GRACIANO

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Em 18 de abril de 359 D.C., nasceu, em Sirmium,  capital da província romana da Panônia, a cerca de 55 km da atual Belgrado, Sérvia, Flavius Gratianus (Graciano), filho do general Flávio Valentiniano e da esposa dele, Marina Severa. Graciano recebeu este nome em homenagem ao avô, Graciano, o Velho, também natural da Panônia, que, depois de ganhar a vida como vendedor ou fabricante de cordas, entrou no Exército Romano, na unidade de elite dos “Protectores domesticus” e chegou ao posto de general e governador da África e da Britânia.

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Quando Graciano tinha cinco anos, em 364 D.C., o pai dele foi aclamado imperador romano, tornando-se Valentiniano I, considerado o último grande Imperador Romano do Ocidente.

Já em 366 D.C., Graciano, ainda uma criança pequena, foi nomeado Cônsul. E, no ano seguinte, enquanto Valentiniano I encontrava-se em campanha contra os bárbaros Alamanos, na Gália e ficou seriamente doente, Graciano foi nomeado “Augusto”, tornando-se, portanto, formalmente, coimperador junto com o pai.

O motivo da nomeação de Graciano foi o fato de que, percebendo o estado de saúde grave de Valentiniano I, cortesãos começaram um movimento para nomear o ministro Rusticus Julianus como sucessor, enquanto que, no exército, os militares apoiavam o general Severus. Desse modo, ao nomear precocemente o filho como Augusto, Valentiniano I tentou garantir o trono para a sua descendência.

Porém, tanto os ministros da Corte como o Exército tinham lá seus motivos para apoiarem outros candidatos ao trono pois, mesmo sendo uma criança, Graciano não demonstrava nenhum pendor para os assuntos militares, preferindo se dedicar à Retórica e à Literatura. Consta, inclusive, segundo o historiador Amiano Marcelino, que Valentiniano chegou a ter que mencionar expressamente, em discursos às tropas, que Graciano, apesar de não ser muito afeto às artes militares, seria um governante justo e capaz, e que ele, com o tempo,  iria se tornar um bom comandante .

Não obstante, a educação de Graciano ficou a cargo de Ausonius, um famoso poeta e professor de Retórica de origem galo-romana.

Por volta do ano de 370 D.C., Valentiniano I se divorciou da mãe de GracianoMartina Severa e se casou com Justina. Há uma versão tardia, do historiador Sócrates de Constantinopla, de que Valentiniano na verdade passou a ter duas esposas, desejo que teria motivado inclusive a edição de uma lei autorizando a bigamia, embora isto seja altamente improvável e não se tenha preservado nenhuma legislação relativa a isso.

Na verdade, é provável que Sócrates estivesse fazendo alusão a algum decreto de Valentiniano autorizando o divórcio, expressamente proibido pela Igreja Católica, que já dominava a Corte Imperial. Como o casamento era, e até hoje continua sendo, indissolúvel para a Igreja, o casamento de um divorciado poderia muito bem ter sido equiparado à bigamia.

De qualquer forma, é interessante transcrever essa passagem um tanto picante, relativa à relação entre a mãe e a madrasta de Graciano,  e, ainda, à suposta lei de Valentiniano I, por Sócrates de Constantinopla:

Justina tendo, assim, perdido o pai, ainda continuava virgem. Tempos depois ela conheceu Severa, esposa do imperador Valentiniano, e conversava frequentemente com a imperatriz, até que a intimidade delas chegou a tal ponto que elas costumavam tomar banho juntas. Quando Severa viu Justina tomando banho ela ficou bastante impressionada com a beleza da virgem, e falou dela para o imperador, dizendo que a filha de Justus era uma criatura tão adorável e possuía tal simetria de formas que ela mesma, embora fosse uma mulher, estava completamente encantada com ela. O imperador, guardando aquela descrição pela esposa em sua própria mente, pensou consigo mesmo como ele poderia casar com Justina, sem repudiar Severa, já que ela tinha lhe gerado Graciano, a quem ele tinha nomeado Augusto pouco tempo antes. Ele por conseguinte editou uma lei, e a fez publicar por todas as cidades, pela qual seria permitido a qualquer homem ter duas esposas legítimas“.

Graciano foi nomeado Cônsul pela segunda vez em 371 D.C. e, novamente, em 374 D.C.

Também em 374 D.C., Graciano casou-se com Flavia Maxima Constantia, filha do imperador do imperador Constâncio II, falecido em 361 D.C.

Em 17 de novembro de 375 D.C., Valentiniano I morreu, provavelmente de um derrame, durante um ataque de fúria causado pelo comportamento insolente de emissários bárbaros contra os quais ele se encontrava em campanha.

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Graciano se encontrava em Trier, na fronteira com a Germânia e esperava-se que a sucessão fosse tranquila. Porém, o general Merobaudes, o Comandante da Infantaria de origem franca, alegou que as tropas  apoiavam a nomeação do irmão mais novo de Graciano, Flávio Valentiniano, de apenas quatro anos de idade, como imperador. Graciano, por sua vez, tinha dezesseis anos quando o seu pai morreu.

As fontes divergem sobre a reação de Graciano. Para Sócrates de Constantinopla, Graciano ficou furioso, já para Amiano Marcelino, uma fonte mais confiável, ele aceitou de bom grado a exigência das tropas. Seja como for, o fato é que Graciano teve que aceitar dividir o trono com o irmão mais novo, que foi coroado como Valentiniano II e passou a reinar sobra as províncias da Gália, da Hispânia e da Britânia, enquanto Graciano governaria a Ilíria, a África e a Itália.

O principal problema enfrentado por Graciano foram os crescentes ataques dos Alamanos, que devem ter se sentido incentivados pela morte de Valentiniano I, reconhecidamente um imperador enérgico e um competente comandante militar.

Em maio de 378 D.C., o exército comandado pelo general Mallobaudes, outro franco à serviço de Roma, derrotou os Lentienses, bárbaros germânicos que constituíam um ramo meridional dos Alamanos, na Batalha de Argentovaria, próximo à atual cidade de Colmar, na Alsácia. Cerca de trinta mil bárbaros foram dizimados. Graciano, depois disso, sentiu-se encorajado a liderar a fase final da campanha contra os Lentienses e recebeu a rendição daqueles que tinham sobrevivido à derrota anterior. Essa seria a última vez que os romanos levariam uma campanha além da linha de fortificações do Reno/Danúbio (limes germanicus). Em razão disso, Graciano recebeu o título de Alemannicus Maximus.

Porém, cerca de três meses depois, o colega de Graciano no Oriente, o Imperador Romano do Oriente, seu tio Valente, seria morto na desastrosa Batalha de Adrianópolis, ocorrida em 9 de agosto de 378 D.C.

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Os Godos tinham migrado para a fronteira do Império Romano no Danúbio, dentro de um quadro migratório mais amplo de povos germânicos, entre outros motivos, pela pressão dos Hunos, e, em 376 D.C., duzentos mil Godos foram autorizados a atravessar a fronteira, porém, logo em seguida eles se revoltaram na Trácia. Graciano, em resposta a um pedido de auxílio de seu colega Valente, chegou a enviar algumas unidades estacionadas na Panônia, sob o comando do dux Frigeridus e outras, da Gália, sob o comando do Comes Richomeres, mas o general Merobaudes, desobedecendo ao imperador, as reteve para a defesa da fronteira do Reno contra os Alamanos.

Sabedor da urgência que a rebelião dos Godos na Trácia representava, Graciano, que, antes de ter que lidar com os Alamanos, já estava marchando para a região, enviou emissários ao imperador Valente pedindo que aguardasse a sua chegada, quando então os exércitos do Ocidente e do Oriente, combinados, poderiam liquidar os bárbaros.

Porém, Valente, ciumento do prestígio que Graciano recém conquistara contra os Alamanos, resolveu atacar os Godos sozinho. Eles eram um adversário formidável, e, liderados pelo hábil chefe Fritigern conseguiram derrotar Valente, que perdeu a vida na Batalha de Adrianópolis, perecendo junto com dois terços do seu exército, sendo as perdas romanas estimadas em 40 mil soldados.

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Agora Graciano, após a morte do tio,  aos dezenove anos, tornara-se, de direito, o único imperador das duas metades do Império Romano. Entretanto, segundo as fontes, percebendo que a situação depois de Adrianópolis era grave demais para que ele desse conta,  Graciano não hesitou um momento em nomear um sucessor para Valente, escolhendo, em 19 de janeiro de 379 D.C.,  o general Teodósio, um militar de prestígio que fora afastado por Valentiniano I e se retirado da vida pública para suas propriedades na Espanha, e tinha sido convocado após Adrianópolis para assumir o comando do Exército oriental.

Provavelmente, assim como ocorrera com a nomeação de Valentiniano II, a designação de Teodósio deve ter sido uma imposição dos comandantes do Exército Romano a Graciano.

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As duas derrotas fragorosas sofridas pelo exército oriental entre 361 e 378 D.C., na Pérsia e em Adrianópolis, e a incessante luta contra os bárbaros germânicos no Ocidente parece que drenaram a maior parte do efetivo militar recrutado entre os cidadãos romanos natos.

Com efeito, a reiterada presença de nomes de oficiais germânicos, mencionados nas fontes sobre os reinados de Juliano e Valentiniano, mostra que o emprego de contingentes de origem germânica já estava se generalizando antes do reinado de Graciano. O próprio Valentiniano já tinha sido obrigado a reduzir a altura mínima exigida para os soldados, como modo de aumentar a massa recrutável. Esse era um problema que, além das perdas sofridas em batalhas, tinha também causas sócio-econômicas, como o aumento do instituto do colonato entre os agricultores livres (que alguns consideram precursor da servidão medieval), cada vez mais concentrados nos latifúndios da aristocracia senatorial (que normalmente conseguia eximir do recrutamento os seus trabalhadores colonos), além de um declínio populacional que transparece em diversas leis promulgadas pelos imperadores.

Teodósio e Graciano tentaram aplicar com rigor as leis que tratavam da conscrição de recrutas entre os cidadãos romanos e até conseguiram alistar filhos de veteranos, mas claramente o número foi insuficiente. Valendo-se largamente de bárbaros germânicos recrutados mediante termos generosos, o que acabou comprometendo a disciplina do Exército, Teodósio, entre 379 e 382 D.C., conseguiu conter os Godos, ainda que sem obter nenhuma vitória decisiva, assinando com eles um tratado de paz em 3 de outubro de 382 D.C., no qual os Godos eram reconhecidos como “Federados” (Foederati), nominalmente sob a autoridade do Imperador e obrigados a fornecer tropas quando requisitados, todavia, sendo-lhes granjeado o direito de se estabelecer em território romano liderados por seu chefe, um fato inédito na História de Roma e que teria consequências funestas em um futuro próximo.

Enquanto isso, Graciano parecia justificar as dúvidas sobre a sua falta de pendor para os assuntos militares. Sob a influência de Ausônio, os retóricos e gramáticos de ascendência galo-romana passaram a dominar a Corte. Em 381 D.C., Graciano resolveu mudar a sua capital de Trier, onde ficara para supervisionar a defesa do Reno, para Milão, em uma demonstração tácita de que sua atenção agora voltava-se para outros assuntos e, de fato, Amiano Marcelino relata que o imperador, que era um tipo atlético, chegou a dedicar-se a provas de habilidade na arena, emulando o malsinado imperador Cômodo.

Em Milão, Graciano também  ficou sob a influência do enérgico e carismático Bispo da cidade, Ambrósio (Santo Ambrósio) e tornou-se um fervoroso patrono da ortodoxia cristã na forma do Credo Niceno. Essa influência foi decisiva para que Graciano abandonasse a prudente política de tolerância imperial ao Paganismo e aos demais credos cristãos concorrentes adotada sobretudo por seu pai, Valentiniano I.

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Tudo o que o Império Romano mais precisava naquele momento era unidade e estabilidade internas para enfrentar a terrível ameaça representada pelos bárbaros, externa e internamente (Godos). No entanto, as perseguições religiosas teriam como efeito a alienação de uma boa parte da aristocracia senatorial do Ocidente, degenerando na escolha de um usurpador pagão, guerra civil, ausência de cooperação entre as Cortes de Constantinopla e Milão, tumultos e massacres e até mesmo impossibilidade de composição com bárbaros germânicos que professavam o Arianismo, considerado uma heresia cristã, em alguma ocasiões cruciais.

Seguindo essa política de intolerância, Graciano, em 382 D.C, atendendo aos apelos de Santo Ambrósio, determinou a remoção do Altar da Vitória da Cúria do Senado no Fórum Romano, além de retirar os subsídios estatais para os cultos pagãos. Os senadores pagãos chegaram a protestar, lembrando que Graciano, na condição de Pontifex Maximus, era o chefe da tradicional religião pagã. Em resposta, Graciano renunciou ao título e devolveu os robes e insígnias cerimoniais ligados aos cultos pagãos.

Graciano também conseguiu irritar os comandantes e tropas do Exército Romano que tinham sobrevivido ao influxo de tropas bárbaras ao escolher como guarda-costas um contingente de bárbaros Alanos e, ainda, ao aparecer em público vestido como um guerreiro godo.

Assim, no início de 383 D.C., quando Graciano teve que se deslocar para a Gália para combater uma nova incursão dos Alamanos,  o Governador militar da Britânia, o general Magnus Maximus (Máximo), um nativo da província da Espanha, aproveitou o sentimento de insatisfação das tropas para se autoproclamar imperador e invadir a Gália.

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O imperador Graciano encontrava-se em Paris e, quando as tropas de Máximo aproximaram-se da cidade, após breves escaramuças, as tropas dele desertaram, deixando o imperador sozinho. Graciano, então, fugiu para Lugdunum (Lyon). Porém, o governador da cidade o entregou ao general Andragathius, um dos comandantes de Máximo.

Então, em 25 de agosto de 383 D.C., Graciano foi assassinado por ordens de Andragathius. Ele tinha 24 anos de idade.

CONCLUSÃO

Talvez, se Graciano fosse melhor dotado de astúcia e determinação, ele poderia ter sido um imperador melhor, mas ele teve o azar de ser coroado muito jovem. Em seu favor, reconhecemos que a maior parte das vicissitudes que o Império enfrentou durante o seu reinado não podem lhe ser atribuídas e, de fato, antecediam ao seu reinado, mas a intolerância religiosa e a preferência pelas tropas bárbaras (sendo que esse último problema praticamente lhe foi imposto pelas circunstâncias) dão um viés negativo ao mesmo.

FIM

MAXIMUS DECIMUS MERIDIUS-GLADIADOR-O QUE É FATO E O QUE É FICÇÃO?

I- INTRODUÇÃO

Acho que se você, amigo leitor, veio até aqui, é porque já viu o filme “Gladiador“, mas, se por acaso, ainda não o tiver assistido, fique alerta de que esse texto tem “SPOILERS“, e nele contamos o enredo do filme (então, a hora de sair é agora, rs!).

O filme é excelente, mas obviamente, como acontece com quase todos os filmes épicos, especialmente os hollywoodianos, o roteiro nem sempre é inteiramente fiel aos acontecimentos históricos.

Identificar no filme o que é fato ou ficção, em si, não é uma tarefa difícil, mas, vamos também, neste artigo, tentar esclarecer se, mesmo no caso dos personagens e situações fictícios, existe alguma verossimilhança, ou, ao menos, verificar se as cenas apresentadas segundo o enredo seriam plausíveis, dentro do que se conhece da História e dos costumes romanos.

