TITO, O IMPERADOR QUE SÓ TEVE TEMPO PARA SER AMADO

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Em 30 de dezembro de 39 D.C., nascia, em Roma, Titus Flavius Sabinus Vespasianus (Tito), filho mais velho de Tito Flávio Vespasiano (que trinta anos mais tarde se tornaria o imperador Vespasiano) e de Domitila, a Velha.

Os Flávios eram uma família de origem sabina (povo itálico vizinho dos romanos), proveniente da cidade de Reate, que, no final da República, ingressaram na classe dos Equestres (ou Cavaleiros), que era o segundo nível hierárquico da nobreza romana.

Com efeito, o bisavô paterno de Tito havia sido um mero centurião das tropas de Pompeu, que lutou na Batalha de Farsália, durante a guerra civil entre este e Júlio César, e, depois, coletor de impostos. Já o seu avô paterno, Titus Flavius Sabinus, também foi coletor de impostos na Província romana da Ásia e, depois, banqueiro.

Por sua vez,  família de Domitila, a Velha, mãe de Tito, havia se estabelecido na cidade de Sabratha, na colônia romana da África. durante o reinado de Augusto, sendo o avô materno de Tito um simples secretário de um questor daquela província (Nota: Domitila, a Velha é avó de Flávia Domitila, que foi canonizada pela Igreja Católica como Santa Flávia Domitila e era sobrinha de Tito. As chamadas Catacumbas de Domitila, em Roma, têm esse nome porque as terras pertenciam a ela, que as legou para a nascente comunidade cristã da Cidade, ainda no século I D.C).

Porém o pai de Tito, Vespasiano, e o irmão mais velho deste, Sabino, tiveram sucesso no serviço público e no Exército, durante os reinados de Calígula e Cláudio. Vespasiano, inclusive, conseguiu ingressar no círculo mais íntimo do imperador Cláudio, em função da sua relação amorosa com a influente liberta Antônia Caenis, que era secretária pessoal da mãe de Cláudio, Antônia, a Jovem, e da amizade com o liberto Narcissus, que era um dos principais ministros deste imperador.

Assim, durante o reinado de Cláudio, Vespasiano conseguiu atingir o cume da carreira pública das magistraturas romanas, ao ser nomeado Cônsul, em 51 D.C., também obtendo um importante comando militar na conquista da Britânia.

Por isso,  Tito teve o raro privilégio de ser educado junto com Britânico, o filho natural de Cláudio, e, obviamente, um natural pretendente ao trono, muito embora as maquinações da imperatriz Agripina, a Jovem persuadissem Cláudio a privilegiar o filho desta, Nero, que foi adotado como herdeiro pelo imperador.

Não obstante, vale observar que, anos mais tarde, quando ficou claro que ele seria o herdeiro de Vespasiano, o comportamento de Tito, durante a sua mocidade suscitaria alguns temores naqueles que chegaram a perceber muita semelhança entre ele e Nero, sobretudo no que tange aos prazeres mundanos…

Segundo o historiador Suetônio, o jovem Tito era bonito e forte, apesar dele ser baixo e barrigudo. Ele montava bem à cavalo e era bom no manejo das armas, notadamente o arco e a flecha (inclusive, durante o Cerco a Jerusalém, Tito teria oportunidade de demonstrar esta habilidade). Outro talento que chamou a atenção, embora fosse um tanto mais preocupante, era a sua extraordinária capacidade de imitar perfeitamente a caligrafia dos outros.

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Iniciando a sua carreira militar, entre os anos 57 e 63 D.C, Tito destacou-se como tribuno militar na Britânia e na Germânia.

De volta à Roma, em 63 D.C., Tito casou-se com Arrecina Tertulla, que era filha de um ex-Prefeito da Guarda Pretoriana. Porém, Arrecina  faleceria cedo, em 65 D.C., assim, o viúvo Tito em seguida desposou a nobre Marcia Furnilla, que pertencia a uma distinta família da classe senatorial romana (apesar de, originalmente, no início da República, os Márcios serem uma gens plebeia, eles reivindicavam descender do lendário Rei de Roma Ancus Marcius).

Ocorre que o novo casamento de Tito também teria vida curta, pois ele achou por bem divorciar-se da segunda esposa quando membros da família dela foram acusados de participar da Conspiração Pisoniana, liderada por Caio Calpúrnio Pisão contra o imperador Nero, que ocorreu naquele mesmo ano de 65 D.C.

Tito jamais se casaria de novo.

Pouco depois, Vespasiano, que era um general respeitado, no final do reinado de Nero foi nomeado para comandar as legiões que iriam combater a Grande Revolta Judaica, que estourara em 66 D.C.

Na Guerra contra os Judeus, Tito acompanhou Vespasiano até a Judéia, em 67 D.C., comandando a XV Legião.

Quando estourou a rebelião de Gaius Julius Vindex, na Gália, em 68 D.C., que iniciou a cadeia de eventos que resultaria na deposição e suicídio de Nero, Tito foi enviado à capital por Vespasiano para transmitir o reconhecimento das legiões na Judéia ao novo imperador, Galba. Porém, antes de chegar à Roma, Tito recebeu a notícia de que Galba havia sido assassinado e de que agora Otão era o novo imperador. Ele decidiu, então, retornar para a Judéia para ver o que o pai decidiria diante do novo quadro.

Entretanto, já em 69 D.C., Otão foi derrotado por Vitélio, que, pouco antes,  havia sido aclamado pelas legiões da Germânia, e, com a vitória, foi aclamado como o novo Imperador.

Enquanto isso, Tito teve vital importância e participou diretamente das negociações que levaram Muciano, o Governador da Síria, a jogar a cartada de reconhecer Vespasiano como imperador, desprezando o reconhecimento de Vitélio, que, afinal, tinha menos prestígio que o primeiro.

Vespasiano, assim, partiu para Roma para reclamar o trono e deixou sob o comando de Tito a campanha contra a Grande Revolta Judaica. Consequentemente, ficou sob a responsabilidade de Tito a fase mais difícil da guerra: o cerco e captura de Jerusalém. Em 70 D.C., Jerusalém, após um duro sítio, foi finalmente tomada e saqueada pelos romanos.

Segundo o abrangente relato do historiador Flávio Josefo, que era um líder rebelde judeu que foi capturado e aderiu aos romanos, Tito tinha a intenção de poupar da destruição o Grande Templo de Jerusalém, que teria sido acidentalmente incendiado durante o cerco. Porém, para muitos, essa parte do relato de Josefo não teria muita credibilidade, já o que houve de fato foi uma destruição sistemática do templo, sendo que o referido historiador seria muito propenso a incensar os Flávios, os seus captores e patronos.

O Arco de Tito, em Roma, que foi erguido por seu irmão, Domiciano, após a morte de Tito, comemora a vitória obtida por ele contra a revolta judaica e ilustra em relevos o célebre candelabro de 7 braços (Menorah) sendo transportado na procissão triunfal de Tito em Roma.

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Foi durante a Guerra contra os Judeus que Tito envolveu-se com Berenice, uma bela princesa judia, dez anos mais velha do que ele,  e que era bisneta de Herodes, o Grande, e irmã de Herodes Agripa II, o rei-cliente de Roma que, entre outros territórios, governava a Galileia, situando-se entre seus domínios, a cidade de Cesareia (Nota: Foi em Cesareia, na presença de Berenice, de Herodes Agripa, e do procurador romano Festus, por volta de 59 D.C., que o apóstolo Saulo de Tarso (São Paulo), preso, defendeu sua causa e apelou para ser julgado em Roma (Atos, 26).

O Senado Romano reconheceu Vespasiano como novo Imperador, em 21 de dezembro de 69 D.C.  Em 70 D.C,, enquanto ainda estava no Oriente, Tito foi nomeado Consul junto com seu pai.

