PORQUE CARTAGO FALHOU E ROMA TEVE SUCESSO

Esta é uma tradução minha de um artigo de J. E. Lendon, publicado originalmente na Weekly Standard Magazine, uma crítica do livro “Hannibal: A Hellenistic Life”, de Eve Macdonald, que pode ser lida no original no link abaixo. Gostei do artigo, que na minha opinião, oferece uma boa apreciação de um dos principais motivos pelos quais Roma triunfou sobre Cartago na Segunda Guerra Púnica. Boa leitura!

https://www.washingtonexaminer.com/weekly-standard/why-carthage-failed-and-rome-succeeded

É um sintoma do estado deplorável da vida intelectual nos dias de hoje que os leitores desta revista possam intuir a linha da estória contada em “Hannibal” no instante em que eles leem, bem no início de suas páginas, que a Cartago clássica – a cidade em nome da qual o grande comandante do título lutou contra Roma – era “diversificada” e “multicultural”.

A despeito de qual fosse o grau que seus tendenciosos observadores contemporâneos considerassem Cartago como sendo: brutal na sua política e religião, opressora dos seus súditos, agressiva com seus vizinhos, e dissimulada nas suas relações com as potências estrangeiras, uma cidade que ostentasse aquelas duas brilhantes qualidades, hoje quase divinizadas pelos nossos educadores, deve ter sido, ao contrário: amigável e escrupulosa, em suas relações estrangeiras e domésticas, e vitimada em sua inocência por nações menos politicamente corretas.

Os incontáveis recém-nascidos e crianças pequenas que os Cartagineses sacrificaram aos seus deuses– os restos de mais de 20 mil deles já foram encontrados apenas em Cartago – se esvanece em não mais do que uma simples faceta do glorioso mosaico cultural que era Cartago. E nada disso precisa ser provado, ou mesmo, discutido pela autora, que também é livre para cometer não poucos erros factuais: já que, por definição, os caras legais têm que ter sido um povo diversificado e multicultural, e uma escritora que canta as virtudes deles é liberada de maçante labuta da precisão histórica pela pureza dos seus ideais.

A Antiga Cartago era, provavelmente, tão diversa e multicultural como a Arábia Saudita de hoje: Um Estado rico com uma população pequena, Cartago contratava estrangeiros para fazer o trabalho sujo e dependia mais de mercenários estrangeiros do que dos seus cidadãos para lutar as suas guerras. Os mercenários que Cartago contratava certamente não tinham nenhum sentimento de fazer parte da nação cartaginesa: Quando os Cartagineses, após a sua derrota na Primeira Guerra Púnica (264-241 A.C), não foram capazes de pagá-los, os mercenários iniciaram uma guerra de inigualável brutalidade – a chamada “Guerra Sem Trégua” – contra seus ex-empregadores (240-238 A.C). Autores antigos descrevem os Cartagineses como sendo senhores implacáveis, e praticamente todas as comunidades que eles dominavam na Espanha e no Norte da África alegremente abandonaram seus antigos mestres quando lhes foi oferecida proteção pelos Romanos. Poucos deles participaram voluntariamente no diverso e multicultural paraíso cartaginês imaginado pela nossa autora.

Na verdade, no Mundo Mediterrâneo posterior a Alexandre, o Grande, onde as incontáveis cidades gregas tornaram-se mais e mais liberais do que já tinham sido anteriormente em conceder cidadania a imigrantes, Cartago deve ter sido extraordinariamente excludente, enfeitada (como todos os Estados não-gregos) com uma pátina de cultura grega, mas somente aceitando, em seu corpo de cidadãos, imigrantes da região que originalmente fundou-a como colônia: a Fenícia, no Levante.

Na outra extremidade, positiva, dos Estados antigos que recebiam imigrantes e seus costumes estava Roma. Tendo saudado Cartago como “diversa e multicultural”, o autor de Hannibal inconscientemente imagina a sua grande adversária como sendo monolítica em raça, credo e aparência, tanto quanto um grande escritório de advogados brancos protestantes anglo-saxões da Nova York dos anos 50 e, consequentemente (por uma lógica implícita inevitável), como sendo gananciosa, pérfida e beligerante. Porém, os Romanos reais imaginavam que a cidade deles havia sido fundada por um bando de renegados, exilados e falidos. E, leal a essas origens, Roma energicamente dividiu a sua cidadania em direitos e classes, e concedeu partes dela aos seus aliados, que poderiam ao final aspirar ao seu todo.

Na época em que Roma começou a lutar contra Cartago, não apenas a mais numerosa nação dos Latinos, que eram culturalmente similares à Roma, mas também os Sabinos, Volscos, Marsos, Etruscos, Úmbrios, Samnitas, Gregos, e muitos outros, que falavam línguas estranhas e tinham costumes diferentes, haviam sido admitidos, em maior ou menor grau, nesse sistema generoso.

Consequentemente, para qualquer um que se sinta atraído à tarefa de pontuar as potências da Antiguidade em termos de sua diversidade e multiculturalismo, a Roma do século III A.C é um candidato muito melhor para obter esse dúbio certificado do que a Cartago do século III A.C. Mas, se tal questão for mesmo de interesse histórico, ela tem um significado bem oposto ao que o autor de Hannibal assevera, porque, em vez de fator de força, durante a Segunda Guerra Púnica de Aníbal (218-201 A.C), diversidade e multiculturalismo foram fraquezas – ainda que não fraquezas decisivas – para ambos os adversários.

Assim, sem dúvida, nossa autora o admite, quando ela aponta para a notável habilidade de Aníbal em manter unido o seu “multicultural” e “diverso” exército mercenário “colcha de retalhos” devido à força de seu carisma, à sua identificação com Hércules, e aos seus crescentes sucessos militares (como se fosse uma professora de faculdade contemporânea, nossa autora acha que o verdadeiro gênio de Aníbal reside em – hein? – administrar a diversidade).

Mas a notável destreza de Aníbal sugere uma ânsia extraordinária, uma ânsia, suspeita-se, que o Cartaginês ficaria satisfeito em não ter. Apesar das heroicas qualidades pessoas de Aníbal, o seu exército padecia de deserções individuais e em massa.

No que se refere aos Romanos, a estratégia de Aníbal era derrotá-los em batalha (como ele fez, habilmente, em 218, 217 e na sangrenta Canas em 216 A.C) e então separar os aliados italianos que tanto contribuíam tanto para o poder militar de Roma. E alguns deles ele realmente ele conseguiu separar, especialmente após Canas, sobretudo no sul da Itália. Porém aqueles que abandonaram Roma, quase todos Gregos ou Oscos, eram os aliados de Roma culturalmente mais alienígenas, enquanto uma vasta porção da Itália, 160 km ao norte e 120 km ao sul de Roma (sem falar na maioria das cidades ainda mais ao sul), permaneceu leal aos Romanos, apesar das vitórias de Aníbal, e dos seus agrados, tentativas de suborno para encorajar traição e, finalmente, cercos e devastação coercitiva das terras deles.

O coração dessa resoluta região era composto de povos que sempre tinham sido (ou tinham se desenvolvido) similares em seus costumes aos Romanos. Mas muitos aliados romanos alhures, que não eram culturalmente similares aos Romanos também se mantiveram fiéis, e foram eles os que mais sofreram por isso, estando localizados em áreas onde os seus vizinhos tinham desertado para o lado de Aníbal. Esses amigos de Roma, conquanto achassem os costumes romanos esquisitos, sabiam ao menos uma coisa sobre eles: os Romanos, ao contrário de Aníbal, mantinham a sua palavra quanto a socorrer aliados cercados, recompensavam os que se mantinham leais e puniam com terrível crueldade aqueles que os traíam.

A fidelidade contínua aos Romanos, tanto a de seus parentes italianos, como a de seus outros aliados, não importa o quanto fossem diferentes os seus costumes, é o decisivo fator da guerra de Aníbal na Itália. Essa história é contada (juntamente com aquelas da Primeira e Terceira Guerra Púnicas), livre de modismos de posições políticas, no livro de Dexter Hoyos, “Mastering the West: Roma and Carthage at War” – sendo ele mesmo o reconhecido mestre deste assunto na atual geração. O cálculo é este: Nas suas vitórias entre 218 e 216 A.C., Aníbal matou ou capturou talvez 15 por cento da totalidade da população masculina das partes da Itália leais à Roma. Nunca nenhum Estado moderno jamais sofreu algo que se aproximasse de tais perdas (mesmo a França e a Alemanha perderam menos que 9 por cento na 1ª Guerra Mundial).

Ainda assim, contra a expectativa geral daqueles que não a conheciam bem, Roma não pediu a paz, e, um ano após Canas, ela colocaria 75 mil homens no campo de batalha. Em 212 e 211 A.C., 200 mil homens serviam na terra ou no mar, algo como um terço de todos os homens em idade militar na Itália. A capacidade de Roma de recrutar tais números dentre seus próprios homens e os aliados dela é a razão pela qual ela finalmente venceu a guerra. Aníbal foi mantido sob controle na Itália, outras possessões romanas foram fortemente guarnecidas e o aliado de Cartago, Filipe V da Macedônia foi bloqueado na Grécia, enquanto os Romanos ainda possuíam amplas forças para derrotar os Cartagineses na Espanha, capturar a poderosa aliada de Cartago, Siracusa, na Sicília, e, ao final, invadir o Norte da África, obrigando Cartago a chamar Aníbal de volta para defender a terra natal.