II – ROTEIRO

Vamos à trama:

Estamos em 180 D.C: O imperador romano Marco Aurélio encontra-se em Vindobona, na província romana da Panônia, supervisionando o final da campanha contra bárbaros germânicos instalados nas proximidades da fronteira do Império no rio Danúbio. As tropas são conduzidas pelo general hispânico Maximus Decimus Meridius, o “Comandante dos Exércitos do Norte”. A batalha final é sangrenta, mas os romanos vencem. Entretanto, o imperador está doente, e manda chamar de Roma seu casal de filhos: o jovem Cômodo e sua irmã, Lucilla. Após o combate, o esgotado Marco Aurélio chama Maximus para uma conversa particular em sua tenda e lhe conta que deverá morrer em breve, mas que Cômodo não será o seu sucessor, já que o considera incapaz de governar o Império. Além disso, Roma está mergulhada na corrupção, e para remediar isso, ele pretende devolver o poder ao Senado Romano e restaurar a República. Assim, o imperador pede a Maximus que, após a sua morte, este assuma o Império e cuide para que a República seja restaurada. Maximus, que somente anseia ir cuidar de sua mulher e filho e de sua fazenda em Turgalium (atual Trujillo, na Espanha, pede para ser dispensado, mas Marco Aurélio insiste neste propósito. Ao sair da tenda, Maximus reencontra Lucilla, de quem ele já foi amante, e percebe-se que os dois, aparentemente, ainda sentem algo um pelo outro. Marco Aurélio, em seguida, chama Cômodo e informa ao filho que ele não será o novo imperador, pedindo desculpas por não ter sido um bom pai. Cômodo, transtornado ao receber a notícia, mata o pai, asfixiando-o, e, após, informa a irmã que o pai morreu por causa da doença. Maximus, em seguida, é convocado para jurar lealdade ao novo imperador, mas deixa transparecer a sua suspeita pela morte súbita de Marco Aurélio, com quem ele havia estado pouco tempo atrás, e reluta em fazer o juramento. Então, Cômodo, valendo-se da ajuda de Quintus (lugar-tenente de Maximus), manda a Guarda Pretoriana prender Maximus, que é levado à floresta para ser executado. Ali, ele fica sabendo que Cômodo ordenou também a morte de sua família. Porém, na ocasião, Maximus, mesmo após ser ferido, consegue matar seus carrascos e fugir, capturando um cavalo, e galopa da Panônia até a sua propriedade em Trujillo, apenas para constatar que sua mulher e filho tinham acabado de morrer crucificados. Ele desmaia, exausto e com suas feridas apodrecendo. Então, Maximus é encontrado desfalecido por uma caravana de mercadores de escravos destinados à província da Mauritânia, no Norte da África, onde ele é vendido ao lanista (dono de uma escola de treinamento e fornecedor de gladiadores para espetáculos) Proximo, ele mesmo um ex-gladiador. Em pouco tempo, Maximus começa a se destacar na arena, recebendo o apelido de “Espanhol”, e o sucesso dele como gladiador, acaba levando Proximo a conseguir que sua trupe se apresente no Coliseu, em Roma. Enquanto isso, Cômodo, que havia sido falsamente informado da morte de Maximus por Quintus e seus subordinados, tinha voltado imediatamente para Roma sem concluir a guerra, e, ao longo do tempo, vinha se mostrando mesmo inapto para reinar, preferindo dedicar-se à sua paixão pelas lutas de gladiadores, inclusive treinando como um. Então, a luta de Maximus e da trupe de Próximo no Coliseu resultou em grande sucesso, com o “Espanhol” caindo nas graças do público. Cômodo, que assistiu à luta, desce até a arena e pede que Maximus diga o seu nome e mostre o seu rosto. Este inicialmente se recusa, então o imperador faz um gesto chamando a Guarda Pretoriana para punir a todos. Assim, diante da possibilidade dele e seus companheiros gladiadores serem mortos, Maximus se revela e jura que vingará a mulher e o filho. Cômodo fica chocado com a revelação e faz menção de dar a ordem para os Pretorianos matarem Maximus e os outros gladiadores, mas a multidão implorou em coro pela vida deles e, pressionado pela turba, o imperador desiste momentaneamente de executá-los. Todavia, para a próxima luta de Maximus no Coliseu, Cômodo manda preparar umas armadilhas com tigres. Não obstante, Maximus consegue matar todos eles, e, após derrotar seu oponente, poupa a vida dele, contra a vontade de Cômodo, fato que deixa o imperador possesso, mais ainda após o público de novo ovacionar o “Espanhol”. Na saída do Coliseu, Maximus é abordado por seu ex-ajudante de ordens, Cícero, que lhe conta que seus antigos soldados estão acampados nos arredores de Roma. Lucilla, que vinha sendo alvo de investidas, com caráter sexual pelo seu irmão Cômodo, procura Maximus em sua cela na Escola de Gladiadores do Coliseu (Ludus Maximus), junto com o senador Graco, e ambos tentam convencer Maximus a se juntar a uma rebelião para derrubar Cômodo e devolver o poder ao Senado, como planejava Marco Aurélio. Segundo o plano traçado, Maximus fugiria e iria ao encontro de suas antigas legiões, que ele confiava que se uniriam a ele, e derrubariam Cômodo. Porém, o menino Lucius (filho de Lucilla com seu falecido marido, Lucius Verus), que morava junto com a mãe no Palácio, e que é fã do “Espanhol”, acaba inocentemente deixando escapar uma informação e Cômodo ameaça Lucilla, dizendo que se ela não lhe revelar tudo o que sabe sobre os planos de Graco, matará Lucius. A mãe, desesperada, acaba contando tudo e Cômodo ordena que os Pretorianos prendam Graco e matem Maximus, na Escola de Gladiadores. Porém, com a ajuda de Proximo e seus colegas gladiadores, Maximus consegue fugir e vai ao ponto de encontro previamente marcado com Cícero. Porém, os Pretorianos já tinham capturado Cícero e. antes de matá-lo, usam-no para atrair e prender Maximus. Então, Cômodo resolve matar Maximus em um combate encenado no Coliseu lotado, visando ganhar o amor do público, cuidando antes de esfaquear Maximus no pulmão, para que este entrasse na arena enfraquecido. Mas, mesmo mortalmente ferido, durante o combate, Maximus consegue desarmar e derrotar Cômodo, terminando por matá-lo com o seu próprio punhal, enfiando-o lentamente na garganta do imperador. Os Pretorianos adentram a arena parecendo prontos a matar Maximus, porém, Quintus ordena que os soldados fiquem em posição aguardando as ordens do seu antigo comandante. Agonizando, Maximus proclama que o poder deve retornar para o Senado, na pessoa do senador Graco, e morre nos braços de Lucilla, tendo uma visão de sua esposa e de seu filho. O corpo de Maximus é carregado para fora do Coliseu com honras por Graco e Lucius.

Russell Crowe como Maximus, foto: MohamedShnawa, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Resumido o roteiro, cumpre abordar, em primeiro lugar, os personagens do filme que realmente existiram:

III- PERSONAGENS PRINCIPAIS

A) MARCO AURÉLIO E CÔMODO

O imperador Marco Aurélio de fato morreu em Vindobona (atual Viena), em 17 de março de 180 D.C, durante a fase final da duríssima e prolongada campanha do Império Romano contra os bárbaros Marcomanos e Quados, que assolavam a fronteira romana do rio Danúbio.

Busto do Imperador Marco Aurélio, do acervo do Metropolitan Museum, NY.

Porém, ao contrário do que é mostrado no filme, não há evidências de que o filho de Marco Aurélio, o jovem Cômodo (vivido no filme por Joaquim Phoenix, em grande atuação), então com 18 anos de idade e que estava presente quando ele morreu, tenha matado ou mandado matar o próprio pai.

Todas as fontes antigas mencionam que o imperador contraiu a chamada Peste Antonina, que foi trazida para o Império Romano pelos soldados que participaram da campanha contra o Império Parta no início do reinado dele. Somente o historiador romano Cássio Dião escreve ter ouvido um relato de que a morte de Marco Aurélio teria sido acelerada pelos médicos que pretenderam fazer um favor a Cômodo, mas sem ao menos insinuar que teria sido a pedido deste. A verdade é que, segundo todas as fontes, Cômodo não apreciava muito a tarefa de governar, então é muito improvável que, aos 18 anos, ele tenha querido acelerar a morte do pai. Além disso, faltava pouco mais de um mês para o enfermo Marco Aurélio completar 59 anos quando ele morreu, ou seja, Cômodo não precisaria esperar muito para sucedê-lo.

Marco Aurélio, segundo o consenso dos historiadores antigos e modernos, foi um dos melhores imperadores romanos e, provavelmente, o mais erudito entre todos eles. Ele era adepto do Estoicismo, e tentou viver de acordo com os preceitos dessa corrente filosófica, deixando muitos pensamentos e reflexões profundas por escrito, embora não com o intuito de vê-los publicados. Mesmo assim, sentenças e máximas elaboradas por ele até hoje são citadas. Mais detalhes sobre a vida de Marco Aurélio podem ser consultados em nosso blog, em artigo específico.

A famosa estátua equestre de Marco Aurélio, hoje no Museu Capitolino, em Roma. Foto: Nicholas Hartmann, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Embora as fontes antigas realmente mencionem que Marco Aurélio tinha dúvidas acerca da capacidade do filho para reinar, o fato é que, tecnicamente, Cômodo já era imperador desde meados do ano 177 D.C, pois seu pai fez com que ele fosse proclamado Augusto (título exclusivo dos imperadores romanos) neste ano. Portanto, não há o menor indício de que o imperador agonizante tencionasse que outra pessoa que não o seu filho Cômodo o sucedesse, e, muito menos, devolver o poder ao Senado Romano e reinstalar o regime republicano em Roma, algo que um homem sábio como Marco Aurélio certamente sabia não ser factível. Aproveitamos para transcrever os trechos das histórias escritas pelos historiadores romanos Herodiano e Cássio Dião, além da crônica do reinado de Marco Aurélio constante da Historia Augusta:

“Quando o imperador suspeitou que havia pouca esperança na sua recuperação, e percebeu que seu filho se tornaria imperador enquanto ainda era muito jovem, ele temeu que o jovem indisciplinado, privado do conselho paterno, pudesse negligenciar seus excelentes estudos e bons hábitos, e voltar-se para a bebida e depravação (porque as mentes dos jovens, inclinada aos prazeres, são muito facilmente desviadas das virtudes da Educação), quando ele tivesse o poder absoluto e irrestrito.

(…)

Perturbado por esses pensamentos, Marco convocou seus amigos e parentes (para seu quartel-general em Vindobona). Colocando o filho ao seu lado e erguendo-se um pouco de seu leito, ele começou a falar da seguinte maneira:

“Não é surpreendente que vocês fiquem incomodados em me ver nesta condição. É natural que os homens sofram com o sofrimento de um semelhante, e as desgraças que ocorrem ante os seus próprios olhos suscitam uma compaixão ainda maior. Eu penso, entretanto, que um laço de afeição ainda maior exista entre vocês e eu; e, em troca dos favores que eu fiz a vocês, eu tenho o razoável direito de esperar a vossa boa vontade, em reprocidade.

E agora é para mim chegado o momento adequado de descobrir que eu não derramei por tanto tempo sobre vocês honra e estima em vão, e, para vocês, o de retribuir o favor mostrando que vocês não ignoram os benefícios que receberam de mim: Aqui está meu filho, a quem vocês mesmos educaram, chegando à flor da idade e necessitando de pilotos para os mares tormentosos à frente. Eu temo que ele, jogado para lá e para cá pela ignorância das coisas que ele precisa saber, seja despedaçado nas rochas das práticas ruins.

Consequentemente, vocês, juntos, devem assumir meu lugar como pai, cuidando dele e dando-lhe conselhos sábios…Nenhuma quantia de dinheiro é grande o suficiente para compensar os excessos de um tirano, nem a proteção dos guarda-costas é suficiente para proteger o governante que não goze da boa vontade dos seus súditos”

Herodiano, 1.3.1 a 1.4.4

“Ele morreu da seguinte maneira: Quando a sua doença começou a piorar, ele convocou o seu filho e recomendou a ele, em primeiro lugar, que não fizesse pouco caso do que restava da guerra, a fim de que ele não parecesse um traidor do Estado. E quando seu filho respondeu que o seu primeiro desejo era ter boa saúde, ele (Marco) lhe permitiu que procedesse como desejasse, apenas pedindo que esperasse alguns dias e não partisse imediatamente. Então, estando desejoso de morrer, ele recusou-se a comer e beber, assim agravando a doença. No sexto dia, ele convocou seus amigos, e fazendo pouco caso dos assuntos humanos e desprezando a morte, disse a eles: “Por que vocês choram por mim, em vez de se preocuparem com a Peste e com a morte que é parte comum que nos cabe a todos? E quando eles estavam prestes a se retirar, ele resmungou e disse: “E se vocês me dão licença para ir, eu vos dou adeus e morro antes”. E, quando lhe perguntaram a quem ele confiava o seu filho, ele respondeu: “A vocês, e aos deuses imortais”. O exército, quando soube da doença dele, o pranteou em voz alta, porque eles o amavam especialmente. No sétimo dia, ele estava exaurido e somente recebeu o seu filho, e mesmo este, ele despachou imediatamente, por medo de que ele contraísse a doença. E quando seu filho se foi, ele cobriu sua cabeça como se desejasse dormir e, durante a noite, ele deu o seu último suspiro. Comentou-se que ele previu que, após a sua morte, Cômodo viraria o que se tornou, e expressou o desejo de que este morresse, a fim de que ele não se tornasse um outro Nero, Calígula ou Domiciano.”

(Historia Augusta, Life of Marcus Aurelius, 28)

“Agora, se Marcos tivesse vivido mais tempo, ele teria subjugado a região inteira; mas, do jeito que foi, ele faleceu no dia 17 de março, não como resultado da doença da qual ele ainda padecia, mas pela ação de seus médicos, como me foi dito abertamente, que quiseram fazer a Cômodo um favor.

(…)

Apenas uma coisa o impediu (Marco Aurélio) de ser completamente feliz: nomeadamente, que. após criar e educar seu filho da melhor forma possível, ele ficasse tão imensamente desapontado com ele. Esse assunto será o nosso próximo tópico, porque nossa História agora desce de um reino de ouro para um de ferro e ferrugem, como as coisas se tornaram para os Romanos daquele tempo.”

(Cássio Dião, Epítome,LXII, 33 e Livro LXII, 35)

Relevo da Coluna de Marco Aurélio, em Roma, retratando o início da campanha contra os Marcomanos e Quados. Foto:Barosaurus Lentus, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons

Importante observar que a transcrição de discursos de pessoas célebres pelos historiadores antigos, embora fosse um recurso narrativo e estilístico frequentemente usado por eles, quase certamente não é a transcrição exata do que foi dito na ocasião (algo que até podia ocorrer quando eram proferidos em sessões do Senado e transcritos em ata), e visava mais a contextualizar os fatos segundo a opinião ou a visão ideológica do autor.

Assim, o que, ao nosso ver, se extrai do cotejo dos variados relatos, é que Marco Aurélio de fato morreu preocupado com a real capacidade ou com o preparo de Cômodo para ser imperador, e desejava que seus amigos orientassem o filho.

E de fato, os receios de Marco Aurélio quanto à aptidão do filho logo se mostraram justificados:

Em pouco tempo, Cômodo, contrariando o conselho dos amigos de Marco Aurélio, resolveu interromper a campanha contra os bárbaros germânicos e voltou para a Cidade de Roma, onde ele se entregou a uma vida de orgias e à sua paixão pelas lutas de gladiadores. Os assuntos governamentais foram deixados à cargo de seus auxiliares, principalmente seu camareiro, o liberto Saoterus.

Busto de Cômodo, retratado como Hércules. Foto: Capitoline Museums, Public domain, via Wikimedia Commons

Em 182 D.C, entre o segundo e o terceiro ano de seu reinado, Cômodo foi alvo de uma tentativa de assassinato, em uma conspiração da qual a sua irmã Lucilla fez parte, juntamente com alguns senadores, como veremos adiante. No processo de punição aos conspiradores, Saoterus acabou sendo implicado na trama pelo novo Prefeito Pretoriano, Sextus Tigidius Perennis, e assassinado pelo novo camareiro e homem de confiança de Cômodo, o liberto Cleander.

A partir de então, Cômodo deixou de vez às rédeas do governo nas mãos de Cleander e Perennis, que estimularam mais ainda a desconfiança do imperador em relação ao Senado.

O CÔMODO GLADIADOR

Para o leitor que nunca leu sobre a História de Roma, a parte do enredo que talvez pareça mais inverossímil é a de que um imperador romano tenha combatido como gladiador no Coliseu, mas isto realmente aconteceu.

Mesmo assim, o fato do imperador Cômodo ter lutado na arena foi objeto de espanto para os seus contemporâneos e para os historiadores antigos: afinal, a profissão de gladiador era considerada “infamante”, sendo a infamia quase equivalente a uma capitis diminutio (isto é, uma condição que limitava a capacidade civil das pessoas) e aplicável aqueles que praticassem alguma ação ou tivessem alguma profissão, socialmente consideradas como ignomínias (“ignominiosae“), como por exemplo, o fato de ter sido condenado por furto, roubo, bigamia, etc, ou exercício de certas atividades, como a prostituição, a profissão de gladiador e até mesmo a de comediante. Assim, as pessoas consideradas infames não podiam, por exemplo, exercer certos cargos públicos, nem representar alguém em juízo e seu testemunho em juízo tinha valor inferior.

Mosaico Zliten, de Leptis Magna, atual Líbia, mostrando vários tipos de gladiadores e o árbitro das lutas. Foto: By Unknown author – Livius.org, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3479030

Entretanto, os relatos dos historiadores variam em poucos detalhes em relação à dimensão da atuação de Cômodo, enquanto gladiador:

Vejamos o relato de Herodiano:

“E agora, o imperador, deixando de lado toda discrição, tomou parte nos espetáculos públicos, prometendo matar com suas próprias mãos animais selvagens de todo tipo e lutar em combates gladiatórios contra os jovens mais valentes. Quando essas novas tornaram-se conhecidas, pessoas de toda a Itália e das províncias vizinhas afluíram a Roma para testemunhar o que ninguém até então havia visto ou até mesmo ouvido falar anteriormente.

(…)

No que concerne a estas atividades, entretanto, mesmo se a conduta dele dificilmente pudesse ser considerada apropriada para um imperador, ele ganhou a aprovação da massa pela sua coragem e boa pontaria. Porém, quando ele adentrou o Anfiteatro (Coliseu) nu, empunhando armas e lutando como gladiador, o povo testemunhou um espetáculo vergonhoso: um imperador dos Romanos, de nascimento nobre, cujos pais e antepassados tinham vencido tantas batalhas, entrando no campo de batalha não contra bárbaros ou inimigos dignos dos Romanos, mas desgraçando a sua alta posição mediante exibições degradantes e desagradáveis.”