Em 71 D.C.Tito recebeu do pai o “Poder Tribunício”, que constituía uma declaração informal de que ele seria o herdeiro e sucessor de Vespasiano (afastando, assim, qualquer pretensão de que seu ambicioso irmão mais novo, Domiciano, pudesse ter de herdar o trono antes dele). Certamente, o sábio Vespasiano quis evitar um dos principais fatores de instabilidade nos reinados dos seus antecessores da dinastia dos Júlios-Cláudios: a pouca clareza quanto à sucessão, pela existência de vários pretendentes dinásticos).

Tito também foi nomeado Prefeito da Guarda Pretoriana, um cargo de grande poder e que demonstrava a confiança que Vespasiano tinha no filho. E, de fato, agindo como comandante da guarnição militar da Capital e Guarda de Honra do Imperador, Tito foi implacável na vigilância e repressão a potenciais ameaças ao reinado do pai, tendo executado sumariamente vários supostos conspiradores.

Em 75 D.C., Tito trouxe sua amante Berenice para viver com ele no Palácio. Porém, a opinião pública romana, sempre suspeitosa contra princesas estrangeiras e não muita afeta à fé judaica, não recebeu bem esta união, talvez amedrontada com um possível paralelo com a união entre Cleópatra e Marco Antônio, que foi considerada prejudicial aos interesses do Estado. Tito, então, teve que se curvar à vontade popular e mandou a princesa judia de volta para o Oriente.

Porém, em 23 de junho de 79 D.C., aos 69 anos de idade, Vespasiano morreu de causas naturais e Tito foi imediatamente aclamado como novo Imperador Romano, aos 38 anos.

Uma das primeiras medidas de Tito foi decretar o fim dos julgamentos por crimes de lesa-majestade (maiestas). Essa antiga lei romana, que originalmente visava processar os responsáveis por conspirações contra a segurança nacional, tinha se tornado, durante o principado, um pretexto para executar qualquer pessoa que desagradasse o trono, até mesmo por uma simples manifestação de desagrado contra os imperadores, inclusive os já falecidos.

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(Estátua de Tito, foto de Sailko)

As palavras de Tito, ao acabar com os processos por maiestas, foram preservadas, e valem ser transcritas:

“É impossível que eu seja insultado ou sofra qualquer tipo de abuso, pois eu nada fiz que mereça censura, e eu não me importo com relatos falsos. No que se refere aos imperadores que já morreram, eles podem se vingar sozinhos se alguém lhes fizer algum malefício, caso sejam eles mesmo semideuses e possuam algum poder…”

A declaração supracitada demonstra que Tito herdou muito da personalidade e das maneiras do pai, Vespasiano, que prezava pela simplicidade, afabilidade e senso de humor. Suetônio assim descreve o comportamento de Tito:

“Ele era muito gentil por natureza, e, considerando que, de acordo com um costume estabelecido por Tibério, todos os Césares que o seguiram recusavam-se a reconhecer favores concedidos pelos imperadores precedentes, a menos que eles próprios os concedessem novamente aos mesmos indivíduos, Tito foi o primeiro a ratifica-los conjuntamente em um simples decreto, não admitindo que fossem requeridos pessoalmente a ele. Ademais, no caso de outros pedidos feitos a ele, a norma que ele adotou foi não deixar ninguém sair sem esperanças. Mesmo quando os seus secretários domésticos advertiam-no que ele estava prometendo mais do que podia cumprir, ele dizia que não estava certo que alguém fosse embora triste de uma audiência com o seu imperador. Em outra ocasião, lembrando-se, enquanto jantava, de que durante aquele dia ele não tinha atendido aos pedidos de ninguém, ele proferiu aquele memorável e louvável comentário: “Amigos, hoje foi um dia perdido

Decorridos cerca de dois meses do reinado de Tito, aconteceu uma das maiores tragédias que já se abateram sobre o Império Romano: a grande erupção do Vesúvio que soterrou Pompéia e Herculano, entre outras cidades.

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Nota: a data da erupção, tradicionalmente considerada como sendo 24 de agosto de 79 D.C., com base em cópias medievais da carta de Plínio, o Jovem, testemunha ocular do fato, descrevendo a erupção, tem sido reconsiderada em função dos achados arqueológicos. Além do estado dos restos de plantas e sementes  encontrados não corresponder a essa estação do ano (verão europeu), indicando mais o outono, recentemente, no final de 2018, nas escavações na chamada Região V da cidade de Pompéia, foi encontrado um grafite feito em carvão em uma parede, contendo a data “17 de outubro” (por ser em carvão, material que se apagaria em pouco tempo ao ar livre, acredita-se que essa inscrição foi feita poucos dias antes da erupção ).

A conduta de Tito após a catástrofe do Vesúvio foi digna de um grande estadista. Ele visitou pessoalmente a região afetada, criou um fundo para assistência às vítimas, tomou medidas para o reassentamento dos sobreviventes e organizou uma comissão do Senado para deliberar sobre medidas adicionais de auxílio.

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(Cabeça de Tito, proveniente de Utica, Museu Britânico, foto de Carole Raddato)

Entretanto, pouco tempo depois, na primavera de 80 D.C., estando o Império ainda traumatizado pela destruição na Itália, uma nova tragédia aconteceria: um novo incêndio de Roma. Novamente, Tito, que ainda estava na Campânia supervisionando as medidas de apoio à população afetada pela erupção do Vesúvio, foi incansável nas ações de assistência aos desabrigados.

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Para alguns dos supersticiosos romanos, e certamente para a maioria dos judeus e cristãos, essas tragédias for consideradas uma punição pela destruição do Templo de Jerusalém.

Mas o reinado de Tito não seria marcado apenas pelas tragédias. Em uma espécie de compensação do destino pelos desastres sucessivos, ficou a cargo de Tito terminar e inaugurar o magnífico e grandioso Amphitheatrum Flavium (Anfiteatro Flávio), que ficaria conhecido popularmente como “Colosseum” (Coliseu). O nome do Coliseu deriva do fato dele ficar ao lado da enorme estátua dourada de Nero (que, segundo os relatos, seria maior do que a moderna Estátua da Liberdade, em Nova York),  conhecida como “Colossus” (Colosso).

A construção do Coliseu foi iniciada por Vespasiano, em cujo reinado a maior parte do edifício foi construída, aproveitando as fundações e parte da estrutura do enorme palácio de Nero (“Domus Aurea“), que foi soterrado.

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(O autor no Coliseu, em 2000)

Foram 100 dias de jogos inaugurais e, portanto, feriados, para deleite da plebe romana, que assistiram a lutas de gladiadores e caçadas de animais (cerca de 9 mil animais teriam sido mortos durante o período desses jogos).

Tito também construiu e inaugurou, no mesmo período que o Coliseu (80-81 D.C.), as suas Termas ou Banhos de Tito) para o uso da população de Roma e que, assim como no caso do Coliseu,  aproveitaram a infraestrutura da Domus Aurea. Embora não fossem muito grandes, comparados com os complexos de banhos que os imperadores construiriam nos séculos posteriores, as Termas de Tito foram as terceiras termas públicas construídas em Roma, após as Termas de Agripa e as Termas de Nero. Segundo Suetônio, nas suas Termas, Tito costumava banhar-se junto com os demais frequentadores do povo.

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Na política externa, o único desafio enfrentado por Tito foi uma revolta das tribos da Britânia, que foi debelada pelo general Agrícola, que levou suas legiões em campanha até a Escócia.

Em 13 de setembro de 81 D.C., o imperador Tito morreu de uma febre súbita, quando visitava a terra natal de seus antepassados, em território sabino, aos 41 anos de idade. A suas últimas palavras teriam sido:

“Cometi senão um erro”.