Durante os 16 anos que Aníbal permaneceu na Itália, Cartago fez esporádicas tentativas de reforçá-lo com mercenários recém-contratados e reluzentes novos elefantes. Mas a necessidade de ter que fazer isso mostra que Aníbal, apesar das suas vitórias e carisma, simplesmente não pôde – ao contrário dos Romanos – recrutar em larga escala entre os habitantes da Itália. Ao longo do tempo, as suas forças diminuíam e minguavam, e os Romanos cada vez mais restringiam os movimentos dele. Nos últimos anos anteriores à sua volta, Aníbal foi, essencialmente, um chefe de um bando confinado ao árido Brútio, a ponta do pé da península italiana.

Aparentemente, o exército diverso e multicultural de Aníbal não exerceu sobre os potenciais recrutas na antiga Itália o mesmo apelo que exerce sobre a autora de Hannibal, confortavelmente à vontade na câmara de eco intelectualmente monocultural da universidade atual.

J.E. Lendon, professor of history at the University of Virginia, is the author of Soldiers and Ghosts: A History of Battle in Classical Antiquity and Song of Wrath: The Peloponnesian War Begins.

O ESPORTE NA ROMA ANTIGA

 

O ESPORTE NA ROMA ANTIGA

Durante os próximos 30 dias, a bola será o centro do mundo e muitos discutem a paternidade do futebol, havendo até uma tese de o jogo teria suas raízes em um antigo esporte romano.

 

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Mens Sana in Corpore Sano”.

Quase todo mundo conhece a expressão acima, de origem romana, que significa “Uma mente sã em um corpo sadio” e imediatamente a identifica como uma exortação à necessidade de se cultivar, ao mesmo tempo, o intelecto e o físico. Trata-se, na verdade, de um verso do grande poeta romano Juvenal, que inclui a boa saúde física e mental como uma das bençãos que se deve pedir aos deuses, preferivelmente a uma vida longa, mas sem virtude.

Ao longo dos séculos, porém, a frase de Juvenal acabou adquirindo o caráter de lema romano pela prática de esportes. É com ela, portanto, que iniciamos nosso texto sobre a atividade esportiva em Roma.

Inicialmente, enquanto era apenas uma Cidade-Estado que se expandia pela Itália e pelo Mediterrâneo Ocidental, no período republicano, a prática de esporte em Roma era valorizada apenas como forma de treinamento militar para os jovens cidadãos. Havia um espaço na cidade, o Campo de Marte, onde eram feitas as manobras das legiões e onde os jovens podiam se exercitar no arco, na equitação e na esgrima, entre outras atividades. Porém, naquele tempo, o esporte por esporte não fazia parte da formação da criança e do jovem romano, ao contrário do que ocorria nas cidades-estado gregas.

O fato é que a elite romana, durante muito tempo e ainda no limiar do Império, julgava que exibir-se em público praticando qualquer atividade esportiva que não fosse ligada às artes militares era algo degradante e indigno de um patrício. Por outro lado, o grosso do exército era formado por pequenos agricultores livres, que, certamente, já praticavam bastante exercício físico na dura lida cotidiana do semeio, cultivo e colheita.

Assim, somente quando aumenta o contato direto dos romanos com a civilização grega, no sul da Itália e, sobretudo após a conquista de territórios na Grécia, no século II A.C, é que o esporte, em conjunto com outras manifestações culturais gregas, como o teatro, a filosofia, as artes,e a própria língua grega, passam a ter grande influência na elite romana (“a Grécia cativa cativou Roma”).

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A partir de então, os nobres, em suas villas (propriedades rurais de luxo), construíram espaços privados para a prática de ginástica e atletismo (gymnasia e palestrae). Note-se, porém, que, no início, os romanos viram com maus olhos o atletismo à moda grega, sobretudo porque os atletas se exercitavam e competiam completamente nus. Por isso, algumas leis tentaram proibir membros da aristocracia romana de competirem em público.

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Em 186 A.C., pela primeira vez, jogos públicos incluindo exibição de atletas são organizados pelo cônsul Marcus Fulvius Nobilior, em comemoração à sua vitória contra a Liga Etólia, na Grécia. Nobilior era um grande entusiasta da cultura grega, uma civilização em que os atletas profissionais eram admirados e, por isso, ele resolveu trazer a novidade para Roma.

As competições de atletismo compreendiam as seguintes modalidades: corrida, luta-livre (wrestling – hoje conhecida como luta greco-romana), pugilismo (boxe), pentatlo (que abrangia as modalidades de salto em distância, corrida, lançamento de disco, lançamento de dardo e luta-livre) e pancration (uma luta que pode ser comparada ao nosso “vale-tudo”, agora internacionalizada como MMA).

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Já no fim da República, as termas, ou banhos públicos, começam a proporcionar, além das piscinas e saunas, espaços adjacentes com palestras, ou seja, espaços abertos cercados por colunatas, destinados à prática de exercícios físicos. Nas termas, também havia piscinas específicas para a prática de natação (chamadas de natatio). Em seguida, muitas termas também passaram a dispor de espaços para jogos com bola, chamados de sphaerista, pois, além do atletismo e das lutas, os romanos importaram da Grécia uma série de jogos com bola (pila, em latim).

Entre os jogos com bola mais populares estava o Harpastum, cujo nome derivava do grego harpaston, que significa “capturar” ou “tomar”. Esse jogo também era chamado pelos romanos de “jogo com a bola pequena”. Essa bola pequena e dura, que não quicava, era chamada de harpasta (havia outros jogos com bolas maiores, parecidas com a do nosso futebol, que eram infladas e quicavam (ex: follis).

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O Harpastum, segundo o retórico e gramático Athenaeus, que escreveu sobre muitos costumes do mundo greco-romano no século II D.C, era o nome que os romanos davam ao jogo que os gregos também chamavam de Phaininda.

Não se sabe com precisão quais eram as regras do Harpastum, mas todos os textos que foram preservados mencionando o jogo levam a crer que era muito parecido com o rúgbi. Era, com certeza, um jogo jogado com as mãos, em um campo grande, provavelmente de terra ou às vezes areia e de formato retangular, não muito menor do que um campo de futebol moderno e dividido ao meio por uma linha. Talvez houvesse versões do jogo, variando o número de jogadores de 5 a 12 em cada um dos dois times oponentes. As descrições mencionam um jogador recebendo a bola e fazendo passes para os companheiros de time, com os adversários tentando interceptar. A marcação era dura e os adversários eram jogados no chão. Porém, o objetivo era penetrar no campo adversário e capturar a bola, daí resultando, talvez, o nome que foi dado à pelota.

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Fizemos questão de escrever sobre o Harpastum , nesta semana da abertura da Copa do Mundo, porque há um teoria de que este jogo seria o ancestral do nosso futebol. Sabe-se que os soldados romanos praticavam muito o Harpastum, porque, além de envolver muito esforço físico, o jogo servia também como treinamento estratégico e tático. E as legiões romanas teriam levado o jogo para todos os cantos do império, inclusive a Britânia. Após a Queda do Império Romano, o Harpastum teria evoluído em diversas regiões que se tornariam os futuros países da Europa, e seria o provável ancestral do La Soule, um jogo com bola que surgiu na Normandia, França, e também do ancestral inglês do rugby. E foi a partir de uma cisão ocorrida entre os praticantes deste último que, surgiu na Grã-Bretanha, o football association, o nosso futebol.

Não obstante, os romanos certamente jogavam algum jogo que envolvia chutar uma bola, pois Cícero nos conta acerca de um curioso caso forense envolvendo a morte de um cliente que tinha ido cortar o cabelo em uma barbearia e ali foi morto por causa de uma bola chutada por crianças que jogavam na rua, sendo que a bola bateu na mão do barbeiro no exato momento em que este usava a navalha no pescoço da infeliz vítima!

Se os romanos não foram muito criativos na invenção de esportes, adotando quase todos os que conheciam de outros povos, no entanto, ninguém pode tirar-lhes os louros de terem inventado a indústria do esporte como entretenimento.

Desde os primórdios, havia em Roma jogos públicos para o entretenimento do povo romano (ludi). Esses jogos tinham um nítido propósito religioso, pois integravam festividades em homenagens às diversas divindades adoradas pelos romanos. Não se tratavam, assim,  propriamente, portanto, de competições esportivas, mas sim de exibições que buscavam o espetáculo e a diversão. Com efeito, pelo menos desde 366 A.C., o calendário romano incluía dias feriados chamados de ludi romani (jogos romanos), patrocinados pelo Estado.