Herodiano, 1.15.1

O relato de Cássio Dião, por sua vez, é um pouco mais detalhado:

“Além disso, ele costumava combater como um gladiador; e, fazendo isso em sua casa, de tempos e tempos, ele matava um homem, e, ao treinar golpes com outros, tentando cortar um tufo dos cabelos deles, decepou os narizes de uns e as orelhas de outros, e ainda, partes variadas de outros mais; porém, em público, ele se absteve de usar o aço para derramar sangue humano.

(…)

No primeiro dia, ele matou sozinho uma centena de ursos, acertando-os com dardos a partir da balaustrada do Anfiteatro; porque todo o anfiteatro tinha sido dividido por meio da interseção de dois muros cruzados que suportavam a galeria que percorria toda a sua extensão, com o propósito de que as feras, divididas em quatro matilhas, pudessem ser mais facilmente atingidas com a lança de curta distância de qualquer ponto.

(…)

Então, no primeiro dia, os eventos que eu descrevi ocorriam. Nos outros dias ele descia da arena do seu palanque e abatia todos os animais domésticos que se aproximavam dele e também outros que eram levados a ele em redes. Ele matou também um tigre, um hipopótamo e um elefante. Tendo concluído esses feitos, ele se retirava, mas à tarde, depois de almoçar, ele lutaria como gladiador. A modalidade de luta que ele treinava e a armadura que ele usava eram aquelas dos secutores, como eles eram chamados: ele segurava o escudo em sua mão direita e a espada de madeira na sua esquerda, e de fato ele tinha muito orgulho de ser canhoto. O seu adversário seria algum atleta ou, incidentalmente, um gladiador armado com uma vara; algumas vezes, alguém que ele mesmo havia desafiado, outras vezes, algum escolhido pelo povo, pois nisto, assim como em outras questões, ele se colocava no mesmo plano em relação aos demais gladiadores, exceto pelo fato de que estes eram selecionados para atuar por uma quantia bem pequena, enquanto Cômodo recebia um milhão de sestércios pagos pelo Fundo Gladiatório por cada dia.”

Cassius Dio, Epítome do Livro LXXIII

E, finalmente, a versão relatada pela Historia Augusta:

“Ele combateu na arena contra gladiadores inexperientes, mas, às vezes, contra seus camareiros, atuando como gladiadores, usando espadas afiadas.

(…)

Ele participou de combates gladiatórios, e adotou os nomes geralmente dados aos gladiadores com tanta satisfação como se a ele tivessem sido dados ornamentos triunfais. Ele regularmente tomava parte nos espetáculos, e ordenava que esses fatos fossem inscritos nos registros públicos, tantas quantas fossem as vezes que ele o fazia. Conta-se que ele participou de 735 lutas de gladiadores.”

Historia Augusta, “Life of Commodus”, 5, 5

Portanto, os relatos dão conta de que Cômodo, no Coliseu, geralmente participava de combates com espadas de madeira (rudis), ou seja, espadas de treinamento, apresentando-se como secutor (um tipo de gladiador que lutava com um gládio pequeno ou uma adaga e escudo, tendo um dos braços protegidos por uma manica, que era uma proteção de placas de metal circulares e articuladas, presas a tiras de couro, cobrindo o braço e o antebraço, e a cabeça por um elmo ornamentado) e, ocasionalmente, quando os combates eram para valer, ele lutava com espadas de verdade, enfrentando gladiadores inexperientes ou até mesmo seus próprios servos, indicando nestes casos, que provavelmente tratavam-se de lutas arranjadas. Considerando que os secutores vestiam apenas uma subligaculum (ou seja, roupa de baixo, mais especificamente, uma espécie de cueca atada como se fosse um fraldão), o que era inadmissível para um romano distinto fazer em público, não espanta que Herodiano tenha escrito que Cômodo apresentava-se “nu” na arena.

O gladiador da direita é um secutor, o tipo preferido por Cômodo. (foto This site, Public domain, via Wikimedia Commons)

Segundo Cássio Dião, o próprio Marco Aurélio, nos espetáculos em que este imperador comparecia (e portanto, ainda que não os tivesse patrocinado, ele seria considerado como o Editor, isto é, a pessoa que oferecia e pagava o espetáculo, e portanto, determinava quais seriam as regras, inclusive, se os gladiadores lutariam até a morte e, neste caso, se o perdedor seria poupado), exigia que os atletas lutassem usando armas com as pontas protegidas, para que não houvesse derramamento de sangue (Cássio Dião, Epítome, Livro LXII, 29). Aliás, este fato assinala outra pequena impropriedade do roteiro, pois, no filme, ouvimos Proximo, dizer, em um diálogo com Maximus, que Marco Aurélio tinha proibido os jogos de gladiadores em Roma, o que, como se vê, não corresponde aos fatos.

MORTE DE CÔMODO

Cômodo foi assassinado em 31 de dezembro de 192 D.C., por um lutador. Todavia, ao contrário do que poderia parecer por esta curta descrição, isto ocorreu de maneira bem diferente daquela que é retratada no filme. Como não há divergência entre os relatos dos historiadores antigos, vamos deixar de transcrever as passagens, e apenas relatar como ocorreu o evento.

O absenteísmo de Cômodo pelas tarefas governamentais, seu crescente despotismo e a paixão desmedida pela profissão de gladiador tornaram seu comportamento imprevisível e ameaçador até mesmo para seus auxiliares e pessoas mais íntimas, os quais tentavam dissuadi-lo de atos cada vez mais tresloucados.

Assim, após ter sido aconselhado por sua amante, Márcia, pelo Prefeito Pretoriano, Emílio Leto e por seu camareiro, Ecletus, a não comparecer à sessão de abertura anual do Senado Romano vestido como gladiador e acompanhado de outros gladiadores, conforme desejo que ele havia manifestado Cômodo, contrariado por esses apelos, resolveu decretar a morte dos três, escrevendo a ordem para a execução em uma tabuleta de cera.

Porém, enquanto tomava banho, um dos seus favoritos, um menino que tinha o sugestivo nome de Philocommodus (em grego, “aquele que ama Cômodo”), pegou a tabuleta e a mostrou a Márcia, que imediatamente, percebeu do que se tratava e avisou aos dois auxiliares, também condenados.

Então, os três resolveram assassinar Cômodo antes que ele tivesse a chance de matá-los. Márcia se encarregou de arrumar um veneno e servi-lo a Cômodo misturado em uma taça de vinho. Porém, ao ingerir a bebida, após terminar o seu banho, o imperador começou a se sentir mal, e acabou vomitando o veneno. Temerosos de que Cômodo logo descobriria a causa do seu mal estar, os três conspiradores abordaram Narcissus, que era um jovem lutador (provavelmente de pancratium, uma luta que pode ser considerada como precursora da atual MMA) que treinava com Cômodo no Palácio e o subornaram para que ele desse cabo ao imperador. Assim, Narcissus aceitando o encargo, adentrou os aposentos de Cômodo e o estrangulou, sem dificuldade. O imperador tinha, então, 31 anos de idade.

Para saber mais sobre as vidas e os reinados de Marco Aurélio e Cômodo, recomendamos a leitura do nosso artigos sobre esses imperadores (é só clicar nos seus nomes).

B) LUCILLA

Personagem feminina principal do filme, Lucilla é a irmã de Cômodo e ela aparece no filme como a filha predileta de Marco Aurélio, de quem ela compartilha os ideais. De acordo com o roteiro, Lucilla, antes ou depois de ficar viúva de seu marido, Lúcio Vero, manteve um caso de amor com o principal general de seu pai, Maximus. Segundo o enredo, percebendo as intenções tirânicas de Cômodo, Lucilla resolve colaborar com influentes senadores que se opunham ao reinado de seu irmão, e tramam restaurar a República. Ela também é alvo de investidas com fins libidinosos de Cômodo, mas deixa de resistir de maneira mais enfática por medo de que o irmão possa fazer mal ao seu filho, Lucius. No filme, Lucilla é interpretada pela atriz Connie Nielsen, em atuação primorosa.

Estátua de Lucilla, retratada como a deusa Ceres. Foto: Bardo National Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

Na vida real, Lucilla, cujo nome completo era Annia Aurelia Galeria Lucilla, de fato era a irmã mais velha de Cômodo e efetivamente ela se casou com Lúcio Vero, que foi aclamado imperador junto com Marco Aurélio, em 161 D.C (o casamento foi celebrado em 164 D.C., ocasião em que ela tinha entre 14 e 16 anos de idade), e o casamento durou até ele morrer vitimado por uma doença, em 169 D.C. Em consequência de seu casamento com Lúcio Vero, Lucilla recebeu o título de Augusta (Imperatriz), a posição máxima que uma mulher romana poderia aspirar na sociedade patriarcal romana, e todos os privilégios associados a esta posição.

Lucilla e Lúcio Vero tiveram três filhos: Aurelia Lucilla, Lucilla Plautia e Lucius Verus, mas a mais velha e o caçula morreram ainda crianças, e somente Lucilla Plautia parece ter alcançado a idade adulta.

O imperador Marco Aurélio, após a morte de Lúcio Vero, decidiu que sua filha viúva deveria casar de novo, e ele escolheu para ser o novo marido de Lucilla, o general Tiberius Claudius Pompeianus, um de seus auxiliares mais próximos, que comandara com sucesso as legiões da província romana da Panônia, no norte do Império, e que também derrotara invasões dos bárbaros germânicos Lombardos e Marcomanos.

O casamento com Lucilla, sem dúvida, foi uma honra imensa para Pompeianus, que era um cidadão oriundo da ordem equestre e nativo de Antióquia, na Síria, mas que, devido aos seus méritos militares, combatendo sob as ordens de Lúcio Vero na campanha contra os Partas, havia ascendido ao Senado (o que o tornava um integrante da nobreza, embora na condição de novus homo – “homem novo” – isto é, alguém que não tinha ascendentes que tivessem sido senadores) e sido nomeado Cônsul Suffectus, em 162 D.C. (o Cônsul Suffectus era designado para atuar por um período inferior a um ano, na falta do Cônsul Ordinário). Posteriormente, em 173 D.C, Pompeianus seria nomeado Cônsul Ordinário.

Entretanto, embora Pompeianus, então, na oportunidade tivesse um status social elevado, este era ainda bem inferior ao de Lucilla, que era filha e descendente de imperadores, situação que desagradou tanto a noiva como a sua mãe, segundo podemos ver nesta passagem da Historia Augusta:

“Justo antes de partir para Guerra Germânica, e antes que o período de luto tivesse terminado, ele (Marco Aurélio) casou sua filha com Claudius Pompeianus, o filho de um Equestre, e já avançado em anos, um nativo de Antióquia, cujo nascimento não era suficiente nobre (embora depois, Marco Aurélio o tenha feito Cônsul duas vezes), uma vez que a filha de Marco Aurélio era uma Augusta e filha de outra Augusta. De fato, tanto Faustina quanto a jovem que foi dada em casamento se opuseram a esta união.”

(Historia Augusta, Life of Marcus Aurelius, 20)

Além disso, Pompeianus, na ocasião do casamento, tinha cerca de 44 anos de idade, enquanto que Lucilla tinha por volta de 21 anos…

Porém, Marco Aurélio tinha boas razões para unir Lucilla a Pompeianus.

Com efeito, quando Lúcio Vero morreu, seu único filho sobrevivente do sexo masculino era Cômodo, mas que tinha apenas 8 anos de idade. Marco Aurélio com toda a certeza entendeu que, caso ele morresse (uma possibilidade nada desprezível, tendo em vista a Peste que grassava no Império), o risco de que algum pretendente ambicioso liderasse uma revolta reclamando o trono era considerável e a melhor garantia para aumentar as chances de seu jovem filho conseguir ser imperador era trazer um general respeitado para o seio da família, considerado o mais leal e confiável possível à dinastia (o que de fato, Pompeianus provaria ser). Observe-se que o primeiro imperador,Augusto, experimentara exatamente este mesmo dilema em relação a dois de seus únicos descendentes de sangue sobreviventes, os infantes Caio e Lúcio César, obrigando-o a casar sua filha Júlia com seu amigo Agripa, também de classe social inferior, mas um comandante respeitado. Dentro dessa mesma lógica, Marco Aurélio confiava que se Pompeianus (assim como Agripa) reinasse, ele reinaria em conjunto com Cômodo ou seria sucedido por este) .

A diferença de idade entre os cônjuges, contudo, não impediu que eles tivessem um filho: por volta de 176 D.C, Lucilla deu a luz a um menino, que recebeu o nome de Lucius Aurelius Commodus Pompeianus.

O historiador Herodiano dá a entender que Marco Aurélio permitiu que Lucilla mantivesse alguns dos privilégios inerentes ao status de imperatriz após a morte de Lúcio Vero, não obstante sua esposa Faustina, a Jovem, a mãe de Lucilla, fosse, desde então, a única Augusta (Imperatriz). Entretanto, conforme já mencionamos, em 177 D.C, Marco Aurélio decidiu que era já hora de nomear Cômodo co-imperador, dando-lhe o título de Augusto, reforçando a posição do filho como seu sucessor natural.

Naturalmente, a elevação de Cômodo afetou diretamente as expectativas que Lucilla pudesse acalentar quanto às chances de seu marido, Pompeianus, vir a suceder Marco Aurélio, e, com isso, ela se tornar novamente a imperatriz-consorte. E quaisquer anseios neste sentido restaram ainda mais enfraquecidos quando, em 178 D.C, seu irmão Cômodo casou-se com a rica aristocrata Bruttia Crispina, que imediatamente recebeu o título de Augusta, tornando-se a única imperatriz romana, tendo em vista que Faustina, a Jovem, morrera em 175 D.C.

Ao contrário do que é retratado no filme, as fontes antigas dão a entender que a verdadeira Lucilla, do mesmo modo que o seu irmão Cômodo, tinha graves falhas de caráter.

Assim, após a morte do pai, e constatando a inaptidão do irmão para governar, a sua ambição e o seu ciúme e orgulho ferido pela posição inferior à da nova imperatriz Bruttia Crispina impeliram Lucilla a participar ativamente da conspiração que, em 182 D.C, tentou assassinar Cômodo.

A conspiração envolveu diretamente familiares e pessoas próximas à Lucilla, como a sua filha Plautia, mas também vários senadores, e o seu objetivo final era assassinar Cômodo e substituí-lo no trono por Tiberius Claudius Pompeianus, o marido de Lucilla, que com isso voltaria à almejada posição de Imperatriz. Segundo o relato de Herodiano, Lucilla instigou seu primo, Marcus Ummidius Quadratus Annianus, de quem ela supostamente seria amante, a dar andamento ao plano. Este, por sua vez, persuadiu um certo Quintianus, jovem senador que seria sobrinho, ou mesmo filho do primeiro casamento de Pompeianus, a ser o executor da trama. Segue o relato:

“Porém, quando Cômodo desposou Crispina, o costume exigia que o primeiro assento no Teatro fosse reservado para a Imperatriz. Lucilla teve dificuldade em suportar isso, e sentia que todas as honras devidas à Imperatriz eram um insulto para ela; No entanto, considerando que ela sabia bem que o seu marido Pompeianus era muito devotado a Cômodo, ela não contou nada a ele sobre os planos dela de tomar o controle do Império. Em vez disso, ela testou os sentimentos de um jovem e rico aristocrata, Quadratus, com quem havia boatos de que ela estivesse dormindo em segredo. Queixando-se constantemente acerca desses assuntos de precedência imperial, ela logo persuadiu o o jovem a dar andamento a conspiração que trouxe destruição sobre si mesma e sobre todo o Senado.”

Herodiano, 1.8.4

Planejou-se, então, que Quintianus, valendo-se de uma adaga escondida sob sua toga senatorial, atacaria Cômodo na ocasião mais propícia. E a ocasião e o local escolhidos foram um dia de espetáculo no Coliseu.

No dia escolhido, Quintianus esperou que Cômodo adentrasse uma passagem onde a luz era escassa, esperando valer-se da escuridão tanto para facilitar a abordagem ao imperador, como a sua fuga. Porém, quando o imperador se aproximou, o jovem, antes de desferir os golpes, resolveu dizer a frase: “Eis a adaga que o Senado vos envia“, alertando os guardas pretorianos, que rapidamente pularam sobre ele e o prenderam.

Com o fracasso do atentado, Quintianus e Quadratus foram imediatamente executados e Lucilla e sua filha foram banidas para a ilha de Capri. Entretanto, antes que o ano de 182 acabasse, Cômodo resolveu mandar executar a irmã e enviou um centurião até a ilha, o qual deu cabo da tarefa e jogou o corpo de Lucilla no mar. Plautia foi poupada.

Surpreendentemente, Tiberius Claudius Pompeianus também foi poupado, dando suporte à versão de Herodiano de que ele, a quem a esposa e os demais conspiradores tencionavam que substituísse Cômodo, ignorava completamente a trama.

Vale citar que Pompeianus foi um dos amigos presentes no leito de morte do pai de Cômodo, aqueles aos quais o moribundo Marco Aurélio pediu que protegessem e guiassem o filho com bons conselhos. Extrai-se do relato dos dias que se seguiram à morte do velho imperador, isto é, os primeiros do reinado de Cômodo, que este ouvia e respeitava Pompeianus, e, seja porque o jovem monarca confiava nele, seja por temer o prestígio dele ou por amor à memória do pai, o fato é que Pompeianus sobreviveu ao próprio Cômodo, morrendo por volta de 193 D.C, quando já tinha quase 70 anos. Inclusive, Pompeianus também entraria para a História Romana, como tendo sido até então a única pessoa que por três vezes teria recusado o trono, que também lhe foi oferecido pelos imperadores Pertinace e Dídio Juliano.

