíblia, apesar de muita insistência da mãe. Tudo isso, somado às suas travessuras de jovem, suas dúvidas, paixões e ansiedades, e também a sua contínua aventura intelectual, é narrado magistralmente, de forma autobiográfica, em suas “Confissões“.
Após a morte do pai, Agostinho voltou para Thagaste, com o encargo de, agora na condição de chefe da família, administrar a propriedade paterna. Todavia, no lugar dessas tarefas mais mundanas, Agostinho resolveu abrir uma escola.
Primeiras influências
Enfim, depois de resolvidas as questões sucessórias, Agostinho voltou para Cartago para assumir um cargo de professor de retórica. Durante esse tempo, ele leu a obra de Aristóteles, traduzida para o latim.
(Vista atual de Souk Ahras, antiga Tagaste, foto de Omaislam)
Por volta dessa época, Agostinho teve contato com os ensinamentos do sábio persa Mani, que afirmava ser o universo governado pelo conflito entre dois princípios: a Luz ( o Bem) e a Escuridão (o Mal), uma doutrina que ficaria conhecida pelo nome de Maniqueísmo.
Em 384 D.C., sentindo-se limitado pela estreiteza da vida intelectual na província, Agostinho, contra a vontade da mãe, que fez de tudo para demovê-lo, decidiu ir para Roma. Porém, naquele tempo, as melhores oportunidades para jovens ambiciosos estavam em Milão, que era a capital do Império Romano do Ocidente e onde ficava a corte imperial. Ali, Agostinho conseguiu um cargo de professor de retórica.
No entanto, agora, Agostinho estava imerso em indagações intelectuais e à procura de um sentido para as questões existenciais. Ele flertou por algum tempo com o Ceticismo platônico, até conhecer o Neoplatonismo, através dos discípulos de Plotino, cuja doutrina era, então, popular entre os católicos em Milão, porque lhes parecia conferir uma base argumentativa racional para a fé cristã.
Agostinho tinha se aproximado dos católicos após conhecer (Santo) Ambrósio, o célebre bispo da cidade, uma pessoa que lhe causaria forte impressão e que já era idolatrado pela sua mãe.
Não obstante, Agostinho não escondeu o entusiasmo que ele teve ao ler a filosofia de Plotino, um filósofo de origem greco-egípcia, cujo cerne era a prática da ascensão da alma ao Uno – o princípio único, eterno, indivisível, imutável e transcendente que era a fonte de todas as coisas – pela contemplação interior. Segundo este filósofo, a partir do Uno a realidade fluiria constantemente, como a água de uma fonte, e as suas principais emanações seriam o Intelecto e a Alma. Consta que as últimas palavras de Plotino antes de morrer foram:
“Estou tentando devolver o Divino que há em mim para o Divino que há em Tudo“.
Coincidentemente ou não, o Uno de Plotino era bem parecido com o Deus Cristão descrito no Novo Testamento…
Conversão
Até que um dia, em agosto de 386 D.C., em um momento de grande angústia pessoal, para a qual certamente contribui o fato dele ter sido obrigado a se separar da mulher que ele amara desde a juventude na África, que lhe dera um filho, chamado Adeodato, e com a qual ele vivera em concubinato, Agostinho contou que ouviu uma voz infantil repetindo como um mantra as palavras:
“tolle, lege, telle lege” (“pega e lê, pega e lê”).
Assim, ele levantou-se e viu um livro caído aberto. Imediatamente, Agostinho pegou o volume e leu o seguinte texto da Carta de São Paulo aos Romanos:
“Andemos honestamente como de dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não vos preocupeis com a carne para não excitardes as suas cobiças”).
Livre da angústia e com o rosto iluminado, Agostinho foi contar a boa nova à sua mãe. Eu não tenho dúvidas que este deve ter sido o dia mais feliz da existência de Mônica: Após 32 anos de continuados esforços maternos, Agostinho tinha se convertido ao Cristianismo! Logo em seguida, Agostinho pediu demissão do cargo de professor e saiu de Milão para um retiro na fazenda do amigo Verecundo, junto com a mãe, o filho e os seus grandes amigos Nebrídio e Alípio.
Então, na páscoa de 387 D.C., o poderoso bispo de Milão, Ambrósio, batizou Agostinho e Adeodato, como era costume entre os cristãos. Poucos meses depois, Mônica, finalmente realizada por ter atingido o seu maior objetivo, a conversão do filho, faleceria em Óstia.
Em seguida, Agostinho decidiu voltar para Thagaste, vender as terras que herdara do pai e fundar uma comunidade religiosa, para viver em recolhimento e dedicar-se aos estudos teológicos na casa em que nascera.
Entretanto, a já famosa trajetória de Agostinho como religioso não lhe permitiria viver muito tempo em retiro e ele acabou sendo eleito assistente do Bispo de Hippo Regius (Hipona), cidade que ficava na atual Argélia. Quatro anos depois, em 395 D.C., Agostinho foi consagrado Bispo de Hipona, cargo que ele ocuparia pelos próximos 35 anos, até o fim de sua vida.
A função de bispo, no final do Império Romano, combinava a atuação pastoral, com atribuições administrativas, notadamente a gestão do crescente patrimônio das sés católicas, e também assistenciais e judiciárias, as quais vinham sendo atribuídas à Igreja Católica desde o reinado de Constantino I, o primeiro imperador cristão (Não é a toa que, até hoje, o organograma da Igreja Católica reproduz, em boa parte, a divisão do Baixo Império Romano, com as suas dioceses). Para Agostinho, porém, essas tarefas constituíam um fardo pesado, que competia com a sua atividade intelectual intensa e a produção literária. Não obstante, Agostinho foi um assíduo pregador no púlpito – sobreviveram, até os dias de hoje, cerca de 500 homilias ou sermões que ele ministrou em Hipona.
Foi como Bispo de Hipona que Agostinho escreveu as suas maiores obras: De Trinitate, Contra os Acadêmicos, Solilóquios, Do Livre-Arbítrio, De Magistro, Confissões, Espírito e Letra, A Cidade de Deus e Retratações.
Obra
Antes de Agostinho, o Cristianismo era uma religião revelada pela vida e pelos ensinamentos legados por Jesus Cristo, considerado pelos seus seguidores o Messias previsto pela Bíblia Judaica, que, contudo se apresentara e por eles fora percebido, não como o santo rei de Israel, mas como o filho do deus único, Jeová, adorado pelos hebreus. Agostinho, porém, pode ser considerado o fundador de uma filosofia cristã – um termo que ele mesmo criou – e, ainda que se discorde disso, de fato ele dotou o Cristianismo de uma coerência lógica que pela primeira vez foi sistematizada em bases racionais que poderiam inserir-se na especulação filosófica greco-romana. E embora esse fato talvez não significasse muito para o homem simples do campo, foi algo muito importante para atrair para a Igreja os membros da elite romana.
Entre as contribuições filosóficas de Agostinho ao Cristianismo, está o conceito de Beatitude, entendida como o estado de felicidade plena, somente encontrável em Deus. Agostinho tentou conciliar a fé e a razão, sendo a fé a forma de se atingir a verdade eterna, a qual, não sendo demonstrável pela razão, somente através da fé podemos demonstrar, a nós e aos outros, a certeza de acreditar:
“intellige ut credas, crede ut intelligas” (“É preciso compreender para crer, e crer para compreender“).
Contra os céticos, Agostinho afirmou que a percepção através dos sentidos não era falsa ou imperfeita (motivo pelo qual aqueles acreditavam que não era possível conhecer de forma absoluta ou indiscutível, sendo todo o conhecimento imperfeito e passível apenas de afirmar uma verdade provável). Para o Bispo de Hipona, a sensação sempre é verdadeira, o erro pode estar no juízo que se extrai das sensações. Assim, a sensação é absoluta. Ninguém pode dizer que o sujeito não sentiu, a sensação é uma verdade interna ao sujeito. Assim, em certo grau, na obra “Cidade de Deus“, Agostinho antecipou o pensamento de Descartes:
“Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”.
O pensamento, assim, era uma realidade em si mesma e uma prova da existência – não só do homem, mas de Deus.
Não obstante, para ele, a inefável natureza divina não poderia ser compreendida pelo homem, transcendendo ao pensamento, como bem exemplifica a resposta de Jeová a Moisés: “Eu sou o que sou” (IHVH), assemelhando-se, assim, em sua imutabilidade, inamovibilidade, indivisibilidade e eternidade, ao Uno de Plotino.
Para Agostinho, Deus é perfeito e toda a criação é perfeita, pois tudo o que existe foi criado por Deus. O mal, portanto, somente pode consistir no oposto do bem, ou seja, no “não-ser“. Portanto, para o filósofo cristão, onde houver mal, não há Deus. O pecado, por via de consequência, é o afastar-se de Deus e é possibilitado pelo livre-arbítrio com que Ele dotou o Homem à Sua imagem e semelhança.
Nessa linha, Agostinho também elaborou sobre o insondável mistério da multiplicidade das 3 pessoas na unidade da Santíssima Trindade, iguais e consubstanciais, sendo o Pai, a essência divina; o Filho, o Verbo e a Razão, através da qual Deus se manifesta; e o Espírito Santo, de onde flui o amor que tudo criou:
“Onde existe o Amor existe a Trindade: Um que ama, Um que é amado e uma Fonte de Amor”.
Na concepção de Agostinho, a criação do universo coincide com a criação do tempo, antecipando intuitivamente o próprio Einstein, ao demonstrar que tempo e espaço são uma mesma dimensão. De fato, para Agostinho, tudo no universo teria sido criado simultaneamente, isto é, de uma só vez e não em 6 dias, como escrito na Bíblia, que. neste particular, para ele não deveria ser entendida em sentido literal. Da mesma forma, o conceito de Agostinho sobre o Pecado Original, a Graça e Predestinação influenciaram a Teologia desde o século V D.C. até o presente.
Com efeito, a concepção de Agostinho sobre o Pecado Original, por exemplo, influenciou posteriormente o Protestantismo. Ele o via como resultado da influência de Satã sobre os os sentidos e carne (“a semente do mal“), afetando a inteligência e o livre-arbítrio do homem, decorrente da concupiscência e libido.
Para rebater a acusação dos pagãos de que oSaque de Roma, ocorrido em 24 de agosto de 410 D.C, devia-se ao abandono pelos romanos dos deuses pagãos e à corrupção das virtudes romanas pelo Cristianismo, Agostinho escreveu a obra Civitas Dei (“A Cidade de Deus”), onde, desenvolvendo todos as suas ideias, ele elabora a história da Humanidade como sendo a da “Cidade dos Homens”, terrena e fadada à destruição pelos pecadores, que eram continuamente castigados através dos tempos, e da “Cidade de Deus”, a ser erguida pelos cristãos.
Porém, em 430 D.C, chegara a vez de Hipona ser destruída pelos bárbaros Vândalos, que cruzaram o Estreito de Gibraltar e invadiram a rica África romana, até então poupada dos saques e da destruição das incursões germânicas.
Assim, em 28 de agosto de 430 D.C., durante o primeiro cerco vândalo, Santo Agostinho morreu, aos 75 anos de idade.
(Afresco do século VI da Basílica de Laterano, em Roma, a mais antiga representação de Agostinho)
CONCLUSÃO
Santo Agostinho foi um dos intelectuais romanos mais importantes e influentes, cujas obras repercutem até o século XXI, e certamente ecoarão muito além. O seu pensamento representa uma ligação intelectual do mundo helenístico greco-romano, que agonizava, com a civilização cristã-ocidental que, da reciclagem das cinzas do primeiro, se desenvolveria na Idade Média. A obra dele também demonstra a força do Cristianismo em atrair não só os excluídos materiais da civilização greco-romana, mas também os exilados espirituais daquela sociedade, para quem a velho modo de vida pagão não oferecia mais respostas adequadas às inquietações existenciais.
Em 18 de setembro de 96 D.C., em um suntuoso aposento da recém-completada Domus Flaviae, o grandioso complexo palaciano que os imperadores da dinastia flaviana haviam construído na colina do Palatino, descortinava-se um sangrento cenário: dois cadáveres sem vida jaziam no chão, junto com duas adagas ensanguentadas, em uma poça de sangue, no meio da luxuosa mobília revirada…Eram os corpos do imperador romano Domiciano e do liberto Stephanus, que em vida fora o secretário pessoal de Flávia Domitila, a irmã do imperador.
HISTÓRICO FAMILIAR, NASCIMENTO E INFÂNCIA
Nascido em 24 de outubro de 51 D.C., Titus Flavius Domitianus (Domiciano) era o filho mais novo do general Tito Flávio Vespasiano (que se tornaria o imperador Vespasiano) e de Flávia Domitila, a Velha. Os Flávios eram uma família de origem sabina, proveniente da cidade de Reate, os quais, no final da República, ingressaram na classe dos Equestres (ou Cavaleiros), que era o segundo nível hierárquico da nobreza romana.
Com efeito, o primeiro Flávio de que se tem notícia havia sido um mero centurião das tropas de Pompeu, na Batalha de Farsália, durante a guerra civil travada entre este e Júlio César, e que, depois deste conflito, estabeleceu-se como coletor de impostos. O filho dele, chamado Titus Flavius Sabinus, também foi coletor de impostos na Província romana da Ásia e além de banqueiro.
Já a família de Domitila, a Velha, a mãe de Vespasiano, havia se estabelecido na cidade de Sabratha, na colônia romana da África, durante o reinado do imperador Augusto, sendo que o pai dela era um simples secretário de um questor daquela província.
Vespasiano, junto com seu irmão, Tito Flávio Sabino, tiveram sucesso no serviço público e no Exército Romano, durante os reinados dos imperadores Calígula e Cláudio.
Ressalte-se que Vespasiano, inclusive, conseguiu ingressar no círculo mais íntimo da corte de Cláudio, muito em função da sua união amorosa com a liberta Antônia Caenis, que era secretária pessoal da mãe de Cláudio, Antônia, a Jovem, e da sua amizade com o poderoso liberto Narcissus, que era um dos principais assessores imperiais, com status de ministro.
Assim, durante o reinado de Cláudio, graças a essas privilegiadas ligações, Vespasiano conseguiu alcançar o cume da carreira das magistraturas romanas (Cursus Honorum), ao ser nomeado Cônsul, em 51 D.C, mesmo ano em que nasceu Domiciano, o seu filho caçula.
O primogênito de Vespasiano, Tito, nascido em 39 D.C. (doze anos antes de Domiciano), também se beneficiou da proximidade do pai com o palácio no reinado de Cláudio: ele teve o raro privilégio de ser educado junto com Britânico, o filho natural do referido imperador.
Tito e Domiciano também tinham uma irmã, chamada Flávia Domitila, a Jovem, também nascida em 39 D.C.
Curiosidade: a filha desta Flávia Domitila, que também se chamava Domitila, seria cristã e, muitos anos mais tarde, ela seria canonizada pela Igreja Católica como Santa Flávia Domitila e as chamadas Catacumbas de Domitila, em Roma, têm este nome porque as terras onde elas foram escavadas pertenceriam a ela, que as legou para a nascente comunidade cristã da Cidade, ainda no século I D.C. Vide abaixo: Afresco sobre um jazigo nas referidas Catacumbas.
Apesar dos tempos de fartura e glória vividos pelo pai, as fontes narram que quando Domiciano nasceu, a sua família estava de fato na pobreza. O motivo mais provável para isso, ao que tudo indica, é o fato de que o seu pai Vespasiano teria caído em desgraça quando Agripina, a Jovem, a última esposa do imperador Cláudio, foi, pouco a pouco, dominando o velho e influenciável imperador e aproveitou-se disso para afastar os desafetos dela, sobretudo, aqueles que ela julgava que ameaçavam a ascensão de seu filho Nero ao trono. E entre os piores desafetos da nova imperatriz encontrava-se Narcissus, o amigo e protetor de Vespasiano.
Entretanto, enquanto Domiciano era ainda uma criança pequena, a sua mãe, Domitila, a Jovem, morreu. Vespasiano então resolveu assumir o romance com Antônia Caenis e os dois passaram a viver em “Contubérnio“, uma forma de concubinato que era admitida pela lei romana.
Todavia, segundo as fontes, seja por apego à memória da mãe, seja por ciúme do pai, ou por outro motivo qualquer, Domiciano não gostava de Antônia Caenis e o historiador Suetônio, inclusive, relata que, certa vez, quando a “madrasta” tentou saudá-lo com um beijo, Domiciano a impediu, e em vez de oferecer a face, estendeu-lhe a mão…
Assim, quem parece ter cuidado mesmo do menino Domiciano foi Phyllis, a sua ama, que esteve próxima a ele durante toda a sua vida (e até mesmo depois, como veremos mais tarde)…
JUVENTUDE E FORMAÇÃO
Finalmente, quando Nero, passados os primeiros anos do seu reinado, conseguiu dar cabo de Agripina, em 59 D.C., Vespasiano, ainda um general respeitado, voltou a receber comandos importantes. Assim, em 60 ou 63 D.C, ele foi nomeado governador da África. Nesse período, Domiciano ficou aos cuidados de seu tio Sabino, enquanto seu irmão Tito, que já tinha idade militar, fazia carreira no Exército, servindo na Germânia e na Britânia.
Sabemos que Sabino não descurou da educação do sobrinho, pois Suetônio nos conta que, já adolescente, Domiciano estudou Retórica e Literatura, sendo capaz de declamar poetas importantes, como Homero e Virgílio, em público, e de manter uma elegante conversação em eventos sociais. Consta, além disso, que na juventude, Domiciano chegou a publicar poemas e até alguns escritos sobre Direito.
Suetônio descreve Domiciano como sendo um jovem alto e de boa aparência, mas que, na idade madura, ficaria barrigudo e calvo. Como curiosidade, com relação a esse último traço, consta que Domiciano escreveu um “Tratado sobre Cuidados com os Cabelos“, que, infelizmente, não sobreviveu.
Vespasianofoi nomeado pelo imperador Nero para comandar o grande exército que fora reunido para combater a Grande Revolta Judaica, em 66 D.C., ao qual se juntou, a seguir, Tito, que recebeu o comando da XV Legião.
Em 68 D.C., quando estourou a rebelião do governador Vindex, na Gália – o fato que iniciou a cadeia de eventos que resultaria na deposição e no suicídio de Nero – Tito foi enviado à Roma por Vespasiano para transmitir o reconhecimento das Legiões na Judéia ao novo imperador, Galba. Porém, antes de chegar à Roma, Tito recebeu a notícia de que Galba havia sido assassinado e de que, agora, Oto (Otão) era o novo imperador. Ele decidiu, então, retornar para a Judéia para ver o que o seu pai decidiria.
Entretanto, no conturbado ano de 69 D.C, que ficaria conhecido como o “Ano dos Quatro Imperadores“, Oto foi derrotado por Vitélio, que se tornou o novo imperador. Enquanto isso se desenrolava na Itália, Tito teve vital importância e participou diretamente das negociações que levaram Muciano, o Governador da Província da Síria, a jogar a cartada de reconhecer Vespasiano como imperador, desprezando o reconhecimento de Vitélio por Roma.
Assim, Vespasiano partiu para a capital para reclamar o trono e deixou sob o comando de Tito a campanha contra a Grande Revolta Judaica, que ficou com a tarefa de liderar a fase mais difícil da guerra: o cerco e captura de Jerusalém. Ao tomarem conhecimento da aclamação na Síria, as legiões do Danúbio, sob o comando de Antônio Primo, também escolheram apoiar Vespasiano e invadiram a Itália, derrotando as tropas de Vitélio na Batalha de Bedríaco, saqueando em seguida a cidade de Cremona.
A ASCENSÃO DE VESPASIANO E O PAPEL DESEMPENHADO POR DOMICIANO
Enquanto isso, em Roma, Vitélio informou a Tito Flávio Sabino, o irmão de Vespasiano, que ocupava, fazia onze anos, o cargo de Prefeito Urbano de Roma, a, sua intenção de renunciar. Porém, os soldados de Vitélio e o populacho da cidade, quando souberam disso, protestaram violentamente e cercaram Sabino e a sua família, incluindo o jovem Domiciano, os quais se refugiaram na colina do Capitólio, que chegou a ser incendiada pelos partidários de Vitélio no conflito. Domiciano conseguiu escapar dos perseguidores, mas Sabino foi capturado e executado.
Dois dias depois, as tropas de Antônio Primo tomaram Roma e depuseram Vitélio, que foi arrastado pelas ruas, torturado e morto. Em seguida, as tropas aclamaram Domiciano como “César” (um título que começava a adquirir o significado de “príncipe-herdeiro”).
Em dezembro de 69 D.C., o Senado Romano reconheceu Vespasiano como imperador – embora ele ainda estivesse no Oriente. Assim, o seu correligionário Muciano, que havia chegado à Roma um dia depois da morte de Vitélio, imediatamente assumiu o comando das tropas leais a Vespasiano que tinham tomado a capital e passou a administrar o Império em nome do novo imperador, contando com a ajuda de Domiciano, que, então, tinha apenas 18 anos de idade e foi nomeado pelo Senado para o cargo de Pretor com poderes consulares, de acordo com o historiador Tácito.