O real significado da frase derradeira de Tito sempre suscitou muita discussão entre os historiadores. Para alguns, ele se referia ao fato de não ter executado o irmão Domiciano, cujo caráter já há tempos já dava mostras de ser tirânico e que, segundo alguns relatos, teria conspirado para derrubar Tito. Houve também quem acreditasse que o erro lamentado teria sido um romance adúltero que Tito teria mantido com a mulher do irmão, Domícia Longina.

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(Quadro “O Triunfo de TIto“, de Sir Lawrence Alma-Tadema (1885). Na cena, Vespasiano é seguido por Domiciano, de mãos dadas com sua esposa Domícia Longina, que olha sugestivamente para Tito)

O reinado de Tito somente durou dois anos. Apesar das catástrofes ocorridas, o seu comportamento afável e generoso, a ausência de perseguições durante o seu governo, a sua procupação com a sorte das vítimas dos desastres e as obras públicas e espetáculos grandiosos, granjearam-lhe a estima do povo e dos historiadores, que lhe retrataram de maneira favorável.

Nas palavras de SuetônioTito foi:

“O querido e a delícia da raça humana”.

CONCLUSÃO

Tito é um daqueles exemplos em que a morte de uma celebridade jovem no auge da fama preserva a mitifica a sua boa imagem.

Ademais, o reinado do sucessor de Tito, Domiciano, mais autocrático e centralizador, desagradou boa parte dos senadores, que acabaram engendrando algumas conspirações para derrubá-lo. Após o assassinato de Domiciano, a história do reinado dele foi contada por historiadores ligados à classe senatorial, hostis a Domiciano, e os relatos dos mesmos tendem a classifica-lo como um “mau” imperador, cujo reinado intercala-se entre os reinados dos “bons” imperadores, Tito e Nerva.

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PAPAI NOEL É ROMANO!

Ícone de São Nicolau, provavelmente bizantino, Public domain, via Wikimedia Commons

Em 15 de novembro de 270 D.C, na província romana da Lícia e Panfília, nasceu Nicolau (Nikolaos), filho de Epifânio (ou Téofano) e Joana (ou Nona), um casal de cristãos abastados da cidade de Patara, na atual província turca da Antalya. Tendo nascido livre e filho de romanos livres, Nicolau era também cidadão romano, de acordo com a lei promulgada pelo imperador Caracala, em 212 D.C .

Os pais de Nicolau morreram enquanto ele era ainda muito jovem e o menino foi criado por seu tio, também chamado Nicolau, que era o Bispo de Patara e logo fez o menino entrar na Igreja como coroinha, e, quando o sobrinho tornou-se adulto, ordenou-o padre.

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Portão da cidade de Patara, By Bjørn Christian Tørrissen – Own work by uploader, http://bjornfree.com/travel/galleries/, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=81819539

Ainda em Patara, Nicolau ficou conhecido pelos atos de caridade, como quando certa vez, sabedor que as 3 filhas de um homem que havia caído na miséria iriam se prostituir para poder sobreviver, ele atirou três bolsinhas contendo moedas de ouro pela janela da casa da família.

Foi durante a Grande Perseguição dos Cristãos, decretada em 303 D.C, pelo imperador Diocleciano, que Nicolau, como tantos outros prelados cristãos, foi preso e, segundo relatos, espancado na prisão. Ele deve ter ficado preso, contínua ou intermitentemente, pelo menos até o Édito de Tolerância baixado pelo imperador Galério, em 311 D.C, também conhecido como Édito de Sérdica, e que tornou o Cristianismo uma religião lícita (este decreto antecedeu o famoso Édito de Milão, publicado dois anos depois).

Cabeça do imperador Diocleciano

Entre os anos 312 e 315 D.C, Nicolau peregrinou pela Terra Santa e viveu em uma pequena comunidade de monges que viviam em cavernas em Beit Jala, nas montanhas do deserto próximo à Belém, onde, séculos mais tarde seria construída a igreja ortodoxa grega de São Nicolau, porém, em 317 D.C, Nicolau voltou para a sua província e foi consagrado bispo da cidade de Mira, atual Demre, na Turquia.

Na condição de bispo de Mira, Nicolau participou do fundamental Concílio de Nicéia, convocado pelo 1º imperador romano cristão, Constantino I, em 325 D.C, sendo listado como participante de número 151: “Nicolau de Mira da Lícia”. Nicolau foi, assim, um dos signatários do “Credo Niceno”, que até hoje é o cerne dogmático do cristianismo católico romano e ortodoxo.

Vários milagres foram atribuídos a Nicolau, sendo que muitos teriam ocorridos em navios, motivo pelo qual ele virou padroeiro de várias cidades portuárias e, inclusive, da Marinha da Grécia moderna.

Nicolau faleceu em 6 de dezembro de 343 D.C, com 73 anos de idade. Ele foi enterrado em Mira.

Sarcófago original de Nicolau na Igreja de São Nicolau, em Demre (Mira), Turquia. By The original uploader was Sjoehest at German Wikipedia. – Transferred from de.wikipedia to Commons., CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1422675

Durante as invasões turcas ao Império Bizantino, no século XI, a cristandade passou a implorar que as relíquias de São Nicolau fossem transferidas para um local mais seguro e os seus restos mortais quase completos foram transferidos para a cidade de Bari, na Itália, por piratas. Posteriormente, marinheiros venezianos levaram o restante dos ossos de Nicolau de Mira para Veneza. Exames forenses modernos confirmaram que ambos os restos pertencem ao mesmo esqueleto. Não obstante, alguns ossos ou fragmentos ósseos de São Nicolau foram sendo espalhados por várias igrejas da Europa.

Igreja de  San Nicolò al Lido , em Veneza, que guarda cerca de 500 fragmentos de ossos de São Nicolau. By Didier Descouens – Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=42306590

Em 2004 foi feita uma autópsia no esqueleto pelo professor de Patologista Forense da Universidade de Bari, Francesco Introna, e uma reconstrução facial do crânio pela perita antropologista facial Caroline Wilkinson, da Universidade de Manchester. Verificou-se que Nicolau sofreu uma fratura grave em vida no nariz, provavelmente devido aos maus tratos sofridos durante a Grande Perseguição. A sua altura foi estimada em 1,68 m. Posteriormente, em 2014, Wilkinson produziu uma nova versão da reconstrução facial do Santo. Tudo isto pode ser conferido no link https://www.stnicholascenter.org/who-is-st-nicholas/real-face

Mas como São Nicolau inspirou a figura do Papai Noel?

A tradição cristã registra que Nicolau, além de devotar especial cuidado para com as crianças, era conhecido pelo costume de dar secretamente presentes, colocados nos sapatos das pessoas que ele visitava. Atualmente, no Calendário Gregoriano seguido pela Igreja Católica Romana, o dia festivo de Nicolau é 6 de dezembro. Todavia, na Igreja Ortodoxa, que segue o Calendário Juliano o Dia de São Nicolau cai no dia 6 de janeiro, e, em sua homenagem, nos países ortodoxos nasceu o costume das pessoas se darem presentes, considerando que a data também coincidia com o dia de natal para os cristãos ortodoxos (atualmente é dia 7 de janeiro).

Atribuido a Antonino Giuffré o a Giovanni Antonio Marchese ,cópia do original de Antonello da Messina, c.1465, Public domain, via Wikimedia Commons

Entre as nações européias ocidentais cristãs que herdaram o culto a São Nicolau, ele passou a ser especialmente reverenciado durante a Idade Média na Holanda, como “SinterClaes“, forma que evoluiu para “Sinterklaas”, sendo representado com as roupas vermelhas comuns a um bispo católico. Inclusive, São Nicolau, ou Sinterklaas, passou a ser o santo padroeiro da Amsterdam.