Para finalizar, é altamente improvável que Cômodo tenha tentado se insinuar sexualmente para Lucilla, como aparece no filme. Ela era entre 11 e treze anos mais velha que o irmão. Quando o pai de ambos morreu, ela tinha entre 30 e 32 anos de idade e Cômodo tinha 18 anos.

Assim, falamos sobre os três personagens importantes do filme que realmente existiram. Vamos agora abordar o principal personagem que, contudo, é fictício.

C) MAXIMIS DECIMUS MERIDIUS

Sim, prezado leitor, provavelmente você já sabia disto, mas, caso ainda não saiba, o carismático personagem tão bem interpretado por Russell Crowe jamais existiu.

Para começar, o próprio nome Maximus Decimus Meridius não corresponde ao padrão de nomes adotado pelos romanos: Maximus não era um prenome, mas um cognome, que costumava vir por último, atribuindo uma qualidade ao nomeado, que no caso em questão, seria traduzido como “o maior” ou “enorme”, embora ao longo do tempo tenha virado o sobrenome de algumas famílias romanas ilustres. Assim, o nome correto do nosso herói, de acordo com as convenções romanas seria : Decimus Meridius Maximus, sendo que “Decimus” era um prenome que originalmente significava que alguém seria o décimo filho de determinada pessoa, mas no decorrer da existência de Roma, acabou virando um prenome comum (o mesmo ocorrendo com “Tertius“, “Quintus“, “Sextus” e “Septimus“, por exemplo). Por sua vez, o nome do meio “Meridius“, que seria o nome da gens, ou clã familiar ancestral, a qual o nosso personagem pertenceria, não tem registro nas fontes, sendo provavelmente inventado pelos roteiristas. Traduzido do latim, significaria algo como “do sul”.

IV- A VIDA E A CARREIRA DE MAXIMUS, COMO RETRATADAS NO FILME, SERIAM PLAUSÍVEIS?

Cartaz do filme em baixa resolução, Source: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Gladiator_(2000_film_poster).png

É praticamente consenso que o Cônsul e genro do imperador Marco Aurélio, o já mencionado Tiberius Claudius Pompeianus, foi a principal figura histórica que inspirou a personagem Maximus Decimus Meridius, protagonista do roteiro do filme Gladiador.

Vamos às semelhanças:

1) Pompeianus era nativo da rica província da Síria, e, sendo filho de um integrante da classe Equestre (abaixo da classe senatorial), embora sua família pudesse ter dinheiro, isso não lhe assegurava ascensão aos cargos mais importantes do Império. Maximus era oriundo da também próspera província romana da Hispania Lusitania (cuja capital era Emerita Augusta, a atual Mérida, na Espanha), onde ele tinha sua propriedade, ou então das vizinhas Hispania Baetica ou Hispania Tarraconensis), e, da maneira que ele é retratado no filme, também deve ter vindo de uma família relativamente afluente, provavelmente também sendo originalmente um Equestre.

2) Ambos ascenderam socialmente graças a uma carreira militar de sucesso, e chegaram a ser cotados para se tornarem imperadores, sendo que Pompeianus foi nomeado Cônsul pela primeira vez quando tinha cerca de 37 anos, como recompensa pelo desempenho na Guerra contra os Partas. Quando Marco Aurélio morreu, Pompeianus tinha cerca de 55 anos. Podemos estimar a idade de Maximus, na ocasião da morte do imperador, entre 35 e 40 anos de idade (Russell Crowe tinha 36 anos quando o filme foi produzido, e é altamente improvável que alguém atingisse a posição de Maximus antes de completar 35 anos, naquele tempo, em Roma).

3) Os dois personagens, o real e o fictício, ganharam o reconhecimento do imperador Marco Aurélio, de quem se tornaram amigos. Pompeianus casou-se com Lucilla, filha do imperador, após a morte do marido dela, Lucius Verus, e por algum tempo, ainda que de maneira não expressa, ele chegou a ser considerado como sucessor no trono, com o consentimento de Marco Aurélio (consta que este chegou a propor isto ao genro). Já no filme, Maximus não foi casado com Lucilla, mas teve um caso com ela, embora o filme dê a entender que isto tenha ocorrido antes dela se casar.

4) Quando Marco Aurélio morreu, em 180 D.C, no final da campanha contra os Marcomanos no Danúbio, Pompeianus, que era o comandante militar da mesma, estava entre os amigos a quem o imperador moribundo pediu que orientassem o filho Cômodo no comando do Império. Maximus também atingiu alto posto militar, tendo o posto, também fictício, de “Comandante dos Exércitos do Norte“, que, no enredo do filme, também equivaleria ao comando supremo daquela mesma campanha.

5)Maximus, assim como Pompeianus, é um dos poucos amigos chamados por Marco Aurélio para comparecerem ao seu leito de morte, onde Maximus recebe a notícia de que ele será o sucessor, mas com a incumbência de devolver o poder ao Senado. Como vimos, por algum tempo, Marco Aurélio considerou a possibilidade de Pompeianus ser o seu sucessor, embora o tenha feito vários anos antes de sua morte, e com o propósito de assegurar que Cômodo um dia pudesse reinar.

Por sua vez, a fuga, sobrevivência, desaparecimento e mudança de identidade de Maximus como aparecem no filme podem parecer fantasiosas, mas os historiadores romanos por vezes relataram algumas histórias reais semelhantes…Uma que se aproxima bastante de uma trama de Hollywood é a de Sextus Condianus, filho de Sextus Quinctilius Valerius Maximus, que era um senador riquíssimo e muito influente até ser condenado à morte por Cômodo, junto com seu irmão Sextus Quinctilius Condianus, tendo ambos sido Cônsules no ano de 151 D.C. Aliás, talvez (não sabemos) a escolha do nome do personagem do filme tenha sido inspirada por este episódio.

Segundo o relato de Cássio Dião, o Sextus Condianus, filho, ao saber que também havia sido sentenciado à morte por Cômodo junto com seu pai e seu tio, também conseguiu escapar de uma maneira quase tão mirabolante quanto nosso Maximus:

“Sextus Condianus, o filho de Maximus, que superou todos os outros em virtude tanto de sua habilidade inata como de seu treinamento, quando ouviu que a sentença de morte tinha sido pronunciada contra ele também, bebeu o sangue de uma lebre (ele estava morando na Síria na época), e depois montou em uma cavalo, caindo dele de propósito; em seguida, ele vomitou o sangue, que supostamente seria o dele, sendo erguido, aparentemente em vias de morrer, e carregado até o seu quarto. Então, ele mesmo desapareceu, enquanto o corpo de um carneiro foi colocado no seu lugar em um caixão, onde foi cremado. Depois disso, ele vagou por aqui e acolá, constantemente trocando de aparência e de roupas. E quando a sua estória veio à tona (porque é impossível que tais assuntos fiquem ocultos por muito tempo), ele foi procurado diligentemente de cima a baixo. Muitos foram punidos em seu lugar, por conta da semelhança com ele, e também muitos outros que, supostamente teriam lhe dado abrigo em algum lugar; e mais ainda, pessoas que talvez jamais o tenham visto tiveram suas propriedades confiscadas. Mas ninguém sabe se ele realmente foi morto – embora um grande número de cabeças que supostamente seriam a dele tenham sido levadas à Roma – ou se ele conseguiu escapar. Entretanto, outro homem, após a morte de Cômodo, audaciosamente alegou ser Sextus e tentou recuperar a sua riqueza e status. E ele bravamente interpretou esse papel, embora sendo muito questionado por várias pessoas; no entanto, quando Pertinace lhe indagou algo sobre assuntos gregos, com os quais Sextus tinha sido bem familiarizado, ele mostrou o maior embaraço, sendo incapaz até de entender a pergunta. Assim, embora a natureza o tenha feito semelhante a Condianus em aparência, e o treino em outros aspectos, no entanto ele não compartilhava a sua instrução.”

Cassius Dio, Epítome do Livro LXXIII (LXXII), 6

 

E agora, vamos falar sobre as principais inconsistências e inverossimilhanças do roteiro:

1) Embora não seja uma parte fundamental para a trama do filme, vamos começar pela impressionante cena inicial: A batalha na floresta contra os bárbaros germânicos.

O Exército Romano inicia o combate com uma carga de artilharia de onagros, isto é, uma espécie de catapulta que arremessa pedras ou outros materiais pesados, em direção à floresta onde os inimigos estão escondidos. No caso, os projeteis são uma espécie de granada incandescente, com o objetivo de incendiar a floresta.

Ocorre que não há registro do uso desse tipo de arma em batalhas campais. Onagros eram utilizados em sítios ou cercos a muralhas ou posições fortificadas. As máquinas de guerra que os romanos utilizavam em um campo aberto de batalha contra os inimigos eram a ballista e o “escorpião” (scorpio), que atiravam dardos pesados ou pedras, mas não visando uma trajetória parabólica para ultrapassar defesas, e sim um impacto direto e preciso contra alvos. Além disso, vemos que no filme, logo em seguida à barragem de artilharia, o Exército Romano penetra na floresta ainda em chamas, o que, no mínimo, seria uma grande idiotice.

Um onagro romano (foto: Dayot, Armand. Le moyen âge: la Gaule romaine, les invasions, la France féodale, la royauté. (Paris Flammarion 1911), Public domain, via Wikimedia Commons)
Um “escorpião”, em relevo da Coluna de Trajano. Foto: Attributed to Apollodorus of Damascus, Public domain, via Wikimedia Commons
Uma ballista reconstruída. Foto : Rolf Krahl, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

2) Vamos abordar agora um episódio fundamental na vida de Maximus, que é altamente improvável da forma que se vê no filme, bem como juridicamente impossível de acordo com o Direito Romano do período, a não ser que fossem inseridas algumas circunstâncias, que em nenhum momento são mostradas:

Como já mencionamos, e pode ser visto na tela, após conseguir escapar de seu assassinato pelos pretorianos, ainda na Panônia, Maximus, ferido, cavalga até a sua fazenda, na Hispania Lusitania (que ficava a cerca de 2.600 km, em um trajeto terrestre que levaria mais de 40 dias, no mínimo, isso usando-se o Correio Imperial em sua velocidade máxima), apenas para encontrar os cadáveres da esposa e do filho, aparentemente recém mortos.

Maximus então desfalece e é recolhido, agonizante, por mercadores de escravos que se dirigem à província da Mauritania Caesariensis (localizada na atual Argélia), onde ele é vendido ao lanista (empresário que explora lutas de gladiadores) e ex-gladiador, Proximo.

Pois bem, no Direito Romano Clássico (que abrange o período do reinado de Cômodo), as causas de escravidão, ou seja, aquelas pelas quais um ser humano nascia ou se tornava escravo estavam previstas no ius gentium (lit. “Direito das Gentes”, aquele reconhecido pelos romanos como praticado por – e aplicável a – todos os povos) e no ius civile (direitos instituídos diretamente por Roma, e reconhecidos apenas aos cidadãos romanos).

De acordo com o ius gentium, as duas causas de escravidão eram o nascimento (ter nascido como filho de escrava) e a captura na guerra por um inimigo (ou na paz, caso Roma não tivesse tratado de amizade com o Estado ou povo do qual o escravo era oriundo).

Já com base no ius civile, tornavam-se escravos: a) o condenado a morte ou a trabalhos forçados nas minas; b) a mulher livre amante de um escravo, que, notificada três vezes pelo proprietário do escravo para que cessasse a prática, continuasse a manter relações sexuais com este; c) o homem livre, maior de 20 anos, que, fingindo ser escravo, combinava a sua venda para outra pessoa com um comparsa, dividindo o preço com este (um tipo de estelionato que, por incrível que pareça, devia ocorrer com alguma frequência); d) o liberto que demonstrasse ingratidão com seu antigo dono.

Na época de Cômodo, já havia caído em desuso, aliás, desde os tempos da República, a figura do addictus, isto é, aquele devedor que, ao não pagar a dívida, poderia ser “adjudicado” ao credor pelo juiz, e, após 60 dias, caso o débito não fosse pago por ele ou outra pessoa, o credor tinha a faculdade de vendê-lo como escravo no estrangeiro ou até matá-lo.

Dito isto, o leitor deve estar se perguntando: “Mas Maximus não foi condenado a morte por Cômodo?”

De acordo com o que se vê no filme, a eliminação de Maximus claramente não se trata da execução legal de uma sentença de morte, mas de um assassinato (por isso ele é levado secretamente até a floresta). Aliás, o fato da mulher e o filho dele terem sido crucificados é um claro indício disto: de acordo com a lei romana, cidadãos romanos não podiam ser crucificados! (Até os Atos dos Apóstolos ecoam essa regra, quando São Paulo informa ao Governador da Síria que é um cidadão romano da cidade de Tarso, e, após apelar ao Imperador (Provocatio ad Princeps), é levado à Roma e afinal executado por decapitação).

A escravidão era um instituição central na sociedade romana, e juízes, juristas e governantes, mesmo nos reinados de imperadores mais absolutistas, observavam criteriosamente a legislação e os costumes aplicáveis ao instituto. Eu estudo sobre Roma há mais de 40 anos e já li incontáveis relatos sobre atos tirânicos e despóticos atribuídos aos imperadores romanos, incluindo assassinatos, estupros, tortura e massacres, mas não me lembro de nenhum caso em que um deles tenha conscientemente escravizado algum cidadão romano livre sem um processo legal.

Desse modo, Maximus não poderia ter sido vendido como escravo a Proximo.

Assim, a forma pela qual Maximus poderia ter se tornado gladiador seria tornando-se um auctoratus, o homem livre que se compromete ao lanista, mediante contrato por juramento (auctoramentum), a lutar como gladiador, consentindo a “se deixar queimar, prender, açoitar, morrer, etc”. Os juristas a consideravam uma forma de “quase-servidão”, que não retirava do gladiador o status de homem livre, mas que impunha graves restrições à sua capacidade jurídica, sobretudo aquelas decorrentes da condição de infame, inerentes a certas profissões, como a de gladiador.

Entretanto, não há no filme qualquer situação que presuma o auctoramentum de Maximus.

3) Mas, finalmente, talvez a maior inverossimilhança de todas no roteiro do filme tenha sido o propósito manifesto de Marco Aurélio de que Maximus devolvesse o poder ao Senado Romano e restaurasse a República…

Segundo os textos históricos, especialmente os relatos dos historiadores Cássio Dião, Flávio Josefo e Suetônio, a última vez em que isso chegou a ser cogitado seriamente foi em 41 D.C (140 anos antes dos eventos mostrados no filme), após o assassinato do imperador Calígula.

Os guardas pretorianos que mataram Calígula, após encontrarem o tio deste, Cláudio, escondido atrás de uma cortina, o levaram para o quartel da Guarda e o aclamaram imperador.

Cláudio, sincera ou fingidamente, tentou recusar a púrpura imperial, mas acabou cedendo à pressão dos guardas, aceitou. Porém, alguns senadores, especialmente Sentius Saturninus, que fez no Senado um discurso neste sentido, e, até mesmo, alguns outros pretorianos, cogitaram acabar com o Principado e restaurar a República Romana, tal como ela era nos tempos anteriores aos Césares.

Consta até que o Senado, com o objetivo de enfrentar os partidários de Cláudio, chegou a mobilizar na oportunidade os parcos recursos armados que a cidade de Roma dispunha. Porém, este contingente, composto apenas por alguns soldados, vigiles (bombeiros), gladiadores e, mesmo, escravos libertos dos senadores, logo debandou para o lado dos Pretorianos que apoiavam Cláudio.

Esse estado de indefinição entre a aclamação de Cláudio e a restauração da democracia, segundo Suetônio, durou dois dias, ao final dos quais o historiador narra  que teria ocorrido uma crucial intervenção de uma massa de populares gritando pela elevação de Cláudio, que também teria prometido quinze mil sestércios como donativo aos soldados que o aclamaram imperador.

E de fato, em vários outros episódios da Roma Imperial, restaria evidente que a plebe preferia ser governada pelos príncipes em vez dos senadores…

V- CONCLUSÃO

O filme Gladiador é um excelente filme épico sobre a época da Roma Antiga. Como toda superprodução de Hollywood, o roteiro algumas vezes se desvia dos fatos históricos e faz concessões ao drama e ao espetáculo, mas se você chegou até aqui, pôde constatar que ele nem é tão inverossímil e muitas das façanhas e vicissitudes vividas por Maximus e os demais personagens de fato aconteceram ou, ao menos, poderiam ter acontecido como no filme.

Aliás, para nós que amamos o filme, temos uma boa notícia: a estreia de Gladiador 2 esta prevista para novembro de 2024, com Russell Crowe no elenco e novamente dirigido por Ridley Scott!