Narram as fontes que o jovem Domiciano, mostrando bastante audácia e uma indisfarçável ambição pelo poder, logo nomeou várias pessoas para diversos cargos importantes, tais como governos de províncias, prefeituras e, até mesmo, para o consulado. Por esse motivo, segundo o historiador Dião Cássio, o sempre bem-humorado Vespasiano teria chegado a mandar uma carta contendo a seguinte mensagem para o filho:
“Obrigado, meu filho, por me permitir manter o meu cargo e por não ter me destronado”.
Ainda duranteoAno dos Quatro Imperadores, havia estourado na Gália uma grave revolta dos auxiliares batavos, liderada porGaius Julius Civilis. Domiciano, embora não tivesse nenhuma experiência militar, tentou liderar a reação contra a rebelião, assumindo o comando de uma legião, mas acabou sendo dissuadido por Muciano.
Entretanto, Tito, o filho mais velho deVespasiano, que conduzia com brilho a guerra contra os judeus, enquanto ainda estava no Oriente foi, em70 D.C, nomeado Cônsul junto com o pai. Em seguida, em 71 D.C, Tito recebeu oPoder Tribunício, no que era um claro sinal de que ele seria o herdeiro e sucessor do pai e afastando qualquer pretensão que Domiciano pudesse ter).
Certamente, com essas medidas, o sábio Vespasiano quis evitar um dos principais fatores de instabilidade nos reinados dos seus antecessores da dinastia dosJúlios-Cláudios: a pouca clareza quanto à sucessão, pela existência de vários pretendentes dinásticos.
Tito também foi nomeado Prefeito da Guarda Pretoriana e, assim, agindo como comandante da guarnição militar da capital e da Guarda de Honra do Imperador, ele foi implacável na vigilância e repressão a potenciais ameaças ao reinado do pai, tendo de fato executado sumariamente vários supostos conspiradores.
Triunfo de Tito, óleo de Sir LawrenceAlma-Tadema 1885, mostrando Vespasiano, seguido por Tito e Domiciano, este de mãos dadas com Domícia Longina, que olha sugestivamente para Tito
Durante o reinadodeVespasiano, Domicianofoi designado seis vezes Cônsul Suffectus (um consulado honorário, menos importante do que o ordinário), mas manteve o título de César, sendo nomeado sacerdote de vários cultos, além de receber o título de “Príncipe da Juventude” (Princeps Juventutis). Mesmo assim, Vespasianosempre deixou evidente que a precedência seria do irmão mais velho.
Contudo, a primazia dada a Tito não quer dizer que Domiciano estivesse sido excluído da sucessão dinástica:Vespasiano tentou casarDomiciano com Júlia Flávia, que era a filha única deTito, e, portanto, sobrinha dele, quando esta era apenas uma criança, mas a iniciativa não teve sucesso porque, naquela época, Domiciano já estava apaixonado por Domícia Longina, filha do famoso general Cneu Domício Corbulão, que tinha se suicidado a mando de Nero por suspeita de haver participado de uma conspiração.
Domícia Longina era filha de Júnia Lépida, tataraneta do imperador Augusto e, portanto, junto com sua irmã, ela era uma das últimas descendentes da dinastia dos Júlios-Cláudios, que fundaram o Império Romano. Domícia era casada com o senador Lucius Aelius Lamia Plautius Aelianus, de quem ela se divorciou para se casar com Domiciano, por volta de 70 D.C.
CARREIRA PÚBLICA E CASAMENTO
Em 23 de junho de 79 D.C, Vespasiano morreu de causas naturais e Tito foi imediatamente aclamado como novo Imperador Romano, com a idade de 39 anos.
Tito não tinha herdeiros do sexo masculino e sua única filha, Júlia Flávia, tinha 14 anos de idade. Ele havia se divorciado, ainda durante o reinado de Nero, de sua esposa Márcia Furnilla.
Durante a Guerra Judaica, Tito se apaixonou pela rainha Berenice, filha de Herodes Agripa, que logo tornou-se sua amante e, depois da guerra, ela foi viver com ele em Roma. Esta era uma união politicamente inviável para Tito, e qualquer filho advindo desta relação estaria obviamente excluído da linha sucessória do trono. Com efeito, devido à pressão da opinião pública, Tito teve que despachar Berenice de volta para o Oriente. Portanto, agora, naquele momento, Domiciano era, de fato, o herdeiro natural do trono imperial.
Os autores antigos mencionam que a relação entre os irmãos Tito e Domiciano era, no mínimo, fria e distante. Isto provavelmente decorria da grande diferença de idade entre eles e do pouco contato que eles devem ter tido, já que, enquanto Domiciano crescia, Tito já tinha entrado no Exército, acompanhando Vespasiano em suas campanhas. Deve-se mencionar, todavia, que o historiador Flávio Josefo relata que, durante a Guerra Judaica, Tito comemorou o aniversário de Domiciano em uma cerimônia pública, em Cesaréia.
Em80 D.C., nasceu o único filho deDomiciano e Domícia Longina, cujo nome, entretanto, não foi preservado.
Em 13 de setembro de 81 D.C, Tito morreu de uma febre súbita, após reinar por apenas dois anos. Consta que as suas últimas palavras teriam sido:
“Cometi somente um erro”.
O real significado da frase derradeira de Tito sempre suscitou muita discussão entre os historiadores. Para alguns, ele se referia ao fato de não ter executado o irmão Domiciano, cujo caráter já há tempos já dava mostras de ser tirânico, ou pelo motivo dele teria conspirado para derrubar Tito, mas não há qualquer evidência de nenhum desses fatos. Alega-se, também, que Tito nunca reconheceu formalmente Domiciano como sucessor e herdeiro, mas vale notar que Domiciano já era o Cônsul designado para o ano de 80 D.C. e talvez as medidas destinadas a lidar com os efeitos da erupção do Vesúvio, ocorrida ainda em 79 D.C., e que consumiram muito do tempo do primeiro ano do reinado de Tito, tenham-no distraído da questão sucessória, ou então, ante à ausência de qualquer outro rival, a posição de Domiciano tenha parecido óbvia (na verdade, o mais provável é que Tito jamais tenha previsto que o seu reinado seria tão curto). No plano das fofocas, também argumentou-se que Tito poderia ter tido um caso com a cunhada, Domícia Longina.
ASCENSÃO AO TRONO E REINADO
Consta que no mesmo dia da morte do irmão,Domiciano correu para o quartel da Guarda Pretoriana, em Roma, onde ele foi aclamado imperador.
No dia seguinte, em 14 de setembro de 81 D.C., o Senado Romano reconheceu Domiciano, conferindo-lhe os títulos de Augusto, Pai da Pátria e Pontifex Maximus, além do Poder Tribunício. Mais do que uma possível demonstração de falta de apreço e de respeito pelo irmão falecido, a conduta de Domiciano de partir imediatamente para o quartel dos pretorianos, ao invés de velar o corpo de Tito, deve ser vista como uma cautela necessária, recomendada pelo histórico das sucessões imperiais.
Desde os primeiros dias de seu reinado, Domiciano mostrou-se um governante interessado por todos os detalhes da administração pública, como poucas vezes se tinha visto na História de Roma: Ele publicou leis detalhadas sobre vários assuntos e seu estilo de governo pode ser descrito como “microgerenciamento”. Ele também comparecia em pessoa às audiências no Tribunal do Fórum Romano, concedidas por ele mesmo aos que apelavam das decisões das Cortes.
Uma das primeiras medidas econômicas de Domiciano foi promover uma valorização do denário, aumentando o seu teor de prata em 12%. Embora , depois de 85 D.C., ele tenha sido obrigado a promover uma pequena desvalorização devido aos gastos com expedições militares e programas de reconstrução, ainda assim, a moeda ainda continuou mais valorizada do que durante o reinado de Vespasiano. Ele também deu especial atenção à taxação dos impostos, aprimorando a cobrança e aumentando as receitas do Estado.
Graças a outra medida de Domiciano, pela primeira vez na História de Roma, foi possível ter alguma previsão dos gastos e receitas futuras, estabelecendo-se uma espécie de orçamento público embrionário.
Devido ao grande incêndio no reinado de Nero, às devastações da guerra civil causadas durante o Ano dos Quatro Imperadores e a um outro incêndio, ocorrido em 80 D.C., Domiciano determinou que se executasse um grande projeto de reconstrução dos monumentos destruídos, incluindo o vetusto Templo de Júpiter Optimus Maximus, no Capitólio (foto abaixo), que foi coberto com um magnífico telhado de bronze dourado. No total, cerca de 50 edifícios importantes seriam reconstruídos ou reparados, caracterizando um recorde entre os imperadores romanos.
Mas novos edifícios também foram erguidos, como o Palácio de Domiciano, parte do complexo palaciano da Domus Flaviae, e o enorme Estádio de Domiciano, onde eram disputados os Jogos Agonais (Agone), e que cujo formato, preservado entre as arquibancadas substituídas por sobrados, daria origem, na Idade Média, à atual Praça Navona (cujo nome vem de “Piazza in Agone“).
Além de reformar a paisagem urbana de Roma, Domiciano, que se revelou um moralista, também pretendeu reformar os costumes romanos, os quais ele julgava degradados. Em 85 D.C., ele se autoproclamou “Censor Perpetuus“, ou seja, censor vitalício, com a atribuição de supervisionar a moral e os bons costumes. Isso incluía velar pela observância dos rituais da religião tradicional de Roma, cuja ortodoxia e pureza ele pretendia restaurar. Assim, Domiciano proibiu a castração de meninos e o comércio de eunucos em todo o Império Romano.
Fontes relatam queDomiciano era particularmente hostil ao Judaísmo e não é à toa que autores cristãos (religião que, para muitos romanos, aparentava ser apenas uma seita judaica), apontam aquele imperador como um dos grandes perseguidores do Cristianismo. Não há, contudo, nas fontes romanas, evidência de nenhuma perseguição oficial à religião cristã. Com relação aos Judeus, contudo, é certo que eles foram alvo de um aumento nas taxas e impostos cobrados.
Domiciano também estabeleceu os Jogos Capitolinos, em homenagem a Minerva, a deusa da sabedoria, que ele considerava ser a sua divindade protetora, e a Júpiter.
Uma medida que causou comoção na época (87 D.C.) foi a ressuscitação da arcaica punição às Virgens Vestais que quebrassem o voto de castidade – a de serem enterradas vivas – o que não ocorria havia séculos, mesmo durante a República.
O imperador também renovou aLex Iulia de Adulteriis Coercendis, que punia com exílio o adultério, e vários senadores foram processados por condutas consideradas imorais, incluindo homossexualismo.
Não obstante, Suetônio registra que, em 83 D.C., a imperatriz Domícia Longina teve um caso com um ator chamado Páris, que, por causa disso, teria sido morto pelo próprio imperador em pessoa.
Como punição, Domícia Longina foi exilada. Neste mesmo ano, também morreria o único filho do casal. Talvez corroído pelo remorso, Domiciano chamou de volta Longina, e os dois voltaram a viver juntos. Ou quem sabe, talvez a morte do menino tenha sido a causa do exílio e o adultério não tenha ocorrido.
O detalhismo da polícia de costumes de Domiciano chegou ao nível de exigência de que os cidadãos romanos usassem togas nos espetáculos públicos, muito embora essa vestimenta tradicional estivesse em desuso, pois era cara para os pobres e desconfortável para todos usarem. A orientação autocrática e moralista do reinado também ficou patente no agravamento da punição aos que escrevessem textos considerados ofensivos ao Imperador e na proibição de sátiras e comédias com teor crítico, chegando à completa proibição da apresentação de Mimes, uma espécie de teatro de comédia vulgar e grosseira, onde frequentemente as figuras públicas eram satirizadas.
No entanto, a corrupção no serviço público foi duramente combatida, havendo muitos casos de punições a juízes acusados de receberem propinas, uma queixa recorrente.
Nas províncias, Domiciano também aprimorou a taxação e majorou impostos, mas, em contrapartida, ele criou o cargo de “Curator” (Curador) para investigar casos de má administração nas cidades do Império. Domiciano também construiu várias estradas na Ásia Menor, Sardenha e Danúbio, e melhorou as instalações defensivas no Norte da África.
No serviço público, Domiciano privilegiou a nomeação de cidadãos da classe dos Equestres, e até mesmo de libertos, para os cargos mais importantes, em detrimento da classe senatorial. Para alguns autores, as más experiências que Domiciano deve ter tido no Senado, durante os eventos que resultaram na morte de seu tio Sabino e também durante os reinados de Vespasiano e Tito, predispuseram o imperador contra os senadores.
Assim, o imperador, seguindo a tendência inaugurada por Cláudio, administrava o Império auxiliado por um conselho privado que frequentemente se reunia na Vila de Domiciano, na cidade de Alba, a cerca de 20 km de Roma (ou seja, para os padrões antigos, a no mínimo uma hora de viagem de Roma, a todo galope ou mais de duas, de carruagem). Esse conselho era composto por amigos (amicii), libertos do imperador e altos funcionários, como os prefeitos urbano e da guarda pretoriana. Domiciano também manteve a política adotada pelo pai e de pelo irmão de reservar o exercício dos consulados majoritariamente para o imperador, seus filhos e parentes.
Criptopórtico, ou passagem subterrânea, da Villa de Domiciano, em Alba
Indubitavelmente, todas as medidas citadas caracterizavam uma guinada para um principado absolutista e centralizador. E tudo isso se coadunava com uma ênfase na sacralização da figura do monarca. Não é a toa de que uma das maiores críticas dos autores antigos é a mencionada predileção por parte de Domiciano do tratamento de “Dominus et Deos” (“Senhor e Deus”), o qual, contudo, até onde se averiguou, jamais constou de documentos oficiais.
Estátua de bronze dourado de Domiciano, retratado como Hércules
Como era de se esperar, essa forma de governar adotada por Domiciano em nada contribuiu para melhorar as relações do imperador com o Senado Romano. Os reinados de Tibério, Calígula e Nero, sem falar nos eventos que levaram ao assassinato de Júlio César, tinham já mostrado que os senadores viam a si mesmos como uma classe que tinha direito manifesto a prerrogativas, poderes, cargos e influência no Estado, cuja preterição gerava atritos entre o imperador e o Senado. Augusto havia entendido isso o suficiente para criar um sistema em que, ainda que de forma condescendente e não equânime, uma parcela do poder do Estado Romano era dividida entre o Imperador e o Senado, que continuou intitulado a governar certas Províncias, a poder ocupar as mais altas magistraturas e, não menos importante, a ser merecedor de tratamento deferente pelo Príncipe (“Princeps” –título que, sintomaticamente, tem em sua origem o significado de “primeiro senador”).
Com efeito, em várias passagens dos livros de história podemos inferir que, para os senadores, tão importantes quanto o poder de fato eram a deferência e as honrarias…E a personalidade arredia de Domiciano tornou as relações com o trono mais difíceis…Ele, segundo as fontes, gostava da solidão, possivelmente um traço adquirido pelo afastamento de seus pais na infância.
Há uma anedota, contada por Suetônio, de que, durante o tempo em que Domiciano passava trancado em seu gabinete, nos intervalos de trabalho, ele se distraía capturando moscas e traspassando-as com um fino estilete. Então, jocosamente, quando alguém chegava para despachar e perguntava se havia alguém com o Imperador, os porteiros respondiam:
“Nem uma mosca…“
As fontes descrevem Domiciano como sendo frio, distante, arrogante e, por vezes, insolente e cruel. Esses traços, somados às medidas autocráticas, desgastaram as relações com o Senado e, certamente, não lhe granjearam amizades nesta assembleia. Vale notar que: medidas como a punição dos maus administradores e juízes, o afastamento de homossexuais do Senado, e a execução das Virgens Vestais que violavam a sua castidade, atingiam, precipuamente, os membros da elite senatorial. Entretanto, nos oito primeiros anos do reinado de Domiciano aparentemente não houve conspirações…
Enquanto isso, Domiciano dedicou muita atenção à política exterior e aos assuntos militares e ele aumentou o pagamento do soldo dos militares de 300 para 400 denários.
Em 82 D.C., as legiões sob o comando de Cneu Júlio Agrícola derrotaram as tribos no norte da Britânia, chegando até a costa oposta à Irlanda. Há quem sustente que os romanos chegaram até a fazer uma expedição na referida ilha. Posteriormente, no verão de 84 D.C., Agrícola derrotou os Caledônios,, os quais se refugiaram nas Terras Altas da atual Escócia (Highlands). Depois, em 85 D.C., apesar do sucesso desta campanha, Agrícola foi chamado de volta à Roma.
Segundo o historiador Tácito, que era genro de Agrícola e escreveu uma obra sobre a vida do sogro, o motivo do retorno foi o ciúme de Domiciano de que as conquistas de Agrícola ofuscassem o duvidoso triunfo que Domiciano tinha celebrado pela vitória contra a tribo germânica dos Catos, que tinham atacado a Gália.
Porém, mesmo que Domiciano tivesse a intenção de promover uma grande campanha contra os Catos, visando obter uma vitória completa, a mesma foi por água abaixo devido a invasão da Província da Moésia pelos Dácios, em 85 D.C. os quais chegaram a matar o governador romano da província.
A campanha contra os Dácios, que no início chegou a contar com a presença de Domiciano, terminou com a vitória parcial dos romanos, comandados por Cornélio Fusco, em 86 D.C. Porém, pouco tempo depois, os Dácios novamente voltaram a atacar os romanos, ocasião em que a Legião V, comandada por Fusco, foi destruída, morrendo seu comandante. Os Dácios, posteriormente, foram derrotados pelo general Tettius Julianus (Segunda Guerra Contra os Dácios), sem que, contudo, a capital dácia, Sarmizegetusa, fosse tomada.
Provavelmente devido à crescente pressão na fronteira do Danúbio, devido a guerra contra os Dácios e incursões dos Suevos e Sármatas, somada à agressão dos Catos, Domiciano foi obrigado a ordenar uma retirada total das tropas romanas na Caledônia, recuando a fronteira romana uns 120 km para o sul da ilha da Grã-Bretanha.
O fato é que o Exército Romano não podia mais se dar ao luxo de luxo de se comprometer em uma guerra em dois fronts, sendo que a relação custo-benefício de manter a Caledônia não justificava a manutenção daquele território.
E Domiciano, realmente, deve ter avaliado que a situação estratégica no momento também não recomendava o comprometimento total do exército com uma campanha no Danúbio, pois, logo após a cessação dos combates contra os Dácios ele assinou com eles um tratado de paz no qual Roma concordava em pagar ao rei Decébalo um subsídio anual de oito milhões de sestércios, uma concessão que foi muito criticada pelos autores antigos.
Desse modo, os Dácios somente seriam conquistados pelos romanos em 106 D.C., pelo imperador Trajano, em uma campanha que de fato revelou-se duríssima.
CONSPIRAÇÃO CONTRA DOMICIANO
Como tantas vezes se veria na História do Império Romano, a combinação de insucessos militares com a impopularidade de um imperador entre os Senadores teve como resultado uma conspiração para assassinar o monarca. Assim, no início do ano de 89 D.C., o general Lúcio Antônio Saturnino, um senador que comandava duas legiões na Germânia Superior, foi proclamado imperador pelas suas tropas, na cidade de Moguntiacum (atual Mainz, na Alemanha).
Saturnino, muito provavelmente, fazia parte de um grupo de senadores insatisfeitos com o reinado de Domiciano. Ele esperava que o governador da Germânia Inferior, o também senador Aulus Lappius Maximus, se juntasse à rebelião, mas este comandante se manteve fiel ao imperador. Para piorar, os esperados reforços de tribos aliadas germânicas foram impedidos de cruzar o rio Reno devido a uma cheia.
Assim, as tropas rebeldes acabaram sendo derrotadas pelos soldados leais ao imperador na Batalha de Castellum, e Saturnino foi executado. Note-se que a conduta de Aulus Lappius de queimar as cartas apreendida em poder de Saturnino é um forte indício de que havia outros senadores envolvidos na trama, em Roma.
Todavia, a revolta de Saturnino exacerbou os já existentes traços de paranoia que já estavam sendo notados em Domiciano. De fato, embora possa ter havido algumas execuções de senadores anteriores a 89 D.C, considera-se que o “reinado de terror” atribuído a Domiciano efetivamente começou após à referida conspiração.
No ano seguinte, Domiciano dividiu o consulado com o veterano senador Marco Cocceio Nerva (o futuro imperador Nerva), um jurista que, mais de vinte anos antes, havia ajudado Nero a desbaratar a chamada Conspiração Pisoniana.