Em Roma, o principal espaço para a realização dos ludi era o Circo Máximo, cuja pista existe até hoje. A principal modalidade esportiva praticada ali eram as corridas de bigas e quadrigas (carruagens puxadas por dois ou quatro cavalos), chamadas de Ludi Circensis. Se o leitor quiser ter uma ideia de como elas deviam ser, é só assistir ao filme “Ben-Hur”, em que provavelmente foi encenada a melhor reprodução cinematográfica de uma corrida de quadrigas. Júlio César reconstruiu o Circo Máximo, dotando-o de arquibancadas permanentes revestidas de mármore.

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Como o número de espectadores é o melhor termômetro para se medir qual esporte é o mais apreciado, sem dúvida esse título em Roma vai para as corridas de quadrigas, pois o Circo Máximo tinha capacidade para, pelo menos, 250 mil espectadores!

As corridas consistiam em 7 bigas ou quadrigas darem 7 voltas por toda a extensão da pista de 650 m de comprimento que circundava uma plataforma em forma de “U” bem alongado, chamada de “spina”, ganhando a que chegasse em primeiro. Havia na spina uma espécie de placar marcando o número de voltas e o número da quadriga que estava liderando, consistindo os marcadores  em esculturas de 7 ovos e de 7 golfinhos que eram giradas conforme a situação se desenvolvia.

Mosaico del circo MCGR 2285 by QuartierLatin1968 - Own work. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons - httpscommons.wikimedia.orgwikiFileMosaico_del_circo_MCGR_2285.jpg#mediaFileMosaico_

Os romanos eram tão apaixonados pelas corridas de bigas que as equipes e respectivos apoiadores logo se dividiram em 4 facções: os Vermelhos, Brancos, Verdes e Azuis. Com o tempo, essas facções evoluíram para representarem não apenas as corridas, mas cultos religiosos, bairros da cidade e, finalmente, agrupamentos políticos. E essas facções perduraram não somente em Roma,  mas permaneceram em existência durante o Império Romano do Oriente, em Constantinopla, também chamado de Império Bizantino. A famosa revolta “Nika”, em 532 D.C, que tentou destronar o Imperador Justiniano, começou com um conflito urbano promovido pelas facções rivais dos Azuis e dos Verdes. Constantinopla, como muitas cidades romanas, também tinha o seu hipódromo, cujas ruínas podem ser vistas ainda hoje. Estima-se que a sua capacidade era de 80 mil lugares.

A história registra vários episódios de devoção ou fanatismo esportivo pelas corridas de bigas. Os escritores faziam questão de registrar as estatísticas esportivas. Consta que o auriga (condutor de carruagens) mais bem sucedido foi Gaius Appuleius Diocles que venceu 1.462 corridas de um total de 4.257 disputadas, ganhando um total de 35.863.120 sestércios, soma que, estima-se, equivaleria hoje a 15 bilhões de dólares, o que o tornaria o esportista mais bem pago de todos os tempos! Diocles aposentou-se com 42 anos, após 24 anos de carreira (conforme matéria publicada no jornal Daily Telegraph (vide https://www.telegraph.co.uk/news/newstopics/howaboutthat/7942699/Wealth-of-todays-sports-stars-is-no-match-for-the-fortunes-of-Romes-chariot-racers.html).

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Os ludi foram imediatamente utilizados pelos imperadores como forma de propaganda política e manipulação de massas. Desde o início do Principado, os espetáculos aumentavam em número e suntuosidade. As lutas de gladiadores, costume que os romanos adquiriram dos etruscos, utilizados em cerimônias fúnebres privadas, passaram a integrar os jogos públicos, oferecidos e custeados pelos cônsules e pelo próprio imperador. Não vamos tratar, aqui, dos detalhes relativos aos combates na arena, uma vez que, em nossa opinião, a prática não se enquadra como esportiva.

O uso dos jogos como ferramenta de controle das massas pelos imperadores romanos, em conjunto com a distribuição gratuita de alimentos (anonna), gerou a célebre expressão “Pão e Circo”,  também cunhada por Juvenal, por volta do ano 100 D.C. A sua análise foi tão profunda, que merece ser citada na íntegra :

Já por muito tempo, desde quando nós não vendíamos o nosso voto para apenas uma pessoa, o povo romano tem abdicado das nossas obrigações; pois ele, que, anteriormente, distribuía os comandos militares, os altos cargos públicos, as legiões, tudo, enfim; agora se auto-restringe e, ansiosamente, espera somente duas coisas: Pão e circo!” (Sátiras, X, 77-81).

Com a advertência de Juvenal, encerramos nosso artigo sobre o Esporte em Roma, esperando que tenham gostado.

TIBÉRIO – UM IMPERADOR RELUTANTE

Tiberius,_Romisch-Germanisches_Museum,_Cologne foto Carole Raddato(Cabeça de Tibério, Museu Romano-Germânico, Colônia, foto de Carole Raddato)

NASCIMENTO, INFÂNCIA E JUVENTUDE

Em 16 de novembro de 42 A.C., nasceu Tiberius Claudius Nero (Tibério), membro de uma das famílias mais tradicionais da nobreza romana, cujos ancestrais tinham ocupado os mais importantes postos desde o início da República, desde o longínquo ano de 494 A.C. O menino recebeu o mesmo nome de seu pai, que havia sido Cônsul, no ano de 50 A.C.

Tibério era filho de Lívia Drusila, que, mesmo estando grávida de seu irmão, Druso, o Velho, divorciou-se de seu pai e casou-se, em 39 A.C, com o jovem triúnviro Otaviano, o herdeiro de Júlio César (que em pouco mais de uma década, tornaria-se o primeiro imperador romano, com o nome de Augusto).

Em 33 A.C., o pai de Tibério faleceu e foi ele quem fez o discurso fúnebre na tribuna dos Rostra, no fórum romano, diante da multidão, quando tinha apenas 9 anos de idade.

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(Cabeça de Lívia Drusila, molde do original da Glipoteca Ny Carlsberg, foto de Giovanni Dall’Orto)

O casamento de Lívia com Augusto fez Tibério entrar no círculo familiar do imperador, e, após a morte do pai dele, ele passou a viver na casa de Otaviano e Lívia, no Palatino, onde recebeu esmerada educação dos melhores tutores, como por exemplo, Teodoro de Gadara, que lhe ensinou Retórica.

Quando Otaviano celebrou o triunfo pela vitória contra Cleópatra (e Marco Antônio) pelas ruas de Roma, em 29 A.C., o menino Tibério, então com cerca de doze anos, recebeu a distinção de conduzir, ao lado de Marcelo, a quadriga triunfal na qual ia o seu padastro.

A posição de Tibério na família imperial foi ainda mais reforçada quando ele casou-se com Vipsânia Agripina, filha do maior colaborador e amigo de Augusto, o general Marco Vipsânio Agripa, então cotado para ser o sucessor. Tenha ou não sido arranjado este casamento, o fato é que Tibério e a esposa apaixonaram-se. Eles tiveram dois filhos: Druso, o Jovem, em 14 A.C., e uma outra criança, que morreu precocemente.

 (Tibério e Vipsânia Agripina)

Por sua vez, Augusto e Lívia não tiveram filhos e a única descendente do imperador era sua filha Júlia, nascida do seu casamento anterior com Escribônia, e que havia se casado com Agripa.

Porém, Agripa morreria em 12 A.C., deixando Júlia viúva com dois filhos pequenos, Caio César e Lúcio César, que já haviam sido adotados por Augusto em 17 A.C., fato que colocou os meninos na condição de prováveis sucessores do trono. Vale notar que essa adoção ocorreu após a morte do sobrinho e predileto de Augusto, Marcelo, filho de sua irmã, Otávia, a Jovem, ocorrida em 23 A.C.. Aliás, essas escolhas permitem vislumbrar como Augusto planejava a questão da sua sucessão, inclusive tendo em vista as suas reações em função dos imprevistos.

A condição de enteado do imperador fez com que Tibério, aos 17 anos de idade, iniciasse a sua carreira pública como Questor, apesar dele não ter a idade legalmente exigida para o cargo. Nessa função, Tibério demonstrou competência para lidar com um problema de abastecimento de grãos, em Óstia.

O progresso de Tibério na carreira das magistraturas foi rápido e, em 13 A.C., novamente antes de ter a idade legal, ele foi escolhido Cônsul.

ASCENSÃO DE TIBÉRIO

Em 11 A.C, Augusto, chegou à conclusão que seu enteado Tibério, em caso de uma eventualidade (o já quinquagenário imperador tinha ficado gravemente doente onze anos antes), seria um bom candidato para ocupar o trono, pelo menos até a maioridade dos seus netos, Caio César e Lúcio César. Com essa finalidade, e provavelmente incentivado por Lívia, o imperador “pediu” (na verdade, provavelmente, ele deve ter ordenado) que Tibério se divorciasse de  sua adorada Vipsânia e se casasse com sua filha viúva,  Júlia.

Tibério, contrariado, teve que obedecer e casou-se com Júlia, tornando-se, agora, além de enteado, genro do imperador. Porém, o coração dos homens não dá muita bola para as razões políticas, e, segundo as fontes, certa vez, após o divorciar-se de Vipsânia, Tibério encontrou-a em algum evento social, ocasião em que copiosas lágrimas desceram pelo rosto dele, obrigando-o a se retirar do local e ir para casa. 