FIM

Fontes:

Maximus Decimus Meridius

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CESARION – O ÚLTIMO FARAÓ

Em 23 de junho de 47 A.C. nasceu Ptolemaios XV Philopator Philometor Caesar (Cesarion), filho de Cleópatra VII, rainha do Egito, e, segundo a mesma declarou, e foi aceito por várias fontes antigas, de Caio Júlio César, Ditador da República Romana. O nome significa, em grego, “Ptolemeu, filho amado de seu pai, filho amado de sua mãe, César“.

Caesarion

(Acredita-se que esta cabeça de estátua, encontrada no fundo do mar na baía de Alexandria, retrate Cesárion)

Cesárion, como o menino ficaria conhecido, muito provavelmente foi o fruto do relacionamento amoroso que Júlio César manteve com Cleópatra, após o primeiro ter invadido o Egito, intervindo em favor da jovem rainha na disputa sucessória que esta travava pelo trono contra seu irmão, Ptolomeu XIII (e que também, de acordo com o costume faraônico, era marido dela).

Considerando que César, em seguida ao assassinato de seu rival Pompeu, chegou à Alexandria no início de outubro de 48 A.C., Cesárion deve ter sido concebido no primeiro encontro (ou alguns dias depois entre César e Cleópatra, quando, de acordo com o relato do historiador antigo Plutarco, a jovem rainha, iludindo os guardas, conseguiu penetrar no palácio onde César se encontrava, escondida dentro de um tapete enrolado.

Cleopatra_and_Caesar_by_Jean-Leon-Gerome

Vale citar que Suetônio menciona ter lido alguns autores gregos que afirmavam que Cesárion lembrava bastante César em aparência e postura.

Embora César nunca tenha reconhecido oficialmente o menino, em 46 A.CCleópatra e Cesárion foram viver em Roma durante dois anos, hospedados em uma casa de campo de César, até que o Ditador foi assassinado nos idos de março de 44 A.C. Todavia, em seu testamento, César reconheceu Caio Otávio, que era o seu sobrinho-neto, como seu herdeiro e sucessor político, adotando-o, (em virtude disso, Otávio passou a ser conhecido como Caio Júlio César Otaviano). A respeito de Cesárion, porém, o Ditador não escreveu nenhuma palavra.

Como era previsível, Cleópatra e Cesárion voltaram para Alexandria e, em 2 de setembro de 44 A.C., o menino foi coroado Faraó e co-governante do Egito pela mãe.

Denderah3_Cleopatra_Cesarion.jpg

(Relevo no Templo de Dendera, no Egito, retratando Cléopatra e Cesárion como faraó)

A História só volta a mencionar Cesárion novamente em 34 A.C., quando o Triúnviro Marco Antônio  e sua companheira Cleópatra, estabelecem as chamadas “Doações de Antióquia“, doando territórios do anitgo Império Selêucida e na Pártia aos filhos de Cleópatra, incluindo Cesárion, fruto da união dela com Júlio César, e Alexandre Helios e Cleópatra Selene, frutos da união de Cléopatra com o próprio Marco Antônio. Isso se dá no contexto da disputa entre Antônio e Otaviano , no prelúdio da Guerra Civil que pôs fim ao segundo triunvirato.

Após a Guerra Civil, com a vitória de Otaviano sobre as forças de Marco Antônio e Cleópatra, em Actium (31 A.C), e Otaviano invadiu o Egito, no ano seguinte. Pouco tempo depois, após seguidas derrotas, depois, deu-se o suicídio de Antônio, seguido pelo da própria Cleópatra. A partir daí, a sorte de Cesárion estava lançada…

Em 30 A.C, o Egito foi anexado como província romana, significando o fim da história egípcia de mais de três mil anos como ente político independente, provavelmente o primeiro Estado que existiu.

Qual foi o fim de Cesárion?

Há um relato do historiador Plutarco de que Cesárion teria sido enviado por Cleópatra à Índia, através da Etiópia, levando um grande tesouro, para escapar da captura pelos Romanos, ressalvando, contudo, que o rapaz teria sido convencido por auxiliares, incluindo seu tutor, Teodoro, a voltar ao Egito, sob a promessa de que ele seria poupado por Otaviano e mantido no trono.

Segundo esse relato, Otaviano teria chegado a hesitar sobre o destino de Cesárion, mas acabou decidindo mandar matá-lo.

de acordo com a versão de Suetônio, em sua fuga, Cesárion foi interceptado pelos soldados de  Otáviano, trazido de volta ao Egito e executado, provavelmente no final de agosto de 30 A.C. O relato é confirmado por Cassius Dio. Neste caso, não teria havido o ardil de fazer o rapaz desistir da fuga.

Vale citar que, conforme narrado por Plutarco, ao mandar executar Cesárion, Otaviano teria seguido um conselho que o filósofo Areius, havia lhe dado:

“Boa coisa não é que haja muitos Césares”…

ESTILICÃO – GENERAL DE ORIGEM VÂNDALA E FIEL DEFENSOR DO IMPÉRIO ROMANO

Em 22 de agosto de 408 D.C, o Comandante-em-chefe do Exército Romano do Ocidente, Marechal Flávio Estilicão, foi executado em Ravena, sete dias após sua prisão, por ordem do Imperador Romano do Ocidente, Honório.

Flávio Estilicão (Flavius Stilicho) nasceu por volta de 359 D.C., filho de um guerreiro da tribo germânica dos Vândalos, provavelmente um chefe que deve ter servido ao império romano durante o final da dinastia constantiniana (305 – 363 D.C.) e que se casou com uma cidadã romana. Por isso, algumas fontes se referem a Estilicão como “meio-vândalo”.

Seguindo a carreira do pai, Estilicão entrou no exército romano e, ainda jovem, deve ter se destacado bastante durante o início do reinado do imperador Teodósio, o Grande, pois, já em 383 D.C., ele foi enviado como embaixador à corte de Sapor III, rei do Império dos Persas Sassânidas, para tratar da partilha da Armênia. Note-se que uma das características marcantes do reinado de Teodósio foi a preferência pelo emprego de contingentes bárbaros em detrimento dos remanescentes do exército romano tradicional.

De volta da Pérsia, Estilicão foi promovido a Conde dos Estábulos (“Comes Stabuli”), responsável pelos estábulos imperiais. um título que foi preservado durante o reino dos Francos e sobreviveria até nossos dias sob a forma inglesa “constable” (Chefe de Polícia) (ou, ainda, “condestável”, em português).

Pouco depois, Estilicão seria promovido a marechal (“Magister Militum”), e, como prova da sua alta consideração na Corte, em 384 D.C., ele se casaria com Serena, sobrinha de Teodósio, que lhe daria um filho, Euquério, e duas filhas, Maria e Termântia. Esse fato mostra que, ao contrário da maioria dos Vândalos, que professavam a heresia ariana, Estilicão era cristão ortodoxo-niceno,  credo professado pela casa de Teodósio.

Depois disso, Estilicão, como general, participou das vitórias contra os bárbaros Visigodos e Bastarnae, em 391 D.C.

Em 394 D.C, Estilicão, combatendo junto com o rei Godo Alarico, foi o principal comandante na importante Batalha do Rio Frígido, combate no qual derrotou o o usurpador Eugênio, que havia sido colocado no trono, em 392 D.C., pelo general franco Arbogaste, o homem-forte do Império do Ocidente, ambos os quais esposavam a causa do renascimento pagão, apoiado pela facção mais tradicional do Senado Romano. Com a vitória, Teodósio passou a reinar sobre as duas metades do Império, mas não por longo tempo, pois ele morreria no ano seguinte, em 395 D.C.

Em seu leito de morte, Teodósio legou o Império Romano aos seus dois filhos: Honório, que ficaria com a Parte Ocidental e que tinha 8 anos quando na morte do pai; e Arcádio, de 12 anos, que reinaria sobre a Parte Oriental. Como tutores dos garotos e, na prática, regentes de fato do Império, o imperador agonizante nomeou, em relação a Honório, o marechal Estilicão, e, para tutelar Arcádio, foi nomeado Rufino, um alto funcionário palaciano e homem de Estado.

Entrementes, após a Batalha do Rio Frígido, o rei Alarico, convicto de que os seus guerreiros eram os que mais tinham se sacrificado pela vitória de Teodósio naquela ocasião, a partir da morte deste imperador passou a exigir altas recompensas para si e para o seu povo, não obtendo, todavia, o reconhecimento pretendido. Eleito formalmente Rei pelos visigodos (relatando-se o célebre costume germânico de erguer o novo rei em cima de um escudo) – e valendo ressalvar que alguns historiadores consideram que a aclamação dele teria ocorrido anteriormente, em 391 D.C), Alarico liderou uma revolta dos Godos contra o Império Romano, chegando, inicialmente, a marchar até os muros de Constantinopla, desistindo, entretanto, de sitiar a capital em função da solidez dos seus muros. Em seguida, os Visigodos devastaram a Macedônia e a Grécia, saqueando e destruindo as históricas cidades de Corinto, Mégara. Argos e Esparta, porém poupando Atenas.

Essa incursão foi facilitada pelo fato do Exército do Oriente estar ocupado com uma incursão dos primeiros grupos de Hunos que começavam a chegar e que, décadas mais tarde, assolariam o Império unidos sob o comando de Átila.

Diante disso, Rufino, o Prefeito Pretoriano e Regente do Império Romano do Oriente, tentou negociar em pessoa com Alarico. Ocorre que, naquele momento, Estilicão dirigia-se, através da Ilíria em direção à Grécia, para dar combate aos Visigodos de Alarico. Porém, por manipulação de Rufino, o jovem imperador Arcádio ordenou que Estilicão desse meia-volta e abandonasse com seu exército o território do Oriente. E isto era tudo o que Alarico precisava no momento, já que o exército de Estilicão no momento era mais poderosos do que o dos Godos. O motivo mais provável para a atitude de Rufino seria impedir que o regente do Ocidente aproveitasse a oportunidade para se tornar também o governante de fato do Oriente, e, ainda, para evitar que ele auferisse os louros da vitória.

No entanto, o comportamento traiçoeiro de Rufino foi tão mal-recebido pelos militares orientais que os próprios soldados da sua escolta o assassinaram. Livre, assim, da má influência de seu tutor, e, momentaneamente, bem assessorado por outros oficiais, o imperador Arcádio chamou Estilicão de volta para auxiliar Constantinopla na luta contra os Visigodos.

O leal e patriota general acedeu prontamente e, entrando na Grécia com seu exército, conseguiu, em 397 D.C, cercar Alarico nas montanhas do Peloponeso, de onde somente os bárbaros conseguiram escapar com muita dificuldade. Em verdade, os Visigodos estavam em uma posição tão vulnerável que Estilicão, na época, foi acusado de ter deixado intencionalmente eles escaparem e esse fato é objeto de discussões até os dias de hoje: Alguns historiadores acreditam que Estilicão recebeu novamente de Constantinopla ordens de partir; já para Zósimo, historiador romano do período, isso deveu-se ao excesso de confiança por parte do general romanos, que também gostaria demasiadamente de luxo e mulheres. Outros, ainda, acreditam que as tropas de Estilicão, compostas de contingentes majoritariamente germânicos, não seriam confiáveis, e teriam deliberadamente poupado os seus “compatriotas”. E há também quem diga que Estilicão ficou impossibilitado de liquidar os bárbaros porque teve que lidar com a revolta de Gildo, na África, que estourou no mesmo ano.

Seja como for, o fato é que Alarico e seus Visigodos conseguiram escapar em direção ao norte, cruzando e pilhando o Épiro e chegando até a Ilíria, levando consigo o produto do saque à Grécia.

Mais grave, entretanto, para os romanos, foi o fato de Alarico, no final dessa campanha, ter conseguido fazer o fraco Imperador Romano do Oriente nomeá-lo Marechal das Forças Armadas (“Magister Utriusque Militiae“), fato que permitiu aos Visigodos ter acesso aos arsenais e fábricas militares do Império Romano na Ilíria.

Não obstante, em 398 D.C., o imperador Honório casou-se com Maria, a filha mais velha de Estilicão, que tinha apenas 14 anos, selando a sua posição de homem-forte do Império Romano do Ocidente. Isto tornava o general de origem vândala membro da família imperial, até então uma posição inaudita para alguém de sangue bárbaro.

O assoberbado Estílicão, contudo, não pôde desfrutar de seu novo status, porque, além de ter de lidar com a revolta do Conde da África, Gildo, e ainda teve que combater uma guerra na Britânia.

Diante das vicissitudes enfrentadas por Estilicão, o insaciável Alarico, percebendo a fraqueza da parte ocidental, deu início à sua 1ª invasão da Itália, em 401 D.C. Assim, no ano seguinte, os Visigodos alcançaram Milão, a então já centenária capital do Império Romano do Ocidente, e, desafiadoramente, ali sitiaram o próprio imperador Honório. Contudo, mesmo após armarem-se nos arsenais imperiais da Ilíria, aos bárbaros ainda faltava o “know-how” para o assédio às muralhas de Milão.

Mais uma vez, a situação foi salva por Estilicão, que derrotou Alarico em Polentia, no Piemonte, capturando, inclusive a esposa do rei bárbaro. Alarico então deixou a região, mas, perseguido pelas tropas romanas, ele foi novamente derrotado por Estilicão nas cercanias de Verona, em 403 D.C., resolvendo voltar para a Ilíria.

A grande consequência dessa incursão de Alarico foi convencer o imperador Honório a deixar Milão e estabelecer a sua Corte na cidade de Ravena. O motivo desta escolha é que Ravena era uma cidade cujo acesso por terra somente poderia ser feito cruzando-se extensos pântanos que faziam parte de uma laguna e, portanto, ela era muito difícil de ser invadida pelos bárbaros. Além disso, a cidade poderia ser abastecida pelo mar, em caso de cerco, através do Porto de Classe.

Entretanto, a mudança da capital para Ravena teria influência decisiva na estratégia imperial adotada nos futuros cercos de Alarico a Roma…enquanto isso, uma catástrofe tomava vulto…

Com efeito, infelizmente, para os romanos, durante o inverno rigorosíssimo do ano de 406 D.C. o rio Reno congelou. E este não muito frequente fenômeno foi prontamente aproveitado por um grande número de tribos bárbaras que tinham migrado para a margem oriental do Rio fugindo dos Hunos. Estes povos eram sobretudo Vândalos, Suevos e Alanos. Para piorar esta situação, quando essa horda começou a atravessar para o lado ocidental, controlado pelos romanos, não havia nenhuma tropa romana suficiente para resistir, pois, justamente naquele mês, Estilicão tinha sido compelido a deslocar as tropas romanas estacionadas na Gália para enfrentar a segunda invasão de Alarico à Itália.

Como resultado imediato, a Gália foi severamente devastada pelos invasores, os quais, desta vez, tinham vindo para ficar. Ela era a província mais rica do Ocidente e nunca mais se recuperou; E, não muito tempo depois viriam os Francos, os Alamanos e os Burgúndios.

Por incrível que possa parecer, em meio a esse caos, os romanos ainda gastavam seus parcos recursos em lutas internas. De fato, logo após a invasão da Gália e o desaparecimento do exército local, o comandante da última legião da Britânia, Flávio Constantino, foi aclamado imperador romano do Ocidente pelas suas tropas, em 407 D.C. Adotando o nome de Constantino III, ele deixou a ilha e desembarcou na Gália para tentar defender esta importante província das incursões bárbaras.

O fato é que o caos resultante da travessia do Reno pelos bárbaros era uma oportunidade que Alarico não poderia desperdiçar e ele intensificou a ofensiva contra Honório. Estilicão, dessa vez, concordou em pagar 4 mil libras de ouro a Alarico e o visigodo, aceitando, deu meia-volta e tirou as suas tropas da Itália.

Para a surpresa geral, o Senado Romano sentiu-se ultrajado pelo pagamento do “resgate” do Ocidente a Alarico, tendo um senador inclusive assinalado, em um discurso indignado:

“Isto não é um tratado de paz, mas um pacto de servidão!”.

Esse fato, mais a invasão da Gália e a revolta de Constantino III minaram o prestígio de Estilicão na Corte de Honório, E o general ainda continuava enredado nas intrigas da Corte e absorvido nas disputas entre Oriente e Ocidente.

Em 408 D.C, Estilicão conseguiu casar sua segunda filha, Termântia, com o próprio Imperador Honório, recém viúvo de Maria (ela morrera no ano anterior), mantendo-se, assim, como membro da família imperial. Cresceram na Corte as suspeitas que o romano metade vândalo aspirava o trono para si. Essas suspeitas cresceram quando Arcádio, o imperador do Oriente, morreu: Honório, como imperador romano, planejou ir à Constantinopla tratar da sucessão do irmão falecido, mas foi aconselhado a não ir por Estilicão, que se ofereceu para ir em lugar dele.

No início de agosto, algumas tropas se rebelaram na Itália, provavelmente instigadas por adversários políticos de Estilicão. Ameaçado, o general refugiou-se em Ravenna, onde ele acabou sendo preso.

Então, Olímpio, um ministro da corte de Honório, convenceu o jovem imperador que Estilicão planejava usurpar o trono do Oriente. Honório, indignado, ordenou a morte do fiel e valoroso general.

Consta que Estílicão poderia ter facilmente resistido à sua sentença de morte, pois eram muitos os soldados que lhe eram fiéis, mas ele aceitou resignada e obedientemente o seu fim. Estilicão foi executado em 22 de agosto de 408 D.C. Pouco depois, executaram seu filho, Euquério.