No chamado “reinado de terror” de Domiciano, cerca de onze senadores foram executados, por motivos variados. Para se ter uma comparação, o imperador Cláudio executou 35 senadores durante o seu reinado, e, mesmo assim, ele foi deificado pelo Senado após a sua morte. E o imperador Adriano, logo no primeiro ano de seu reinado, executou quatro, mas os historiadores não se referem a tais execuções como um período de “terror”..
A propósito, consta que Domiciano, certa vez, teria dito:
“Os imperadores são a gente mais desafortunada, pois, quando eles descobrem uma conspiração, ninguém lhes dá crédito, a não ser que eles sejam assassinados…”.
Mas o motivo alegado para essas execuções dos senadores nem sempre foi o envolvimento deles com conspirações: No caso do primo de Domiciano, Tito Flávio Clemente, um ex-Cônsul, a acusação era de sacrilégio contra a religião romana. Os historiadores acreditam que Clemente se converteu ao Judaísmo ou ao Cristianismo. Devido a essa acusação, a esposa dele, Flávia Domitila, que era sobrinha de Domiciano, foi banida para uma ilha remota. Essa Flávia Domitila, de quem já falamos acima, era filha da irmã de Domiciano e é mencionada na História Eclesiástica, do bispo cristão Eusébio de Cesaréia, escrita no século IV D.C., como sendo uma mártir cristã que morreu no exílio na ilha de PonzaI e filha da irmã do cônsul Flávio Clemente.
Curiosidade: Há quem associe Tito Flávio Clemente com o Papa Clemente,que depois passou a ser venerado como São Clemente pela Igreja Católica. De fato, uma inscrição teria sido encontrada, durante o Renascimento, nos subterrâneos da Basílica de São Clemente, em Roma, contendo a inscrição “T. Flavius Clemens, vir consularis”. Assim, 60 anos após a execução de Jesus Cristo e o início da pregação pelos seus apóstolos, a nascente religião já teria, ao menos, alguns adeptos nas mais altas esferas da sociedade romana.
Entrada lateral da Basílica de São Clemente, em Roma
ASSASSINATO DE DOMICIANO
Em 96 D.C., até os auxiliares mais próximos de Domiciano estavam apreensivos com o comportamento cada vez mais paranoico do imperador. E a insatisfação do Senado atingiu o limite e, assim, tudo estava pronto para uma nova conspiração com o objetivo de libertar Roma daquele que eles consideravam ser um odiado tirano.
Com efeito, Domiciano tinha mandado executar seu camareiro, Epafrodito e o substituto deste, Partênio, prevendo que não demoraria muito para que ele sofresse o mesmo destino, contactou um liberto do imperador, Maximus, e Stephanus, que era o secretário pessoal da imperatriz Flávia Domitila,
Já premeditando a execução do assassinato, Stephanus tinha simulado um ferimento no braço dias antes, com o objetivo de poder esconder embaixo da atadura uma adaga. Para ter um motivo para ser recebido, Stephanus fez chegar ao imperador a informação de que ele tinha descoberto uma trama para assassinar Domiciano, e lhe traria as provas.
Assim, quando Stephanus foi admitido no quarto do imperador, ele aproveitou o momento em que Domiciano estava distraído, lendo o documento que provaria a suposta conspiração, e cravou a adaga na virilha dele. Mesmo ferido, Domiciano conseguiu escapar e apanhar uma adaga. Seguiu-se uma luta feroz, em queStephanus e Domiciano rolaram pelo chão do aposento. Então, no meio do combate, Stephanus foi ajudado porMaximuse por Satur, um colega do camareiro Partênio, que tinham lhe acompanhado ao quarto imperial. Após levar sete golpes de adaga, Domiciano faleceu, mas não sem antes levar consigo o próprio Stephanus, que também havia sido golpeado pelo imperador.
Domiciano tinha 44 anos de idade quando morreu.
EPÍLOGO
O Senado Romano imediatamente aclamou o velho senador Marco Cocceio Nerva como imperador, que, por já ser bem idoso e não ter filhos, parecia o candidato mais capaz de ser aceito por todas as facções senatorias e, principalmente, pelo Exército. Aliás, é bem provável que esta solução já fosse apoiada pelos generais mais influentes, entre os quais se destacava Públio Élio Trajano.
O Senado também decretou que a memória de Domiciano devia ser banida (procedimento conhecido como “damnatio memoriae” e que implicava em apagar inscrições, destruir estátuas e qualquer referência oficial ao nome do imperador).
O cadáver de Domiciano foi levado embora do seu palácio e cremado por iniciativa de sua ex-babáPhyllis, que, tudo indica, nunca se afastou de Domiciano. As cinzas dele foram depositadas no Templo dos Flávios, situado na colina do Quirinal, em Roma.
Os historiadores modernos tendem a favorecer uma revisão do reinado de Domiciano, que foi um governante aplicado e que adotou várias medidas racionais. A imagem negativa dele hoje é considerada por muitos como fruto da antipatia do Senado Romano, valendo observar que os historiadores romanos que escreveram sobre Domiciano, tais como Suetônio, Tácito e Dião Cássio, ou eram todos senadores, como os dois últimos, ou auxiliares próximos à dinastia que sucedeu Domiciano, como é o caso de Suetônio.
O texto desses historiadores da classe senatorial costuma dividir os imperadores romanos entre “Bons” e “Maus“, sendo que, invariavelmente, os “Bons” são aqueles que mantiveram relações amistosas com o Senado Romano. Já os ‘Maus” são todos aqueles que desrespeitaram as prerrogativas dos senadores ou perseguiram os seus integrantes. Ironicamente, Tácito e Suetônio foram homens que começaram a sua carreira pública no reinado de Domiciano, mas que escreveram as suas histórias no reinado do sucessor de Nerva, o muito apreciado Trajano.
Assim, a nova dinastia tinha todo o interesse em se legitimar comparando-se com uma imagem necessariamente negativa do reinado de Domiciano, e para isso, ela contou com a pena solícita dos historiadores da classe senatorial.
Entretanto, o estudo do reinado de Trajano, considerado o “Melhor dos Príncipes” (Optimus Princeps) pelo Senado, nos mostra, que, em diversos setores, ele deu continuidade a muitas das iniciativas de Domiciano…
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A foto foi tirada no ano de 2003, em Pont du Gard, próximo à cidade francesa de Nîmes, no Sul da França. A Ponte-Aqueduto sobre o rio Gard é uma das obras-primas da engenharia romana. Eu fui um dos últimos a entrar neste sítio, naquele dia de final de outono. A pessoa que pode ser vista no cantinho superior da foto é minha esposa. Nós tivemos a oportunidade de andar praticamente sozinhos pelo sítio e de certa forma ter a mesma sensação de admiração e reverência que teria um viajante medieval que percorresse aquele caminho e topasse com aquela construção magnífica, testemunho de uma antiga e mais sofisticada civilização.
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Em 28 de junho de 548 D.C., morreu, em Constantinopla, a imperatriz Teodora Augusta, esposa do imperador romano do Oriente Justiniano I (Segundo uma fonte, ela tinha 48 anos, enquanto que outra fonte menciona que ela faleceu com 51 anos de idade). A causa da morte foi uma enfermidade que os especialistas modernos identificam como câncer de mama, com base nos relatos antigos).
Nascimento, infância e juventude
Nascida por volta do ano 500 D.C., provavelmente na ilha de Chipre (embora outras fontes mencionem a Síria e a Paflagônia como o local de nascimento), Teodora, era a segunda das três filhas de Acacius, um adestrador de ursos que trabalhava para a facção dos Verdes no Hipódromo de Constantinopla, onde os animais participavam dos espetáculos encenados nos intervalos entre as corridas de quadrigas, para distrair o público.
(Reconstituição do Hipódromo de Constantinopla)
Nota:As chamadas “facções” do Hipódromo: os Verdes, os Azuis, os Vermelhos e os Brancos, haviam surgido no Circo Máximo em Roma e, inicialmente, elas constituíam, ao mesmo tempo, uma espécie de equipe e torcida organizada nas corridas de quadrigas de cavalos que ali eram disputadas. Com o passar do tempo, essas facções passaram a adquirir também caráter político e, até mesmo, a participar de disputas teológicas e, por fim, acabaram sendo transplantadas de Roma para Constantinopla, onde os Verdes e os Azuis absorveram as outras duas facções).
Porém, quando Teodora tinha apenas quatro anos, o seu pai, Acacius, faleceu, e a mãe dela, que era atriz e dançarina (o nome dela não é mencionado), precisou casar-se com outro homem, esperando que este herdasse o posto do seu falecido marido junto aos Verdes.
No entanto, os Verdes escolheram outra pessoa, e a mãe de Teodora, desesperada com a perspectiva da família cair na miséria, ordenou que ela e as irmãs, enfeitadas com guirlandas, fossem ao Hipódromo apresentar-se pessoalmente aos chefes das demais facções, diante dos camarotes que eles ocupavam à beira da pista. Diante dessa cena, o representante da facção dos Azuis, que também estavam precisando de um tratador de animais, ficou com pena das meninas, e resolveu contratar o padrasto de Teodora. Em gratidão, Teodora se manteria fiel e devotada aos Azuis pelo resto da vida.
Ainda assim, desde criança, Teodora teve que trabalhar, junto com a sua irmã mais velha, chamada Comito, no Hipódromo, onde ela se apresentava em números artísticos.
Já adolescente, Teodora notabilizou-se pela performance interpretando “Leda e o Cisne“, uma peça burlesca baseada no célebre mito grego, em que Zeus, transformado em um cisne, seduz e faz amor com a rainha Leda, de Esparta. Em uma das cenas da peça, Teodora apresentava-se praticamente nua e deitada, com grãos de cevada espalhados nas suas virilhas, os quais eram apanhados com o bico por um cisne, em evidente alusão erótica a um objeto fálico.
(Afresco recentemente descoberto na Região V de Pompéia, retratando o mito de Leda e o Cisne)
Aos 14 anos, Teodora deu à luz a uma menina e foi aproximadamente nessa época que ela fez amizade com Antonina, a filha de um condutor de quadrigas de corrida que competia no Hipódromo e de uma dançarina dos espetáculos teatrais. Essa amizade perduraria por toda a vida das duas, e Antonina, mais tarde, casaria-se com Belisário, o célebre general de Justiniano I.
A maior parte dessas estórias é contada pelo historiador Procópio, em sua obra “A História Secreta”, onde ele afirma que, em adição às performances artísticas no Hipódromo, Teodora também exerceria a prostituição em um bordel.
Procópio chegou, ainda, a escrever, sobre a suposta luxúria desenfreada de Teodora, que certa vez ela teria reclamado que Deus deveria ter feito mais orifícios em seu corpo, “porque somente três não seriam suficientes para satisfazê-la“…
Sabe-se que, de fato, durante o Império Romano, mesmo que no período tardio, não era incomum que a profissão de atriz estivesse ligada á prostituição. Mas os relatos mais exagerados de Procópio sobre Teodora são vistos como suspeitos pelos historiadores: Eles contradizem o que ele próprio escrevera em livros anteriores e, em uma passagem da “História Secreta“, o historiador chega a afirmar que Teodora e Justiniano seriam demônios de verdade.
Enquanto ela ainda trabalhava como atriz e/ou prostituta, Teodora conheceu, em Constantinopla, um certo Hecebolus, que tinha sido nomeado governador do distrito de Pentapolis, supostamente na Líbia, tornando-se amante dele.
Então, com apenas 16 anos de idade, Teodora teria partido, acompanhando Hecebolus, para a África (eu acredito que há uma incorreção aí, pois a reconquista de Justiniano da África para o Império Romano somente ocorreu em 533 D.C., quando Teodora já era imperatriz. Por isso, talvez a Pentapolis mencionada não seja na Líbia, já que vários outros agrupamentos de cinco cidades do mundo helenístico recebiam esse nome). Vale notar que havia, desde 409 D.C., uma lei romana em vigor que previa que os atores e atrizes não poderiam mudar-se da cidade onde trabalhavam. Portanto, é provável que Hecebolus deva ter “mexido alguns pauzinhos” para que Teodora pudesse lhe acompanhar…
Entretanto, Procópio narra que Hecebolus logo desinteressou-se de Teodora, chegando até a maltratá-la. Por esse motivo, Teodora deixou-o e foi viver em uma comunidade de religiosos ascetas no deserto próximo à Alexandria, onde ela converteu-se ao credo Monofisita (o Monofisismo é uma doutrina que prega que Jesus Cristo tem apenas uma natureza: a divina), talvez provavelmente por influência do Patriarca de Alexandria, Timóteo III.
Posteriormente, Teodora foi viver em Antioquia, na Síria, onde ela ficou muito amiga de uma certa Macedonia, que também era atriz e dançarina na facção dos Azuis. Conta-se que Macedonia também atuava como informante de FlaviusPetrus SabbatiusIustinianus(o futuro imperador Justiniano), sobrinho e filho adotivo do comandante da tropa militar de elite dosExcubitores, Justino, que procurava saber tudo acerca da posição dos nobres e militares que poderiam apoiar a ascensão de seu pai adotivo ao trono, uma vez que o imperador Anastácio I Dicoro, que já era octogenário, não tinha filhos.
Encontro com Justiniano e casamento
Aparentemente, foi Macedonia quem apresentou Teodora a Justiniano, talvez como uma pessoa que lhe pudesse ser útil. Um traço comum entre os dois era que Justiniano, como Teodora, era partidário da facção dos Azuis. O fato é que, em 522 D.C., aos 21 anos, Teodora retornou à Constantinopla, onde, renegando o passado de atriz, passou a trabalhar como fiadeira de lã, em uma casa próxima ao Palácio Imperial. Nessa época, Justino I já tinha sucedido Anastácio e se tornado imperador, e Justiniano era seu herdeiro e braço-direito.
Não temos muitos detalhes de quando e como o romance entre Teodora e Justiniano começou, mas o certo é que Justiniano tinha encontrado a mulher de sua vida. Todavia, haviadois obstáculos para que os dois contraíssem matrimônio legalmente: a lei que proibia que os integrantes da classe senatorial – a nobreza do império romano – casassem com atrizes, e a oposição da imperatriz Eufêmia, tia de Justiniano, ao casamento do sobrinho com uma mulher de baixa condição social como Teodora (não obstante, ela mesmo, Eufêmia, tivesse nascido bárbara e escrava, e dormido com o seu amo, antes dela casar -se com Justino).
Ocorre que, por volta de 524 D.C, a imperatriz Eufêmia morreu. Pouco tempo depois, o imperador Justino I revogou a lei proibindo o casamento de nobres com atrizes. Assim, cerca de 525 D.C.,Justiniano e Teodora puderam casar-se perante o Patriarca Epifânio, em Constantinopla, na primitiva igreja da Santa Sofia.
Teodora imperatriz
Em 1º de agosto de 527 D.C., Justino I morreu e Justiniano I foi coroado imperador ao lado de Teodora, que recebeu o título de “Augusta” (imperatriz).
(Reconstituição das feições de Justiniano I, com base em mosaicos e efígies)
Os primeiros anos do reinado de Justiniano foram ocupados por duas questões principais:
No plano externo, o conflito com o Império Persa foi marcado por sucessos e reveses. Após a morte do Xá Kavadh, Justiniano assinou, em 532 D.C., o chamado “Tratado da Eterna Paz” com a Pérsia o que lhe asseguraria as condições para as suas campanhas no Ocidente.
E, em casa, Justiniano iniciou seu reinado colocando em prática o seu imenso projeto de reforma e codificação do Direito romano, que seria coroado pela edição do Corpus Juris Civilis, nomeando uma comissão composta pelos mais notáveis juristas do Império.
O Corpus Juris Civilis e a provável influência de Teodora em favor dos direitos das mulheres
Os estudiosos acreditam que Teodora teve considerável influência em alguns dispositivos do Corpus Juris Civilis que ampliavam os direitos das mulheres, notadamente nos artigos que protegiam as prostitutas, bem como nos que puniam aqueles que forçassem as mulheres a se prostituírem contra a vontade. Foram, ainda, aumentadas as penas para os estupradores e, finalmente, também previu-se que as mulheres presas, caso não houvesse guardas do sexo feminino, deveriam ficar custodiadas em um convento de freiras.
Em outros artigos, o Código de Justiniano também previu que as mulheres viúvas poderiam ficar com a guarda de seus filhos ou netos. Por sua vez, a prática de exposição de recém-nascidos, fruto de gravidez não desejada os quais, costumeiramente eram abandonados nas cidades romanas e frequentemente eram do sexo feminino, foi proibida.
Por fim, outra normas instituíram que o costumeiro dote que a família da noiva tinha que dar ao noivo deveria ser restituído à viúva, após a morte do marido, e que o marido necessitava do consentimento da esposa para contrair dívidas de grande valor ( o que pode estar na origem de várias leis semelhantes, tratando do consentimento da esposa para compra e venda de imóveis, que sobreviveram até os nossos dias).
Teodora também apresentava-se como protetora dos desvalidos e há uma grande inscrição na Igreja de São Sérgio e São Baco, em Constantinopla com o seguinte trecho:
“Teodora coroada por Deus cuja mente está adornada com piedade e cujo trabalho incessante repousa em incansáveis esforços para cuidar dos despossuídos”
(Igreja de São Sérgio e São Baco, construída pelo imperador Justiniano I)
Entre outras ações de Teodora em proteção das mulheres figuram o fechamento de bordéis na capital e o envio das prostitutas para morarem em um convento chamado de Metanoia (Arrependimento).
Por tudo isso, é muito difícil não relacionar essas ações com a própria vida pregressa de Teodora, que deve ter presenciado, senão experimentado na própria carne, as vicissitudes a que estavam sujeitas as prostitutas em Constantinopla, bem como a aflição que a sua própria mãe passou quando perdeu o marido.
Iniciativas religiosas
Um exemplo da independência com que Teodora agia foi na questão religiosa: Embora Justiniano fosse adepto do credo do Concílio de Calcedônia, Teodora fundou um monastério Miafisita (uma doutrina parecida com o Monofisismo) em Sycae, uma localidade em frente à Constantinopla e abrigou no próprio Palácio bispos Miafisitas que estavam sendo perseguidos pelos defensores da ortodoxia cristã.
A proteção que Teodora daria ao Miafisismo durante toda a sua vida lhe renderia a crítica de que ela comprometeu a unidade religiosa do Império Romano.
De qualquer forma, Justiniano foi muito influenciado por Teodora, afinal ambos eram interessados nas questões teológicas e conversavam muito sobre esse tema. Assim, no final da sua vida, Justiniano aproximou-se do Monofisismo e tentou conciliar os credos em torno de pontos comuns, visando manter a unidade, embora, como frequentemente acontece, ele tenha acabado por desagradar a todos os envolvidos. Mesmo assim, atendendo aos pedidos de Teodora, após a morte da esposa, Justiniano manteve a proteção aos bispos miafisitas.
Durante a futura campanha de Justiniano na Itália, que culminou com a reconquista da península pelo Império Romano, Teodora conseguiu, em 537 D.C., por meio do general Belisário, a deposição do Papa Silverius, em Roma, colocando em seu lugar Vigilius, que era Apokrisiarios, em Constantinopla (representante papal junto ao imperador), um prelado que ela tinha compelido a apoiar a causa dos Monofisistas. Ao sentar no trono papal, contudo, o Papa Vigilius não agiu como Teodora esperava e manteve-se fiel ao credo de Calcedônia, que era dominante entre a população italiana.
A Revolta Nika
Em 13 de janeiro de 532 D.C., estourou um grande tumulto no Hipódromo de Constantinopla. As queixas imediatas da multidão reunida no Hipódromo diziam respeito à prisão de líderes das facções dos Azuis e dos Verdes, por assassinatos cometidos em uma corrida anterior.
Justiniano já tinha comutado as sentenças de morte proferidas contra os acusados pelos assassinatos para penas de prisão, mas isso não satisfez a massa.
É de fato bem provável que houvesse motivos mais profundos para a revolta da turba, já que ambas as facções atuavam como um misto de agremiação política e torcida organizada ligadas a interesses de grupos políticos e eclesiásticos. De fato, entre as reivindicações dos manifestantes, estavam a demissão do influente Prefeito Pretoriano João, o Capadócio, responsável pela cobrança de tributos que desagradaram a plebe e também por coordenar as reformas legais compiladas no Corpus Juris Civilis. E no decorrer da rebelião, os revoltosos chegariam a aclamar o nobre Hypatius, sobrinho do falecido imperador Anastácio I Dicoro, como imperador.
Assim, naquele dia 13 de janeiro, quando Justiniano apareceu no camarote imperial (o chamado “Khatisma“, no qual o imperador podia assistir as corridas e ser visto pelo público), a multidão começou a insultar o imperador aos gritos. Então, ao começar o páreo de número 22 do programa, os costumeiros gritos de “Azuis” ou de “Brancos” foram substituídos pelo canto de “Nika!“, que quer dizer, em grego, “Vitória!”. Em seguida, a grande massa de espectadores deixou seus assentos e tentou invadir o Palácio, deixando os guardas e os burocratas imperiais estupefactos.