Ainda de acordo com o relato acima, algumas testemunhas teriam ouvido, no trajeto de volta, Tibério implorar aos céus, insistentemente, pelo perdão da ex-mulher.

Foi uma cena que certamente inspirou preocupação na família imperial, pois Suetônio conta que

foram tomadas precauções para que Tibério nunca mais tivesse a oportunidade de encontrar a ex-mulher novamente“.

Enquanto isso, Tibério prosseguiu a sua carreira no serviço público como advogado, atuando em defesa de diversas cidades gregas no Senado e também como acusador público de um senador que havia conspirado contra Augusto.

Depois disso, Tibério destacou-se na carreira militar e acabou se revelando um grande general. Ele comandou campanhas bem sucedidas na Panônia e na Germânia, estas muito bem descritas pela historiador Veléio Patérculo, que serviu sob as ordens dele. Foi Tibério o primeiro romano a descobrir a nascente do Rio Danúbio e ele também marchou à testa de seu exército até o Rio Elba, sem dúvida um feito notável.

Com efeito, as vitórias de Tibério, na Germânia, abriram o terreno para estabelecer esta região como província romana, um projeto que, contudo, seria interrompido pelo Desastre de Varo, que narramos em uma das primeiras postagens de nossa página.

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(Campanha de Tibério na Germânia)

Graças a essas vitórias, Tibério foi o primeiro romano a receber os “ornamentos triunfais“, inaugurando esta nova forma de reconhecimento aos generais vitoriosos, já que os Triunfos, agora, passavam a ser reservados apenas ao Imperador, em pessoa.

Em 7 A.C., Tibério foi designado Cônsul e recebeu, em 6 A.C., o “Poder Tribunício” (que conferia ao magistrado o poder de vetar todos os atos dos demais magistrados e foi retirado do cargo de Tribuno da Plebe e atribuído ao Imperador já no principado de Augusto). Este ato começava a se tornar praticamente um reconhecimento da posição do seu receptor como a pessoa mais importante no Império, depois do Imperador).

Com os despojos obtidos na guerra contra os Germanos, Tibério encarregou-se de restaurar o Templo da Concórdia, no Fórum Romano, que só seria completado em 10 D.C.

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(Reconstrução do Templo da Concórdia, no Fórum, restaurado por Tibério – autor Lasha Tskhondia)

TIBÉRIO NA BERLINDA

Porém, foi após receber essas honrarias e liderar outra bem sucedida campanha, contra os Marcomanos, que Tibério, em 6 A.C, inusitadamente auto-exilou-se na ilha de Rodes. Há muitos debates sobre este misterioso exílio:

Em primeiro lugar, parece claro que Augusto nunca simpatizou muito com o reservado e frio Tibério, somente tendo-o favorecido por instigação da mãe dele, a influente imperatriz Lívia, e pela necessidade de ter um sucessor da família à mão, em caso de imprevisto.

Em segundo lugar, mas talvez mais importante, Caio César e Lúcio César, os já mencionados netos de Augusto,  estavam crescendo. O primeiro, inclusive, já havia sido designado, naquele ano, para ser cônsul quando alcançasse os 20 anos, embora ele ainda tivesse apenas 14 anos na ocasião.

Assim, Tibério provavelmente deve ter sentido a sua posição na sucessão imperial enfraquecida e decidiu retirar-se voluntariamente das intrigas pela sucessão do já quase sexagenário Augusto. Segundo Suetônio, essa explicação teria sido dada, posteriormente, pelo próprio Tibério, porém atribuindo-a ao nobre propósito de não ofuscar  e deixar o terreno livre para os dois rapazes.

Outro motivo que se cogita para o auto-exílio de Tibério em Rodes é o fato de que ele poderia estar se sentindo humilhado pela notória infidelidade da sua esposa Júlia, a quem se atribuía publicamente a participação em vários episódios de adultério e até de orgias.

Consta que Augusto, sincera ou fingidamente, tentou impedir Tibério de partir, somente permitindo a viagem após uma curta greve de fome do genro.  Entretanto, depois da chegada de Tibério à ilha, o imperador passou a preferir que ele permanecesse longe de Roma e a situação de Tibério passou a ser a de um exilado de facto. Há até relatos de que ele chegou a ser hostilizado por algumas pessoas, que percebiam a situação dele como a de alguém que havia caído em desgraça.

Para piorar, Augusto baniu Júlia de Roma, por causa dos adultérios, e decretou, em nome de Tibério, o divórcio de ambos.

Mas o destino, que, segundo a suspeita de muitos, de vez em quando recebia uma mãozinha de sua mãe Lívia, parecia sorrir para Tibério, uma vez que Caio César e Lúcio César morreriam no curto espaço de dois anos, entre 2 e 4 D.C.: Lúcio, por doença, aos 18 anos de idade, e Caio, por ferimentos recebidos em batalha, na Armênia, aos 23 anos.

Com efeito, segundo as fontes, pouco depois da morte de Lúcio César, ocorrida em 20 de agosto de 2 D.C., Augusto acabou cedendo aos apelos da imperatriz Lívia, e os do próprio Tibério, e, depois de oito anos de exílio, autorizou a volta do seu enteado para Roma, onde, após o retorno, ele se manteve como um cidadão privado, afastado de qualquer função pública.

Segundo uma passagem citada por Cássio Dião, em Rodes, Tibério estava acompanhado do famoso astrólogo Trasyllas, que, ao ver no horizonte um navio, teria previsto que ele trazia a mensagem de Augusto e Lívia chamando Tibério de volta à Roma. Prestigiado com o acerto da sua previsão, Trasyllas acompanharia Tibério – que acreditava piamente nos seus poderes de adivinhação – durante boa parte da existência dele.

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(Cabeça de Lúcio César)

Então, como já mencionado, em 21 de fevereiro de 4 D.C., Caio César morreu na província romana da Lícia, no Oriente, após uma prolongado agravamento de sua saúde decorrente de um ferimento sofrido no final do ano 2 D.C., em um ataque traiçoeiro na Armênia, quando ele liderava uma campanha visando pacificar o referido reino-cliente de Roma.

Porém, alguns historiadores, como Tácito e Dião Cássio, suspeitam de que Lívia estaria por trás da morte dos dois rapazes, com o objetivo de afastá-lo do caminho de seu filho Tibério ao trono.

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(cabeça de Caio César)

HERDEIRO DO TRONO

Agora sem os seus dois herdeiros consanguíneos mais próximos, Augusto, naquele mesmo ano de 4 D.C., no dia 26 de junho, adotou formalmente Tibério como herdeiro e sucessor, juntamente com seu último neto vivo, Agripa Póstumo, que era o irmão mais novo dos falecidos e tinha 16 anos de idade. E Tibério também recebeu, mais uma vez, o Poder Tribunício.

Augusto, contudo, ainda não havia abandonado totalmente a esperança de que um parente de sangue da gens Julia viesse a herdar o trono, pois o imperador exigiu, ao adotar Tibério, que este, por sua vez, adotasse o jovem Germânico, que era neto de sua irmã, Otávia, a  Jovem, fruto do casamento desta com o Triúnviro Marco Antônio.

Todavia, em uma clara demonstração de que a posição de Tibério agora era inconteste, em 7 D.C., Augusto ordenou o banimento de Agripa Póstumo, que foi exilado para a remota ilha de Planásia, na costa italiana. Vale citar que, de acordo com alguns relatos, o rapaz tinha o temperamento inconstante e era dado a ataques de fúria, um indício de que ele não estaria apto para ser imperador.

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(Cabeça de bronze de Agripa Póstumo, Louvre, foto de Mbzt)

 

Depois disso, Tibério recebeu comandos militares proconsulares (imperium) para combater os inimigos do império na Panônia e na Germânia (ele teve que lutar contra os bárbaros germânicos que haviam destruído as 3 legiões de Varo). Em 13 D.C., Tibério recebeu poder consular compartilhado com Augusto, tornando-se, na prática, coimperador.

TIBÉRIO IMPERADOR

Desse modo, com a morte de Augusto, em 19 de agosto de 14 D.C, um mês antes dele completar a avançada idade de 76 anos, a sucessão do trono em favor de Tibério foi praticamente “automática”.

Mesmo assim, algumas fontes relatam que Lívia teria escondido do público a morte de Augusto, mantendo-a em segredo até que Tibério, que estaria na Dalmácia, chegasse à Roma. Já outras fontes, como o historiador Cássio Dião, contam que Tibério chegou a receber pessoalmente algumas instruções e conselhos para o seu governo do próprio Augusto, em seu leito de morte.

De qualquer modo, concomitantemente ou logo depois da morte de Augusto, Agripa Póstumo foi prontamente assassinado em Planásia. Tibério foi acusado de ser o mandante, mas negou veementemente essa acusação no Senado. Até hoje há discussão se ele de fato foi o responsável, ou se isso ocorreu por alguma ordem anterior de Augusto. Seja como for, esta medida extrema logo demonstrou não ter sido inteiramente despropositada, pois, pouco tempo depois do fato, apareceu no Império um impostor fazendo-se passar por Póstumo, e o tratante chegou até a angariar algum apoio entre o populacho, causando algum tumulto público, até ele ser capturado e executado.