Muitos consideram que a execução de Estilicão foi um golpe que Honório deu no próprio Império Romano: Logo após a execução do infeliz general, alguns populares romanos atacaram famílias de soldados bárbaros federados que formavam o exército de Estilicão e cerca de 30.000 soldados desse exército desertaram e fugiram, juntando-se a ninguém menos do que Alarico!

Em consequência, a Itália ficou indefesa, iniciando-se a cadeia de eventos que resultaria no dramático Saque de Roma por Alarico e seus Visigodos, em 410 D.C.

PROBO – IMPERADOR-SOLDADO DA ILÍRIA

Probus_Musei_Capitolini_MC493(Cabeça de Probo)

Em 19 de agosto de 232 D.C., nasceu, na cidade de Sirmium (atual Sremska Mitrovica, na Vojvodina, Sérvia)que, então, ficava na província romana da Panônia Inferior), Marcus Aurelius Probus (Probo), filho de um certo Dalmatius, que seria um simples jardineiro, ou hortelão.

Há uma versão alternativa, segundo a História Augusta, de que o pai de Probo, se chamava Maximus, um comandante que, após deixar o exército, foi morar no Egito com a família. Porém, é quase certo que aqui a História Augusta faz confusão com Tenagino Probus, que foi governador da Numídia e do Egito durante os reinados dos imperadores Cláudio Gótico e Aureliano. Note-se que as inscrições encontradas mencionando Tenagino Probus tornam cronologicamente improvável (embora não impossível), que este tenha sido o pai de Marco Aurélio Probo (a quem, aliás, a História Augusta também atribui erroneamente alguns feitos de Tenagino Probus, que ocorreram nas referidas províncias).

De qualquer modo, sabe-se que a região da Ilíria, na segunda metade do século III D.C., era o esteio militar do Império Romano (efetivamente, dez imperadores romanos nasceram em Sirmium, quase todos eles militares de carreira). Assim, como tantos de seus compatriotas, Probo entrou no Exército Romano no início da década de 250 D.C.

berkasovogold helmet

(Elmo romano do início do século IV, do tipo “Berkasovo”, assim chamado porque foi achado na cidade do mesmo nome, próxima a Sirmium)

Durante os reinados dos imperadores da dinastia dos Severos, tudo indica que o excesso de privilégios e benesses dados aos soldados comprometeu a disciplina do Exército, justamente quando o ressurgimento do poder persa no Oriente, sob a dinastia dos Sassânidas, começava a colocar Roma no desafio estratégico de enfrentar conflitos em três fronts, já que as fronteiras ocidentais dos rios Reno e Danúbio começavam a ser pressionadas pelo deslocamento de povos germânicos.

Foi de fato um período de frequentes rebeliões e assassinatos de imperadores, muitos, diga-se de passagem, incompetentes para enfrentar aqueles desafios, seguindo-se, assim, repetidas derrotas para os Persas e Germânicos, no período de 238/260 D.C, sendo as mais dignas de nota as catastróficas derrotas na Batalha de Abritus, em 251 D.C., para os Godos, com a morte do imperador Trajano Décio no campo de batalha, onde ocorreu a provável perda de todo o tesouro imperial, e a humilhante captura do imperador Valeriano pelos Persas, em 260 D.C.

Naghsh-e_rostam,_Irán,_2016-09-24,_DD_12.jpg(Relevo do Imperador Sapor I capturando Valeriano, na necrópole persa de Naqsh-e Rustam, foto de Diego Delso)

Enquanto isso, a Gália, o norte da Itália, a Ilíria, a Trácia e a Grécia, entre outras províncias, eram devastadas por invasões bárbaras. Foi nesse contexto dramático que os soldados provenientes da Ilíria foram recrutados e progrediram no Exército Romano, como foram os casos de Cláudio Gótico, Aureliano e Probo, todos eles Ilírios nativos de Sirmium (Obs: há uma certa dúvida quanto a Cláudio Gótico, que pode também ter nascido em Naissus, na Dardânia, mas com certeza ele era Ilírio).

Todos os três imperadores supracitados serviram durante o reinado do imperador Galieno, o filho e sucessor de Valeriano (260-268 D.C.), sendo que Cláudio Gótico chegou a comandante dos Comitatenses, a cavalaria de elite que Galieno criou (hipparchos). Por sua vez, Probo, apesar de ser bem mais jovem que os outros dois, chegou a ser mencionado em cartas dos referidos imperadores como sendo responsável por várias façanhas militares, motivo pelo qual ele foi promovido a Tribuno, segundo a História Augusta, .

Gallienus_monochrome(Busto de Galieno)

Apesar dos esforços de Galieno, que venceu algumas batalhas contra os bárbaros, a caótica situação militar entre 251 e 260 D.C., acabou acarretando a secessão da província da Gália, que se autoproclamou “Império Gaulês”, e, posteriormente, a perda da província da Síria que passou a fazer parte do chamado “Império de Palmira”. Estas secessões foram, de fato, um acontecimento devastador, pois a Gália e a Síria eram, juntamente com o Egito, as duas províncias mais ricas do Império. Porém, ao contrário do que possa parecer, a separação destas duas províncias ocorreu muito mais em função da incapacidade de Roma defendê-las dos bárbaros e dos Persas, do que devido a algum sentimento nacionalista anti-romano.

Map_of_Ancient_Rome_271_AD.svg

A gravidade da situação, como não poderia deixar de ser, minou a reputação de Galieno, que acabou sendo assassinado, em 268 D.C., em mais uma conspiração perpetrada pela Guarda Pretoriana, mas que muito provavelmente teve a participação de Cláudio Gótico, que foi proclamado imperador, e de Aureliano, que foi nomeado Comandante da Cavalaria. Havia chegado, portanto, a vez dos soldados ilírios governarem o Império. Se a História Augusta está correta, com a chegada dos seus dois compatriotas ao poder, Probo foi nomeado comandante de uma legião.

Cláudio Gótico obteve importante vitórias contra os Alamanos e esmagou os Godos, porém, em 270 D.C., ele morreu vítima da Peste que grassava no Império, sendo sucedido por Aureliano, que, sucessivamente,  conseguiu derrotar o Império Gaulês e Palmira e recuperar a Gália e a Síria, reunificando o Império Romano, motivo pelo qual recebeu do Senado o título de “Restaurador do Mundo(Restitutor Orbis).

aurelian aur139.jpg

(Moeda romana. Aureliano “restitui” o mundo (orbis) à deusa Roma”)

Aureliano, apesar desses sucessos retumbantes, acabou sendo assassinado pelas próprias tropas em 275 D.C, segundo consta, pelo motivo dele ser muito severo com os soldados. Então, o Senado Romano, em um arranjo que talvez emulasse o que ocorreu com Nerva, quase dois séculos antes, escolheu, em 25 de setembro daquele ano, o velho senador Tácito, de 75 anos de idade, como novo imperador. Aliás, esta seria a última vez que o Senado elegeria um imperador romano por iniciativa própria.

Tácito (não confundir com o historiador homônimo), segundo consta, teria nomeado Probo, “governador do Oriente”. Em seguida, o referido imperador, apesar de sua já provecta idade, partiu para enfrentar, com sucesso, os mercenários hérulos que devastavam as províncias orientais, acompanhado de seu meio-irmão, Floriano. Todavia, enquanto retornava para lutar contra uma invasão dos Francos e Alamanos, Tácito contraiu uma febre e morreu, em junho de 276 D.C, (vale citar que, segundo uma versão menos aceita, do historiador Zózimo, a morte de Tácito teria sido por assassinato).

Tacitus 507px-EmpereurTacite
(Busto de Tácito,  Photo © Roby 9 janvier 2005)

Quando a notícia da morte de Tácito circulou, as tropas de Probo o aclamaram imperador, o mesmo ocorrendo com Floriano, que foi reconhecido no Ocidente, mas não no Oriente, que somente apoiou Probo. Assim, os dois imperadores rumaram para decidir a sucessão em uma batalha, perto de Tarso, na atual Turquia. Floriano até tinha superioridade numérica, mas as suas tropas não estavam acostumadas ao calor que fazia na região. Probo, cautelosamente, evitou um engajamento e o relato é de que as tropas de Floriano, impacientes com o sol inclemente, assassinaram o seu imperador, em setembro de 276 D.C. O motivo mais provável, contudo, é que as tropas, certamente compostas por muitos Ilírios, devem ter preferido tomar partido de um compatriota oriundo, como eles, da caserna.

Com o seu trono agora inconteste, uma das primeiras medidas de Probo foi punir os assassinos de Aureliano e de Tácito que ainda estavam impunes.

probus 6nxAX9s9e57GSp38LM3c5gaRw4YE2b.jpgImediatamente após sua ascensão, Probo teve que se deslocar para o Ocidente para enfrentar uma invasão dos Godos na Ilíria, os quais ele derrotou, recebendo o titulo de Gothicus Maximus, em 277 D.C. Nessa altura, Probo já tinha sido reconhecido pelo Senado. Depois disso, Probo rumou para a Gália, onde, em 278 DC., ele obrigou os bárbaros Francos, Longiones e Alamanos a cruzarem de volta o Reno (feito pelo qual ganhou o título de Germanicus Maximus), capturando Semnon, chefe dos Longiones, e o filho deste, que foram poupados. Finalmente, Probo derrotou os Burgúndios, capturando um grande número deles, que foram incorporados ao exército romano.

Probo_-_Foto_Giovanni_Dall'Orto,_25_Giu_2011(Cabeça de uma estátua dourada de Probo, foto de Giovanni Dall’Orto)

Com a derrota dos bárbaros na fronteira renana, Probo adotou a estratégia de construir alguns fortes na margem oriental do rio, nos pontos em que o mesmo podia ser cruzado, além de depósitos de suprimentos.

Em seguida, Probo conseguiu pacificar a província da Récia e, após, ele voltou para a Ilíria, agora para reprimir uma invasão dos Vândalos, em 279 D.C. A persistência dessas invasões mostra que, provavelmente, nenhuma dessas vitórias foi conclusiva, ou, então, que tais incursões bárbaras não eram massivas. Não obstante, esses sucessos mostraram que o Império recuperara a capacidade de defender as fronteiras.

Com a estabilização da situação na Gália e no Danúbio, Probo adotou a benéfica política de utilizar o exército parar plantar vinhedos na Gália e na Panônia, o que era, sem dúvida uma medida inteligente, tendo em vista a devastação que essas províncias tinham sofrido nos últimos 20 anos, causando sua decadência econômica. Nas províncias mais despovoadas pelas seguidas invasões, Probo decidiu assentar algumas das tribos germânicas pacificadas, política que, entretanto, apresentava alguns riscos à segurança do império.

É interessante observar que, dentre os lugares nos quais Probo ordenou que fossem plantados os vinhedos, está a região do antigo Monte Alba, próximo à cidade natal de Probo, Sirmium, onde, segundo a História Augusta, o imperador plantou o primeiro vinhedo com as próprias mãos, sendo que esta região é conhecida atualmente como as montanhas Fruska-Gora, na região sérvia da Vojvodina, e ainda hoje constitui uma conceituada região vinícola!

fruska-vino222.jpg(A região vinícola de Fuska-Gora, onde Probo ordenou o plantio de vinhedos)

Em 280 D.C., Probo enviou os seus generais para comandar uma campanha contra os Blemmyes, um reino tribal de populações da etnia Beja, que viviam na antiga Núbia, correspondendo à região onde hoje é o Sudão, e que vinham atacando a província romana do Egito.

Derrotados os Blemmyes, Probo, seguindo a política de recuperação econômica que adotara no Ocidente, determinou ao Exército a reconstrução de diques, de canais de irrigação e de pontes ao longo do Nilo, medidas que eram relevantes para estimular a produção agrícola de uma província que era a grande fonte de cereais para a Itália.

Lamentavelmente, a praga das rebeliões militares não deixava de assolar o Império e, entre 280 D.C. e 281 D.C., Probo teve que enfrentar as revoltas dos usurpadores Júlio Saturnino, na Síria, e de Próculo e Bonosus, em Lugdunum (atual Lyon) e Colônia, nas províncias da Gália e na Germânia, os quais se declararam co-imperadores. Logo Saturnino acabou sendo morto pelos seus próprios soldados. Já a revolta dos dois últimos citados é um tanto obscura, e tanto pode ter sido fruto de algum resquício do “Império Gaulês”; ou talvez fruto de alguma insatisfação mais generalizada, já que inscrições com o nome de Probo também foram apagadas na Hispânia, na mesma época. Vale citar que Próculo tinha ligações com os Francos. Por sua vez, Bonosus, consta, teria se revoltado por medo de ser punido pelo incêndio da flotilha romana do Reno, pelos bárbaros germanos. O fato é que ambas as rebeliões foram derrotadas, sendo Próculo executado após ser entregue a Probo pelos seus aliados Francos, para onde ele fugira após a chegada do exército do imperador. E Bonosus, se matou após perder o combate com as tropas imperiais. Probo, dando uma prova do seu temperamento moderado, poupou as famílias dos usurpadores.

Somente em 281 D.C., Probo conseguiu celebrar em Roma o seu merecido Triunfo pelas vitórias contra os bárbaros. Nessa estadia na capital, ele aproveitou para completar as imponentes muralhas iniciadas por seu antecessor Aureliano (e que por isso são chamadas de Muralhas Aurelianas, as quais ainda existem).

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Segundo a História Augusta, Probo tentou devolver algumas prerrogativas ao Senado Romano, como o de ser a instância máxima para julgar as apelações das decisões dos tribunais superiores, a competência para designar os Procônsules e os legados dos Procônsules e de conferir aos governadores as prerrogativas e os poderes de Pretor. Isso é considerado duvidoso por alguns historiadores, mas, se for verdade, pode bem ser uma das causas de alguma insatisfação do Exército com o imperador, já que cada vez mais aquela corporação estava se acostumando a ser a principal instância de poder.

Em 282 D.C., Probo partiu para a sua cidade natal de Sirmium, que, segundo parece, iria servir como ponto de partida para uma futura campanha contra a Pérsia. Há o relato de que ele teria, mais uma vez, determinado aos soldados que trabalhassem em obras públicas para o benefício da província, fato que acabou causando uma rebelião. Acuado, Probo teve que se refugiar em uma fortificação chamada de “Torre de Ferro”, onde ele acabou sendo morto. Em outra versão, de acordo com o relato de Zózimo, a qual muitos estudiosos acham mais crível, as tropas proclamaram imperador Marco Numério Caro (Caro), o Prefeito Pretoriano de Probo, ocasião em que o contingente enviado por Probo para reprimir o levante aderiu à revolta, e, em função disso, os próprios soldados da escolta imperial acabaram assassinando o imperador, em setembro de 282 D.C.

CONCLUSÃO

Os combativos imperadores-ilírios Cláudio Gótico, Aureliano e Probo, no período entre 268 D.C e 282 D.C contribuíram decisivamente para conter as ameaças dos Germanos e dos Persas, nos fronts ocidental e oriental do Império Romano. Contudo, persistiram os graves problemas da instabilidade política e econômica e da insubordinação militar a comprometerem a sobrevivência do Império, problemas que seriam mais bem enfrentados pelos seus sucessores Ilírios, Diocleciano e Constantino.

FIM

A BATALHA DE ADRIANÓPOLIS

Amiano Marcelino, “História”, Livro XXXI, 13,10

Como foi possível que essa tragédia romana ocorresse?

O texto acima foi escrito pelo historiador romano Amiano Marcelino, relatando a catástrofe sofrida pelo Exército Romano e o desfecho da Batalha de Adrianópolis, ocorrida em 9 de agosto de 378 D.C., culminando com a morte do imperador romano do Oriente, Valente.

1- Prelúdio

O Império Romano passou por profundas transformações nos 100 anos anteriores ao saque visigodo.

Durante 350 anos, começando com Augusto, o primeiro imperador (e cujo nome, coincidentemente batiza o mês de agosto), que reinou entre 27 A.C e 14 D.C., a estratégia militar romana consistia na disposição de suas principais forças militares nas fronteiras, organizadas em 28 legiões (esse número se manteve relativamente estável durante esse período). Essas legiões eram, de início, formadas por legionários recrutados entre os cidadãos romanos que fossem italianos ou oriundos de colônias de italianos estabelecidas em territórios conquistados.

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Cada legião tinha cerca de 5 mil homens e ela consistia em uma unidade virtualmente autônoma, com seus quartéis, estábulos, fábricas de armas, corpos de engenheiros, etc. (Note-se que, com o tempo, muitos dos quartéis das legiões dariam origem a várias cidades europeias atuais). E o Exército Romano também recrutava contingentes da população que habitava as localidades nas quais as legiões estavam situadas, os quais formavam regimentos de Auxiliares (Auxilia). Tradicionalmente, havia um corpo de auxiliares para cada legião, com o mesmo número de soldados que os legionários.

Basicamente, esses Auxiliares eram utilizados como tropas de patrulha, empregados em escaramuças, ou então como tropas especializadas, como, por exemplo, arqueiros, fundibulários (fundas), cavalaria ligeira, etc., sempre de acordo com as habilidades guerreiras de cada povo. Após servirem pelo prazo de 20 anos, um Auxiliar ganhava o direito de pleitear a cidadania romana (que era conferida por decreto do próprio imperador – aliás, muitos desses diplomas de bronze sobreviveram e foram encontrados em escavações, os quais, certamente, foram guardados com muito orgulho pelos agraciados (vide foto abaixo).