(O imperador (Teodósio II), no Kathisma, o camarote imperial no Hipódromo de Constantinopla)
A “Revolta Nika“, como o episódio ficou conhecido, durou cinco dias, no decorrer dos quais Justiniano e Teodora ficaram sitiados no Palácio. Certa dia, durante uma reunião, o pânico tomou conta do Imperador e de seus ministros, e eles começaram a considerar fugir nos navios que estavam ancorados no cais particular do Palácio. Nesse momento, segundo Procópio (“Guerras”, 1.24.33-37), Teodora levantou-se e fez o seguinte discurso:
“Meus senhores, a ocasião presente é muito grave para me permitir seguir a convenção de que uma mulher não deve falar em uma reunião de homens. Aqueles cujos interesses estão ameaçados pelo perigo extremo, somente devem pensar no curso de ação mais inteligente, e não em convenções. Na minha opinião, fugir não é o caminho correto, mesmo que isso nos deixe em segurança. É impossível que alguém que tenha nascido, não morra, mas, para quem quer que tenha reinado, é intolerável tornar-se um fugitivo. Que eu nunca seja despojada deste manto púrpura, e que eu nunca veja o dia em que eu não seja chamada de Imperatriz! Se tu desejas, meu Senhor, salvar-se, não há dificuldade: nós somos ricos, lá está o mar, e ali estão os navios…No entanto, reflita por um momento se, uma vez que tenhas escapado para um lugar seguro, tu não trocarias alegremente esta segurança pela morte? Quanto a mim, eu concordo como o adágio que diz que a púrpura real é a mais nobre das mortalhas!”
(Reconstituição da imagem de Teodora em trajes de imperatriz com base no mosaico de San Vitale)
O discurso inspirador de Teodora reacendeu o espírito de luta de Justiniano e ele decidiu agir. O eunuco Narses, que posteriormente se notabilizaria como general na Itália, foi enviado para subornar os líderes da facção dos Azuis, os quais abandonaram a revolta. Em seguida, Justiniano enviou a sua guarda pessoal, comandada pelo leal general Belisário contra os integrantes da facção dos Verdes, que permaneciam rebelados no Hipódromo.
A repressão foi brutal e estima-se que 30 mil pessoas tenham sido massacradas no Hipódromo e adjacências.
(O Hipódromo, colado ao complexo do Palácio Imperial, incluindo o porto particular do imperador)
A Revolta Nika provocou um grande incêndio e causou uma grande destruição em Constantinopla, e, entre os prédios afetados, estava a Igreja de Hagia Sophia, fundada por Constantino, o Grande, cuja reconstrução foi encomendada por Justiniano aos arquitetos Antêmio de Trales e Isidoro de Mileto para se tornar em breve o edifício religioso mais impressionante até então construído no Império Romano.
(A atual Catedral de Santa Sofia, em Constantinopla, erguida por Justiniano I após a Revolta Nika para substituir a anterior que foi queimada por um incêndio)
Após a Revolta Nika, o papel de Teodora como virtual co-governante do Império não podia mais ser colocado em dúvida.
Por exemplo, consta que, debelada a revolta, Justiniano chegou a cogitar em poupar Hypatius e Pompeius, os sobrinhos de Anastácio I Dicoro, mas Teodora interveio, alegando o risco que isso representaria para o governo, e demandou a punição de ambos, que foram, então, executados.
Teodora também mostrou apetite para as maquinações e intrigas típicas da corte imperial, premiando aliados e perseguindo desafetos: O eunuco Narses era seu protegido, e, com o seu apoio ele se tornaria, decorrido algum tempo, o general mais importante do exército romano. A impertatriz também apoiava o Prefeito Pretoriano Pedro Barsymes.
Já João, o Capadócio, que tinha sido o antecessor de Barsymes, e gozava de bastante prestígio junto a Justiniano, mas que mostrava pouca deferência para com Teodora, foi o principal alvo das maquinações da Imperatriz, que, valendo-se da ajuda de sua velha amiga Antonina, tramou a queda do ministro.
Na trama supracitada, Antonina enviou a João, o Capadócio a falsa informação de que o marido dela, o general Belisário, estava planejando derrubar o Imperador. Assim, ela conseguiu atrair João para um encontro em um palácio na cidade de Calcedônia, onde Narses e Marcellus, o comandante da guarda imperial dos Excubitores, estavam escondidos para ouvir a conversa. Os dois tinham ordem de matar o ministro assim que este falasse qualquer coisa que pudesse sugerir sua adesão a traição. Porém, João conseguiu escapar deles e abrigar-se em uma igreja.
Quando o fato chegou ao conhecimento de Justiniano, este, ao contrário do que seria de se esperar, não mandou executar João, mas ordenou que o mesmo fosse exilado para Cyzicus, uma cidade na Anatólia não muito longe de Constantinopla, por volta de 540 D.C.
Em Cyzicus, João, o Capadócio foi obrigado a se ordenar padre. Porém, quando o bispo da cidade foi assassinado, ele foi implicado na trama e, desta vez, exilado para a distante cidade de Antinoe, antiga Antinoopolis, no Egito.
Evidenciando novamente a enorme influência de Teodora sobre Justiniano é fato que, somente após a morte dela, em 548 D.C., o exílio de João, o Capadócio foi suspenso pelo imperador, que o chamou de volta à Constantinopla.
Últimos anos e morte de Teodora
Em 547 D.C., foi concluída a Basílica de San Vitale, em Ravenna, antiga capital do Império Romano do Ocidente, que foi reconquistada, juntamente com toda a península italiana, por Justiniano, nas guerras contra o Reino Ostrogodo da Itália, a partir de 535 D.C. (esta guerra teria indas e vindas, e somente acabaria em 554 D.C., com a derrota completa dos Ostrogodos).
(Basílica de San Vitale, em Ravenna, foto de Madaki)
O interior da Basílica de San Vitale (esta igreja não é uma basílica em termos arquitetônicos, pois tem uma planta octogonal) foi adornado com alguns dos mais fabulosos mosaicos produzidos pela arte romano-bizantina, os quais foram concluídos em 547 D.C.
Nas duas paredes laterais da apse da Basílica de San Vitale há dois mosaicos excepcionais, um em cada lado: O do lado direito ostenta a imagem do imperador Justiniano, vestido com seu manto púrpura e coroa, ladeado pelos seus mais importantes auxiliares, além do bispo Maximiano, que inaugurou a igreja.
E o mosaico do lado esquerdo da apse ostenta a imagem da imperatriz Teodora, igualmente vestida com seu manto púrpura, coroada e adornada de ricas jóias, ladeada por suas damas e seus eunucos mais chegados.
Caso ainda persista alguma dúvida de que Teodora dividia o status de governante do Império com Justiniano, basta a mera contemplação dos dois painéis de mosaicos da Basílica de San Vitale para se ter a certeza de que ambos reinaram em pé de igualdade.
Provavelmente, quando da conclusão da Basílica de San Vitale, Teodora já devia estar sofrendo da doença que acabaria causando a sua morte, um ano depois. As fontes usam o termo grego que é traduzido por “câncer”, mas podem também se referir a um tumor ou úlcera que supurava. A teoria mais aceita é de que se tratava de um câncer de mama.
No dia 28 de junho de 548 D.C., Teodora morreu no Palácio Imperial, em Constantinopla, aos 48 anos de idade (ou aos 51, de acordo com outras fontes). Consta que no velório dela, o imperador Justiniano chorou copiosamente em público a perda da sua esposa, companheira e sócia de uma vida inteira.
Teodora foi sepultada na Igreja dos Santos Apóstolos, que sempre foi o tradicional local de descanso da maior parte dos imperadores romano-bizantinos, desde Constantino I, o Grande, e era mais uma das igrejas que ela e Justiniano tinham reconstruído na capital. A igreja foi destruída em 1456 pelos turcos, três anos após a Queda de Constantinopla.
(Sarcófagos de pórfiro de Imperadores Romanos do Oriente, que ficavam na igreja dos Santos Apóstolos e atualmente estão no exterior do Museu Arqueológico de Istambul)
A união de Teodora e Justiniano não gerou filhos e certamente ela muito desejou dar um herdeiro ao esposo. Segundo Procópio (História Secreta), quando Sabas, o Santificado (São Sabas), um venerado eremita e arquimandrita da Palestina, que tinha fama de fazer milagres, esteve em Constantinopla, em 531 D.C., Teodora, apesar do religioso ser um tenaz oponente do Monofisismo, pediu a Sabas que ele rezasse para que ela engravidasse. Entretanto, o velho eremita se recusou, respondendo que qualquer filho que Teodora desse à luz seria uma grande calamidade para o Império.
Conclusão
Teodora certamente foi uma das mulheres mais poderosas da História Romana. E, diferentemente de outras detentoras de poder de fato, como Lívia Drusila,Agripina ou Júlia Domna, ela não foi uma eminência parda ou exercia o seu poder na alcova, mas também tinha a sua posição soberana reconhecida oficialmente: ela tinha o seu próprio selo imperial, sua própria corte e corpo de funcionários privativos. Em documentos oficiais, Justiniano chegou a referir-se a Teodora como “minha sócia nas minhas deliberações“. Contrastando, ainda, com as referidas imperatrizes, bem como outras célebres mulheres poderosas do Mundo Helenístico, Teodora não nasceu na realeza nem tinha origem nobre, tendo, ao revés, vindo dos estratos mais baixos da sociedade.
(relevo de marfim, provavelmente retratando Anastácio)
Em 11 de abril de 491 D.C. Anastácio I foi coroado em Constantinopla, dois dias após a morte do imperador Zenão I, o seu antecessor.
No dia anterior à coroação, a imperatriz-viúva Ariadne, acompanhada do Senado de Constantinopla, do Grande Camareiro Urbicius, e dos demais ministros de Estado, dirigiu-se para o Hipódromo, onde uma tropa de soldados reunidos na pista, e oitenta mil cidadãos nas arquibancadas, os aguardavam.
(relevo de marfim de Ariadne)
“-Vida longa à Augusta!”, “Dê ao mundo um imperador ortodoxo!“, gritou a multidão.
Em seguida, um funcionário, em frente ao camarote imperial no Hipódromo (“kathisma“, em grego) começou a ler uma proclamação da imperatriz:
“-Antecipando o Vosso pedido, nós ordenamos aos ilustres Ministros e ao sagrado Senado, com a aprovação do bravo Exército, que selecione um Imperador Romano Cristão, dotado de todas as virtudes imperiais, que não seja escravo do dinheiro, e que seja, tanto quanto um homem pode ser, livre de todos os vícios humanos“.
O povo, em resposta, gritou:
“-Ariadne Augusta, tu venceste! Ó Rei Celestial! Dê ao mundo um Imperador que não seja avarento!“
Ariadne:
“-Para que a escolha possa ser pura e agradável a Deus, nós ordenamos que os Ministros e o Senado, com a concordância do Exército, realizem a eleição ante os Evangelhos e na presença do Patriarca, de modo que ninguém seja influenciado por amizade ou inimizade, parentesco, ou qualquer outro motivo particular, senão que vote com a sua consciência limpa. Consequentemente, considerando que o assunto é muito relevante e diz respeito ao bem-estar do mundo, vocês devem aceitar uma pequena pausa, até que os funerais de Zenão, de pia memória, tenham sido devidamente realizados, e, assim, a eleição não seja feita precipitadamente“.
(O imperador Teodósio, no kathisma, no Hipódromo de Constantinopla, foto Radomiltalk)
Segundo o relato acima, feito pelo imperador Constantino IX Porfirogênito, que também era historiador (o qual extraímos do clássico livro “History of the Later Roman Empire“, de John B. Bury), após o discurso no Hipódromo, o Camareiro Urbicius sugeriu ao conselho de ministros que a escolha ficasse a cargo de Ariadne. A sugestão foi acolhida ou, o que é mais provável, apenas formalizou-se algo que já estava definido previamente.
Vale observar que o discurso de Ariadne faz questão de mencionar o que se considera serem as três fontes do poder na constituição não-escrita do Império Romano: O Senado, que representava a nobreza, os ministros, que representavam a administração civil do Império, e o Exército, que representava os cidadãos armados, todos agindo em nome do Povo, reunido no Hipódromo, a quem, ainda que apenas cerimonialmente, eles deviam satisfação.
Ariadne escolheu Flavius Anastasius (Anastácio I), que ocupava o cargo de Silentiarius, um alto funcionário do Palácio encarregado de manter a ordem nas audiências do imperador.
Flavius Anastasius (Flávio Anastácio) nasceu por volta de 430 D.C., em Dirráquio (Dyrrachium, atual Durrës, na Albânia), cidade que, desde 229 A.C.,era um dos mais importante portos romanos no mar Adriático e o ponto de partida da Via Egnatia, uma estrada vital que ia até Constantinopla, passando pela Grécia.
(Ruínas do Anfiteatro de Dyrrachium, foto de Jed Horne )
Flávio Anastácio era filho de um certo Pompeius, que seria um nobre de origem ilíria de Dirráquio, e de Anastasia Constantina, que era neta de Gallus e bisneta de Anastasia. Esta, por sua vez, era filha de Flavius Claudius Constantius Gallus, neto do imperador Constâncio Cloro e sobrinho do imperador Constantino, o Grande.
Portanto, Anastácio I seria, por parte de mãe, descendente do fundador da dinastia Constantiniana e parente do fundador do Império Romano do Oriente.
Devido ao fato de um dos seus olhos ser de cor negra e o outro de cor azul, Anastácio recebeu o apelido de “Dicorus” (Duas cores, uma condição que na medicina é conhecida como “heterocromia”.
Anastácio era uma figura muito conhecida e respeitada em Constantinopla, sendo uma presença assídua nas missas na Catedral de Santa Sofia, onde ele costumava debater assuntos religiosos, ocasiões em que manifestava opiniões nem sempre ortodoxas. Esse fato, inclusive, granjeou-lhe a antipatia do Patriarca de Constantinopla, Eufêmio.
Por isso, quando Anastácio foi escolhido por Ariadne para ser imperador, com a aprovação do Senado, Eufêmio exigiu que Anastácio assinasse uma declaração de obediência ao credo ortodoxo, como condição para que ele participasse da cerimônia de coroação.
Dias após a cerimônia, que foi descrita em detalhes por Constantino IX Porfirogênito, Anastácio I Dicoro e Ariadne casaram-se, em 20 de maio de 491 D.C.
Logo no início do seu reinado, Anastácio I teve que enfrentar a insatisfação que a sua escolha causou entre os militares de origem isáuria.
Os Isáurios eram um povo apenas parcialmente romanizado que habitavam as montanhas Taurus, na atual Turquia. Devido a sua índole guerreira, o imperador Leão I aproveitou para criar uma unidade composta de Isáurios, com o objetivo de se livrar da influência dos bárbaros germânicos no Exército e, em consequência, nos assuntos de Estado.
Apesar disso, os Isáurios eram considerados como sendo semi-bárbaros pelos habitantes de Constantinopla, os quais nunca aceitaram placidamente o fato do chefe dos Isáurios, Tarasis Kodisa, ter se tornado o sucessor de Leão I, com o nome de Zenão I.
Assim, quando Zenão I morreu, os militares Isáurios desejavam que ele fosse sucedido por seu irmão, Longinus, e, obviamente, ficaram muito contrariados quando Anastácio I foi o escolhido pela imperatriz-viúva, Ariadne.
Culpando os Isáurios por um tumulto no Hipódromo, Anastácio exilou Longinus para a Tebaida, no Egito e revogou vários privilégios concedidos aos Isáurios pelo seu antecessor Zenão.
Em 492 D.C, estourou uma revolta na Isáuria (Guerra contra os Isáurios) e Anastácio enviou um exército para sufocá-la, liderados pelos generais João, o Cita e João, o Corcunda, que derrotaram os rebeldes na Batalha de Cotyaeum, na Frígia. Porém, o restante dos revoltosos se entrincheiraria nas montanhas da Isáuria e somente em 498 D.C. os últimos focos desta rebelião seriam debelados.
Em 493 D.C., aproveitando que o Império estava ocupado com o conflito na Isáuria, uma invasão dos Búlgaros derrotou o exército comandado pelo general Juliano. Esses Búlgaros eram remanescentes do Império de Átila, o Huno.
As invasões búlgaras repetiram-se em 499 D.C e em 502 D.C., levando Anastácio a ordenar a construção da chamada Muralha Anastácia, 64 km a oeste de Constantinopla, a fim de melhor proteger a capital.
Mal as Guerra contra os Isáurios e os Búlgaros acabaram, Anastácio teve que enfrentar, entre 502 e 506 D.C., o Império Persa, que capturou as estratégicas cidades de Teodosiópolis (atual Erzurum, na Turquia, uma cidade armênia que foi ocupada pelos romanos em 387 D.C.) e de Amida, na Mesopotâmia.
(Muralhas romanas de Amida)
Anastácio conseguiu recuperar Amida e uma paz foi assinada, visando manter o status quo na região. Então, para se proteger de futuras incursões, Anastácio ordenou a construção da impressionante Fortaleza de Dara, próxima à cidade de Nísibis, com o objetivo de colocar em cheque todo e qualquer o movimento de tropas inimigas pela região. Com o mesmo objetivo, foi construído também o Castelo de Dirráquio, em sua cidade natal, na Ilíria.
(Cisternas da fortaleza romana de Dara)
Os assuntos militares não impediram que, desde o início do seu reinado, Anastácio se dedicasse a importantes reformas monetárias, fiscais e administrativas.
Segundo o historiador romano-bizantino João Lídio (um funcionário público que iniciou sua carreira no reinado de Anastácio), a cuidadosa política econômica do imperador e o seu rigor na observância das finanças públicas salvaram o Império Romano, que, a partir da custosa e mal-sucedida expedição de Leão I contra os Vândalos na África, um quarto de século antes, desde então constantemente estivera à beira da ruína.
Em maio de 498 D.C., valendo-se da entrada de recursos que o confisco das propriedades de Zenão I e de seus protegidos Isáurios permitiu, Anastácio aboliu o odiado imposto denominado de Chrysargiron (aparentemente, este era um imposto sobre a receita bruta dos comerciantes, ou seja, sobre as vendas, e que obviamente, como sempre acontece, devia acabar sendo repassado para os consumidores).
Essa medida foi entusiasticamente recebida pelos súditos, sendo objeto de comemorações exaltando o Imperador por todo o Império Romano do Oriente.
Também criou-se o cargo de Conde do Patrimônio Privado, para administrar os bens e receitas da Coroa, que passou a fazer contribuições maiores para o Erário Público.
Mas a medida mais significativa nesse campo foi a mudança na forma de pagamento da Annona, um tributo de gêneros em espécie, que era coletado pelos magistrados das cidades, e que, a partir da reforma, passaria a ser pago em moeda (o que foi estabelecido também para outros tributos) e cobrado por um corpo de oficiais chamados de “Vindices“. Essa mudança foi idealizada por um conselheiro chamado Marinus, um dos auxiliares mais próximos do imperador e que era um comerciante de origem síria.
Anastácio promoveu também mudanças nos critérios para fixação do módulo rural fiscal (jugera), com vistas a dividir melhor o fardo da obrigação de responder pelos tributos devidos pelas propriedades abandonadas pelas propriedades maiores, isentando as menores).
Tão importante quanto o aumento das receitas, era, para Anastácio, a redução das despesas. De fato, ele se notabilizou por diminuir os gastos da Corte, o que lhe angariou, entre a nobreza de Constantinopla, acostumada com o luxo e o fausto, a fama de avarento.
Finalmente, outra medida positiva do reinado foi a introdução de uma nova moeda de cobre, o follis, que era utilizada principalmente pela população mais pobre para pequenas transações e que estava completamente desmoralizada pela péssima qualidade. E as moedas de ouro, que também tinham sofrido muito durante a crise das últimas décadas, foram revitalizadas e divididas em três tipos, e, de fato, moedas cunhadas durante o reinado de Anastácio seriam encontradas até na China.
(Semissis de Anastácio I, foto de Classical Numismatic Group, Inc)
No campo religioso, área que, em Constantinopla, ocupava o centro da vida política do Império, Anastácio não obteve tanto sucesso.
Anastácio, apesar do compromisso de fé ortodoxa que ele assinou por exigência do Patriarca Eufêmio, era Miafisita
Nota: o Miafisismo acredita que na pessoa una de Jesus Cristo, a Divindade e a Humanidade estão reunidas em uma única ou singular natureza – “physis” – sem separação, sem confusão e sem alteração. E, ainda hoje, essa doutrina é professado em algumas igrejas orientais. A diferença entre o Miafisismo e o Credo Niceno-Ortodoxo é um tanto difícil de perceber para nós, modernos, e não é a toa que, hoje, uma discussão sobre detalhes complicados e pouco relevantes é chamada de “discussão bizantina”…
Assim, quando Anastácio I depôs Eufêmio, após uma controvérsia religiosa envolvendo os patriarcas de Alexandria e Jerusalém, que repudiavam o Concílio de Calcedônia, a população de Constantinopla ocupou o Hipódromo exigindo a restauração do seu Patriarca.