Essa casa em Amsterdam, datada do século XVI traz um relevo do padroeiro da cidade,SInterClaesç By Aloxe – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3138918

Quando os Holandeses estabeleceram sua primeira colônia na América do Norte, batizada de Nova Amsterdam, em 1624. Sinterklaas, ou seja, São Nicolau, igualmente foi escolhido como padroeiro da cidade, que, quarenta anos depois, seria conquistada pelos ingleses e rebatizada de “Nova York”. Assim, Sinterklaas acabou sendo transliterado no idioma inglês como “Santa Claus” e no século XIX começou a ser associado nos Estados Unidos a uma figura tradicional do folclore anglo-saxão medieval tardio e seiscentista associada ao Natal, o “Father Christmas”, que, em português, pode ser traduzido como “Papai Noel“.

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“Father Christmas”, ilustração de Josiah King no panfleto The Examination and Tryal of Old Father Christmas (1687). By Josiah King – Folger Shakespeare Library, Washington, D.C., Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=457834

Progressivamente, durante o século XIX, a figura de Santa Claus foi ganhando personalidade própria em relação a São Nicolau na majoritariamente protestante costa leste dos EUA, perdendo seu traje de bispo católico (como ele sempre foi retratado), embora mantendo a cor vermelha, ganhando suas feições e silhueta roliças, e incorporando-se à sua iconografia os trenós, as renas e outras características típicas do inverno nas latitudes mais extremas da Europa Setentrional.

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Azulejo de Sâo Nicolau que se acredita ter vindo de uma igreja em Constantinopla, datado do século X. Walters Art Museum, Public domain, via Wikimedia Commons

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Feliz Natal!

DIOCLECIANO – O RECONSTRUTOR DO IMPÉRIO ROMANO

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(Cabeça de Diocleciano, foto de Giovanni Dall’Orto)

Origem

Em 22 de Dezembro de 244 D.C., nasceu, em Salona, na província romana da Dalmácia, próximo à atual cidade de Split, na Croácia, Gaius Aurelius Valerius Diocletianus (Diocleciano).

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(Ruínas romanas de Salona)

O nome verdadeiro de nascença de Diocleciano era Diocles Valerius e ele era filho de um humilde escriba de um senador chamado Anulinnus. Com efeito, acredita-se que o pai de Diocleciano era provavelmente um escravo liberto ou então filho de um liberto.

Embora não saibamos nada sobre a infância e juventude de Diocleciano, é certo que ele alistou-se no Exército Romano e, como muitos conterrâneos de origem ilíria, foi sendo promovido até as mais altas patentes.

Assim, quando a História começa a mencionar a carreira de Diocleciano, ele já ocupava o importante posto militar de Duque da Moésia (Dux Moesiae), no baixo Danúbio.

Ascensão

Em 282 D.C., Diocleciano foi promovido pelo imperador Caro ao prestigioso posto de Comandante dos “Protectores Domestici”, o corpo de cavalaria de elite que funcionava como uma espécie de Guarda Imperial. Nesta condição, Diocleciano acompanhou Caro na guerra contra a Pérsia.

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Aclamação

Após a morte de Caro no Oriente, em 283 D.C. (segundo consta, ele foi atingido por um raio enquanto travava a bem sucedida campanha contra os Persas), os seus filhos Carino e Numeriano, assumiram o trono, sendo que o primeiro assumiu, informalmente, o governo da metade ocidental do Império, e o último, o do Oriente.

Porém, no decorrer do ano seguinte, Numeriano morreu, acometido de uma misteriosa inflamação nos olhos, quando voltava da Pérsia (algumas fontes levantem a suspeita de que ele foi assassinado pelo Prefeito Pretoriano, Lucius Flavius Aper (Áper).

Verdadeira ou não a participação de Áper na morte de Numeriano, o seu suposto crime não lhe trouxe o proveito esperado, pois, quando o exército imperial alcançou os subúrbios de Nicomédia (atual Izmir, na Turquia), um conselho de generais escolheu Diocleciano como sucessor, em 20 de novembro de 284 D.C.

Na presença das tropas reunidas para a sua aclamação, Diocleciano imediatamente acusou Áper de ter assassinado Numeriano e, em seguida, executou-o com a própria espada, na frente dos soldados estupefatos (há quem defenda que Diocleciano estava implicado na trama que assassinou o imperador e a morte de Áper teria sido na verdade uma “queima de arquivo”).

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Eliminando o rival

Ao assumir o seu primeiro consulado, Diocleciano escolheu como colega Lúcio Cesônio Basso, um experiente político de uma ilustre família romana, e, não, como seria natural, o outro imperador, Carino, o filho de Numeriano que reinava em Roma. Este ato representava uma na prática uma declaração de rompimento com Carino, prenunciando uma guerra civil.

Todavia, a disputa entre Carino e Diocleciano foi breve: Diocleciano avançou para o Oeste em direção à Itália e foi confrontado pelas forças de Carino na província da Moésia, no rio Margus, próximo a Viminacium, que ficava no território vizinho à atual Belgrado. No começo da batalha, Aristóbulo, o prefeito pretoriano de Carino desertou para o campo inimigo. Antecipando a derrota, os próprios soldados de Carino, mataram o seu imperador e aclamaram Diocleciano, em julho de 285 D.C.

Consolidando o poder

Contrariando o que se esperava de um imperador romano do século III D.C, o vitorioso Diocleciano não perseguiu os partidários de Carino, mantendo nos cargos muitos dos auxiliares deste, o que emulava, de certa forma a célebre clemência de Júlio César. Por sua vez, Aristóbulo foi mantido como Prefeito Pretoriano e Basso foi nomeado Prefeito Urbano de Roma.

Um dos primeiros atos de Diocleciano no trono foi escolher um colega para governar em conjunto com ele e o escolhido foi seu velho amigo e companheiro de armas, o general e conterrâneo de origem ilíria, Marcus Aurelius Valerius Maximianus (Maximiano). Embora os amigos compartilhassem a origem humilde, Maximiano, ao contrário de Diocleciano, era um homem muito mais áspero e implacável. Não obstante, Diocleciano mantinha sobre o amigo uma perceptível ascendência moral e intelectual. Assim,em 1º de abril de 286 D.C., Maximiano foi elevado do posto de “César” para  o de “Augusto”, que correspondia ao de Imperador.

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(Cabeça de Maximiano

Sintomaticamente, os dois Augustos concederam-se os títulos de “Júpiter” (Diocleciano) e de “Hércules”(Maximiano). Com efeito e não por acaso, os títulos e os atributos das divindades escolhidas visavam ilustrar o papel de ambos no Império Romano, onde Diocleciano aparecia como o sábio pai dos deuses e chefe do Olimpo e Maximiano como o guerreiro encarregado das tarefas militares. Desse modo, embora os dois fossem juridicamente iguais, Diocleciano mantinha para si, na prática, o status de “imperador sênior”.

Campanhas internas e externas

Diocleciano, desde logo o início do seu reinado, demonstrou uma certa rejeição à cidade de Roma. Muitos historiadores até acreditam que ele sequer chegou a visitar a velha capital quando de sua ascensão ao trono, ou, segundo outros, ele passou por lá tão brevemente que, em novembro de 285 D.C., ele já estava nos Bálcãs em campanha contra os Sármatas, os quais foram batidos, embora não esmagados.

Enquanto isso, Maximiano lidava com os bandos de fora-da-lei conhecidos como bagaudas, no norte da Gália. Submetidos estes, foi a vez dele combater a insurreição de seu subordinado Caráusio, o comandante da frota do Mar do Norte, que chegou a ser aclamado “Imperador da Britânia”. Porém, Caráusio estava firmemente estabelecido na Ilha e lá ele conseguiu resistir por sete anos, cunhando moedas em que ostentava o título de imperador e “irmão” de Diocleciano e Maximiano e louvava a concórdia (paz) entre eles.