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Como resultado positivo dessa estratégia, denominada de “defesa estática“, o estabelecimento das legiões nas fronteiras acarretou a “romanização” daquelas populações fronteiriças, Assim, pouco a pouco,  as legiões também começaram a recrutar localmente as suas tropas. Vale lembrar que o recrutamento de soldados sempre foi um problema que afligiu os romanos, já que, desde as reformas de Caio Mário, por volta de 100 A.C, o Exército Romano deixara de ser uma milícia de cidadãos que prestavam serviço militar, para se transformar no primeiro exército verdadeiramente profissional da História.

Entretanto, esse sistema demonstrou ser um fator de instabilidade política: Com efeito, após a derrubada e suicídio de Nero (68 D.C.), quando três generais comandantes de legiões disputaram o trono, tornou-se cada vez mais frequente, em tempos de crise, o surgimento de rebeliões daquelas legiões estacionadas nas fronteiras do Império. Na verdade, o próprio regime do Principado, que substituíra a República, descendia de um longo processo de tomada do poder pela força por políticos que também eram generais. Não é a toa que o título “Imperator” significava, na origem, ‘Comandante”…

Consequentemente, na prática, quase todo general à testa de uma legião era um candidato em potencial a Imperador,  e, ao menor sinal de fraqueza do imperador reinante, poderia ser aclamado como tal por suas tropas. E tal comportamento, sem dúvida, era decorrente do costume de se recompensar regiamente os legionários que serviam na legião, quando o seu comandante conseguia ser vitorioso na disputa (inclusive, houve vários casos em que toda a tropa, ávida pelas polpudas gratificações, aclamava o seu general imperador. mesmo contra a vontade deste! Ironicamente, isso tornava-se caso a rebelião fracassasse, uma sentença de morte para o coitado do general…).

Essa instabilidade militar chegou ao máximo durante o período que se denomina “Crise do Século III“, onde a média de duração de um reinado era pouco mais de um ano, e, algumas vezes, havia vários Imperadores rivais.

2- A reforma militar de Constantino

Finalmente, em 312 D.C., após mais uma dessas incontáveis rebeliões, Constantino, um general romano de origem ilíria, filho de um dos quatro co-imperadores nomeados por Diocleciano, no fracassado projeto de divisão racional do poder que este instituíra, chamado de “Tetrarquia“, derrotou o rival Maxêncio e se tornou Imperador.

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Constantino foi o responsável por  duas mudanças radicais, no campo político-administrativo e militar, que impactariam decisivamente o Império Romano nas décadas seguintes:

1) Reconhecendo que o território romano era grande demais para ser administrado por um imperador somente, instalado em apenas uma capital, resolveu, inspirado no precedente tentado por Diocleciano (tetrarquia), instituir uma divisão político-administrativa do império em duas metades – Ocidental e Oriental (Pars Occidens e Pars Oriens). A capital ocidental, predominantemente de fala latina, a princípio, continuou sendo Roma, mais tarde substituída, sucessivamente, por Milão e Ravena. Porém, para capital da parte oriental, onde se falava majoritariamente o idioma grego, ele escolheu a antiga cidade grega de Bizâncio, notória por suas qualidades defensivas (basicamente um triângulo de terra cercado de água em dois lados), que recebeu o nome oficial de “Nova Roma que é Constantinopolis“, mais conhecida como Constantinopla;

2) Constantino também resolveu instituir um “Exército Central Móvel“, que ficaria sob o comando direto do Imperador, formado com os melhores contingentes das 28 legiões espalhadas pelo Império Romano. A elite do exército eram as tropas de cavalaria couraçada (Scholae Palatina). E os soldados desse exército central ficariam conhecidos como Comitatenses (literalmente, aqueles que fazem parte da “Comitiva” imperial). Esses soldados receberiam pagamento maior e melhores uniformes e equipamento do que os do restante do Exército Romano. Já as antigas legiões não seriam extintas, mas de certa forma, elas foram rebaixadas. Os seus integrantes passaram a ser denominados de “Limitanei” (isto é, os “fronteiriços”, ou “da fronteira”), que recebiam pagamento menor. Como o tempo demonstraria, essas tropas, paulatinamente, acabaram definhando e virando uma espécie de guarda provincial de fronteira.

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A maior parte dos estudiosos acredita que, mais do que preocupação com a estratégia militar defensiva imperial, o grande objetivo de Constantino era assegurar a estabilidade de seu trono e continuidade da sua própria dinastia., no que, aliás, ele foi bem sucedido, pois ele mesmo reinou 25 anos e a sua dinastia duraria 50 anos.

A criação de um Exército Central Móvel, na forma adotada por Constantino, consagrou a adoção do que se chama, em ciência militar, de estratégia de “defesa em profundidade“, cuja principal característica é o reconhecimento de que os inimigos atacantes não poderão ser detidos nas fronteiras, e, inevitavelmente, eles penetrarão o território do império, devendo as tropas fronteiriças apenas retardar ou atrapalhar o avanço do exército inimigo em solo pátrio, até que o mesmo seja engajado e derrotado pelo exército principal do país, onde for mais recomendável.

3- A ameaça nas fronteiras

O problema é que essa mudança estratégica romana ocorria em meio a dois acontecimentos ocorridos no exterior que teriam consequências gravíssimas: o primeiro, já do conhecimento dos romanos, era o renascimento de um império persa nacionalista e militarmente agressivo, que 40 anos antes, tinha-lhes infligido duras derrotas, inclusive com a captura, pela primeira vez, de um imperador romano em campo de batalha (Valeriano, em 260 D.C.), que havia imprudentemente invadido a Mesopotâmia.

Em 363 D.C., o último integrante da dinastia de Constantino, o Imperador Juliano (denominado de “O Apóstata”, pois ele renunciou à fé cristã e tentou restaurar os deuses pagãos) sofreu nova derrota desastrosa na Pérsia, onde ele morreu após ser ferido em batalha. O sucessor, dele, Joviano, teve que negociar um tratado humilhante para conseguir sair da Pérsia com o que sobrou do exército romano de 90 mil homens, um dos maiores já reunidos em toda história do império. Amiano Marcelino foi um historiador romano que participou dessa campanha como soldado e deixou um relato excepcional da campanha. Sobre Juliano, vale a pena ler o livro homônimo, do escritor americano Gore Vidal, um romance histórico magistralmente escrito).

Mas foi o segundo fato, ocorrido na longínqua China e então desconhecido dos romanos, que causaria uma sucessão de eventos que redundaria, décadas mais tarde, no Saque de Roma: a migração dos Hunos.

Derrotados após uma tentativa de conquistar o Império Chinês, os Hunos se voltaram para o Ocidente. Atravessando a Ásia Central, em hordas invencíveis de milhares de arqueiros montados, os hunos foram empurrando povos e mais povos, em um verdadeiro efeito dominó, em direção ao Oeste, gerando o aumento dos conflitos na fronteira romana do Reno/Danúbio.

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Assim, o cenário militar romano em meados do século IV era aquele que assombra o imaginário de qualquer líder militar: o de uma guerra em dois fronts!

Um dos povos que foram desalojados pelos hunos eram os Godos, um povo germânico de origem escandinava que havia migrado para a região do Danúbio, estabelecendo-se nas proximidades da antiga província romana da Dácia (aproximadamente a Romênia atual).

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Em 376 D.C., uma vasta migração dos Godos Thervingi, liderados pelo chefe Fritigern, totalizando cerca de 200 mil pessoas, pediu autorização ao Imperador Romano do Oriente, Valente, para cruzar o rio Danúbio e se instalar na província romana da Moesia, no que, na verdade, era quase um pedido de asilo. Foi dada a permissão, sob a condição de que eles entrariam desarmados, mas ficariam sujeitos ao serviço militar (os romanos sempre costumavam empregar bárbaros como tropas, e durante a dinastia de Constantino, o emprego de tropas germânicas tinha aumentado bastante, ao ponto de influenciar o equipamento, vestuário e até o grito de guerra dos soldados romanos)

Em geral, a História e os achados arqueológicos demonstram que os povos germânicos, ao longo dos quase 400 anos que separam o ano de 100 A.C, quando as fontes romanas pela primeira vez mencionam a invasão da Itália pelos povos denominados de Cimbros e Teutões ([invasão derrotada por Mário), do aparecimento dos Godos na fronteira do Danúbio, no final do século III, vinham sendo influenciados pelo Império Romano, mas sempre mantendo uma consciência que poderíamos chamar de “étnico-cultural” ou nativista muito forte (o que ficou demonstrado na resistência comandada por Arminius – ou Herrmann, o Germânico – à penetração romana na Germânia, em 9 D.C, infligindo aos romanos a destruição de três legiões e o abandono definitivo do projeto romano de transformar a região em província romana, com consequências duradouras para a história dos dois povos no futuro).

A mudança mais importante observada na sociedade germânica ao longo desses séculos de contato com os romanos, foi a tendência à aglutinação das antes isoladas tribos em grandes confederações, como por exemplo, a dos Alamanos, que em sua origem etimológica, quer dizer “All men” (todos os homens), e acabaria dando nome a um futuro país (Alemanha), e a dos Francos (que, curiosamente, daria nome ao maior rival da Alemanha, a França).

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Outra mudança notada entre os povos germânicos, que, para alguns estudiosos, foi consequência do contato com os romanos, foi a crescente sofisticação e especialização militar dos contingentes armados, em contraste com os grupos mais primitivos de guerreiros no início da era cristã. Para saber mais sobre todos esses fenômenos envolvendo as tribos germânicas, recomendamos a leitura do livro “The Fall of the Roman Empire, a New History of Rome and the Barbarians“, do historiador Peter Heather, que consultamos para escrever este e outros artigos sobre o período.

É certo que essas confederações germânicas cooperavam entre si no embate contra os romanos. Assim, ataques na fronteira do Reno eram combinados com ataques no Danúbio. E sabe-se que, algumas vezes, quando chegava a notícia de uma derrota militar romana na Pérsia, desencadeava-se uma série de ataques germânicos oportunistas.

Por outro lado, ficou evidenciado que, ao longo dos séculos, os germanos passaram a apreciar mercadorias produzidas no Império Romano, como demonstram os achados arqueológicos de sepulturas germânicas do período.

Note-se que, durante muito tempo, inúmeros germanos serviam no exército romano, mas depois eles voltavam para viver junto ao seu povo, trazendo consigo a expertise militar romana (Arminius, inclusive, havia sido um precursor disso, pois ele comandava um contingente de Auxiliares do Exército Romano).

Desde o século IV, os Godos haviam se convertido ao Cristianismo, embora o professassem sob a doutrina denominada de Arianismo, considerada heresia pela Igreja Católica (porque idealizada pelo bispo Ário – nome que nada tem a ver com a suposta “raça ariana”, por favor!).

A História conta que, após entrarem no Império Romano, os Godos foram muito maltratados pelos governadores das províncias romanas onde se estabeleceram. Grassava a fome entre eles e os oficiais romanos cobravam preços extorsivos pelos grãos estocados nos celeiros do Estado. Alguns chegaram até a escravizar alguns godos.

Os germanos não conseguiram suportar as injustiças e arbitrariedades dos romanos por muito tempo e eles rebelaram-se. As autoridades romanas, não percebendo a gravidade da ameaça, mandaram um contingente militar insuficiente para reprimir a rebelião, e essas tropas romanas foram derrotadas. Assim, por dois anos, os Godos conseguiram assolar a região.

4- A Batalha de Adrianópolis

Assim, em 378 D.C, o Imperador Romano do Oriente, Valente, decidiu  marchar e comandar em pessoa o Exército Central e esmagar os Godos. O imperador do Ocidente, Graciano, já havia se comprometido a enviar também o seu Exército, porém, de acordo com a versão mais prevalente, Valente,  querendo os louros da vitória somente para si, resolveu fazer uma marcha forçada e dar combate aos Godos sem esperar os reforços ocidentais.

Fritigern, que era um hábil comandante, sabedor que não poderia enfrentar os 40 mil soldados de Valente em campo aberto, resolveu “entrincheirar-se” e mandou que os carroções em que o seu povo, homens, mulheres e crianças, moravam e viajavam (parecidos com aqueles que os pioneiros americanos usaram na Conquista do Oeste) formassem um círculo protetor (laager) em uma colina, próxima a Adrianópolis, na Trácia. E mandou que a sua cavalaria, que tinha um efetivo estimado entre 10 e 20 mil homens ficasse ao largo. Dentro do laager, talvez estivessem 20 mil guerreiros, além de muitos milhares de mulheres, que talvez ajudassem nos combates. Quando viu os romanos se aproximando, Fritigern mandou atear fogo ao campo na planície em volta da colina e enviou mensageiros para atrasar os romanos e outros para chamar a cavalaria.

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Em 9 de agosto de 378 D.C., os romanos chegaram ao campo de batalha após uma marcha forçada de sete horas e, sem descanso, eles preparam-se para atacar os godos.

Amiano Marcelino conta que uma unidade romana, demonstrando falta de disciplina, acabou atacando sem esperar as ordens e precipitando o avanço. Enquanto isso, a cavalaria goda chegou e atacou o flanco direito  dos romanos, prevalecendo sobre a cavalaria romana, que fugiu. A visibilidade era ruim, devido a fumaça e a poeira e o sol e ocalor do verão eram intensos, o que afetava mais os soldados romanos fatigados pela marcha. Os romanos não perceberam que sua cavalaria tinha sido dispersada e avançaram colina acima em direção ao laager.

Então, os guerreiros godos, saindo do círculo de carroções, atacaram o lado esquerdo dos romanos que, por sua vez, foram atacados pela retaguarda pela cavalaria goda que havia dado a volta. Os romanos foram obrigados a avançar para a base da colina.

Valente percebeu o movimento e avançou, porém, a massa compacta de soldados não conseguia mais manobrar. Os romanos foram completamente envolvidos e acabaram sendo massacrados. O imperador, segundo relatos, morreu lutando, e o seu corpo nunca foi encontrado, perdido entre a massa de 40 mil soldados romanos caídos.

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5- Conclusão

Amiano Marcelino encerra a sua História com o relato sombrio e emocionante da Batalha de Adrianópolis. É expresso o reconhecimento do desastre: Dois terços do Exército Romano do Oriente foram eliminados em uma tarde. Ele relaciona com tristeza o número imenso de generais e oficiais romanos que morreram na Batalha.

Assim, o Império Romano sofrera duas derrotas humilhantes no espaço de 15 anos. o historiador Arther Ferril (“A Queda do Império Romano – a Explicação Militar”) compara essa situação ao clima que se abateu sobre o exército americano após a derrota para o Vietnã.

Após a Batalha de Adrianópolis, na prática, não havia mais exército romano no Oriente. Os Godos, imediatamente apos a vitória, tentaram saquear Adrianópolis, mas, desprovidos de máquinas de assédio, e ignorantes da arte da guerra de sítio, não conseguiram. Mas eles pilharam toda a província e, mais importante, saquearam os arsenais do exército.

Durante os próximos 30 anos, os romanos teriam que enfrentar um fato que não acontecia na história romana desde a  Segunda Guerra Púnica, entre 220 a 202 A.C: Um exército estrangeiro armado movendo-se e vivendo em solo romano. Só que agora porém, era um povo inteiro que demandava um pedaço de território romano para viver!

Após a derrota romana na Batalha de Adrianópolis, com a morte em combate de Valente, o sobrinho deste, Graciano, que já era o Imperador Romano do Ocidente. virou, por direito, o soberano das duas metades do Império Romano.

Ocorre que Graciano só tinha 19 anos na ocasião e ele já estava suficientemente assoberbado com as invasões dos Alamanos e outros povos germânicos na Gália, sendo, portanto, incapaz de lidar com os invasores godos na parte oriental. O jovem imperador acabou por ver se obrigado a escolher um colega mais experiente para governar a parte oriental do Império Romano e a escolha recaiu sobre o prestigiado general espanhol Teodósio. Este, basicamente mediante a diplomacia, conseguiria manter momentaneamente os Godos sob controle. Porém, o fato é que os bárbaros germânicos agora tinham vindo para ficar e eles permaneceriam no seio do Império até a sua Queda em 476 D.C., e além….

FIM

Fontes:

1- Amiano Marcelino, “História”

2-Arther Ferril, “A Queda do Império Romano – a Explicação Militar”

3- Peter Heather, “The Fall of the Roman Empire, a New History of Rome and the Barbarians”

BATALHA DE CANAS – O DIA MAIS SANGRENTO DA HISTÓRIA

Em 02 de agosto de 216 A.C., quando o sol se pôs detrás do rio Aufidus, na fértil planície da região da Apúlia, próximo à cidadezinha de Canas (Cannae), no sul da península italiana, 80 mil cadáveres jaziam sem vida.

Eram os corpos de cerca de 70 mil soldados e aliados romanos, aos quais se somavam pouco mais de 6 mil soldados africanos, celtiberos e gauleses, estes integrantes da força expedicionária comandada pelo grande general cartaginês Aníbal Barca.