Um tumulto ainda mais sério ocorreu em 498 D.C., novamente no Hipódromo, após a prisão de membros da facção dos Verdes (os espectadores das corridas de cavalos em Roma, e depois, em Constantinopla, se reuniam em 4 facções, Verdes, Vermelhos, Azuis e Brancos, que depois, com o tempo, passaram também a expressar posições políticas e também religiosas).
Nesse episódio, um partidário dos Verdes chegou a arremessar uma pedra contra Anastácio, que escapou por pouco. Durante a repressão levada a cabo pelos soldados dos Excubitores, a turba ateou fogo ao Portão de Bronze do Hipódromo e o fogo se alastrou até o Fórum de Constantino.
Em 499 D.C., Anastácio proibiu os combates de homens contra feras, que ainda sobreviviam como reminiscência dos antigas lutas na arena que os romanos tanto apreciavam. E, em 501 D.C, após um filho ilegítimo seu morrer em um tumulto, ele proibiu o festival pagão das Brytae, no qual as danças, muito apreciadas pelo povo, frequentemente degeneravam em distúrbios.
Até, então, apesar de tudo, Anastácio vinha demonstrando uma considerável neutralidade nas disputas eclesiásticas, respeitando o seu compromisso e a política conciliatória do “henotikon“, estabelecida por seu antecessor Zenão I, de não adotar expressamente nenhuma das teorias sobre a natureza de Cristo.
Porém, em 511 D.C., quando ele depôs o Patriarca de Calcedônia, substituindo-o por um bispo adepto do Monofisismo (onde Cristo somente teria uma natureza, a divina), iniciou-se uma crise que resultou, no ano seguinte, em uma revolta, onde a multidão adepta da ortodoxia aclamou como imperador o general Aerobindus, casado com Juliana Anicia, neta do falecido imperador romano do Ocidente, Valentiniano III e, portanto, integrante da dinastia Teodosiana.
Anastácio, então, mandou informar ao povo que iria abdicar e compareceu ao Hipódromo, sem a coroa, e, surpreendentemente, com esse gesto inesperado, a multidão acabou se acalmando e se contentou em pedir a punição de alguns ministros.
As inflamadas querelas religiosas, porém, continuaram a afligir o reinado, e elas foram um dos pretextos para uma revolta muito mais séria, comandada pelo general Vitaliano, que comandava uma tropa de soldados federados búlgaros na província da Trácia (O outro motivo foram as queixas dos soldados contra o comandante militar daquela província, Hypathius, que, incapaz de debelar a revolta, fugiu para Constantinopla).
Vitaliano e seu exército rebelde marcharam até os muros de Constantinopla, onde os oficiais de Vitaliano foram recebidos em audiência pelo Imperador e Anastácio conseguiu convencê-los a retornar para a Trácia, sob as promessas de donativos, da demissão de Hypathius e da devida solução para as controvérsias religiosas em favor da ortodoxia calcedônica.
De volta à Trácia, porém, Vitaliano desconfiou do novo comandante que Anastácio enviara para chefiar o exército naquela província, Cirilo, e assassinou o general. Reiniciada a rebelião, Anastácio teve que enviar um grande exército para a Trácia para combater Vitaliano, a quem o Senado de Constantinopla, seguindo a antiga tradição romana, declarara “InimigoPúblico“.
Vitaliano, contudo, em 513 D.C., obteve uma grande vitória contra as tropas do imperador e voltou a ameaçar Constantinopla, agora também com uma frota de 200 navios. Mais uma vez, Anastácio teve que negociar, dando dinheiro a Vitaliano e prometendo restaurar os bispos adeptos do ConcíliodeCalcedônia e até mesmo a realização de um novo Concílio.
Como nada foi feito, no final de 515 D.C., Vitaliano voltou a sitiar Constantinopla, porém, desta vez, a sua frota foi destruída, pela utilização de uma arma química que prenunciava o célebre “FogoGregodeBizâncio” que seria adotado alguns séculos mais tarde, e o seu exército foi derrotado pelo exército imperial comandado por Marinus. Em decorrência, Vitaliano fugiu e ficaria desaparecido por três anos.
A imperatriz Ariadne morreu no mesmo ano de 515D.C.
Anastácio viveu, como governante indisputado do Império Romano, por mais três anos. Consta que ele, sem conseguir decidir-se sobre qual dos seus três sobrinhos o sucederiam, resolveu esconder uma mensagem embaixo de uma almofada de um dos três sofás que ficavam em uma sala onde ele costumava recebê-los (um tradicional triclínio romano, tudo indica), para que aquele que sentasse na almofada sobre o bilhete fosse o escolhido.
Porém, dois dos sobrinhos teriam sentado em um sofá, o terceiro em outro e o sofá que escondia o bilhete acabou ficando vazio…
Então, assim frustrada a primeira tentativa, Anastácio teria decidido que o novo imperador seria a primeira pessoa que, no dia seguinte, entrasse no aposento. E, na manhã seguinte, Justino, o comandante da guarda imperial dos Excubitores foi o primeiro a entrar naquele cômodo…
Anastácio não tinha filhos homens, apenas uma filha, Juliana, que mais tarde se casaria com o futuro imperador Justino II. Ele morreu com a avançada idade de 87 anos, em 9 de julho de 518 D.C.
O escolhido para sucedê-lo foi Justino I, o Comandante dos Excubitores.t
CONCLUSÃO
Como resultado da sua boa administração econômica, quando Anastácio I morreu, havia no Tesouro Imperial 23 milhões de solidi, ou seja, 320 mil libras de ouro. Seu longo reinado de 27 anos e as muitas medidas sensatas que ele adotou foram muito importantes para assegurar a sobrevivência do Império e prepararam o terreno para o renascimento do poder imperial no reinado de Justiniano I, filho de seu sucessor.
Em 1º de agosto de 10 A.C., nasceu, em Lugdunum, na Gália (atual Lyon), Tiberius Claudius Nero Germanicus (Cláudio), filho de Nero Claudius Drusus (Druso) e de Antônia, a Jovem, filha do casamento do triúnviro Marco Antônio com Otávia, a irmã de Augusto.
Assim, pela linha materna, Cláudio era parente deJúlio César, uma vez que a sua mãe era neta de Júlia, a Jovem, irmã de César, e sobrinho-neto do imperador Augusto (que também era sobrinho-neto de César).
Por sua vez, pela linha paterna, Cláudio era neto da imperatrizLívia Drusila (Júlia Augusta), a esposa do primeiro imperador romano, Augusto, pois seu pai era o segundo filho do primeiro casamento de Lívia com Tibério Cláudio Nero, de quem ela se separou já grávida do caçula para se casar com Otaviano, antes deste tornar-se imperador e passar a ser chamado de Augusto.
O Pai de Cláudio, Druso, devido às suas importantes vitórias contra os bárbaros germânicos, recebeu o cognome “Germanicus”, e ele era também o irmão mais novo de Tibério, que seria o sucessor de Augusto no trono.
Antes de Cláudio nascer, Druso e Antônia já haviam concebido Germanicus Julius Caesar(Germânico), que se tornaria um célebre general e cairia nas graças de Augusto (e também da plebe romana). E quando o velho imperador adotou Tibério como herdeiro, ele exigiu que este, por sua vez, adotasse Germânico, pelo fato de que, após as mortes de seus netos Caio e Lúcio César, tirando o rapaz, Augusto não tinha mais nenhum outro parente consanguíneo do sexo masculino capaz de dar continuidade à linhagem dos Júlios (com exceção do seu jovem neto sobrevivente, Agripa Póstumo, que o próprio Augusto havia exilado em uma ilha remota, possivelmente por traição).
Porém, ao contrário do seu irmão mais velho, Cláudio passaria a sua infância, adolescência e toda a juventude em completa obscuridade, expressamente por determinação de Augusto e de Lívia, com os quais ele viveu durante um bom tempo, e, depois deles, pela vontade de seu tio Tibério, ficando, assim, afastado das aparições públicas da família imperial e sem ter qualquer papel público, ainda que cerimonial, a desempenhar.
Os motivos do ostracismo a que Cláudio foi relegado no seio da família imperial, segundo os autores antigos, seriam os distúrbios físicos e mentais que ele manifestava desde menino, considerados por Augusto e Lívia como comprometedores da dignidade da dinastia dos Júlio-Cláudios. E a própria mãe de Cláudio, segundo Suetônio, referia-se ao filho como sendo “um monstro“.
O diagnóstico da doença de Cláudio não é preciso nas fontes, mas elas mencionam o fato dele mancar, gaguejar, ser acometido por tremores e ter corrimentos no nariz. Por isso, alguns acreditam que Cláudio pode ter contraído poliomielite na infância, ou, o que parece mais provável, que ele tenha sofrido algum tipo de paralisia cerebral na infância. Alguns defendem, ainda, que a doença dele seria a Síndrome de Tourette, uma desordem neuropsiquiátrica que causa tiques nervosos.
No entanto, o próprio Augusto, em uma carta à Lívia, citada por Suetônio, certa vez observou que Cláudio era mais inteligente do que ele aparentava, tendo ficado impressionado com a sua boa declamação. Mesmo assim, Cláudio seria mantido afastado de qualquer cargo ou função oficial durante todo o reinado do tio, ao contrário do irmão dele, Germânico.
A sociedade romana, como a maior parte das civilizações da Antiguidade, não tinha muita compaixão pelos deficientes físicos, e a família entendia que os sintomas da enfermidade de Cláudio eram causados por desvios de caráter e deveriam ser corrigidos pela disciplina e castigos.
O próprio Cláudio, na autobiografia que ele escreveria anos mais tarde, e que não chegou até os nossos dias, contou que a sua família contratou um bárbaro que era condutor de mulas para ser o seu tutor, com o objetivo de que este se valesse da mais férrea disciplina e castigos severos para tentar melhorar a sua condição.
Assim, até mesmo em sua cerimônia da assunção da toga virilis (que simbolizava a passagem da infância para a idade adulta para os rapazes romanos, normalmente aos 14 anos de idade), que era um evento público marcante para os jovens da família imperial, Cláudio foi escondido dos olhares do público, pois ela ocorreu durante a noite, com ele sendo carregado oculto no interior de uma liteira.
Como não tinha um papel público a desempenhar, Cláudio então tomou interesse pelo estudo de História e pela Literatura. O grande historiador romano Tito Lívio foi contratado para ser seu professor e ele também foi aluno do filósofo estoico Atenodoro.
E tudo indica que Cláudio se tornou um leitor voraz. Ainda muito jovem ele estudaria obras históricas sobre vários povos e, segundo as fontes antigas, ele foi a última pessoa capaz de ler a língua escrita etrusca em Roma, idioma que até hoje não foi completamente decifrado.
Começando ainda na juventude, ao longo da vida, Cláudio escreveria 43 livros sobre a História de Roma, a Thyrrenica, contendo 21 livros sobre a História dos Etruscos, além da Carthagenica, uma História de Cartago contendo 8 livros, um livro sobre filologia e uma defesa das acusações de Asinio Polião contra Cicero, além da sua própria autobiografia em 8 volumes. Infelizmente, nenhuma destas obras sobreviveu, mas algumas foram citadas por autores antigos.
(Tabula Cortonensis, contendo um texto em etrusco)
Outra obra que é mencionada pelas fontes é um tratado sobre jogos de dados. Segundo as fontes, Cláudio era fanático por este tipo de jogos, o que seria motivo de alfinetadas dos historiadores e objeto de muitas sátiras.
Cláudio também era interessado em linguística e escreveu um livro defendendo a introdução de três novas letras no latim, ““, “Ↄ” e ““, duas delas equivalentes ao Y e ao W. Mais tarde, após se tornar imperador, ele, no exercício do cargo de Censor, determinou que essas letras fossem adotadas oficialmente, mas isso não perdurou por muito tempo (na foto abaixo, uma raríssima inscrição contendo uma delas).
Quando Augusto morreu, em 19 de agosto de 14 D.C., Cláudio, que já tinha 23 anos de idade, sentiu-se confiante em pedir ao sucessor, o seu tio, Tibério, que lhe fosse permitido começar a trilhar o cursus honorum, a carreira pública das magistraturas. Contudo, Tibério preferiu dar apenas a Cláudio os ornamentos consulares, o que podemos considerar como uma mera consolação, já que isso significava na prática apenas uma condecoração honorífica, permanecendo Cláudio afastado de qualquer cargo ou função pública.
Eu creio que o motivo de Tibério continuar negando ao sobrinho qualquer papel público tinha a ver com o fato da família de Cláudio estar no centro das intrigas dinásticas dos Júlio-Cláudios referentes à posição de herdeiro de Tibério. Com efeito, o seu irmão, Germânico, era visto como potencial rival de Tibério ao trono. E sua irmã, Livilla, que, reportadamente, desprezava Cláudio, era esposa do filho de Tibério, Druso, o Jovem.
Não obstante, as fontes relatam que, durante o reinado de Tibério, com o passar do tempo, o público passou a ter uma boa impressão de Cláudio, que começou a receber algum reconhecimento.
Por exemplo, a classe dos Equestres escolheu-o duas vezes para liderar uma delegação para apresentar uma petição ao imperador. O Senado Romano também votou que Cláudio fosse nomeado como membro especial dos sacerdotes do culto a Augusto, e, mais importante, os senadores pediram a Tibério que Cláudio pudesse participar das sessões do Senado, o que, entretanto foi negado.
Tudo isso mostra que a exclusão de Cláudio da carreira política decorria de decisão direta do trono, e não de alguma incapacidade física ou mental dele ou do repúdio por parte da população.
Em 19 D.C., Germânico morreu em Antioquia, em circunstâncias suspeitas. Historiadores antigos, como Tácito, dão crédito à tese de que ele foi envenenado a mando de Lívia e Tibério.
Na época em que Germânico morreu, já se notava o grande poder que o comandante da Guarda Pretoriana, Lúcio Élio Sejano exercia em Roma. Ele expandira a guarnição dos pretorianos, que foi centralizada em um grande quartel fortificado, adjunto às muralhas da cidade.
O poder de Sejano era tanto que Tibério, certa vez referiu-se a ele como “meu sócio-trabalhador“. E Sejano, de fato, tinha altas pretensões…
Em 20 D.C., Sejano arranjou o casamento de sua filha, Junilla, com o filho de Cláudio, Claudius Drusus, ocasião em que as duas crianças tinham apenas quatro anos de idade. Porém, os planos de Sejano foram por água baixo, porque, poucos dias depois deste arranjo, o menino morreu engasgado com uma pera.
Claudius Drusus era o filho mais velho de Cláudio com sua primeira esposa, Plautia Urgulanilla, filha de Marcus Plautius Silvanus, um grande amigo da imperatriz Lívia e que era de origem etrusca. É bem possível que daí tenha vindo o interesse de Cláudio pela civilização etrusca. Cláudio e Urgulanilla se casaram por volta do ano 9 D.C., quando ele tinha dezoito anos de idade.
Contudo, o primeiro casamento de Cláudio já ficaria marcado pela suspeita de má conduta da esposa, algo que se repetiria nas suas uniões posteriores. Ele, assim, divorciou-se de Urgulanilla, que, cinco meses depois, deu a luz a uma filha, chamada de Cláudia. Suspeitava-se até que a menina fosse filha do liberto Boter. Por isso, Cláudio repudiou também a criança e mandou depositá-la, nua, na soleira da porta da casa onde a ex-mulher fora morar.
Passado esse escândalo, Cláudio deve ter se sentido muito ameaçado quando Druso, o Jovem, o filho e herdeiro oficial de Tibério, morreu, em 14 de setembro de 23 D.C., de uma misteriosa enfermidade, fato que ocorreu pouco tempo após uma séria desavença dele com Sejano. Para alguns historiadores antigos, como Tácito e Dião Cássio, Sejano foi o responsável pela morte de Druso por envenenamento, empresa na qual ele teria sido auxiliado pela esposa do falecido e irmã de Cláudio, Livilla, que teria sido seduzida pelo Prefeito Pretoriano e dele se tornara amante.
Em 25 D.C., Sejano pediu formalmente a Tibério permissão para se casar com Livilla, o que foi recusado pelo velho imperador, que, após exaltar os méritos do subordinado, observou, candidamente, que Sejano, tendo nascido na classe Equestre, estava abaixo da posição social de Livilla, uma integrante da família imperial.
Mesmo assim, no ano seguinte, Tibério foi viver na ilha de Capri, em um auto-exílio voluntário que duraria onze anos, deixando, informalmente, o governo nas mãos de Sejano.
Em 28 D.C., Cláudio casou-se com Aelia Petina, que era irmã de criação de Sejano, pois havia sido criada pelo pai dele, Lucius Seius Strabo, um dos primeiros comandantes da Guarda Pretoriana, e antecessor do filho neste comando.
O casamento de Cláudio e Aelia Petinacertamente deve ter sido por influência de Sejano. Um indício é o fato de que, assim que assim que este foi demitido do cargo e executado por ordens de Tibério, em 31 D.C., Cláudio imediatamente divorciou-se de sua segundo esposa, alegando motivos insignificantes. Mesmo assim, eles tiveram uma filha, Claudia Antonia, que seria criada pela mãe de Cláudio, Antônia, a Jovem.
(Estátua de Cláudia Antònia, filha de Cláudio.
Antes da queda, contudo, Sejano, que controlava toda informação entre Roma e Capri e agia como virtual governante de Roma, começara a eliminar os seus desafetos e adversários políticos. E seu alvo preferencial foi Agripina, a Velha, a esposa do falecido Germânico, irmão de Cláudio, que foi exilada em 30 D.C. Ela vinha acusando publicamente Tibério e Lívia de serem os mandantes da morte do esposo. O filho de Agripina, Nero Julius Caesar Germanicus (não confundir com o futuro imperador Nero) também foi exilado e morreria no ano seguinte.
Já o filho homem mais novo de Agripina e sobrinho de Cláudio, Gaius Caesar, de 18 anos, que tinha o apelido de Calígula, foi poupado, mas passou a morar com Tibério, em Capri.
(Busto de Agripina, a Velha)
Anos mais tarde, Cláudio mencionaria, em uma ocasião, que, durante esses anos de intrigas palacianas e de terror pela eliminação dos seus parentes, ele costumava exagerar os seus problemas físicos e passou a fingir ser um completo idiota, com o objetivo de parecer inofensivo a todos, tentando manter-se vivo.
Enquanto isso, após a queda de Sejano, como vimos, Cláudio divorciou-se da irmã de criação do Prefeito Pretoriano caído em desgraça e continuou vivendo na obscuridade até a morte de Tibério, que faleceu com 77 anos de idade, em Capri, em 16 de março de 37 D.C..
Dois dias depois, Tibério foi oficialmente sucedido por Calígula, que era sobrinho de Cláudio. E foi Calígula quem deu a Cláudio o primeiro cargo público que ele ocuparia na vida, o de Cônsul Suffectus, em 37 D.C, com 46 anos de idade!
Apesar da nomeação para o cargo de Cônsul, a condição de Cláudio não melhorou muito, pois Calígula logo mostrou-se um monarca cruel e incontrolável, e o seu tio Cláudio era um dos alvos preferidos de suas pilhérias e deboches, inclusive infligidos algumas vezes perante o Senado Romano.
Em 38 D.C., Cláudio casou-se, pela terceira vez, com Valeria Messalina, integrante de uma ilustre família senatorial, e também sua prima em 2º grau, pois ela era neta da irmã de sua mãe, Antônia, a Velha. No ano seguinte, Messalina deu a Cláudio mais uma filha, que recebeu o nome de Claudia Octavia.
(Cabeça de Claudia Octavia, filha de Cláudio)
No entanto, o reinado de Calígula seria curto. Fartos de seus desmandos e desacatos, alguns senadores e membros da Guarda Pretoriana, estes liderados pelo tribuno Cássio Queréa, urdiram uma conspiração e assassinaram Calígula, durante uns jogos que eram celebrados no Palatino, em 24 de janeiro de 41 D.C.
A conspiração parece, à primeira vista, ter sido motivada primordialmente pelo desejo de algumas pessoas influentes de se livrar de um governante ensandecido, que ameaçava os que estavam próximos do poder, e foi executada por pretorianos que tinham sido humilhados pelo imperador. Se o assassinato de Calígula fazia parte de um plano maior, de restaurar a República, nós não sabemos, mas as fontes relatam que, inicialmente, alguns senadores perceberam essa oportunidade.
Segundo os relatos das fontes, após o assassinato, os guarda-costas germânicos de Calígula entraram em um frenesi de violência e começaram a massacrar quem encontravam pela frente. Cláudio fugiu para o Palácio (ou para a sua casa, a narrativa variam em função da fonte).