Maximiano resolveu lutar contra os Alamanos, na fronteira do Reno, os quais ele combateu inicialmente sozinho, recebendo, posteriormente, a ajuda do colega Diocleciano. Essa campanha foi bem sucedida, e Diocleciano pode voltar sua atenção para o Oriente, onde os Persas criavam problemas crescentes.

Estabelecido em Nicomédia, as iniciativas de Diocleciano asseguraram a assinatura de um tratado de paz com os persas bastante favorável a Roma, que conseguiu instalar um rei-cliente no trono da Armênia. No Oriente, Diocleciano ainda combateu invasores árabes (sarracenos) na Palestina.

Na virada do ano de 290 D.C para 291 D.C, Diocleciano voltou para a Itália, onde encontrou com seu colega Maximiano em Milão, que tinha passado a ser a capital do Ocidente. 

Outras questões externas que ocupariam Diocleciano foram novos ataques dos Sármatas, um povo de origem iraniana, em 294 D.C., que foram derrotados de modo mais duradouro. O imperador decidiu reforçar a fronteira do Danúbio construindo uma cadeias de fortes abrangendo as cidades de Aquincum (atual Budapeste), Bononia (atual Vidin, na Bulgária), Ulcisia Vetera, Castra Florentium, Intercisa (atual Dunaújváros, na Hungria) e Onagrinum (atual, Begec, na Sérvia), que se tornaram parte de uma nova linha defensiva chamada de Ripa Sarmatica. Em 295 e 296 D.C., foi a vez dele dar combate à tribo bárbara dos Carpi, os quais também foram derrotados.

A Tetrarquia

A vivência da eclosão de crises simultâneas em diferentes partes do Império certamente contribuiu para estimular Diocleciano a idealizar a medida mais revolucionária do seu reinado: a chamada Tetrarquia, em 293 D.C.

Em 1º de março de 293 D.C., Diocleciano resolveu nomear o general Flávio Constâncio “Cloro”, genro de Maximiano e Prefeito Pretoriano da Gália, e recentemente encarregado da campanha contra Caráusio, como “César“, o que caracterizava, na prática, o posto de imperador “júnior”, e de herdeiro de Maximiano. Provavelmente, na mesma data ou um pouco depois, Diocleciano nomeou seu genro, o general Galério, marido de sua filha Valéria (Diocleciano não teve filhos homens), para o posto de César, passando a ser o seu herdeiro.

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Bloco de pórfiro entalhado com a representação dos Tetrarcas, trazido de Constantinopla pelos venezianos e colocado na lateral da Basílica de San Marco

Diocleciano considerava o Império Romano grande demais para ser governado por apenas um monarca, motivo pela qual instituiu a Tetrarquia, onde ele seria administrado por quatro governantes imperiais, sendo dois mais graduados, que teriam o título de “Augusto“, inicialmente com as respectivas capitais em Milão e Nicomédia, e dois, em plano um pouco inferior e subordinados a eles, nomeados “César“, instalados em Trier e Sirmium. A escolha dos “Césares”, pelos “Augustos”, visava assegurar uma sucessão tranquila e automática, teoricamente baseada no mérito, sendo que, quando o trono ficasse vago, o “César”, já previamente nomeado e experimentado na tarefa de governar, assumiria o posto vago de “Augusto” e, por sua vez,  este escolheria o novo “César”.

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(Embora a ilustração retrate Maxêncio, os trajes dele certamente são os mesmos que os tetrarcas deviam usar, incluindo o tradicional gorro ilírio,  costumeiramente utilizado pelos militares originários daquela região e que também foi retratado na escultura existente na Basílica de São Marcos).

Reformando o Império

Outra grande reforma administrativa promovida por Diocleciano foi a redivisão das cerca de 50 províncias romanas em 100 unidades menores, agrupadas em doze “Dioceses”, governadas por “Vigários”(Vicarii). Esses Vigários deixaram de ter funções militares, que foram transferidas para dezenas de “Duques” (Duces), mas retendo funções administrativas, judiciárias e fiscais. Dessa forma, Diocleciano tencionava diminuir a possibilidade de revoltas, tão frequentes durante o período imperial, dividindo e diminuindo o poder de que disporiam esses administradores.

Diocleciano também praticamente dobrou o número de funcionários públicos civis e também os efetivos do Exército Romano.

O consequente aumento da despesa pública gerado pelo aumento do tamanho do funcionalismo público e dos militares foi enfrentado com uma grande reforma no sistema tributário imperial. Após a realização de um abrangente e detalhado censo, foram estabelecidas duas unidades fiscais chamadas de “jugum” e de “caput”, a primeira levando em consideração uma determinada área de terra em função do tipo e da quantidade de produção agrícola que ela seria capaz de sustentar, num conceito um tanto parecido com o do módulo rural, e a segunda, o número de pessoas que neles viviam, podendo variar em função do sexo e idade. Em decorrência, os impostos passaram a serem calculados em função da quantidade de “jugera” e “capita” atribuídos a cada região ou cidade integrante do Império. E os impostos agora passavam a ser pagos não apenas em dinheiro, mas também em gêneros (conferir a esse respeito a obra The Later Roman Empire, de A.H.M. Jones)

Para combater a crescente inflação, Diocleciano determinou duas medidas:

1- Uma reforma monetária, estabelecendo três tipos de moeda: de ouro (aureus), de prata (argenteus) e de cobre (follis), fixando os percentuais de metais nas ligas com  as quais elas seriam cunhadas.

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(Um “Antoniniano” de Diocleciano, moeda anterior a reforma monetária, foto de Sosius11)

2- Entretanto, como a inflação não cedia, Diocleciano baixou o seu célebre “Édito de Preços Máximos”, em 301 D.C., que se tratava de uma verdadeira lei de congelamento de preços, bem similar às tão conhecidas dos brasileiros em tempos não tão distantes e que, da mesma maneira que as leis brasileiras, não deu certo, gerando desabastecimento…

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(lápide contendo parte do Édito de Preços Máximos, de Diocleciano)

Uma outra medida de Diocleciano, e que, para muitos historiadores, teria influência duradoura na Europa Medieval, foi a lei que obrigava aos camponeses e seus descendentes a trabalharem permanentemente nas terras agrícolas, tornando compulsória e hereditária esta atividade, além de outras profissões, entre as quais as de soldado, padeiro e até mesmo a função de membros das câmaras municipais, uma política que muitos veem como uma das origens do sistema feudal.

Diocleciano procurou assegurar a estabilidade política do trono promovendo uma verdadeira sacralização da pessoa do imperador, algo que ele fez, não por vaidade, mas para impedir as reiteradas conspirações para derrubar os imperadores romanos, tão comuns ao longo da história imperial. Assim, o cerimonial da corte tornou-se altamente ritualístico, estabelecendo-se como dever de todos que chegassem à presença do imperador prostrar-se no solo (“adoratio”), como se estivessem na presença de um deus. Do mesmo modo, somente o monarca poderia usar a cor púrpura. O título imperial de “Príncipe”, que tinha origem na expressão “primeiro senador”, foi substituído pelo de “Dominus” (Senhor).

O Conselho do Imperador (“Consilium”), que tradicionalmente tinha entre seus componentes algum senador ou figura pública, foi substituído pelo Consistório, um nome que denotava uma assembleia particular e privada.

A ênfase no culto ao imperador, decorrente da política acima citada, levou inevitavelmente à exigência de demonstrações públicas de devoção. Não surpreende, assim, que os Cristãos, que admitiam adorar apenas um Deus, tenham sido alvo de uma perseguição implacável por Diocleciano, decretada em 303 D.C, e que seria batizada pela Igreja Católica como “A Grande Perseguição”. Não obstante, não se pode afirmar que Diocleciano, pessoalmente, nutrisse ódio ou inimizade pelo Cristianismo.