Vale observar que não havia precedentes para regular as relações do Príncipe com o Senado, já que Augusto, em seu longo reinado de quarenta anos, sem contar o tempo em que ele esteve à frente da República como Triúnviro, e período durante a guerra civil contra Marco Antonio (cerca de 56 anos), sempre fizera questão de se apresentar como um magistrado da antiga República que somente estava ocupando a sua posição excepcional na República em decorrência de crises e guerras civis.

E o fato é que o já citado temperamento frio, desconfiado, introvertido e orgulhoso de Tibério não facilitou em nada a tarefa de conciliar o novo regime que, na prática, era uma monarquia, com a existência de uma assembléia representativa de uma elite aristocrática que acreditava ter direito a administrar o Estado.

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Um episódio, relatado pelo historiador Tácito, já demonstra boa parte dessas dificuldades:

Em uma das primeiras sessões do Senado após a sucessão, na qual os senadores discutiam quais os cargos, títulos, poderes e províncias, entre todos aqueles que Augusto tinha paulatinamente reunido sob o seu cetro, iriam ser conferidos a Tibério, o futuro imperador fingia não querer tamanho fardo sobre suas costas, insinceramente recusando alguns deles, os quais sugeria que fossem conferidos ao Senado. Porém, essa relutância de Tibério, considerada pela maioria como apenas um gesto teatral, alongou-se por tanto tempo, que o senador Asínio Galo, já impaciente com a interminável encenação, perguntou, com ironia:

“Que parte do Império, então, ó César, vós quereis que vos seja confiada?”

E o impasse durou praticamente um mês. Somente na sessão do dia 18 de setembro de 14 D.C., Tibério enfim seria oficialmente aclamado imperador, sendo, assim, essa demora devida não à resistência do Senado, mas à inesperada relutância do próprio imperador. Ele, inclusive, recusou os títulos de “Augusto” e de “Pai da Pátria“.

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Ao contrário de Augusto, que sabia muito bem manobrar seus apoiadores no Senado para que a vontade dele fosse imposta sob uma aparência de naturalidade e de preservação das tradições republicanas, Tibério demonstrou não ter tato nem astúcia para as sutilezas da política. De fato, ele quase sempre mostrava-se ambíguo e enigmático para os senadores, parecendo esperar que os mesmos adivinhassem o que ele realmente queria. No entanto, a verdade é que Tibério não aceitava bem quando os senadores manifestavam oposição aos seus desígnios e isso, pouco a pouco, foi criando uma atmosfera de intrigas e de suspeita.

Uma passagem de Tácito exemplifica o desconforto e o desprezo que Tibério parecia sentir com relação ao cargo de imperador e às maneiras dos senadores: Certa vez, ao deixar um evento, ele foi cercado por senadores, que começaram a fazer reverências e pedidos. Tibério, então, comentou com um de seus acompanhantes:

“Que homens tão bem apropriados para serem escravos!”

MOTIM NA GERMÂNIA

Logo no início do reinado, estourou uma séria revolta entre as legiões da Germânia e da Panônia, as tropas mais numerosas e bem preparadas do Império, que estavam ocupadas lutando contra os bárbaros germânicos. Os soldados cobravam uma gratificação que tinha sido prometida por Augusto e não havia ainda sido paga por Tibério.

Germânico e o filho do imperador, Druso, o Jovem, foram enviados para lidar com os revoltosos e o primeiro, que chegou a correr risco à sua integridade física, conseguiu debelar a revolta. Em seguida, Germânico liderou essas tropas contra a coalizão de tribos germânicas que havia massacrado as legiões de Varo, invadiu a Germânia e conseguiu várias vitórias, recuperando duas das três águias-estandarte perdidas, até ser chamado de volta à Roma por Tibério para celebrar um grande triunfo, em 17 D.C. .Para o historiador Tácito, o temor em relação ao grande prestígio popular que essas vitórias deram a Germânico foi o verdadeiro motivo para que Tibério ordenasse a interrupção da campanha.

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Depois do triunfo, Tibério conferiu à Germânico autoridade sobre as províncias orientais do Império Romano, com objetivo de organizá-las e estabelecer as relações com diversos reinos-clientes, e nomeou-o Cônsul para o ano de 18 D.C., ao lado do próprio imperador. Tais medidas pareciam uma demonstração, ao menos  publicamente, de que Tibério prestigiava a posição de Germânico como seu sucessor.

MORTE DE GERMÂNICO

No Oriente, contudo, Germânico entrou em atrito com o governador da Síria designado por Tibério, Caio Calpúrnio Pisão. Além de visitar o Egito sem a permissão expressa de Tibério (esta província estava sob a autoridade direta do imperador e, com base em uma lei de Augusto, nenhum senador podia visitá-la sem autorização imperial), Germânico demitiu Pisão e ordenou que este se apresentasse em Roma.

Todavia, enquanto ainda estava em Antióquia, Germânico adoeceu sem causa aparente. Desconfiado de que tivesse sido vítima de feitiçaria ou veneno por parte do governador, Germânico enviou uma carta a Pisão, renunciando formalmente à amizade entre ambos. Logo em seguida, Germânico faleceu, em 10 de outubro de 19 D.C.

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Quando a notícia da morte de Germânico chegou à Roma, houve comoção popular e muitos suspeitaram de que Tibério, ou sua mãe, Lívia, que era amiga de Plancina, a  esposa de Pisão, poderiam estar por trás do suposto envenenamento. Tibério ordenou uma breve investigação e Pisão foi preso e enviado para ser julgado pelo Senado. A acusação de envenenamento foi logo arquivada, mas a de traição foi mantida. Durante o julgamento, Pisão foi encontrado morto em sua cela, supostamente tendo cometido suicídio. Obviamente, o fato contribuiu para aumentar as suspeitas sobre Tibério e muitos consideraram que a morte de Pisão teria sido uma “queima de arquivo”.

Apesar do suicídio de Pisão, o julgamento dele prosseguiu e o veredito foi a sua condenação pelo crime de “maiestas” (lesa-majestade), em 20 D.C., o qual, pela primeira vez em Roma, foi considerado como abrangendo o imperador e a casa imperial, já que Germânico, enquanto membro desta, teria tido a autoridade desobedecida por Pisão. Aliás, esta mudança mostra que a transição da República para a Monarquia estava bem avançada, apesar das aparências que Augusto e Tibério procuraram manter..

O caso da morte de Germânico mobilizou tanto a opinião pública romana (segundo Suetônio, vários muros foram pichados com a frase: “Dê-nos Germânico de volta!“) que Tibério foi obrigado a tornar públicas as atas do julgamento de Pisão, o que hoje sabemos graças à descoberta, nos anos 80 do século XX,  próximo à Sevilha, na atual Espanha, de tábuas de bronze contendo o texto do Senatus Consultum de Gn. Pisone Patre, que nada mais é do que um decreto do Senado Romano contendo a versão oficial sobre o assunto (cf. https://scholar.princeton.edu/sites/default/files/SCCPP_0.pdf). Vale notar, entre outras coisas, que o seu texto confirma o relato de Tácito de que a imperatriz Lívia intercedeu para que sua amiga Plancina fosse perdoada.

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Não obstante, apesar das suspeitas de que Tibério estaria implicado na morte de Germânico, há que se ressaltar que, até a morte deste, as ações do  imperador não vinham comprometendo o status do falecido como primeiro na linha de sucessão imperial. Mesmo assim, a viúva de Germânico, Agripina, a Velha, não escondia de ninguém que suspeitava de Tibério e Lívia. Sintomaticamente, os dois não compareceram ao funeral de Germânico

O fato é que a desconfiança passou a reinar no seio da família imperial. Certa vez, Tibério, ouvindo Agripina queixar-se do assassinato do marido, teria recitado, em grego, para ela o seguinte verso de um então famoso poema clássico:

Porque não és rainha, eu te fiz algum mal?

Com a morte de Germânico, Tibério  passou a investir somente em seu único filho natural, Druso, o  Jovem, que era cerca de um ano mais novo do que o falecido, e cuja carreira pública progredia junto com a do irmão adotivo. Assim nos parece que Tibério copiou Augusto e planejou a sua sucessão de modo semelhante a do que o seu antecessor havia tentado em relação a Caio e Lúcio César: que ambos reinassem em conjunto, ou que um servisse como substituto no caso do outro morrer antes da sucessão.

Então, em 22 D.C., Druso recebeu o Poder Tribunício, demonstrando que ele estava sendo preparado para suceder o pai.

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(Busto de Druso, o Jovem)

Enquanto isso, aparentemente Tibério ressentia-se com o aumento de sua impopularidade causada pela morte de Germânico e começou, paulatinamente, a se ausentar mais e mais de Roma, passando temporadas no litoral da Campânia, região que, desde a República, era considerada como um balneário de luxo para a elite romana.