Enquanto isso, os guardas pretorianos, também fora de controle, invadiram os aposentos imperiais para saqueá-los. Foi durante essa invasão que um dos guardas, que se chamava Gratus, notou alguém escondido atrás de uma cortina. Ao puxá-la, ele encontrou Cláudio e arrancou-o do seu esconderijo, ocasião em que perceberam que aquele homem assustado era ninguém menos do que o tio do imperador falecido. Ato contínuo, os soldados aclamaram Cláudio, “Princeps“, e o levaram até o quartel da Guarda Pretoriana.
Grato proclama Cláudio imperador. Tela de Sir Lawrence Alma-Tadema, 1871
Dião Cássio e Flávio Josefo narram que Cláudio, sincera ou fingidamente, tentou recusar a púrpura imperial, mas acabou cedendo à pressão dos guardas para que ele assumisse o trono. Eles também mencionam que chegou a haver alguns senadores, especialmente Sentius Saturninus (que fez no Senado um discurso neste sentido), e, até mesmo, alguns pretorianos, que cogitaram de acabar com o Principado e restaurar a República Romana, tal como ela era nos tempos anteriores aos Césares.
E de fato, consta que o Senado, cogitando enfrentar os partidários de Cláudio, chegou a mobilizar na oportunidade os parcos recursos armados que a cidade de Roma dispunha. Porém, este contingente, composto apenas por alguns soldados, vigiles (espécie de bombeiros), gladiadores e até escravos libertos dos senadores, logo debandou para o lado dos Pretorianos que apoiavam Cláudio.
Esse estado de indefinição entre a aclamação de Cláudio e a restauração da democracia, segundo Suetônio, durou dois dias, ao final dos quais o historiador narra que teria ocorrido a crucial intervenção de uma massa de populares gritando pela elevação de Cláudio, que também teria prometido quinze mil sestércios como donativo aos soldados que o aclamaram imperador.
Realmente, não há como ter certeza se Cláudio foi um mero espectador da conspiração que assassinou Calígula, ou se ele sabia e concordou com o plano. Não obstante, os guardas liderados por Lupus, seguindo ordens de Queréa, após liquidarem Calígula, e, aparentemente, não de imediato, dirigiram-se até o Palácio e executaram a imperatriz Cesônia e a filha de Calígula, de apenas dois anos de idade, que teve a cabeça esmagada contra uma parede. Eu acredito que dificilmente os militares ousariam cometer tal atrocidade sem que eles tenham tido a aprovação de alguém poderoso, quem sabe algum senador disposto a restaurar a República, ou, o que é mais provável, de algum pretendente ao trono…
Assim, aos cinquenta anos de idade, Cláudio foi oficialmente aclamado pelo Senado, com o nome deTiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus e ele em seguida perdoou oficialmente todos os senadores e pretorianos que tinham conspirado para assassinar o seu antecessor, bem como aqueles que haviam se manifestado pelo fim do Principado (considera-se que o seu reinado começou no dia da morte de Calígula, 24 de janeiro de 41 D.C., quando ele foi aclamado imperador pelos soldados que o encontraram no esconderijo).
Sintomaticamente, contudo, Queréa e Lupus foram imediatamente executados…
Nota: Cláudio, ao incorporar o nome “Caesar“, apesar de ele não ter sido adotado como herdeiro por Calígula (havia uma linha de adoção formal ligando respectivamente cada um dos imperadores romanos a Júlio César, desde Augusto até Calígula), iniciou a transformação do nome do antigo Ditador em um título imperial.
Poucas semanas depois da aclamação de Cláudio, Messalina deu à luz ao seu primeiro herdeiro, que se chamou Tibério Cláudio Germânico.
A imperatriz (Messalina, com o filho Britânico em seu colo)
O nascimento do filho foi muito comemorado por Cláudio, que com orgulho passou a levar o bebê para exibi-lo em cerimônias e espetáculos públicos. Moedas foram cunhadas para comemorar o nascimento, com a inscrição “esperança augusta” (spes augusta – vide foto abaixo).
No ano seguinte, 42 D.C., ocorreu a única revolta séria contra o governo de Cláudio: uma rebelião liderada pelos senadores Lucius Arruntius Camillus Scribonianus, Governador da Dalmácia, e Lucius Annius Vinicianus, um participante do complô que assassinou Calígula, sendo que ambos chegaram a ser cogitados para suceder o finado imperador, durante o impasse que antecedeu a aclamação de Cláudio. Consta que ambos os líderes rebeldes informaram aos senadores em Roma que o motivo da revolta era devolver o poder ao Senado, mas depois de cinco dias, as tropas deles se recusaram a segui-los e eles acabaram cometendo suicídio.
Dião Cássio narra que Cláudio ficou tão assustado quando soube dessa rebelião que ele cogitou abdicar em favor de Camillus, mas acabou afinal recobrando a coragem e se preparou para enfrentar os rebeldes, o que, como visto, acabou não sendo necessário.
Aparentemente tentando trazer o Senado para o seu lado, Cláudio tentou, ao menos no início do reinado, prestigiar esta assembleia. Ele devolveu ao controle dos senadores as provínicias da Macedônia e da Acaia, que tinham sido retiradas da relação de províncias administradas pelo Senado pelo imperador Tibério.
(Nota: Augusto dividiu as províncias romanas em imperiais, cujo governador era apontado pelo imperador entre os integrantes da classe equestre, e senatoriais, cujo governador era apontado pelo Senado dentre os pares).
Outra exemplo disso, foi a postura que Cláudio adotou de se sentar entre os senadores, aguardando a sua vez de falar nos debates. De certa forma, era uma retomada da acepção inicial do termo Princeps (Príncipe), que, originalmente era o senador mais velho que tinha a prerrogativa de falar primeiro, e fora adotada por Augusto para manter as aparências de que a República permanecia).
Não obstante, a forma comoCláudioascendeu ao trono, elevado pelos soldados da Guarda Pretoriana, expôs escancaradamente o que já se percebia desde o início da crise que levou às guerras civis dos Triunviratos, cem anos antes: que a real fonte de poder residia nas forças militares, cabendo ao Senado apenas legitimar o nome que fosse escolhido pelas tropas.
Por isso, Cláudio, logo no início do reinado, saiu a procura de glórias militares que reforçassem a sua posição de líder militar, aumentando o seu prestígio junto às legiões, as quais, caso lideradas por algum general de renome, poderiam muito bem abraçar a sua “candidatura” e facilmente derrotar os Pretorianos.
E, de fato, no plano militar, o reinado de Cláudio começou bem: O general Gabinius Secundus, comandante das legiões da Germânia Inferior moveu uma guerra bem sucedida contra a tribo germânica dos Chauci, hostil aos romanos desde os tempos em que aqueles bárbaros lutaram ao lado do líder germânico Arminius, na emboscada que resultou no Desastre de Varo, na Batalha de Teutoburgo, em 9 D.C., com a destruição de três legiões romanas e a captura dos seus estandartes-águia (aquila), símbolos que eram religiosamente cultuados pelos romanos e cuja perda em batalha era considerada uma grande humilhação.
Gabiniusconseguiu derrotar os Chauci e recuperar a terceira águia das legiões de Varo, que estava em poder deles (As duas outras haviam sido recuperadas por Germânico, irmão de Cláudio, em 16 D.C.). Certamente, este deve ter sido um momento de exultação para Cláudio, não apenas por ter recebido o título de Imperator pela vitória de seu general, mas por ter, de certa forma, igualado o feito de seu falecido irmão, que fora tão admirado pelos romanos.
(moeda mostrando um estandarte-águia no templo de Marte Vingador, talvez uma das perdidas por Crasso em Carras contra os Partas, recuperada por Augusto)
Escolheu-se, em seguida, a Britânia como o alvo de uma grande expedição. Esta ilha já havia, quase cem anos antes, sofrido a invasão de Júlio César, que, com apenas o objetivo de fazer propaganda pessoal, ficou ali alguns dias em campanha e retornou para o continente. Vale observar que aquele território era, notadamente, um objetivo militar muito mais fácil que a Germânia ou a Pártia, adversários muito mais poderosos e aguerridos que, de vez em quando, infligiam pesadas derrotas aos exércitos romanos.
Assim, no verão de 43 D.C., quatro legiões desembarcaram na Britânia, comandadas pelo general Aulus Plautius, e avançaram pela maior parte da ilha. O pretexto da invasão, como em muitas outras guerras travadas pelos Romanos, foi o pedido de auxílio de um rei cliente de Roma, da tribo bretã dos Atrebates, de nome Verica, que havia sido expulso por adversários. O próprio Cláudio participou da campanha, ficando na Britânia por cerca de duas semanas, promovendo, no final, uma grande parada em Camulodunum (atual Colchester, na Inglaterra), onde começou a ser construído um grande templo dedicado ao seu “gênio”.
A Britânia foi anexada e permaneceria uma província romana até o início do século V. A vitória rendeu a Cláudio o título de Britannicus, que foi estendido a seu filho, que passou a se chamar Tiberius Claudius Caesar Britannicus. O menino passaria, então, a ser conhecido como “Britânico“.
(Cabeça de bronze de uma estátua de Cláudio encontrada no rio Alde, na Inglaterra)
Talvez , pelo motivo de Cláudio perceber que tinha poucos aliados no Senado, ou, ainda, porque ele nunca tinha exercido algum cargo público, exceto o breve consulado extraordinário, ou também devido ao fato da sua pessoa ter sido imposta ao Senado pelos Pretorianos, ou, finalmente, talvez porque ele possa ter assim concluído dos seus estudos aprofundados sobre o governo de Júlio César, o período das guerras civis e sobre o reinado de Augusto, o principado de Cláudio notabilizou-se pela implantação de um corpo de funcionários do Palácio encarregado da administração de funções governamentais que, anteriormente, eram exercidas pelos magistrados tradicionais da República, cargos ocupados primordialmente por senadores, magistraturas essas que foram em grande parte mantidas pelos seus antecessores no trono com suas funções executivas.
Já os funcionários palacianos eram diretamente indicados pelo imperador, sem mediação do Senado, e, quase sempre, ainda que extremamente preparados, eles eram escravos libertos que pertenciam ao próprio Imperador.
No reinado de Cláudio, esse secretariado foi dividido em escritórios que funcionavam como verdadeiros ministérios. Assim, o liberto Narcissus foi escolhido como Secretário da Correspondência Imperial (cargo importante, pois controlava toda a comunicação oficial do imperador, seja como emitente ou destinatário, redigindo e enviando despachos, comunicados ou correspondências e recebendo petições, denúncias, notícias de fatos, etc. O liberto Pallas* foi nomeado Secretário do Tesouro Imperial (fiscus) e o liberto Callistus, um influente ex-escravo de Calígula que havia participado da conspiração para assassiná-lo, foi escolhido para ser Secretário de Justiça, responsável, inicialmente, pelos recursos das decisões dos tribunais que eram dirigidos ao imperador.
Podemos, então, considerar que, embora os seus antecessores já utilizassem os seus libertos como auxiliares, Cláudio foi o primeiro organizador sistemático da burocracia imperial, esboçando uma forma que perduraria por muitos séculos.
*NOTA: Como curiosidade, mas também como uma mostra do prestígio que os funcionários libertos gozaram a partir do governo de Cláudio, observamos que o irmão de Pallas, Marcus Antonius Felix, foi nomeado para ser o Procurador da Judeia, um cargo formalmente reservado aos integrantes da classe Equestre. Foi este Felix que procedeu ao julgamento do apóstolo Paulo, em Cesareia, sendo nominalmente citado em Atos, 24.
Não surpreende, assim, que Cláudio tenha sido visto com antipatia pelos Senadores, que, além de deixarem de ter voz em setores importantes da administração pública, ainda tinham que tratar em pé de igualdade com ex-escravos, o que afetava o sabidamente delicado senso de dignidade da classe senatorial… E essa antipatia da classe senatorial de Roma por Cláudio transborda abundante nas narrativas do seu governo, feitas por historiadores oriundos do Senado, tais como Tácito e Dião Cássio, ou então equestres ligados aos senadores, como Suetônio. Além disso, como resultado do grande poder que eles agora detinham, todos esses secretários libertos tornaram-se imensamente ricos, rivalizando em fortuna com os próprios senadores…
Claramente, a tentativa de aproximação que ele tentou no início do governo falhou e, diante desse quadro, Cláudio acabaria exilando ou mandando executar vários senadores, embora não se possa dizer que todos as citados tenham de fato conspirado para derrubá-lo – e alguns dos supostos conspiradores talvez nem tenham sido de fato executados por ordens dele. Não obstante, consta que, durante o seu reinado, Cláudio mandou executar 35 senadores e centenas de membros da classe Equestre.
Por exemplo, em 46 D.C., o senador Lucius Asinius Gallus foi acusado de conspirar contra Cláudio e foi exilado, sendo que o imperador chegou até a ser elogiado pela moderação quanto à pena aplicada. Em 47 D.C., o senador de antiga origem gaulesa, Decimus Valerius Asiaticus, por sua vez, foi alvo de acusações vagas de traição (e também de cometer adultério com uma aristocrata) e ele foi julgado, nos aposentos do Palácio (in camera), em julgamento fechado, pelo imperador e seu conselho privado, e não perante um tribunal público, um procedimento que se tornou costumeiro durante o principado de Cláudio. Segundo uma fonte, o verdadeiro motivo desta inquisição foi a cobiça que a imperatriz Messalina nutria pelos belos Jardins de Lúculo, em Roma, que pertenciam a Asiaticus, que acabou compelido a se suicidar. Outra fonte alude ao fato de Asiaticus possivelmente ter participado da conspiração contra Calígula e ter insinuado a pretensão de suceder o falecido imperador. De qualquer forma, existiu algum pretexto sério, verdadeiro ou fictício, para Cláudio não gostar de Asiaticus, já que o imperador, no ano seguinte, fez questão de se referir a ele como “um gaulês bandido e patife cujo nome eu não devo sequer mencionar neste discurso“, em uma sessão do Senado cujos debates foram preservados na Tábua de Lyon, à qual mais tarde aludiremos.
Outro senador executado foi Gnaeus Pompeius Magnus, um descendente do Triúnviro Pompeu, o Grande, e que era casado com Claudia Antonia, a filha mais velha do próprio Cláudio, que teria participado de uma conspiração contra o imperador.
Muitas dessas perseguições são atribuídas às maquinações da imperatriz Messalina, acerca de quem há relatos de que ela se aproveitava de uma certa credulidade e ingenuidade que Cláudio repetidamente demonstrou ter em relação a todas as mulheres que ele teve em sua vida.
Aliás, a se acreditar nos relatos dos historiadores antigos, Messalina seria uma verdadeira ninfomaníaca, que não apenas teria tido inúmeros amantes enquanto esteve casada com Cláudio, mas, entre outras coisas, teria chegado até a participar de uma competição contra uma prostituta, em que aquela que tivesse mais parceiros sexuais na mesma noite ganharia (sendo que Messalina teria ganho a aposta, com um total de 25 parceiros, um caso citado por Plínio, o Velho, em sua “História Natural”)…Ela teria, ainda, segundo o poeta Juvenal, trabalhado, enquanto imperatriz, em um bordel, sob o pseudônimo de “Loba”.
Os historiadores antigos afirmam que Cláudio desconhecia as infidelidades de Messalina, seja por ele se dedicar às questões administrativas e jurídicas do Império, seja por confiar demais na esposa, muito embora as fofocas sobre o assunto circulassem pela cidade de Roma, até o dia em que seu liberto Narcissus lhe contou que Messalina, enquanto Cláudio estava em Óstia, organizou uma festa no Palácio, e, durante a mesma, ela teria se casado, em uma cerimônia, real ou encenada, com seu amante Gaius Silius, um belo jovem que tinha sido designado para ser Cônsul em 48 D.C.. Poderia até ser uma brincadeira infeliz, mas, para piorar, a versão que chegou a Cláudio é a de que o casamento fazia parte de um plano de Messalina e Silius para assassiná-lo.
Messalina acabou sendo executada em 48 D.C., apesar de constar que Cláudio, cujo coração já estava amolecendo em favor da esposa, não se resolvia a dar a ordem expressa, tendo a decisão fatal sido ordenada por Narcissus, à revelia do imperador.
Em 47 D.C., Cláudio assumiu o cargo de Censor, que tinha sido relegado a uma certa insignificância, junto com Lucius Vitellius, um dos poucos amigos de sua infância, pois conviveram juntos na casa de sua mãe, Antônia, a Jovem, a volta de quem havia um círculo de nobres orientais, devido ao fato dela ter herdado do seu pai, MarcoAntônio, as conexões políticas e numerosas propriedades no Oriente. Outra amizade desses tempos de juventude era o príncipe judeu conhecido como Herodes Agripa, que ajudou Cláudio durante o impasse da sucessão de Calígula.
NOTA: Vitellius havia sido Cônsul e governador da Síria durante o final do reinado de Tibério. Foi ele, inclusive quem demitiu Pôncio Pilatos do cargo de Prefeito da Judeia. Durante o reinado de Cláudio, ele seria Cônsul outras duas vezes, um fato incomum para quem não fosse da família imperial, durante o Império Romano). Ele era pai do futuro imperador Vitélio.
Talvez como um agrado a Herodes Agripa, Cláudio deu ao amigo o título de Rei da Judeia, restaurado como reino-cliente de Roma, dando-lhe o governo do respectivo território, que tinha sido incorporado ao Império Romano (Herodes já governava a Galileia). Cláudio também reconheceu o direito de liberdade de culto dos Judeus no Império Romano. Um exemplo dessa política está registrado na “Carta aos Alexandrinos”, onde Cláudio ordena aos habitantes gregos de Alexandria que respeitem os direitos da grande colônia judaica que existia na cidade, fonte frequente de diversos conflitos étnicos e religiosos.
Porém, quando Herodes Agripa morreu, em 44 D.C., todo o seu reino foi reincorporado ao Império Romano. Nessa mesmo período, outros reinos-clientes de Roma foram anexados formalmente, tais como a Trácia, Noricum, Panfília e a Lícia, que se tornaram províncias. A Mauritânia, cujo processo de anexação fora iniciado por Calígula, teve a anexação concluída sob Cláudio, em 44 D.C., cujas tropas derrotaram os últimos focos de resistência armada. Essas medidas estão de acordo com a tônica geral de seu reinado em direção à centralização de poder e expansão da burocracia imperial.
Seguindo a linha geral de seu governo, Cláudio utilizou o cargo de Censor para intervir na composição das classes senatorial e equestre, pois o Censor tinha o poder de verificar os requisitos para a inscrição dos cidadãos nas respectivas listas. Assim, Cláudio mandou excluir o nome de vários senadores e equestres cuja renda não mais atendia o requisito mínimo estipulado pela lei para integrar a classe.
Constatando que havia muitos assentos vagos no Senado, devido a décadas de execuções e proscrições pelos imperadores que o antecederam, além da diminuição do número de famílias da classe senatorial, Cláudio, seguindo o exemplo de Júlio César, antepassado que ele muito admirava, e aproveitando o cargo de Censor, mandou arrolar novas famílias nas listas de patrícios e abriu o Senado para nobres e pessoas ilustres nascidas nas províncias, especialmente da Gália, fato que ficou registrado na chamada Tábua de Lyon, que contém a interessante transcrição do discurso do imperador na sessão do Senado Romano, ocorrida em 48 D.C., na qual Cláudio propõe a admissão ao Senado de homens ilustres de origem gaulesa, habitantes da Gália Lugdunense (centrada em Lugdunum, atual Lyon, cidade natal do próprio Cláudio).
A Tábua de Lyon, em bronze, que foi encontrada em um vinhedo nos arredores de Lyon, provavelmente foi feita a mando desses mesmos senadores gauleses agradecidos, beneficiados pela aprovação da proposta de Cláudio. Além de confirmar o relato desse fato histórico, citado por Tácito, a Tábua de Lyon contém, tudo indica, a transcrição literal do discurso do imperador no Senado, inclusive transcrevendo as interrupções questionadoras de alguns senadores contrários à medida. E o discurso de Cláudio, cheio de digressões históricas e certo pedantismo, combina perfeitamente com a descrição de sua personalidade feita pelos historiadores antigos.
Tanto isso é verdade, que a sessão preservada na Tábua de Lyon, com notável fidelidade, transcreve até o apelo de um senador para que Cláudio fosse direto ao ponto! (vide: https://sourcebooks.fordham.edu/ancient/48claudius.asp)
( A Tábua de Lyon)
Neste mesmo ano de 48 D.C., realizou-se por ordens de Cláudio um grande Censo da população de todo Império Romano, que contou o número de 5.984.072 cidadãos romanos, ou seja, homens livres que gozavam do direito de cidadania romana, excluindo, portanto, mulheres, crianças, escravos e habitantes que não tinham cidadania. Isso aponta para uma população que se estima estivesse entre 50 e 70 milhões de habitantes.