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(Acredita-se que este busto antigo, encontrado em Cápua, seja de Aníbal)

Para se ter uma ideia do tamanho dessa carnificina- talvez a maior jamais ocorrida em um único dia em qualquer guerra- estima-se, por exemplo, que 50 mil civis e soldados alemães morreram no Bombardeio de Dresden, em abril de 1945, realizado por mil bombardeiros ingleses. Já em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, a estimativa do número de mortos varia entre 22 mil e 80 mil vítimas, e o maior número de pessoas mortas proposto para Nagasaki, três dias depois também devastada por uma bomba atômica norte-americana, é de 70 mil vítimas. No primeiro dia da sangrenta Batalha do Somme, na 1ª Guerra Mundial, em 1916, o número estimado de soldados mortos é de 35 mil. E, por sua vez, na Batalha de Borodino, travada entre o exército de Napoleão e a Rússia Czarista, o maior número estimado de baixas é de 45 mil, entre mortos e feridos.

Prelúdio

Após a Primeira Guerra Púnica, que durou de 264 A.C a 241 A.C., Roma havia conseguido deter a expansão de Cartago pela Sicília e pelo sul da Itália, triunfo em boa parte conseguido após ela construir, pela primeira vez em sua história, uma marinha, derrotando a rival no mar. Os mais de 20 anos de conflito, e o tratado de paz assinado com os romanos, contudo, não impediram que Cartago continuasse a prosperar, expandir suas colônias e aumentar sua esfera de influência pela Península Ibérica, levando a atritos com aliados de Roma, especialmente a cidade ibérica de Sagunto, que, em 219 A.C., acabou sendo alvo de um ataque, o qual deflagraria um novo conflito.

O grande general Aníbal Barca, filho de Amílcar Barca, o comandante cartaginês durante a Primeira Guerra Púnica, então, imaginou a estratégia de atacar diretamente Roma no coração do território que ela controlava na Itália, ao invés de combater os exércitos romanos que se encontravam na Espanha, foco das presentes disputas.

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(Shekel, moeda cartaginesa, com a efígie de Amílcar Barca)

Em uma manobra surpreendente e ousada, Aníbal conseguiu evadir as tropas romanas que se dirigiam à Espanha, cruzando a França e, com seu exército de cartagineses e aliados celtiberos e celtas, incluindo uma verdadeira unidade móvel “blindada” integrada por elefantes treinados para a guerra, que cruzou as escarpadas montanhas dos Alpes, invadindo a Itália por terra, com uma rapidez inesperada, sendo que muitos supunham que o ataque se daria por via marítima.

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Mestre na Arte da Guerra, Aníbal derrotou os exércitos consulares que os romanos confiantemente enviaram para derrotá-lo no norte da Itália, na Batalha de Trébia e na Batalha do Lago Trasimeno, sendo que esta foi uma emboscada terrível na qual os romanos sofreram 30 mil baixas, entre mortos e capturados.

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A gravidade da situação militar levou o Senado Romano a acionar um dispositivo constitucional que, em circunstâncias extremas, permitia a nomeação de um Ditador com poderes extraordinários, tendo sido designado o Cônsul Quinto Fábio Máximo.

O Ditador Fábio entendeu que o melhor para os romanos, diante da posição estratégica em que eles se encontravam, era adotar uma tática de guerrilha, evitando engajamentos decisivos em batalhas campais, com o objetivo de consumir, paulatinamente, os efetivos de Aníbal, considerando o contingente mais reduzido de que, então, os romanos dispunham na Itália, depois da perda de vários exércitos consulares, e, sobretudo, o fato de Aníbal estar distante de suas bases de suprimentos na Espanha e na África. Essa estratégia, que, aliás, seria repetida com sucesso pelos russos contra Napoleão e contra Hitler, até hoje é chamada de “Estratégia Fabiana” e valeu a Fábio o cognome, isto é, o apelido, de Fábio Cuntator, ou seja, o “Contemporizador”.

Durante dois anos, a estratégia fabiana foi adotada com bons resultados pelos romanos. Porém, quando Aníbal chegou ao sul da Itália, algumas cidades aliadas começaram a desertar para o lado dos cartagineses, fato que, como ele tencionava, acabaria por obrigar os romanos a uma batalha campal.

A estratégia de Fábio era eficiente, mas não era popular…Os romanos se orgulhavam do seu exército, com o qual haviam anexado praticamente a Itália inteira, e a questão virou política. Nas eleições de 216 A.C., foram eleitos os cônsules Caio Terêncio Varrão (Varro) e Lúcio Emílio Paulo. Varrão era de uma família importante, mas de origem plebeia, e Emílio Paulo era um aristocrata da tradicional elite senatorial. O primeiro, era um ardoroso crítico da estratégia fabiana, e defendia um ataque direto ao exército de Aníbal; já o outro, um pouco mais cauteloso, propunha apenas um pouco mais de ousadia, sem abandonar o que vinha dando certo.

Por outro lado, Aníbal não conseguiu convencer as cidades mais importantes do sul, como Cápua, a abandonarem a aliança com Roma, como ele pretendia, visando deixar os romanos isolados e conseguir, ele mesmo, uma base mais estável na Península. Ele então, planejou uma ação mais contundente para atrair os romanos: tomar o importante depósito romano de suprimentos na cidade de Canas, algo que dificultaria muito as ações do exército romano no sul da Itália.

Quando a notícia da perda de Canas chegou a Roma, os Cônsules decidiram que era chegada a hora de um ataque combinado ao exército cartaginês. O Senado autorizou o recrutamento de forças que dobravam os exércitos consulares, totalizando uma força entre 90 e 100 mil homens, configurando, até então, o maior exército já reunido pelos romanos em toda a sua história!

Comandados por Varrão e Paulo, que se revezavam periodicamente no comando, o enorme exército, após uma marcha de 2 dias, chegou até as vizinhanças de Canas, acampando a uns 10 km do acampamento cartaginês (e, no final desta marcha, os romanos chegaram a derrotar em uma escaramuça alguns cartagineses). Consta que, admirado ao ver o tamanho do exército romano, Gisco, um oficial cartaginês, teria ,, receoso, comentado com Aníbal que o exército romano era muito mais numeroso do que o cartaginês, ao que o grande general, sarcasticamente, teria respondido:

Paulo, nos dois dias em que ele foi o comandante-em-chefe do exército combinado, manteve-se acampado. Os romanos haviam decidido estabelecer um pequeno acampamento suplementar na outra margem do rio Aufidus, para assegurar o suprimento de água. No terceiro dia, 02 de agosto de 216 A.C., Varrão assumiu o comando e Aníbal, percebendo a oportunidade (parece que ele tinha sido informado da divergência de opiniões entre os dois romanos), mandou um destacamento de cavalaria atacar o acampamento menor.

A Batalha

Varrão mordeu a isca e ordenou que o exército saísse do acampamento para a planície, desdobrando-se em ordem de batalha. Ele certamente estava confiante, pois em suas vitórias anteriores, Aníbal tinha se aproveitado ou de emboscadas ou de um terreno difícil. Mas, desta vez, a batalha ocorreria em campo aberto, onde os romanos se julgavam imbatíveis…

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(Os soldados de uma legião romana, da esquerda para a direita: 1- Hastati, 2-Velites, 3-Triarii, 4- Principes)

Ocorre que Aníbal, como todo grande general, já tinha estudado completamente o terreno onde escolhera oferecer batalha. Ele escolheu uma posição na qual, ao longo da luta, os romanos ficariam de frente para o sol escaldante do verão italiano, e contra o vento, que poderia jogar poeira e atrapalhar o avanço inimigo. Além disso, ele sabia como os romanos lutavam, que, aliás, não diferia muito da tática padrão dos exércitos helenísticos: tentar quebrar a linha do adversário e, então, envolver as formações desconjuntadas.

(Nota: As batalhas de infantaria da Antiguidade, sobretudo as dos gregos e macedônios, até então ( as quais influenciaram o resto do mundo mediterrâneo), caracterizavam-se pelo choque de linhas cerradas de infantaria, armadas com escudos e lanças, variando a profundidade e a extensão dessas linhas de soldados, sempre visando a empurrar o adversário para trás, até que essa linha cedesse em algum ponto, onde então se dava uma penetração que levaria ao esfacelamento dessa linha e ao consequente envolvimento dos pedaços cercados. Somente aí é que se começava a infligir as maiores baixas, já que, por si só, a pressão frontal contra centenas ou milhares soldados de capacete e armadura, protegidos por uma barreira de escudos, lado a lado, causava muito poucas mortes. Os massacres só ocorriam quando um exército era completamente cercado e, sobretudo, quando os soldados debandavam, dando as costas para o inimigo.)

Percebendo que os romanos planejavam fazer uso do seu número muito maior de tropas, Aníbal escolheu um terreno onde o exército romano não poderia se espalhar muito, já que as suas linhas, caso inteiramente desdobradas, tinham a capacidade de ficar muito mais extensas do que as dos cartagineses. Por isso, ele colocou o exército cartaginês perto do rio, cobrindo o seu flanco esquerdo, sendo que, no lado direito, um terreno mais elevado dificultava que ele fosse atacado por ali.

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(O sítio da Batalha de Canas, com a coluna in memoriam que foi erguida já antiguidade. O rio Aufidus (atual Ofanto) mudou o seu curso ao longo de 2 milênios, mas a elevação é a mesma descrita pelos historiadores. Na coluna foi gravada uma citação de Tito Lívio sobre a Batalha: “Nenhuma outra nação poderia ter sofrido tamanhos desastres sem ter sido destruída.“)

Por outro lado, Aníbal optou por adelgaçar (tornar mais fina) a profundidade da sua linha, que era a única maneira pela qual ele poderia desdobrar a sua linha de frente em uma extensão igual dos romanos. Aníbal compreendia que os romanos também não esgarçariam demais a linha deles, já que, pela lógica das táticas vigentes, acima explicadas, eles deveriam concentrar o seu peso no centro da linha dos Cartagineses.

Além disso, Aníbal sabia que os romanos eram tradicionalmente fracos em cavalaria – enquanto que ele dispunha de dez mil cavaleiros africanos, ibéricos e gauleses, os romanos somente contavam com quatro mil cavaleiros. Assim, ele poderia proteger melhor os seus flancos com a sua cavalaria, e impedir que os romanos o envolvessem valendo-se de sua infantaria bem maior, ou, melhor ainda, ao dispersar a cavalaria romana, Aníbal poderia, com a sua própria, tentar atacar a infantaria romana pelos flancos e pela retaguarda. No comando da cavalaria númida, no flanco direito da linha cartaginesa, estava Asdrúbal, irmão de Aníbal, acompanhado de Maharbal, e, no esquerdo, o cartaginês Hanno.

Seguindo o seu plano, e, aí, mais do que em todo resto, reside o brilhantismo de Aníbal, ele calculou que o centro do seu exército iria ceder terreno aos atacantes inimigos, embora não a ponto de se dissolver com a pressão exercida pelo avanço romano. Para isso, Aníbal cuidadosamente escolheu a posição que cada grupo do seu exército multinacional deveria ocupar: na vanguarda, com a função de causar o máximo de estrago possível, antes do contato com o inimigo, ficaram os fundibulários das ilhas baleares, mestres no uso da funda. No centro da formação, ele colocou os ibéricos e os gauleses, teoricamente os integrantes menos confiáveis das tropas e, portanto, para melhor poder comandar e vigiar esse sensível setor, Aníbal escolheu para si mesmo esta posição na ordem de batalha. Já nas alas esquerda e direita do seu exército, Aníbal posicionou a leal infantaria recrutada no norte da África, território de Cartago, já experimentada em batalha,  e em quem ele tinha inteira confiança..

Era, portanto, um plano totalmente não convencional para a época, em que as melhores tropas estavam nos flancos, e não no centro da formação.

O historiador grego Políbio assim descreve  o início da batalha:

Observe-se que, para alguns estudiosos que fazem uma ressalva à descrição de Políbio, inicialmente, a intenção de Aníbal seria apenas a de segurar o avanço dos romanos ao máximo, a fim de aguardar que sua cavalaria subjugasse a romana e viesse em seu auxílio. Por isso, os flancos de infantaria africana teriam sido dispostos diagonalmente, em formação de esquadrão.

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Seja como for, o fato é que Aníbal controlou magistralmente o desenvolvimento da luta no centro da linha do seu exército, comandando os celtas e ibéricos em um recuo ordenado. Devido a isso, o centro romano começou a avançar mais e mais para o centro da meia-lua cartaginesa, sem que, provavelmente atrapalhados pelo sol e pelo vento que soprava a poeira no rosto dos romanos, estes percebessem que, na verdade estavam sendo cercados pelas alas esquerda e direita da infantaria africana de Aníbal. Na verdade, Varrão, vendo o recuo do centro cartaginês, realmente acreditou que os inimigos estavam prestes a serem derrotados e ordenou que o avanço romano se intensificasse.

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Enquanto isso, a ala esquerda das cavalarias ibérica e celta cartaginesa conseguiu fazer a romana fugir e se dirigiu para apoiar a sua ala direita, formada pela cavalaria númida, que ainda lutava contra sua contraparte inimiga romana. Em pouco tempo, a cavalaria romana inteira debandou, sendo perseguida pela cartaginesa.

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Naquele momento, o avanço romano no centro tinha tal intensidade, que os soldados romanos da frente começaram a ser espremidos pelos de trás, faltando-lhes espaço até para desembainhar seus gládios. Por sua vez, os flancos romanos vulneráveis começaram a ser atacados pelas alas direita e esquerda da infantaria africana, obedecendo às ordens de Aníbal. E, para piorar a situação dos romanos, algum tempo depois, a vitoriosa cavalaria cartaginesa retornou para o campo de batalha e começou a atacá-los pela retaguarda. Como resultado, os romanos ficaram completamente cercados, tendo a infantaria ibérica e celta pela frente, os africanos pelos lados e a cavalaria inimiga por trás…

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Foi um clássico movimento de pinças, também conhecido como “duplo envelopamento” que até hoje, dois mil e duzentos anos depois, é obrigatoriamente estudado em qualquer academia militar que se preze no planeta.

Ainda segundo a descrição de Políbio, o desfecho da batalha foi assim:

E foi dessa forma que o historiador romano Tito Lívio descreveu o estado do campo de batalha, em seus momentos finais:

Dos cerca de 86 mil romanos, somente entre 10 mil e 14 mil romanos conseguiram escapar. Paulo morreu na batalha, mas Varrão conseguiu fugir. Do exército de Aníbal, estimado em cerca de 50 mil homens, entre 8 mil e 5700 morreram. Apesar dos historiadores romanos posteriormente terem acusado Varrão de ser o responsável pela tragédia romana, mesmo assim ele foi recebido com respeito pelo Senado, que inclusive renovou o seu comando.

Epílogo

Após a batalha, muitos esperavam que Aníbal iria imediatamente marchar contra Roma. Segundo Tito Lívio, Maharbal teria chegado a demandar que o general fizesse exatamente isso, tendo Aníbal dito que iria ponderar o assunto e, segundo consta, Maharbal teria afirmado:

Em verdade, contudo, fazendo-se, a posteriori, uma análise fria, Aníbal tomou a decisão militarmente mais correta: Roma era uma cidade que na época deveria ter cerca de 250 mil habitantes, cercada de muralhas. E, ao contrário de Cartago, ela não era mais apenas uma cidade-estado, mas liderava o que, praticamente, era uma confederação de cidades italianas, cujo poder de recrutamento não estava esgotado. Além do mais, ainda havia um exército romano na Sicília, e outro na Espanha, além dos 12 mil romanos que haviam sobrevivido à batalha, o que correspondia a cerca de duas legiões. Portanto, um cerco a Roma não seria nada fácil, e o exército de Aníbal se veria na perigosa situação de atacar uma cidade murada com tropas inimigas às suas costas. Ele preferiu, assim, mandar uma embaixada à Roma,  que foi liderada por Carthalo, para negociar um tratado de paz com termos moderados.

Ao contrário do que Aníbal esperava, o Senado, apesar da consternação geral com a esmagadora derrota em Canas, recusou a paz e determinou medidas extremas para lidar com a catástrofe: decretou-se a mobilização total de todos os cidadãos, incluindo, excepcionalmente, o recrutamento de camponeses sem terra, e, em um ato extremo, até de milhares de escravos. Foi proibida a utilização da palavra “paz” e, segundo consta, temporariamente, até alguns sacrifícios humanos, que eram abominados pela opinião pública romana, teriam sido admitidos para obter a boa vontade dos deuses.

Na verdade, com a vitória em Canas, Aníbal efetivamente esteve muito perto de obter o seu maior ganho estratégico planejado: separar Roma de seus aliados italianos. Por exemplo, as importantes cidades de Cumas e Tarento mudaram de lado e aderiram aos cartagineses. E o importante reino de Siracusa, na Sicília, também aliou-se a Cartago. O resultado de Canas também encorajou o rei Filipe V, da Macedônia a atacar os romanos na Ilíria, abrindo um front que colocava Roma em uma péssima situação estratégica (Primeira Guerra Macedônica, da qual tratamos em nosso post sobre a Batalha de Pydna).

Concluindo, agora, somente a vontade férrea do Senado, o patriotismo dos romanos, e a futura emergência de uma nova liderança militar romana, – Públio Cornélio Cipião–  cujo gênio era comparável ao de Aníbal, salvariam Roma da derrota total.

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