Com efeito, as medidas de Diocleciano contra a fé cristã parecem decorrer mais de sua vontade dele ser o restaurador da velha grandeza do Império Romano, o que também incluía o fortalecimento da religião tradicional romana, do que a um ódio particular contra esta religião. Consta que o seu colega Galério é que era radicalmente avesso aos cristãos. Curiosamente, vale notar que, segundo algumas fontes, Valéria, filha de Diocleciano e esposa de Galério, era simpatizante do Cristianismo ou seria até mesmo cristã, o mesmo ocorrendo com sua mãe, Prisca.

Abdicação e aposentadoria

Em 20 de novembro de 303 D.C., Diocleciano finalmente visitou Roma para comemorar o vigésimo aniversário do seu reinado. Foi uma breve estadia, pois o imperador não gostou das maneiras pouco deferentes dos romanos. Um mês depois, ele viajou para Ravena, de onde partiu para uma campanha no Danúbio. Porém, a saúde de Diocleciano começou a piorar e ele resolveu voltar para Nicomédia, onde ficou recluso no palácio, o que fez circular o boato de que ele havia morrido.

Em março de 305 D.C., Diocleciano reapareceu em público. Poucos dias depois, Galério chegou à Nicomédia. Então, em 1º de maio do mesmo ano, Diocleciano reuniu os generais do Exército e anunciou que ele estava doente e que precisava descansar. E, num gesto inédito na história do Império Romano, o imperador comunicou que iria abdicar em favor de um herdeiro mais capaz: Com base no sistema da Tetrarquia, Galério o sucederia como Augusto e Maximiano também abdicaria, fiel e obedientemente, do trono, sendo sucedido por Constâncio Cloro.

A grande surpresa, porém,  foi quando se anunciaram quem seriam os novos Césares…Com efeito, todos pensavam que Maxêncio, filho de Maximiano, e Constantino, filho de Constâncio Cloro, seriam os novos Césares. Porém, os escolhidos foram Maximino Daia, sobrinho de Galério, e Severo, este um velho amigo de Galério. Portanto, a Tetrarquia, que mal começara, já nascia, assim, ameaçada em sua estabilidade pelo preterimento de dois candidatos naturais à sucessão. Tudo indica que isso decorreu da vontade de Galério, que era agora o verdadeiro homem-forte da Tetrarquia.

Diocleciano, após a abdicação, foi viver em seu espetacular palácio-fortaleza na cidade de Salona, em sua terra natal. Boa parte deste palácio ainda existe e, em seu vasto interior, nasceu a atual cidade de Split, na Croácia. De fato, Diocleciano parece ter encontrado a verdadeira felicidade cuidando de suas hortas e jardins. Assim, consta que, durante a guerra civil que logo eclodiu entre os seus sucessores e precipitou o fim da Tetrarquia, Diocleciano foi instado por populares a reassumir o trono, ao que ele teria respondido:

Se vocês pudessem mostrar ao imperador os repolhos que eu plantei com minhas próprias mãos, ele definitivamente jamais sugeriria que eu trocasse a paz e a felicidade deste lugar pelas tormentas de uma insaciável ambição”.

Morte

Diocleciano morreu em 03 de dezembro de 312 D.C., aos 67 anos de idade, em seu palácio em Split, sendo sepultado em um mausoléu octogonal que ele havia mandado construir no interior do mesmo.

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Reconstituição da aparência do Palácio de Diocleciano, em Split

Legado

O principal feito de Diocleciano foi conseguir dar estabilidade ao Império após um século de crises, guerras civis, derrotas militares e tumultos. Efetivamente, fazia mais de cem anos que um imperador não conseguia reinar 20 anos: A média no período tinha sido de cerca de três anos de reinado para cada imperador em 100 anos. Para isso contribuiu, certamente, a sacralização da imagem do Imperador, oficialmente estabelecida como “Dominus et Deos” (Senhor e Deus). Por isso, o reinado de Diocleciano é considerado um marco que divide a História do Império Romano entre os períodos do “Principado” ( a partir de Augusto, o primeiro imperador) e do “Dominado” (a partir de Diocleciano).

As linhas estabelecidas por Diocleciano, foram em grande parte mantidas por Constantino, que derrotou os demais contendores pelo espólio da Tetrarquia (sendo a mais notável exceção a política religiosa) e elas duraram até o final do Império do Ocidente, cerca de 200 anos mais tarde.

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HORÁCIO – CARPE DIEM

Em 8 de dezembro de 65 A.C, nasceu, em Venusia (atual Venosa), no sul da Itália, Quintus Horatius Flaccus (Horácio), filho de um escravo liberto que conseguiu tornar-se leiloeiro público. A cidade ficava na região do Samnium, que deu nome ao povo itálico dos Samnitas.

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(Panorâmica de Venosa, terra natal de Horácio, By D.N.R. – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3978388)

Embora tivesse origem humilde, o pai de Horácio conseguiu amealhar dinheiro suficiente para lhe dar uma esmerada educação, inclusive propiciando que ele fosse estudar em Roma.

Horácio nunca deixou de demonstrar sua extrema gratidão à formação que seu pai lhe proporcionou, referindo-se a ele afetuosamente na sua obra Sátiras:

“Se meu caráter é maculado por algumas pequenas falhas, mas, fora isso, é decente e moral, se tu podes apontar apenas algumas manchas numa superfície que, de resto, é imaculada, se ninguém pode me acusar de cobiça, lascívia ou desregramento, se vivo eu uma vida virtuosa, livre de corrupção (perdoem-me, por um instante, a minha auto emulação), e se sou eu para meus amigos, um bom amigo, meu pai merece todo o crédito…Como agora ele merece de mim irrestrita gratidão e exaltação. Eu jamais poderei me envergonhar de tal pai, nem sinto eu qualquer necessidade, como tanta gente sente, de me desculpar por ser filho de um liberto” (Sátiras, 1.6.65-92).

Depois de estudar em Roma, onde o pai havia se juntado a ele, Horácio foi completar a sua formação em Atenas, estudando na famosa Academia, fundada por Platão. Ali, ele foi influenciado pela escola filosófica de Epicuro e também pelos filósofos estoicos. É provável que, antes ou durante a viagem, o pai de Horácio tenha falecido, deixando-lhe uma boa herança.

Em seguida, Horácio alistou-se, entre 44 e 42 A.C., no exército de Marcus Junius Brutus (Bruto), o líder dos conspiradores e assassinos do Ditador Júlio César, e que se autointitulavam “Os Libertadores” (Bruto (após o assassinato, tinha fugido para a Grécia e visitou Atenas, onde procurou angariar adeptos para a causa dos Optimates – a facção dos partidários da nobreza no Senado Romano que se opunha ao Ditador).

Tendo sido nomeado para o alto posto de tribuno militar, normalmente reservado para jovens da nobreza romana, Horácio chegou a combater na Batalha de Fílipos, travada em outubro de 42 A.C. contra os sucessores políticos de César, integrantes do Segundo Triunvirato, Otaviano, Marco Antonio e Lépido. Com a derrota dos “Libertadores“, Horácio teve as suas propriedades confiscadas pelos Triúnviros.

Apesar de ter escolhido o lado dos perdedores na Guerra do Segundo Triunvirato, bem como do confisco de seus bens, Horácio, graças à sua esmerada educação, conseguiu um emprego como escrivão do Tesouro da República (Aerarium), cargo que lhe permitiu começar a sua produção literária sem ter que se preocupar com a própria subsistência.

Então, a sorte somou-se ao talento de Horácio, quando, em 38 A.C., ele foi apresentado pelo seu amigo Virgílio, que, então, já era um festejado poeta, ao rico Mecenas, um entusiasmado patrono das artes que era amigo íntimo de Otaviano, o herdeiro de César, que se tornaria o futuro imperador Augusto.