SEJANO E MORTE DE DRUSO

De fato, na época em que Germânico morreu, já se notava o grande poder que o Comandante da Guarda Pretoriana, Lúcio Élio Sejano exercia em Roma. Ele expandiu a guarnição dos pretorianos para um efetivo de cerca de nove mil homens, os quais, durante o reinado de Augusto, estavam espalhados em várias cidades nos arredores de Roma, e que por iniciativa de Sejano foram centralizados em um grande quartel fortificado, adjunto às muralhas da cidade, por volta de 18 D.C.

Sejano era membro da classe equestre, e sucedera o seu pai,  Lucius Seius Strabo, como comandante dos pretorianos. A família de Sejano era bem relacionada com a classe senatorial, seu avô paterno foi casado com a filha de Caio Mecenas, o rico e influente amigo de Augusto, e o próprio Sejano foi adotado por Caio Élio Galo, que foi governador do Egito no reinado de Augusto. Acredita-se que a esposa de Sejano, Apicata, era filha do rico e famoso gourmet Marcus Gavius Apicius (Apício). Segundo as más línguas, antes de se casar com Apicata, Sejano havia funcionado como amante do sogro. Não obstante, Sejano tornou-se amigo íntimo de Caio César, o neto de Augusto, e, portanto, apesar de ocupar uma posição social inferior à da alta aristocracia, ele acabou ficando próximo da casa imperial.

O poder de Sejano tornou-se tão destacado que Tibério, certa vez, referiu-se a ele como meu sócio-trabalhador” (socius laborum). E Sejano, de fato, tinha altas pretensões. Em 20 D.C., ele  arranjou uma promessa de casamento de sua filha, Junilla,  com o filho do sobrinho do imperador, Cláudio, quando as duas crianças tinham apenas quatro anos de idade. Porém, os planos de Sejano ingressar na família imperial iriam por água baixo, porque, poucos dias depois do arranjo, o menino morreria engasgado com uma pera.

Porém, Druso, o Jovem não tinha boas relações com Sejano e certa vez, segundo Tácito, ele chegou a dar um soco no Prefeito Pretoriano, sendo que, em outra ocasião, o rapaz teria reclamado que:

“Um estranho tenha sido convidado para auxiliar no governo enquanto o filho do imperador estava vivo” 

Mais grave do que tudo isso foi o fato de Sejano ter seduzido Livilla, a esposa de Druso, de quem ele havia se tornado amante.

Porém, em 14 de setembro de 23 D.C., Druso, o Jovem morreu, aos 36 anos de idade, de causa ignorada. Para alguns historiadores antigos, como Tácito e Dião CássioSejano foi o responsável pela morte de Druso por envenenamento, empresa na qual ele teria sido auxiliado por Livilla, que também era irmã do finado Germãnico.

Efetivamente, de acordo com o relato de Cássio Dião, oito anos após a morte de Druso, a esposa de Sejano, Apicata, teria enviado uma carta a Tibério, revelando que o marido e Livilla tinham envenenado o herdeiro. A acusação não parece muito plausível e o fato é que, se o adultério de Sejano e Livilla realmente ocorreu, e se a morte de Druso alguma vez lhe pareceu suspeita,  Tibério continuou, durante muitos anos, a confiar em Sejano, e não demonstrou suspeitar da participação do auxiliar na morte do filho.

Seja como for, em 25 D.C., Sejano pediu formalmente a Tibério permissão para se casar com Livilla, o que foi recusado pelo velho imperador, que, após exaltar os méritos do subordinado, ressaltou, candidamente, que Sejano, tendo nascido na classe Equestre, estava abaixo da posição social de Livilla, uma integrante da família imperial.

Com a morte de Druso, o Jovem, os jovens filhos de GermânicoAgripina, a Velha: Nero Julius Caesar Germanicus e Drusus Julius Caesar Germanicus, foram adotados por Tibério e adquiriram a condição de sucessores naturais dele, fato que colocaria todos na alça de mira de Sejano.

AUTO-EXÍLIO EM CAPRI 

No ano seguinte, 26 D.C.Tibério foi viver na Ilha de Capri, em um novo auto-exílio voluntário que, desta vez, duraria onze anos, deixando, informalmente, o governo imperial nas mãos de Sejano, aparentemente a pessoa em quem ele mais confiava. A  confiança que o imperador depositava em Sejano aumentou ainda mais após o incidente no qual o teto da gruta (grotto) da Villa de Tibério, em Sperlonga, adornada por primorosas esculturas, onde ele costumava fazer banquetes, desabou e Sejano protegeu Tibério com o próprio corpo, das rochas que caíam.

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(1- Grotto da Villa de Tibério, em Sperlonga, e 2- parte das esculturas restauradas, foto: Carole Radatto)

Mesmo assim, durante algum tempo, Tibério deixava Capri e viajava até as cercanias de Roma, provavelmente com a intenção de deixar os senadores em suspense, pois ele, em certas ocasiões, enviava despachos informando que estava vindo à Cidade.

Certamente, a conhecida misantropia do imperador foi um dos motivos que o levou a se retirar de Roma e ir viver na maravilhosa Villa Jovis, que ele mandou construir em Capri. O outro teria sido a tristeza causada pela morte do filho.

Em Capri, o avanço da senilidade – ele tinha 68 anos de idade – e uma misteriosa doença que lhe cobria o rosto e o corpo de feridas (alguns a comparam à sífilis, e, embora a ciência tradicional considere que essa doença não era conhecida na Europa naquela época, estudos recentes parecem indicar que ela já circulava no continente durante o Império Romano) aos poucos deram vazão a uma personalidade paranóica, cruel e devassa (vale notar que a sífilis, em sua fase final, atinge o cérebro e pode causar demência).

Se for verdade o que Suetônio conta, em Capri aconteceram atos os mais tenebrosos de depravação sexual e assassinatos.

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villa jovisUnknown_d_0_0_800.20170804192902(Villa Jovis, Capri, 1- maquete e 2- estado atual)

MORTE DE LÍVIA

Em 29 de setembro de 29 D.C., com a provecta idade de 87 anos, morreu Lívia Drusila. a mãe de Tibério, que, por disposição testamentária de Augusto, recebera o nome de Júlia Augusta. Lívia permaneceu detentora de grande poder durante boa parte do reinado de Tibério, que passou a se ressentir da ascendência pessoal e da influência excessiva da mãe nos negócios do Estado. Houve até quem dissesse que o principal motivo da ida de Tibério para Capri foi o fato dele não suportar mais a personalidade dominadora da mãe.

Consta que, ao ser informado da morte de Lívia e dos preparativos para o funeral, Tibério não viajou, permanecendo em Capri por vários dias, até que os encarregados da cerimônia desistiram de esperar a chegada dele, tendo em vista que o corpo da falecida já estava apodrecendo. Então, Tibério acabou enviando seu sobrinho-neto, Gaius Julius Caesar Germanicus, apelidado Calígula”, o filho mais novo de Germânico e Agripina, a Velha, para fazer a oração fúnebre. E o imperador também vetou que o Senado divinizasse a mãe.

Livia_y_Tiberio_M.A.N._01 foto Miguel Hermoso Cuesta

(Estátuas de Lívia e de Tibério, lado a lado)

“REGÊNCIA” DE SEJANO

Enquanto isso, Sejano, que controlava toda informação entre Roma e Capri, agia como virtual governante de Roma, ainda mais agora que a intimidadora presença de Lívia desaparecera, e começou a eliminar os seus desafetos e adversários políticos. Um alvo preferencial de Sejano foi Agripina, a Velha, a esposa do falecido Germânico, que foi exilada em 30 D.C. Ela vinha acusando publicamente Tibério e Lívia de serem os mandantes da morte do esposo e reuniu em torno de si um grupo de senadores que faziam oposição a Sejano.

Sejano parece ter instigado Tibério para que este escrevesse uma carta ao Senado denunciando Agripina e seu filho primogênito, Nero Julius Caesar Germanicus (não confundir com o futuro imperador Nero), de conspiração. Após bastante relutância (Tibério teve que renovar as acusações), o Senado acabou banindo os dois, declarando-os “inimigos públicos”.

(Cabeças de Agripina, a Velha e de seu filho Nero Julius Caesar Germânico, National Archaeological Museum of Tarragona )

Agripina foi exilada para a ilha de Pandatária e lá, após sofrer maus-tratos, morreu de inanição voluntária, em 33 D.C.. E Nero Julius Caesar Germanicus também foi exilado, no mesmo ano que a mãe, para a ilha de Pontia, onde morreria no ano seguinte, compelido a se suicidar, em 31 D.C..

Por sua vez, o filho do meio de Agripina, Drusus Julius Caesar Germanicus, foi acusado por um senador de estar tramando contra Tibério. Consta que foi Amelia, a esposa de Drusus, quem o denunciou para Sejano, que a teria seduzido. Ele foi preso e confinado a uma cela no Palatino, também em 30 D.C.

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(Possível estátua de Drusus Julius Caesar, foto Sailko)

Em 31 D.CCalígula, que estava morando junto com sua avó Antônia, foi residir com Tibério na Villa Jovis em Capri.