Após a execução de Messalina, os seus libertos, visando cada um a aumentar a sua influência sobre o imperador, se revezaram em apresentar candidatas a se tornarem a nova imperatriz, sendo que Lollia Paulina, que havia sido esposa de Calígula, e a ex-esposa de Cláudio, Aelia Petina, chegaram a ser cogitadas.
A pretendente cuja “candidatura” era defendida pelo secretário Pallas acabou sendo a escolhida: Agripina, A Jovem, que, sendo filha de Germânico, era nada menos do que a sobrinha do próprio Cláudio. Além disso, Agripina também era irmã do antecessor dele, Calígula.
Segundo as leis romanas, essa união era considerada incesto, mas, em tempos de Principado, obviamente que mudar a lei não foi difícil…
Há relatos de que Agripina teria seduzido o tio Cláudio, mas, provavelmente, o que pesou mesmo na sua escolha foram considerações políticas: Cláudio já estava com 58 anos de idade, sendo que seu, Britânico, tinha apenas sete. Caso Cláudio, que nunca havia sido uma pessoa muito saudável, morresse, ou ficasse incapacitado, era grande o perigo de que a dinastia dos Júlio-Cláudios terminasse, pois Britânico ainda estava longe de despir a toga pretexta e tornar-se maior de idade, quando poderia assumir cargos públicos.
O Principado ainda estava nas primeiras décadas e, ainda que apenas no aspecto formal, o imperador era considerado o primeiro-magistrado. A transição legal e cultural para uma monarquia ainda não havia sido feita, e a sucessão de Calígula mostrara que ainda havia anseios republicanos no Senado…
Assim, Cláudio precisava de um arranjo que lhe permitisse garantir, na sua falta, a continuidade da dinastia no governo, esperançosamente, até que seu filho estivesse apto a governar. Esta era, inclusive, uma situação pela qual Augusto já tinha passado (Com efeito, já idoso, e após o falecimento de vários herdeiros de sangue, sobrinhos e netos, tais como Marcelo, Lúcio e Caio César, ele havia sido obrigado a adotar Tibério, filho de sua esposa Lívia).
Em 1º de janeiro de 49 D.C., Cláudio e Agripina se casaram. No ano seguinte, em 25 de fevereiro de 50 D.C., Cláudio a adotou o filho dela, Lucius Domitius Ahenobarbus, que passou a se chamar “Nero Claudius Caesar Drusus Germanicus” (Nero).
(Busto de Agripina, a Jovem)
Ainda em 50 D.C.., Agripina conseguiu que Cláudio persuadisse o Senado a dar-lhe o título de Augusta, honraria que somente Lívia Drusila, a esposa de augusto, havia recebido em vida, e, mesmo assim, somente após a morte do marido.
Todos logo perceberam o tamanho da influência de Agripina sobre Cláudio e, pouco a pouco, o nome dela começou a aparecer em inscrições em monumentos, moedas e documentos. Consta que ela recebia embaixadores estrangeiros sentada em seu próprio tribunal e vestia um manto militar com bordados de ouro em cerimônias oficiais. O prestígio dela era tanto que o povoado em que ela nasceu, na Germânia, às margens do rio Reno, onde seu pai estava aquartelado, recebeu, em 50 D.C., o nome de Colonia Claudia Ara Agrippinensium, que é a atual cidade de Colônia, na Alemanha.
(Reconstrução da Colonia Claudia Ara Agrippinensium – atual Colônia, no século I D.C.)
Em 51 D.C., Nero vestiu a toga virilis, alguns meses antes da idade costumeira, pouco antes de completar 14 anos. No mesmo ano ele recebeu o título de Princeps Iuventutis, um título que surgira no reinado de Augusto para honrar os jovens considerados como potenciais herdeiros do trono.
Para a surpresa geral, parecia que Nero estava tomando a preferência de Cláudio para ser o seu sucessor. E Agripina começou a eliminar todos que representassem uma ameaça à trajetória de seu filho rumo ao trono. Em 51 D.C, ela ordenou a execução de Sosibius, o tutor de Britânico, que andava reclamando da preferência que vinha sendo dada ao filho de Agripina.
Em 9 de junho de 53 D.C, certamente com a intermediação de Agripina, Cláudio concordou com o casamento entre Nero e sua filha, Claudia Octavia.
Britânico agora já tinha doze anos e o motivo de Cláudio continuar tomando medidas que favoreciam a posição de seu enteado Nero como herdeiro preferido, em detrimento do próprio filho natural, continua sendo algo que intriga os historiadores.
Porém, a maioria das fontes narra que, nos meses que se seguiram, Cláudio, um tanto descuidadamente, começou a fazer comentários, aqui e ali, lamentando o fato dele ter casado com Agripina e adotado Nero.
Em meados de 54 D.C., faltava menos de um ano para Britânico atingir a idade em que poderia vestir a toga virilis e ser considerado adulto. Suetônio cita que Cláudio mencionou publicamente em algum evento a intenção de antecipar a cerimônia, devido à altura de Britânico, chegando a dizer, na ocasião:
“Para que o Povo de Roma finalmente possa ter um genuíno César“.
Era uma clara advertência de que ele não considerava mais Nero como sucessor. Agora, o ano de 54 D.C. entrava em seus últimos meses e, pela primeira vez, em um discurso no Senado, Cláudio se referiu a Nero e Britânico como iguais em precedência.
Em 13 de outubro de 54 D.C., pela manhã, foi anunciado que Cláudio morreu, após um banquete. Nas fontes antigas há um quase consenso de que ele foi envenenado a mando de Agripina, ou até mesmo por ela pessoalmente. Agripina, teria se aproveitado do fato do onipresente Narcissus, partidário de Britânico, estar descansando em sua villa na Campânia, e contratou a célebre envenenadora Locusta, para preparar o veneno, o qual teria sido administrado em um prato de cogumelos, iguaria muito apreciada por Cláudio. Os detalhes variam. Segundo uma versão, Cláudio ao comer os cogumelos, acabou vomitando, e uma segunda dose lhe foi administrada, agonizando durante um tempo, e, após ele ter morrido, o seu falecimento ainda foi escondido por um curto período de tempo, durante o qual todos preparativos necessários foram feitos para assegurar a sucessão em favor de Nero, inclusive a destruição do último testamento de Cláudio, no qual ele teria reconhecido Britânico como sucessor.
A aclamação de Nero foi tranquila: O Senado sabidamente odiava Cláudio e, ainda em 51 D.C., Agripina havia indicado o nome de Sextus Afranius Burrus (Burro) para ser o novo Prefeito da Guarda Pretoriana, e com cuja lealdade ela pôde contar na hora da sucessão.
(Relevo de Agripina coroando seu filho Nero. A cena não deixa margem a dúvidas…)
Nero fez a eulogia (oração fúnebre) em honra de Cláudio, que depois foi “deificado” pelo Senado, isto é, após a sua morte, decretou-se que ele tinha sido elevado ao panteão dos deuses a serem cultuados pelos romanos (apotheosis).
(Camafeu do século I, retratando a apoteose de Cláudio. Uma águia o leva até os céus)
A deificação, ou apoteose, de Cláudio, embora oficial, foi objeto de sátiras e pilhérias pelos integrantes da classe senatorial. Um deles, o filósofo e escritor Sêneca, o Jovem, escreveu uma célebre sátira chamada de “Apocolocyntosis” (literalmente, “aboborificação”, processo no qual Cláudio, na narrativa, tranformaria-se em uma abóbora após a morte), ridicularizando a apoteose do imperador. Na obra, a deificação dele é julgada em um tribunal do deuses no Monte Olimpo, e o próprio imperador falecido Augusto discursa aos deuses enumerando os defeitos físicos, as idiossincrasias, gafes, assassinatos de Cláudio, cuja sentença é ser enviado a penar nas profundezas do Hades, condenado pela eternidade a trabalhar como funcionário de um tribunal, e, ironicamente, sendo dado como escravo a um liberto…
O destino no Hades ao qual Cláudio foi condenado na Apocolocyntosis é claramente uma crítica mordaz a uma das atividades a que o imperador mais se dedicou durante o reinado: os processos judiciários (Ele, de fato, costumava comparecer quase que diariamente ao tribunal, julgando processos). Além disso, é uma crítica à preferência que ele deu aos libertos durante o seu governo.
Embora Cláudio fosse diligente e dedicado no exame da maior parte dos casos judiciais que lhe eram submetidos, ele, às vezes, costumava desprezar os princípios processuais estabelecidos no Direito Romano, proferindo sentenças sem ouvir a parte contrária, violando o princípio do contraditório, ou, como já apontamos, realizando sessões fechadas no palácio, o que era contrário ao princípio da publicidade dos julgamentos, muito caro aos Romanos.
Por exemplo, as fontes citam que Cláudio, certa vez, agiu como um verdadeiro rei Salomão, da Bíblia judaica, julgando um processo no qual uma mãe se negava a reconhecer o filho, decretando que ela se casasse com o rapaz, para forçá-la a confessar a maternidade.
E a estupefação dos litigantes com essas bizarrices de Cláudio era tanta, que Suetônio narra, observando que o fato era de conhecimento geral, um caso em que um réu, falsamente acusado de conduta imprópria contra uma mulher, ao ver que Cláudio decidira, contrariamente à praxe processual romana, ouvir algumas prostitutas como testemunhas, exasperou-se e atirou a tábua e o estilete de escrita em cima do imperador, conseguindo até ferir a bochecha de Cláudio!
Outra faceta de Cláudio era o amor que ele tinha pelos espetáculos públicos, especialmente os combates de gladiadores e contra feras. Durante seu reinado ele promovou várias exibições, culminando com um combate naval simulado, no qual Suetônio registrou que os combatentes saudaram Cláudio com a frase: “Ave, Imperador, Aqueles que irão morrer te saúdam“. É a única vez que a História registra essa frase, que não sabemos se ela era padrão nos jogos de gladiadores ou se somente foi utilizada naquela ocasião (Cássio Dião também a menciona no mesmo episódio, mas a narrativa deve ter sido obtida na obra de Suetônio). A nota satírica, frequentemente presente nas estórias sobre Cláudio, marcando um tom depreciativo sobre a sua suposta estupidez, é que, àquela saudação, o imperador teria respondido: “Ou não…!“, ao que os combatentes entenderam, induzidos a erro, que eles tinham sido perdoados e assim se recusaram, inicialmente, a lutar, para desespero do próprio Cláudio, preocupado com a reação dos espectadores frustrados.
O amor pelos jogos de gladiadores e combates na arena parece combinar com uma outra faceta sombria da personalidade de Cláudio: a curiosidade excessiva, ou mesmo o prazer mórbido, que ele tinha de assistir pessoalmente as execuções de condenados, à tortura de testemunhas ou à morte dos gladiadores.
A política religiosa de Cláudio caracterizou-se pela tentativa de revitalizar as tradições e reviver aspectos antigos dos cultos romanos, como era de se esperar de um amante da história antiga e dos etruscos. Um episódio interessante que ocorreu em seu governo foi a expulsão dos judeus, narrada por Suetônio, que teria sido motivada por tumultos causados “por instigação de Chrestus“.
Muitos especialistas acreditam que essa passagem reflete a chegada dos primeiros pregadores cristãos a Roma, que entraram em conflito com a numerosa comunidade judaica lá instalada, ao pregarem o Evangelho. Obviamente que os romanos ainda não deviam distinguir os cristãos dos judeus ( e note-se que essa divisão ainda não estava pacífica entre os próprios cristãos), e a expulsão não parece ter tido motivos religiosos, mas de manutenção da ordem pública. Não deve, contudo, ter sido uma expulsão em massa. Acredita-se que o episódio narrado por Suetônio é o mesmo que aparece em Atos, 18, 2., quando São Paulo encontra em Corinto um judeu chamado Aquila, que tinha sido expulso de Roma por Cláudio. Estima-se que essa expulsão narrada por Suetônio e em Atos tenha ocorrido por volta de 50 D.C.
Um campo onde Cláudio se destacou como imperador foi no das obras publicas, construindo várias de grande utilidade, como por exemplo dois importantes aquedutos: o Aqua Claudia, cuja construção havia sido iniciada por Caligula, e o Anio Novus, completados em 52 D.C.. Cláudio financiou a construção de ambos com recursos oriundos do tesouro privado do imperador (fiscus).
(A Porta Maggiore, era uma porta monumental no trajeto da junção dos aquedutos da Aqua Claudia e da Aqua Novis, construída por Cláudio)
Fora de Roma, no reinado de Cláudio foram construídos um canal ligando o Reno ao mar, um canal ligando o rio Tibre a Portus, o porto marítimo que ele mandou construir ao norte de Óstia. Além de possibilitar o aumento do volume de transporte de grãos e outras mercadorias para Roma, essa obra útil reduziu as enchentes do rio Tibre.
Ao menos como construtor de grandes obras de utilidade pública, o sempre crítico Suetônio fez justiça a Cláudio, reconhecendo:
“Suas obras públicas foram mais grandiosas e necessárias do que numerosas”.
Conclusão
Assim, o imperador Cláudio é uma figura ambígua para a História de Roma. Se formos considerar apenas a opinião dos Senadores, classe de onde saíram aqueles que registraram o seu reinado na História, ele teria sido um idiota que lhes foi imposto pela guarda pretoriana, e, durante o seu reinado, mostrou-se um governante tirânico, porém medroso e manipulável pelas suas esposas e seus libertos. Porém, mesmos nesses textos críticos, transparece que Cláudio era um monarca dedicado ao ofício de governar e que ele tomou uma série de medidas úteis e sensatas.
A figura de Cláudio é muito bem retratada no best-seller “Eu, Claudius, Imperador“, do escritor inglês Robert Graves, que foi escrito como se fosse a autobiografia perdida do imperador.
Em 18 de abril de 359 D.C., nasceu, em Sirmium, capital da província romana da Panônia, a cerca de 55 km da atual Belgrado, Sérvia, Flavius Gratianus (Graciano), filho do general Flávio Valentiniano e da esposa dele, Marina Severa. Graciano recebeu este nome em homenagem ao avô, Graciano, o Velho, também natural da Panônia, que, depois de ganhar a vida como vendedor ou fabricante de cordas, entrou no Exército Romano, na unidade de elite dos “Protectores domesticus” e chegou ao posto de general e governador da África e da Britânia.
Quando Graciano tinha cinco anos, em 364 D.C., o pai dele foi aclamado imperador romano, tornando-se Valentiniano I, considerado o último grande Imperador Romano do Ocidente.
Já em 366 D.C., Graciano, ainda uma criança pequena, foi nomeado Cônsul. E, no ano seguinte, enquanto Valentiniano I encontrava-se em campanha contra os bárbaros Alamanos, na Gália e ficou seriamente doente, Graciano foi nomeado “Augusto”, tornando-se, portanto, formalmente, coimperador junto com o pai.
O motivo da nomeação de Graciano foi o fato de que, percebendo o estado de saúde grave de Valentiniano I, cortesãos começaram um movimento para nomear o ministro Rusticus Julianus como sucessor, enquanto que, no exército, os militares apoiavam o general Severus. Desse modo, ao nomear precocemente o filho como Augusto, Valentiniano I tentou garantir o trono para a sua descendência.
Porém, tanto os ministros da Corte como o Exército tinham lá seus motivos para apoiarem outros candidatos ao trono pois, mesmo sendo uma criança, Graciano não demonstrava nenhum pendor para os assuntos militares, preferindo se dedicar à Retórica e à Literatura. Consta, inclusive, segundo o historiador Amiano Marcelino, que Valentiniano chegou a ter que mencionar expressamente, em discursos às tropas, que Graciano, apesar de não ser muito afeto às artes militares, seria um governante justo e capaz, e que ele, com o tempo, iria se tornar um bom comandante .
Não obstante, a educação de Graciano ficou a cargo de Ausonius, um famoso poeta e professor de Retórica de origem galo-romana.
Por volta do ano de 370 D.C., Valentiniano I se divorciou da mãe de Graciano, Martina Severa e se casou com Justina. Há uma versão tardia, do historiador Sócrates de Constantinopla, de que Valentiniano na verdade passou a ter duas esposas, desejo que teria motivado inclusive a edição de uma lei autorizando a bigamia, embora isto seja altamente improvável e não se tenha preservado nenhuma legislação relativa a isso.
Na verdade, é provável que Sócrates estivesse fazendo alusão a algum decreto de Valentiniano autorizando o divórcio, expressamente proibido pela Igreja Católica, que já dominava a Corte Imperial. Como o casamento era, e até hoje continua sendo, indissolúvel para a Igreja, o casamento de um divorciado poderia muito bem ter sido equiparado à bigamia.
De qualquer forma, é interessante transcrever essa passagem um tanto picante, relativa à relação entre a mãe e a madrasta de Graciano, e, ainda, à suposta lei de Valentiniano I, por Sócrates de Constantinopla:
“Justina tendo, assim, perdido o pai, ainda continuava virgem. Tempos depois ela conheceu Severa, esposa do imperador Valentiniano, e conversava frequentemente com a imperatriz, até que a intimidade delas chegou a tal ponto que elas costumavam tomar banho juntas. Quando Severa viu Justina tomando banho ela ficou bastante impressionada com a beleza da virgem, e falou dela para o imperador, dizendo que a filha de Justus era uma criatura tão adorável e possuía tal simetria de formas que ela mesma, embora fosse uma mulher, estava completamente encantada com ela. O imperador, guardando aquela descrição pela esposa em sua própria mente, pensou consigo mesmo como ele poderia casar com Justina, sem repudiar Severa, já que ela tinha lhe gerado Graciano, a quem ele tinha nomeado Augusto pouco tempo antes. Ele por conseguinte editou uma lei, e a fez publicar por todas as cidades, pela qual seria permitido a qualquer homem ter duas esposas legítimas“.
Graciano foi nomeado Cônsul pela segunda vez em 371 D.C. e, novamente, em 374 D.C.
Também em 374 D.C., Graciano casou-se com Flavia Maxima Constantia, filha do imperador do imperador Constâncio II, falecido em 361 D.C.
Em 17 de novembro de 375 D.C., Valentiniano I morreu, provavelmente de um derrame, durante um ataque de fúria causado pelo comportamento insolente de emissários bárbaros contra os quais ele se encontrava em campanha.
Graciano se encontrava em Trier, na fronteira com a Germânia e esperava-se que a sucessão fosse tranquila. Porém, o general Merobaudes, o Comandante da Infantaria de origem franca, alegou que as tropas apoiavam a nomeação do irmão mais novo de Graciano, Flávio Valentiniano, de apenas quatro anos de idade, como imperador. Graciano, por sua vez, tinha dezesseis anos quando o seu pai morreu.
As fontes divergem sobre a reação de Graciano. Para Sócrates de Constantinopla, Graciano ficou furioso, já para Amiano Marcelino, uma fonte mais confiável, ele aceitou de bom grado a exigência das tropas. Seja como for, o fato é que Graciano teve que aceitar dividir o trono com o irmão mais novo, que foi coroado como Valentiniano IIe passou a reinar sobra as províncias da Gália, da Hispânia e da Britânia, enquanto Graciano governaria a Ilíria, a África e a Itália.
O principal problema enfrentado por Graciano foram os crescentes ataques dos Alamanos, que devem ter se sentido incentivados pela morte de Valentiniano I, reconhecidamente um imperador enérgico e um competente comandante militar.
Em maio de 378 D.C., o exército comandado pelo general Mallobaudes, outro franco à serviço de Roma, derrotou os Lentienses, bárbaros germânicos que constituíam um ramo meridional dos Alamanos, na Batalha de Argentovaria, próximo à atual cidade de Colmar, na Alsácia. Cerca de trinta mil bárbaros foram dizimados. Graciano, depois disso, sentiu-se encorajado a liderar a fase final da campanha contra os Lentienses e recebeu a rendição daqueles que tinham sobrevivido à derrota anterior. Essa seria a última vez que os romanos levariam uma campanha além da linha de fortificações do Reno/Danúbio (limes germanicus). Em razão disso, Graciano recebeu o título de Alemannicus Maximus.
Porém, cerca de três meses depois, o colega de Graciano no Oriente, o Imperador Romano do Oriente, seu tio Valente, seria morto na desastrosaBatalha de Adrianópolis, ocorrida em 9 de agosto de 378 D.C.
Os Godos tinham migrado para a fronteira do Império Romano no Danúbio, dentro de um quadro migratório mais amplo de povos germânicos, entre outros motivos, pela pressão dos Hunos, e, em 376 D.C., duzentos mil Godos foram autorizados a atravessar a fronteira, porém, logo em seguida eles se revoltaram na Trácia. Graciano, em resposta a um pedido de auxílio de seu colega Valente, chegou a enviar algumas unidades estacionadas na Panônia, sob o comando do dux Frigeridus e outras, da Gália, sob o comando do Comes Richomeres, mas o general Merobaudes, desobedecendo ao imperador, as reteve para a defesa da fronteira do Reno contra os Alamanos.