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(Busto de Mecenas, By Cgheyne – Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6644246)

Horácio caiu nas graças de Mecenas, que inclusive deu-lhe de presente uma villa em Tívoli, e ele foi introduzido no círculo de poetas protegidos de Otaviano. Consequentemente, Horácio começou a receber encomendas de odes e poemas alusivos a eventos importantes para a propaganda imperial. Ele compunha seus versos em hexâmetros (métrica poética) e iambos (unidade rítmica).

Mecenas e Otaviano gostavam tanto de Horácio que o segundo, já transformado no imperador Augusto, convidou-o para ser seu secretário particular, o que era uma honra incomensurável, mas que foi delicadamente recusada pelo Poeta.

Em uma de suas Epístolas, datada 21 A.C., Horácio descreve a si mesmo como:

“tendo 44 anos e sendo baixo, bronzeado, prematuramente grisalho, de pavio-curto, mas facilmente acalmado.

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Em 27 de novembro de 8 A.C.Horácio faleceu, poucos meses depois de Mecenas, e, em obediência às instruções de Augusto, o Poeta foi sepultado no Mausoléu do seu falecido amigo e benfeitor, situado na colina do Esquilino, em Roma.

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(Construção circular da época romana, chamada de “Auditório de Mecenas!”, ficava provavelmente nos famosos jardins do magnata romano, na colina do Esquilino, onde ele e Horácio foram sepultados).

As obras mais famosas de Horácio são as Sátiras e as Odes, além da Ars Poetica A poesia de Horácio, em muitas passagens, denota a influência da corrente filosófica do Epicurismo. Um dos versos mais famosos, de uma das “Odes”, é

Carpe diem, quam minimum credula postero” (aproveite o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã)

O conhecido verso, vale notar, voltou a ficar célebre em nosso tempo na fala do Professor de Literatura Keating, personagem de Robin Williams, no filme “Sociedade dos Poetas Mortos“.

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Já na Antiguidade, Horácio foi reconhecido como um dos maiores poetas latinos. O retórico Quintiliano considerava as Odesos únicos versos latinos que mereciam ser lidos“.

A obra de Horácio atravessou os séculos e influenciou importantes poetas e pensadores como Montaigne, Garcilaso de la Vega, Milton e muitos escritores e poetas da língua inglesa, além do grande filósofo Immanuel Kant, que usou um verso de Horácio – “Sapere aude” (“Ouse saber!”) – como o lema para a Era do Iluminismo em um ensaio.

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Segundo as palavras do próprio Horácio, o seu objetivo ao compor versos era o de dizer a verdade de um modo satírico:

“O que impede de dizer a verdade, rindo?”.

Os seguintes versos são um exemplo da refinada veia satírica do Poeta:

Há um defeito comum a todos os cantores: entre os seus amigos, eles nunca cantam quando se pede; e jamais param de cantar quando não é“.

Ajudar um homem contra a vontade dele é fazer o mesmo que matá-lo“.

Até um verso de Horácio foi citado recentemente em latim pelo juiz Sérgio Moro para minimizar as revelações do site Intercept (vide https://newsba.com.br/2019/06/23/moro-ironiza-the-intercept-em-latim-parturiunt-montes-nascetur-ridiculus-mus/):

As montanhas pariram um ridículo rato.” (parturiunt montes, nascetur ridiculus mus.)

Horácio provavelmente acharia graça na citação, uma vez que aquilo que o juiz chamou de “rato” terminou por mostrar-se ser animal muito maior e poderoso…

PORQUE CARTAGO FALHOU E ROMA TEVE SUCESSO

Esta é uma tradução minha de um artigo de J. E. Lendon, publicado originalmente na Weekly Standard Magazine, uma crítica do livro “Hannibal: A Hellenistic Life”, de Eve Macdonald, que pode ser lida no original no link abaixo. Gostei do artigo, que na minha opinião, oferece uma boa apreciação de um dos principais motivos pelos quais Roma triunfou sobre Cartago na Segunda Guerra Púnica. Boa leitura!

https://www.washingtonexaminer.com/weekly-standard/why-carthage-failed-and-rome-succeeded

É um sintoma do estado deplorável da vida intelectual nos dias de hoje que os leitores desta revista possam intuir os traços da estória contada em “Hannibal” no instante em que eles leem, logo no início de suas páginas, que a Cartago clássica – a cidade em nome da qual o grande comandante do título lutou contra Roma – era “diversificada” e “multicultural”.

A despeito de qual fosse o grau que os tendenciosos observadores contemporâneos considerassem Cartago como sendo: brutal na sua política e religião, opressora de seus súditos, agressiva com seus vizinhos, e dissimulada nas suas relações com as potências estrangeiras, uma cidade que ostentasse estas duas brilhantes qualidades, hoje quase divinizadas pelos nossos educadores, deve ter sido, ao contrário: amigável e escrupulosa em suas relações estrangeiras e domésticas, e vitimada em sua inocência por nações menos politicamente corretas.

Os incontáveis recém-nascidos e crianças pequenas que os Cartagineses sacrificaram aos seus deuses– os restos de mais de 20 mil deles já foram encontrados apenas em Cartago – se esvanece em não mais do que uma simples faceta do glorioso mosaico cultural que era Cartago. E nada disso precisa ser provado, ou mesmo, discutido pela autora, que também é livre para cometer não poucos erros factuais: já que, por definição, os caras legais devem ser um povo diversificado e multicultural, e uma escritora que canta as suas virtudes é liberada de maçante labuta da precisão histórica pela pureza dos seus ideais.

A Antiga Cartago era, provavelmente, tão diversa e multicultural como a Arábia Saudita de hoje: Um Estado rico com uma população pequena, Cartago empregava estrangeiros para fazer o trabalho sujo e dependia mais de mercenários estrangeiros do que dos seus cidadãos para lutar as suas guerras. Os mercenários que Cartago contratava certamente não tinham nenhum sentimento de fazer parte da nação cartaginesa: Quando os Cartagineses, após a sua derrota na Primeira Guerra Púnica (264-241 A.C), não foram capazes de pagá-los, os mercenários iniciaram uma guerra de inigualável brutalidade – a chamada “Guerra Sem Trégua” – contra seus ex-empregadores (240-238 A.C). Autores antigos descrevem os Cartagineses como sendo soberanos implacáveis, e praticamente todas as comunidades que eles dominavam na Espanha e no Norte da África alegremente abandonaram seus antigos mestres quando lhes foi oferecida proteção pelos Romanos. Poucos participaram voluntariamente no diverso e multicultural paraíso cartaginês imaginado pela nossa autora.

Na verdade, no Mundo Mediterrâneo posterior a Alexandre, o Grande, onde as incontáveis cidades gregas tornaram-se mais e mais liberais do que já tinham sido anteriormente em conceder cidadania a imigrantes, Cartago pode ter sido extraordinariamente excludente, enfeitada (como todos os Estados não-gregos) com uma pátina de cultura grega, mas somente aceitando, em seu corpo de cidadãos, imigrantes da região que originalmente fundou-a como colônia: a Fenícia, no Levante.

Na outra extremidade, positiva, dos Estados antigos que recebiam imigrantes e seus costumes estava Roma. Tendo saudado Cartago como “diversa e multicultural”, o autor de Hannibal inconscientemente imagina a sua grande adversária como sendo monolítica em raça, credo e aparência, tanto quanto um grande escritório de advogados brancos protestantes anglo-saxões da Nova York dos anos 50 e, consequentemente (por uma lógica implícita inevitável), como sendo gananciosa, pérfida e beligerante. Porém, os Romanos reais imaginavam que a cidade deles havia sido fundada por um bando de renegados, exilados e falidos. E, leal a essas origens, Roma energicamente dividiu a sua cidadania em direitos e classes, e concedeu partes dela aos seus aliados, que poderiam ultimamente aspirar ao seu todo.