A julgar pelo relato de SuetônioCalígula habilmente soube fingir ser inofensivo e servil a Tibério e, graças a isso teria conseguido sobreviver ao destino da sua família. Se os chocantes relatos do citado historiador forem verdadeiros, em Capri, Calígula deve ter sofrido a influência maléfica dos inúmeros atos de perversão sexual e crueldade relatados na “Vida de Tibério“, livro integrante da coletânea de biografias conhecida como “Os doze Césares“.

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(Cabeça de Calígula, com as cores originais que recobriam o mármore)

QUEDA DE SEJANO

Parecia que Sejano nessa época estava no auge de seu poder: o aniversário dele foi incluído no calendário como uma data a ser comemorada e várias estátuas foram erguidas em sua homenagem. E, em 30 D.C., ele conseguiu finalmente a tão almejada conexão familiar com a família imperial, obtendo a autorização para o casamento com Livilla, Nessa toada, no ano seguinte, Sejano foi designado Cônsul, na companhia de Tibério. Nas palavras de Dião Cássio,

parecia que Sejano era o Imperador, e Tibério, o governante de uma ilha.

Entretanto, naquele mesmo ano, Tibério começou a tomar atitudes ambíguas em relação à Sejano: Ele nomeou seu sobrinho Calígula para um prestigioso posto de sacerdote, gesto que foi recebido com entusiasmo pela Plebe, e insinuou que o rapaz poderia ser o seu sucessor.

Sejano chegou a ficar desconfiado de que talvez suas pretensões poderiam fracassar, até que o Senado Romano recebeu um despacho oficial de Tibério convocando uma sessão para o dia 18 de outubro de 31 D.C., na qual  Sejano receberia o Poder Tribunício, acompanhado de uma carta de Tibério que deveria ser lida na sessão, ambos entregues por Névio Sutório Macro, que até pouco tempo era chefe dos Vigiles, o corpo de guardas-bombeiros criado por Augusto. Seguindo as ordens de Tibério, Macro informou o teor da carta a Memmius Regulus, que havia sucedido Sejano como Cônsul (Tibério pouco tempos antes havia renunciado ao cargo, forçando Sejano a segui-lo).

No dia designado, um confiante Sejano compareceu ao Templo de Apolo Palatino, onde, naquela ocasião, o Senado estava se reunindo, lotado de Senadores, que imediatamente o cercaram com bajulações. Enquanto a longa carta era lida, contendo uma introdução sobre  assuntos variados e algumas menções lacônicas de Tibério ao seu “sócio“, o edifício foi cercado pelos vigiles, comandados por Graecinus Laco

A leitura da carta prosseguiu e, para a surpresa de todos, o tom inicialmente amistoso de Tibério, transformou-se em uma acusação de vários crimes contra Sejano, terminando por ordenar a sua prisão.

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(Templo de Apolo Palatino,  acima à esquerda, nesta reconstrução do complexo de palácios e prédios imperiais  a maioria construídos posteriormente na Colina do Palatino)

O espanto logo se transformou em comoção, e os senadores que estavam sentados próximos a Sejano, afastaram-se dele correndo. Sejano continuou sentado, imóvel -ele somente teve que se levantar quando Regulus, pela terceira vez, ordenou que ele ficasse de frente para a assembléia.

Quando a carta terminou de ser lida, Regulus perguntou se algum senador se opunha à prisão de Sejano, mas ninguém teve coragem de se manifestar contra. Este, então, foi levado para a prisão por Laco.

No caminho para a prisão, Sejano foi hostilizado pelo populacho, que zombou acerbamente das suas supostas pretensões ao trono. Naquele mesmo dia, o Senado, ao saber da reação da Plebe e perceber que nenhum soldado pretoriano aparecera para defender o chefe, votou pela condenação de Sejano à morte, decretando também a damnatio memoriae (destruição de todas as estátuas e supressão do seu nome dos registros públicos).

O que muitos senadores ainda ignoravam, enquanto hesitavam temendo alguma reação de soldados fiéis a Sejano, é que Tibério havia dado à Macro um documento nomeando-o novo comandante da Guarda Pretoriana, quando despachou-o para Roma para convocar o Senado. Assim, enquanto Laco cercava o Senado e a carta era lida, Macro já havia assumido o comando no quartel da Guarda Pretoriana.

Sejano foi executado e seu corpo atirado para rolar pelas “Escadas Gemônias“, onde ficou por três dias sendo vilipendiado pela turba (Parece que essa forma de punição foi inaugurada no reinado do próprio Tibério).  Os filhos de Sejano: Lúcio Seio Estrabão, Capito Elano e Junilla, também seriam executados, o primeiro em 24 de outubro, e os outros em  dezembro de 31 D.C., pelo simples fato de serem filhos dele. Como se não bastasse, a ainda adolescente Junilla, antes de ser estrangulada, foi estuprada pelo carrasco, pois o costume proibia executar uma virgem.

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(Escadaria que leva ao Capitólio, em Roma, talvez construída sobre as Escadarias Gemônias)

De acordo com o historiador Flávio Josefo, foi Antônia, a Jovem, cunhada de Tibério e mãe do falecido Germânico, quem denunciou Sejano a Tibério. Ela teria enviado uma carta ao imperador, que estava em Capri, e, supostamente, ignorava as ações do subordinado, contando dos planos dele para tomar o poder, nos quais estaria sendo auxiliado pela amante, Livilla, filha da própria Antônia.

Livilla foi poupada de ser executada, mas foi entregue à mãe, em cuja casa ficou em prisão domiciliar, segundo consta, trancada em um quarto sem receber alimentação, até morrer de inanição.

Quando Apicata, a viúva de Sejano, soube da execução do filho, ela enviou, antes de se suicidar, uma carta a Tibério, acusando Livilla de ter envenenado o próprio marido, e filho do imperador, Druso, o Jovem, em conluio com seu amante Sejano. Muitos historiadores não dão crédito a essa acusação de Apicata, atribuindo-a à vingança de uma esposa traída contra a amante que estava em vias de substituí-la como esposa.

O fato é que a descoberta da conspiração instaurou um frenesi persecutório em Roma e vários senadores que tinham relacionamento com Sejano foram executados.

Tibério mais tarde declararia ao Senado que decidiu remover Sejano quando soube da participação dele na perseguição à Agripina e na morte do filho dela, mas essa explicação não convenceu nem os contemporâneos, nem os historiadores modernos, uma vez que Agripina continuou exilada, até morrer, em 33 D.C, de inanição. quase dois anos após a execução de Sejano, o mesmo ocorrendo com o filho dela, Drusus Julius Caesar, que também morreu de inanição, em sua cela no Palatino, em 33 D.C., igualmente de inanição (consta que ele, famélico, chegou a comer o colchão em que dormia). A coincidência no ano e forma das mortes é um forte indício de que as mortes deles foram ordenadas por Tibério.

TIBÉRIO COMO GOVERNANTE

Tibério era estóico e, durante a juventude e parte da sua vida adulta, ele parece ter se conduzido pelos rígidos padrões morais dessa corrente filosófica. Talvez por isso, a marca do seu reinado tenha sido a austeridade nos gastos públicos, uma política que acarretou um grande superávit no tesouro do Estado. Consequentemente, em termos econômicos, houve grande prosperidade no Império. De fato, quando morreu, Tibério deixou nos cofres do Tesouro a formidável quantia de três bilhões e setecentos milhões de sestércios.

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(Aureus de Tibério, c. 27/30 D.C., foto cgb)

Por outro lado, a falta de espetáculos públicos, jogos e construção de obras públicas grandiosas tornou-o antipático para a plebe romana.

Tibério preocupou-se em controlar os excessos dos governadores das províncias e nomear homens capazes e de boa reputação para administrá-las. Ficou famoso o episódio em que o governador do Egito, Aemilius Rectus, enviou à Roma um volume de tributos maior do que o normal, e recebeu de Tibério a seguinte advertência:

“Eu quero minhas ovelhas tosquiadas, mas não depiladas!”

A cidade de Tiberias, na Galiléia, um reino-cliente de Roma, foi fundada pelo tetrarca Herodes Antipas, em 20 D.C., e foi assim batizada em homenagem a Tibério.

Outro motivo que contribuiu para a grande prosperidade econômica experimentada durante o reinado de Tibério foi o fato dele ter evitado travar campanhas militares, após as campanhas de Germânico, valendo-se precipuamente da diplomacia nas questões de interesse do Estado. Entre as poucas ocorrências bélicas estão a supressão de uma revolta gaulesa liderada por Julius Sacrovir, em 21 D.C., a vitória final contra uma rebelião berbere na Numídia, comandada pelo chefe Tacfarinas, que, após dez anos, foi finalmente derrotado, em 24 D.C., e uma vitória contra tribos montanhesas insubmissas na Trácia, em 26 D.C.

Em 28 D.C., um forte romano foi cercado pela tribo germânica dos Frísios, na Floresta Baduhenna, na atual Holanda. Os Frísios estavam insatisfeitos com o tributo que pagavam como clientes de Roma e mataram os coletores de impostos romanos. Destacamentos da V Legião, após um duro combate, conseguiram repelir os bárbaros, mas 900 soldados romanos morreram. Seguindo política de Tibério de evitar guerras custosas, não houve nenhuma represália e, de acordo com Tácito, o assunto foi deixado de lado.