Sabedor da urgência que a rebelião dos Godos na Trácia representava, Graciano, que, antes de ter que lidar com os Alamanos, já estava marchando para a região, enviou emissários ao imperador Valente pedindo que aguardasse a sua chegada, quando então os exércitos do Ocidente e do Oriente, combinados, poderiam liquidar os bárbaros.
Porém, Valente, ciumento do prestígio que Graciano recém conquistara contra os Alamanos, resolveu atacar os Godos sozinho. Eles eram um adversário formidável, e, liderados pelo hábil chefeFritigern conseguiram derrotar Valente, que perdeu a vida na Batalha de Adrianópolis, perecendo junto com dois terços do seu exército, sendo as perdas romanas estimadas em 40 mil soldados.
Agora Graciano, após a morte do tio, aos dezenove anos, tornara-se, de direito, o único imperador das duas metades do Império Romano. Entretanto, segundo as fontes, percebendo que a situação depois de Adrianópolis era grave demais para que ele desse conta, Graciano não hesitou um momento em nomear um sucessor para Valente, escolhendo, em 19 de janeiro de 379 D.C., o general Teodósio, um militar de prestígio que fora afastado por Valentiniano I e se retirado da vida pública para suas propriedades na Espanha, e tinha sido convocado após Adrianópolis para assumir o comando do Exército oriental.
Provavelmente, assim como ocorrera com a nomeação de Valentiniano II, a designação de Teodósio deve ter sido uma imposição dos comandantes do Exército Romano a Graciano.
As duas derrotas fragorosas sofridas pelo exército oriental entre 361 e 378 D.C., na Pérsia e em Adrianópolis, e a incessante luta contra os bárbaros germânicos no Ocidente parece que drenaram a maior parte do efetivo militar recrutado entre os cidadãos romanos natos.
Com efeito, a reiterada presença de nomes de oficiais germânicos, mencionados nas fontes sobre os reinados de Juliano e Valentiniano, mostra que o emprego de contingentes de origem germânica já estava se generalizando antes do reinado de Graciano. O próprio Valentiniano já tinha sido obrigado a reduzir a altura mínima exigida para os soldados, como modo de aumentar a massa recrutável. Esse era um problema que, além das perdas sofridas em batalhas, tinha também causas sócio-econômicas, como o aumento do instituto do colonato entre os agricultores livres (que alguns consideram precursor da servidão medieval), cada vez mais concentrados nos latifúndios da aristocracia senatorial (que normalmente conseguia eximir do recrutamento os seus trabalhadores colonos), além de um declínio populacional que transparece em diversas leis promulgadas pelos imperadores.
Teodósio e Graciano tentaram aplicar com rigor as leis que tratavam da conscrição de recrutas entre os cidadãos romanos e até conseguiram alistar filhos de veteranos, mas claramente o número foi insuficiente. Valendo-se largamente de bárbaros germânicos recrutados mediante termos generosos, o que acabou comprometendo a disciplina do Exército, Teodósio, entre 379 e 382 D.C., conseguiu conter os Godos, ainda que sem obter nenhuma vitória decisiva, assinando com eles um tratado de paz em 3 de outubro de 382 D.C., no qual os Godos eram reconhecidos como “Federados” (Foederati), nominalmente sob a autoridade do Imperador e obrigados a fornecer tropas quando requisitados, todavia, sendo-lhes granjeado o direito de se estabelecer em território romano liderados por seu chefe, um fato inédito na História de Roma e que teria consequências funestas em um futuro próximo.
Enquanto isso, Graciano parecia justificar as dúvidas sobre a sua falta de pendor para os assuntos militares. Sob a influência de Ausônio, os retóricos e gramáticos de ascendência galo-romana passaram a dominar a Corte. Em 381 D.C., Graciano resolveu mudar a sua capital de Trier, onde ficara para supervisionar a defesa do Reno, para Milão, em uma demonstração tácita de que sua atenção agora voltava-se para outros assuntos e, de fato, Amiano Marcelino relata que o imperador, que era um tipo atlético, chegou a dedicar-se a provas de habilidade na arena, emulando o malsinado imperador Cômodo.
Em Milão, Graciano também ficou sob a influência do enérgico e carismático Bispo da cidade, Ambrósio (Santo Ambrósio) e tornou-se um fervoroso patrono da ortodoxia cristã na forma do Credo Niceno. Essa influência foi decisiva para que Graciano abandonasse a prudente política de tolerância imperial ao Paganismo e aos demais credos cristãos concorrentes adotada sobretudo por seu pai, Valentiniano I.
Tudo o que o Império Romano mais precisava naquele momento era unidade e estabilidade internas para enfrentar a terrível ameaça representada pelos bárbaros, externa e internamente (Godos). No entanto, as perseguições religiosas teriam como efeito a alienação de uma boa parte da aristocracia senatorial do Ocidente, degenerando na escolha de um usurpador pagão, guerra civil, ausência de cooperação entre as Cortes de Constantinopla e Milão, tumultos e massacres e até mesmo impossibilidade de composição com bárbaros germânicos que professavam o Arianismo, considerado uma heresia cristã, em alguma ocasiões cruciais.
Seguindo essa política de intolerância, Graciano, em 382 D.C, atendendo aos apelos de Santo Ambrósio, determinou a remoção do Altar da Vitória da Cúria do Senado no Fórum Romano, além de retirar os subsídios estatais para os cultos pagãos. Os senadores pagãos chegaram a protestar, lembrando que Graciano, na condição de Pontifex Maximus, era o chefe da tradicional religião pagã. Em resposta, Graciano renunciou ao título e devolveu os robes e insígnias cerimoniais ligados aos cultos pagãos.
Graciano também conseguiu irritar os comandantes e tropas do Exército Romano que tinham sobrevivido ao influxo de tropas bárbaras ao escolher como guarda-costas um contingente de bárbaros Alanos e, ainda, ao aparecer em público vestido como um guerreiro godo.
Assim, no início de 383 D.C., quando Graciano teve que se deslocar para a Gália para combater uma nova incursão dos Alamanos, o Governador militar da Britânia, o general Magnus Maximus (Máximo), um nativo da província da Espanha, aproveitou o sentimento de insatisfação das tropas para se autoproclamar imperador e invadir a Gália.
O imperador Graciano encontrava-se em Paris e, quando as tropas de Máximo aproximaram-se da cidade, após breves escaramuças, as tropas dele desertaram, deixando o imperador sozinho. Graciano, então, fugiu para Lugdunum (Lyon). Porém, o governador da cidade o entregou ao general Andragathius, um dos comandantes de Máximo.
Então, em 25 de agosto de 383 D.C., Graciano foi assassinado por ordens de Andragathius. Ele tinha 24 anos de idade.
CONCLUSÃO
Talvez, se Graciano fosse melhor dotado de astúcia e determinação, ele poderia ter sido um imperador melhor, mas ele teve o azar de ser coroado muito jovem. Em seu favor, reconhecemos que a maior parte das vicissitudes que o Império enfrentou durante o seu reinado não podem lhe ser atribuídas e, de fato, antecediam ao seu reinado, mas a intolerância religiosa e a preferência pelas tropas bárbaras (sendo que esse último problema praticamente lhe foi imposto pelas circunstâncias) dão um viés negativo ao mesmo.
Em 19 de agosto de 232 D.C., nasceu, na cidade de Sirmium (atual Sremska Mitrovica, na Vojvodina, Sérvia)que, então, ficava na província romana da Panônia Inferior), Marcus Aurelius Probus (Probo), filho de um certo Dalmatius, que seria um simples jardineiro, ou hortelão.
Há uma versão alternativa, segundo a História Augusta, de que o pai de Probo, se chamava Maximus, um comandante que, após deixar o exército, foi morar no Egito com a família. Porém, é quase certo que aqui a História Augusta faz confusão com Tenagino Probus, que foi governador da Numídia e do Egito durante os reinados dos imperadores Cláudio Gótico e Aureliano. Note-se que as inscrições encontradas mencionando Tenagino Probus tornam cronologicamente improvável (embora não impossível), que este tenha sido o pai de Marco Aurélio Probo (a quem, aliás, a História Augusta também atribui erroneamente alguns feitos de Tenagino Probus, que ocorreram nas referidas províncias).
De qualquer modo, sabe-se que a região da Ilíria, na segunda metade do século III D.C., era o esteio militar do Império Romano (efetivamente, dez imperadores romanos nasceram em Sirmium, quase todos eles militares de carreira). Assim, como tantos de seus compatriotas, Probo entrou no Exército Romano no início da década de 250 D.C.
(Elmo romano do início do século IV, do tipo “Berkasovo”, assim chamado porque foi achado na cidade do mesmo nome, próxima a Sirmium)
Durante os reinados dos imperadores da dinastia dos Severos, tudo indica que o excesso de privilégios e benesses dados aos soldados comprometeu a disciplina do Exército, justamente quando o ressurgimento do poder persa no Oriente, sob a dinastia dos Sassânidas, começava a colocar Roma no desafio estratégico de enfrentar conflitos em três fronts, já que as fronteiras ocidentais dos rios Reno e Danúbio começavam a ser pressionadas pelo deslocamento de povos germânicos.
Foi de fato um período de frequentes rebeliões e assassinatos de imperadores, muitos, diga-se de passagem, incompetentes para enfrentar aqueles desafios, seguindo-se, assim, repetidas derrotas para os Persas e Germânicos, no período de 238/260 D.C, sendo as mais dignas de nota as catastróficas derrotas na Batalha de Abritus, em 251 D.C., para os Godos, com a morte do imperador Trajano Décio no campo de batalha, onde ocorreu a provável perda de todo o tesouro imperial, e a humilhante captura do imperador Valeriano pelos Persas, em 260 D.C.
(Relevo do Imperador Sapor I capturando Valeriano, na necrópole persa de Naqsh-e Rustam, foto de Diego Delso)
Enquanto isso, a Gália, o norte da Itália, a Ilíria, a Trácia e a Grécia, entre outras províncias, eram devastadas por invasões bárbaras. Foi nesse contexto dramático que os soldados provenientes da Ilíria foram recrutados e progrediram no Exército Romano, como foram os casos de Cláudio Gótico, Aureliano e Probo, todos eles Ilírios nativos de Sirmium (Obs: há uma certa dúvida quanto a Cláudio Gótico, que pode também ter nascido em Naissus, na Dardânia, mas com certeza ele era Ilírio).
Todos os três imperadores supracitados serviram durante o reinado do imperador Galieno, o filho e sucessor de Valeriano (260-268 D.C.), sendo que Cláudio Gótico chegou a comandante dos Comitatenses, a cavalaria de elite que Galieno criou (hipparchos). Por sua vez, Probo, apesar de ser bem mais jovem que os outros dois, chegou a ser mencionado em cartas dos referidos imperadores como sendo responsável por várias façanhas militares, motivo pelo qual ele foi promovido a Tribuno, segundo a História Augusta, .
(Busto de Galieno)
Apesar dos esforços de Galieno, que venceu algumas batalhas contra os bárbaros, a caótica situação militar entre 251 e 260 D.C., acabou acarretando a secessão da província da Gália, que se autoproclamou “Império Gaulês”, e, posteriormente, a perda da província da Síria que passou a fazer parte do chamado “Império de Palmira”. Estas secessões foram, de fato, um acontecimento devastador, pois a Gália e a Síria eram, juntamente com o Egito, as duas províncias mais ricas do Império. Porém, ao contrário do que possa parecer, a separação destas duas províncias ocorreu muito mais em função da incapacidade de Roma defendê-las dos bárbaros e dos Persas, do que devido a algum sentimento nacionalista anti-romano.
A gravidade da situação, como não poderia deixar de ser, minou a reputação de Galieno, que acabou sendo assassinado, em 268 D.C., em mais uma conspiração perpetrada pela Guarda Pretoriana, mas que muito provavelmente teve a participação de Cláudio Gótico, que foi proclamado imperador, e de Aureliano, que foi nomeado Comandante da Cavalaria. Havia chegado, portanto, a vez dos soldados ilírios governarem o Império. Se a História Augusta está correta, com a chegada dos seus dois compatriotas ao poder, Probo foi nomeado comandante de uma legião.
CláudioGótico obteve importante vitórias contra os Alamanos e esmagou os Godos, porém, em 270 D.C., ele morreu vítima da Peste que grassava no Império, sendo sucedido por Aureliano, que, sucessivamente, conseguiu derrotar o Império Gaulês e Palmira e recuperar a Gália e a Síria, reunificando o Império Romano, motivo pelo qual recebeu do Senado o título de “Restaurador do Mundo” (Restitutor Orbis).
(Moeda romana. Aureliano “restitui” o mundo (orbis) à deusa Roma”)
Aureliano, apesar desses sucessos retumbantes, acabou sendo assassinado pelas próprias tropas em 275 D.C, segundo consta, pelo motivo dele ser muito severo com os soldados. Então, o Senado Romano, em um arranjo que talvez emulasse o que ocorreu com Nerva, quase dois séculos antes, escolheu, em 25 de setembro daquele ano, o velho senador Tácito, de 75 anos de idade, como novo imperador. Aliás, esta seria a última vez que o Senado elegeria um imperador romano por iniciativa própria.
Tácito (não confundir com o historiador homônimo), segundo consta, teria nomeado Probo, “governador do Oriente”. Em seguida, o referido imperador, apesar de sua já provecta idade, partiu para enfrentar, com sucesso, os mercenários hérulos que devastavam as províncias orientais, acompanhado de seu meio-irmão, Floriano. Todavia, enquanto retornava para lutar contra uma invasão dos Francos e Alamanos, Tácito contraiu uma febre e morreu, em junho de 276 D.C, (vale citar que, segundo uma versão menos aceita, do historiador Zózimo, a morte de Tácito teria sido por assassinato).
Quando a notícia da morte de Tácito circulou, as tropas de Probo o aclamaram imperador, o mesmo ocorrendo com Floriano, que foi reconhecido no Ocidente, mas não no Oriente, que somente apoiou Probo. Assim, os dois imperadores rumaram para decidir a sucessão em uma batalha, perto de Tarso, na atual Turquia. Floriano até tinha superioridade numérica, mas as suas tropas não estavam acostumadas ao calor que fazia na região. Probo, cautelosamente, evitou um engajamento e o relato é de que as tropas de Floriano, impacientes com o sol inclemente, assassinaram o seu imperador, em setembro de 276 D.C. O motivo mais provável, contudo, é que as tropas, certamente compostas por muitos Ilírios, devem ter preferido tomar partido de um compatriota oriundo, como eles, da caserna.
Com o seu trono agora inconteste, uma das primeiras medidas de Probo foi punir os assassinos de Aureliano e de Tácito que ainda estavam impunes.
Imediatamente após sua ascensão, Probo teve que se deslocar para o Ocidente para enfrentar uma invasão dos Godos na Ilíria, os quais ele derrotou, recebendo o titulo de Gothicus Maximus, em 277 D.C. Nessa altura, Probo já tinha sido reconhecido pelo Senado. Depois disso, Probo rumou para a Gália, onde, em 278 DC., ele obrigou os bárbaros Francos, Longiones e Alamanos a cruzarem de volta o Reno (feito pelo qual ganhou o título de Germanicus Maximus), capturando Semnon, chefe dos Longiones, e o filho deste, que foram poupados. Finalmente, Probo derrotou os Burgúndios, capturando um grande número deles, que foram incorporados ao exército romano.
Com a derrota dos bárbaros na fronteira renana, Probo adotou a estratégia de construir alguns fortes na margem oriental do rio, nos pontos em que o mesmo podia ser cruzado, além de depósitos de suprimentos.
Em seguida, Probo conseguiu pacificar a província da Récia e, após, ele voltou para a Ilíria, agora para reprimir uma invasão dos Vândalos, em 279 D.C. A persistência dessas invasões mostra que, provavelmente, nenhuma dessas vitórias foi conclusiva, ou, então, que tais incursões bárbaras não eram massivas. Não obstante, esses sucessos mostraram que o Império recuperara a capacidade de defender as fronteiras.
Com a estabilização da situação na Gália e no Danúbio, Probo adotou a benéfica política de utilizar o exército parar plantar vinhedos na Gália e na Panônia, o que era, sem dúvida uma medida inteligente, tendo em vista a devastação que essas províncias tinham sofrido nos últimos 20 anos, causando sua decadência econômica. Nas províncias mais despovoadas pelas seguidas invasões, Probo decidiu assentar algumas das tribos germânicas pacificadas, política que, entretanto, apresentava alguns riscos à segurança do império.
É interessante observar que, dentre os lugares nos quais Probo ordenou que fossem plantados os vinhedos, está a região do antigo Monte Alba, próximo à cidade natal de Probo, Sirmium, onde, segundo a História Augusta, o imperador plantou o primeiro vinhedo com as próprias mãos, sendo que esta região é conhecida atualmente como as montanhas Fruska-Gora, na região sérvia da Vojvodina, e ainda hoje constitui uma conceituada região vinícola!
(A região vinícola de Fuska-Gora, onde Probo ordenou o plantio de vinhedos)
Em 280 D.C., Probo enviou os seus generais para comandar uma campanha contra os Blemmyes, um reino tribal de populações da etnia Beja, que viviam na antiga Núbia, correspondendo à região onde hoje é o Sudão, e que vinham atacando a província romana do Egito.
Derrotados os Blemmyes, Probo, seguindo a política de recuperação econômica que adotara no Ocidente, determinou ao Exército a reconstrução de diques, de canais de irrigação e de pontes ao longo do Nilo, medidas que eram relevantes para estimular a produção agrícola de uma província que era a grande fonte de cereais para a Itália.
Lamentavelmente, a praga das rebeliões militares não deixava de assolar o Império e, entre 280 D.C. e 281 D.C., Probo teve que enfrentar as revoltas dos usurpadores Júlio Saturnino, na Síria, e de Próculo e Bonosus, em Lugdunum (atual Lyon) e Colônia, nas províncias da Gália e na Germânia, os quais se declararam co-imperadores. Logo Saturnino acabou sendo morto pelos seus próprios soldados. Já a revolta dos dois últimos citados é um tanto obscura, e tanto pode ter sido fruto de algum resquício do “Império Gaulês”; ou talvez fruto de alguma insatisfação mais generalizada, já que inscrições com o nome de Probo também foram apagadas na Hispânia, na mesma época. Vale citar que Próculo tinha ligações com os Francos. Por sua vez, Bonosus, consta, teria se revoltado por medo de ser punido pelo incêndio da flotilha romana do Reno, pelos bárbaros germanos. O fato é que ambas as rebeliões foram derrotadas, sendo Próculo executado após ser entregue a Probo pelos seus aliados Francos, para onde ele fugira após a chegada do exército do imperador. E Bonosus, se matou após perder o combate com as tropas imperiais. Probo, dando uma prova do seu temperamento moderado, poupou as famílias dos usurpadores.
Somente em 281 D.C., Probo conseguiu celebrar em Roma o seu merecido Triunfo pelas vitórias contra os bárbaros. Nessa estadia na capital, ele aproveitou para completar as imponentes muralhas iniciadas por seu antecessor Aureliano (e que por isso são chamadas de Muralhas Aurelianas, as quais ainda existem).
Segundo a História Augusta, Probo tentou devolver algumas prerrogativas ao Senado Romano, como o de ser a instância máxima para julgar as apelações das decisões dos tribunais superiores, a competência para designar os Procônsules e os legados dos Procônsules e de conferir aos governadores as prerrogativas e os poderes de Pretor. Isso é considerado duvidoso por alguns historiadores, mas, se for verdade, pode bem ser uma das causas de alguma insatisfação do Exército com o imperador, já que cada vez mais aquela corporação estava se acostumando a ser a principal instância de poder.
Em 282 D.C., Probo partiu para a sua cidade natal de Sirmium, que, segundo parece, iria servir como ponto de partida para uma futura campanha contra a Pérsia. Há o relato de que ele teria, mais uma vez, determinado aos soldados que trabalhassem em obras públicas para o benefício da província, fato que acabou causando uma rebelião. Acuado, Probo teve que se refugiar em uma fortificação chamada de “Torre de Ferro”, onde ele acabou sendo morto. Em outra versão, de acordo com o relato de Zózimo, a qual muitos estudiosos acham mais crível, as tropas proclamaram imperador Marco Numério Caro (Caro), o Prefeito Pretoriano de Probo, ocasião em que o contingente enviado por Probo para reprimir o levante aderiu à revolta, e, em função disso, os próprios soldados da escolta imperial acabaram assassinando o imperador, em setembro de 282 D.C.
CONCLUSÃO
Os combativos imperadores-ilírios Cláudio Gótico, Aureliano e Probo, no período entre 268 D.C e 282 D.C contribuíram decisivamente para conter as ameaças dos Germanos e dos Persas, nos fronts ocidental e oriental do Império Romano. Contudo, persistiram os graves problemas da instabilidade política e econômica e da insubordinação militar a comprometerem a sobrevivência do Império, problemas que seriam mais bem enfrentados pelos seus sucessores Ilírios,Diocleciano e Constantino.