Politicamente, o reinado de Tibério foi um reinado de perseguições e de julgamentos de senadores por traição (maiestas), instalando-se uma cultura de delações e do uso de informantes.

Segundo Dião Cássio, Tibério também baniu praticantes de religiões estrangeiras que residiam em Roma, inclusive muitos judeus, no caso destes, supostamente motivado pelo fato de que eles estariam fazendo muitas conversões entre os habitantes da cidade. Curiosamente, muitos estudiosos acreditam que provavelmente, foi o seu braço-direito Sejano quem nomeou Pôncio Pilatos  governador da Judéia, entre 26 e 36 D.C, sendo que Jesus Cristo  foi crucificado por volta do ano 30 D.C.

FINAL DO REINADO E MORTE DE TIBÉRIO

Após a queda de Sejano, parece que Tibério desiludiu-se e desinteressou-se por completo do cargo de imperador e permaneceu em Capri, deixando a administração do Império por conta dos funcionários da casa imperial e dos governadores das províncias. Segundo os relatos, ele sequer deu-se ao trabalho de preencher os cargos que iam ficando vagos, e o Senado, por temor de desagradá-lo, ficava de mãos atadas.

Em 33 D.C., Tibério nomeou seu sobrinho, Gaius Julius Ceasar Germanicus (Calígula), Questor honorário, e, cerca de dois anos depois, em 35 D.C., ele fez um testamento no qual Calígula, então com 23 anos de idade, junto com e seu neto, Tibério Gemelo, filho de Druso, o Jovem, que tinha apenas 15 ou 16 anos, eram designados como herdeiros de suas propriedades. Segundo Tácito, nessa ocasião, quando os dois rapazes estavam em Capri, Tibério abraçou Gemelo e, em lágrimas, disse para Calígula:

“Você o matará, e um outro irá te matar”

 

Tiberius_Gemellus

(Raríssima moeda com a efígie de Tiberius Gemellus, cunhada em 37 D.C., foto Classical Numismatic Group)

Tibério nunca mais voltou à Roma e a sua reclusão em Capri aumentou os boatos sobre o que ele fazia na ilha. A sua saúde  foi dando sinais de que estava indo embora, mas o velho imperador, temendo, talvez, que a sua fraqueza física incentivasse alguma tentativa de assassinato, fazia o possível para não demonstrá-la em público e até evitava que o seu médico lhe medisse o pulso na frente dos outros.

Em 16 de março de 37 D.C., Tibério agonizava em sua outra Villa, em Misenum, e a sua morte era iminente. Em certo momento, ele parou de respirar e os presentes logo foram congratular Calígula como o novo imperador. Porém, segundo Tácito, o imperador moribundo voltou a respirar, o que deixou a todos aterrorizados. Então, naquele mesmo dia, Macro teria entrado no quarto e sufocado Tibério, usando a a colcha e os lençóis. No relato de Dião Cássio, Macro teria sido ajudado por Calígula. Já Suetônio, embora narre fatos semelhantes, adiciona que antes Calígula teria envenenado Tibério  e que, aquele, ao tentar tirar o anel com o selo do imperador do dedo do tio, ao perceber que esse resistia, sufocou-o com o travesseiro.

Assim morreu Tibério, aos 78 anos de idade. O Senado e Povo Romano (pelo menos o de Roma e parte da Itália) comemoraram a morte do antipático imperador e consta que, quando o cortejo fúnebre trazendo o cadáver de Tibério chegou à Cidade, a plebe nas ruas, ameaçando jogar o corpo dele nas água do rio, gritava:

“Tibério ao Tibre!”

O Senado recusou-se a divinizar Tibério, mas ele foi sepultado no Mausoléu de Augusto, tendo um funeral apropriado e com seu sucessor, Calígula, fazendo a oração fúnebre (eulogia).

 

Tiberius-as-Jupiter

CONCLUSÃO

Na opinião dos historiadores romanos antigos, com exceção de Veleio Patérculo, não há dúvida de que Tibério faz parte do time dos “maus imperadores”.

Porém, a leitura dos textos desses membros da classe senatorial, não permite um julgamento tão fácil.

Só o fato de Tibério ter reinado durante quase 23 anos já foi um feito importante. E o seu reinado serviu para consolidar a maior parte das instituições e práticas político-administrativas forjadas por Augusto.

Em seus primeiros anos, parece que Tibério efetivamente procurou dividir o poder com o Senado, participando ativamente das sessões desta assembleia e tentando fazer com que os senadores assumissem diversas tarefas. Ele escolheu bons administradores para as províncias, e a manutenção da paz e a parcimônia com os gastos públicos asseguraram uma grande prosperidade econômica, com grande valorização da moeda.

Porém, a sua personalidade fria e distante e a falta de tato político não criaram empatia com a classe senatorial. Talvez a sua relutância em assumir totalmente os poderes de Augusto seja fruto da consciência de sua incapacidade para o jogo político. Mas pode também ter sido apenas uma maneira desastrada e inábil de imitar o primeiro imperador. De qualquer modo, a postura de Tibério contribuiu para agravar o grande problema enfrentado durante boa parte do período imperial: o não-reconhecimento do caráter monárquico do regime pela sua própria cúpula e elite política, com a consequente ambiguidade na delimitação dos papéis do imperador e do Senado.

O grande divisor de águas no reinado de Tibério parece ter sido a morte de Germânico, que, designado como seu sucessor ainda durante a vida de Augusto (que obrigou Tibério a adotá-lo), sempre foi uma sombra capaz de ofuscá-lo e uma opção de governante muito mais querida pela população. Diga-se, como atenuante da suposta responsabilidade de Tibério pela morte do filho adotivo, que, em vários episódios da vida de Germânico, transparece que este realmente cortejava a população e os senadores e agia com demasiada independência em relação a Tibério.

A forma como Tibério lidou com a hostilidade da viúva de Germânico, Agripina, a Velha, que sem dúvida reuniu em torno de si um núcleo de oposição ao imperador, também parece excessiva, já que isso importou na destruição quase que total da própria dinastia, somente deixando vivo Calígula e as irmãs dele, logo ele que, em seguida, se tornaria o pior de todos os imperadores Júlio-Cláudios, e cuja personalidade doentia pode muito bem ter sido agravada pelo clima de terror que a sua família viveu sob Tibério.

A ida de Tibério para Capri pode denotar um traço de misantropia em sua personalidade, mas também pode ter sido uma maneira de lidar com a desilusão e o desânimo que ele sentia pela função de monarca. É difícil compreender como ele pode ter deixado que Sejano concentrasse tanto poder e porque ele depositou em Sejano tanta confiança. Tanto pode ter sido uma consequência da fraqueza psicológica causada pela morte do filho, como pode ter sido também uma forma maquiavélica de instaurar um reinado de terror, usando Sejano como instrumento, para depois botar a culpa no subordinado. Se é que houve mesmo tal “reinado de terror”, pois, em 23 anos de governo, as execuções registradas foram em número menor comparadas com as que ocorreriam em alguns reinados posteriores. De qualquer forma, Tibério fica com a má distinção de ter sido o primeiro imperador a recorrer aos processos de lesa-majestade (maiestas).

Porém, a facilidade com que Tibério prendeu e executou Sejano mostra que o Principado estava consolidado como instituição, e  ainda era grande o prestígio que a dinastia dos Júlio-Cláudios gozava entre a população civil e o Exército, mesmo quando o seu representante era antipático e pouco querido.

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PAPA LEÃO I, O GRANDE

Em 10 de novembro do ano 461 D.C., faleceu o Papa Leão I.

Wlbw68, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Natural da Toscana, nascido em data incerta, Leão, proveniente da nobreza romana da Itália, foi consagrado bispo de Roma em 440 D.C, quando o Cristianismo já era a religião oficial do Império Romano havia quase meio século.

Em seu papado, Leão estabeleceu as bases para o reconhecimento inconteste da primazia de Roma sobre as demais arquidioceses, tendo jurisdição universal derivada diretamente de São Pedro (“Primazia Petrina“), influenciou os importantes Concí­lios de Éfeso e de Calcedônia e combateu heresias, notadamente o Maniqueí­smo. Nessa questão, Leão contou com o apoio do Imperador Romano do Ocidente, Valentiniano III.

Porém, o fato mais notável da carreira de Leão foi o encontro com Átila, o Huno, quando este invadiu a pení­nsula italiana, saqueando e destruindo a grande cidade romana de Aquileia.

Após conversar com o Papa, às margens do Lago Garda, Átila decidiu se retirar da Itália, fato que os contemporâneos consideraram miraculoso. Fontes mencionam que as correntes quebradas de São Pedro (que até hoje estariam guardadas na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma) teriam se unido milagrosamente durante a embaixada de Leão à Átila.

Crenças à parte, muitos historiadores reconhecem a importância da embaixada do Papa, mas que o motivo principal que teria convencido o Huno a deixar a Itália foi a notícia de que grassava a Peste na pení­nsula.

Por sua trajetória, muitos consideram Leão o fundador do papado moderno, e por tudo isso, recebeu o cognome de “Magno” (grande).