Na época em que Roma começou a lutar contra Cartago, não apenas a mais numerosa nação dos Latinos, que eram culturalmente similares à Roma, mas também os Sabinos, Volscos, Marsos, Etruscos, Úmbrios, Samnitas, Gregos, e muitos outros, que falavam línguas estranhas e tinham costumes diferentes, haviam sido admitidos, em maior ou menor grau, nesse sistema generoso.

Consequentemente, para qualquer um que se sinta atraído à tarefa de pontuar as potências da Antiguidade em termos de sua diversidade e multiculturalismo, a Roma do século III A.C é um candidato muito melhor para obter esse dúbio certificado do que a Cartago do século III A.C. Mas, se tal questão for mesmo de interesse histórico, ela tem um significado bem oposto ao que o autor de Hannibal assevera, porque, em vez de fator de força, durante a Segunda Guerra Púnica de Aníbal (218-201 A.C), diversidade e multiculturalismo foram fraquezas – ainda que não fraquezas decisivas – para ambos os adversários.

Assim, sem dúvida, nossa autora o admite, quando ela aponta para a notável habilidade de Aníbal em manter unido o seu “multicultural” e “diverso” exército mercenário “colcha de retalhos” devido à força de seu carisma, à sua identificação com Hércules, e aos seus crescentes sucessos militares (Como se fosse uma professora de faculdade contemporânea, nossa autora acha que o verdadeiro gênio de Aníbal reside em – hein? – administrar a diversidade).

Mas a notável destreza de Aníbal sugere uma ânsia extraordinária, uma ânsia, suspeita-se, que o Cartaginês ficaria satisfeito em não ter. Apesar das heroicas qualidades pessoas de Aníbal, o seu exército padecia de deserções individuais e em massa.

No que se refere aos Romanos, a estratégia de Aníbal era derrotá-los em batalha (como ele fez, habilmente, em 218, 217 e na sangrenta Canas em 216 A.C) e então separar os aliados italianos que tanto contribuíam tanto para o poder militar de Roma. E alguns deles ele realmente ele conseguiu separar, especialmente após Canas, sobretudo no sul da Itália. Porém aqueles que abandonaram Roma, quase todos Gregos ou Oscos, eram os aliados de Roma culturalmente mais alienígenas, enquanto uma vasta porção da Itália, 160 km ao norte e 120 km ao sul de Roma (sem falar na maioria das cidades ainda mais ao sul), permaneceu leal aos Romanos, apesar das vitórias de Aníbal, e dos seus agrados, tentativas de suborno para encorajar traição e, finalmente, cercos e devastação coercitiva das terras deles.

O coração dessa resoluta região era composto de povos que sempre tinham sido (ou tinham se desenvolvido) similares em seus costumes aos Romanos. Mas muitos aliados romanos alhures, que não eram culturalmente similares aos Romanos também se mantiveram fiéis, e foram eles os que mais sofreram por isso, estando localizados em áreas onde os seus vizinhos tinham desertado para o lado de Aníbal. Esses amigos de Roma, conquanto achassem os costumes romanos esquisitos, sabiam ao menos uma coisa sobre eles: os Romanos, ao contrário de Aníbal, mantinham a sua palavra quanto a socorrer aliados cercados, recompensavam os que se mantinham leais e puniam com terrível crueldade aqueles que os traíam.

A fidelidade contínua aos Romanos, tanto a de seus parentes italianos, como a de seus outros aliados, não importa o quanto fossem diferentes os seus costumes, é o decisivo fator da guerra de Aníbal na Itália. Essa história é contada (juntamente com aquelas da Primeira e Terceira Guerra Púnicas), livre de modismos de posições políticas, no livro de Dexter Hoyos, “Mastering the West: Roma and Carthage at War” – sendo ele mesmo o reconhecido mestre deste assunto na atual geração. O cálculo é este: Nas suas vitórias entre 218 e 216 A.C., Aníbal matou ou capturou talvez 15 por cento da totalidade da população masculina das partes da Itália leais à Roma. Nunca nenhum Estado moderno jamais sofreu algo que se aproximasse de tais perdas (mesmo a França e a Alemanha perderam menos que 9 por cento na 1ª Guerra Mundial).

Ainda assim, contra a expectativa geral daqueles que não a conheciam bem, Roma não pediu a paz, e, um ano após Canas, colocava 75 mil homens no campo de batalha. Em 212 e 211 A.C., 200 mil homens serviam na terra ou no mar, algo como um terço de todos os homens em idade militar na Itália. A capacidade de Roma de recrutar tais números dentre seus próprios homens e os aliados dela é a razão pela qual ela finalmente venceu a guerra. Aníbal foi mantido sob controle na Itália, outras possessões romanas foram fortemente guarnecidas e o aliado de Cartago, Filipe V da Macedônia foi bloqueado na Grécia, enquanto os Romanos ainda possuíam amplas forças para derrotar os Cartagineses na Espanha, capturar a poderosa aliada de Cartago, Siracusa, na Sicília, e, ao final, invadir o Norte da África, obrigando Cartago a chamar Aníbal de volta para defender a terra natal.

Durante os 16 anos que Aníbal permaneceu na Itália, Cartago fez esporádicas tentativas de reforçá-lo com mercenários recém-contratados e reluzentes novos elefantes. Mas a necessidade de ter que fazer isso mostra que Aníbal, apesar das suas vitórias e carisma, simplesmente não pôde – ao contrário dos Romanos – recrutar em larga escala entre os habitantes da Itália. Ao longo do tempo, as suas forças diminuíam e minguavam, e os Romanos cada vez mais restringiam os movimentos dele. Nos últimos anos anteriores à sua volta, Aníbal foi essencialmente um chefe de um bando confinado ao árido Brútio, a ponta do pé da península italiana.

Aparentemente, o exército diverso e multicultural de Aníbal não exerceu sobre os potenciais recrutas na antiga Itália o mesmo apelo que exerce sobre a autora de Hannibal, confortavelmente à vontade na câmara de eco intelectualmente monocultural da universidade atual.

J.E. Lendon, professor of history at the University of Virginia, is the author of Soldiers and Ghosts: A History of Battle in Classical Antiquity and Song of Wrath: The Peloponnesian War Begins.

ANTÍNOO – O FAVORITO DE ADRIANO QUE VIROU DEUS

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Segundo as fontes, Antínoo (Antinous) nasceu no mês de novembro (no dia 27, dia do festival em sua honra, segundo uma inscrição),  provavelmente por volta do ano de 111 ou 112 D.C., na cidade de Claudiopolis (atual Bolu no noroeste da Turquia), na província romana da Bitínia. Embora a cidade fosse bem antiga e tivesse feito parte do Império Hitita, ela foi helenizada e reconstruída por colonos gregos vindos da cidade de Mantinea (antes da conquista romana, a cidade chamava-se Bithynium).

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(Lago Abant, em Bolu, foto de Azplanlos)

Em junho de 123 D.C., o imperador Adriano, então com 47 anos de idade, que se notabilizou por viajar por todo o Império Romano, chegou à cidade de Claudiopolis e, em algum momento de sua estadia, notou o ainda pré-adolescente Antínoo, atraído pela beleza do menino.

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Deixando Claudiopolis, Adriano continuou seu tour pelas províncias orientais do Império, mas deve ter providenciado para que Antínoo fosse enviado para Roma, provavelmente para ser educado no Paedagogium, a escola existente no Palácio de Domiciano, no monte Palatino, destinada à instrução dos pajens imperiais.

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(Ruínas do Peadagogium, no Palatino, em Roma)

Adriano voltou para Roma em setembro de 125 D.C., e, em algum momento nos anos seguintes, ele reencontrou Antínoo e ambos tornaram-se amantes. Três anos depois, quando Adriano partiu para nova viagem para a Grécia, Antínoo acompanhou-o, integrando a comitiva imperial.

Os historiadores concordam que Adriano tinha nítida inclinação homossexual e que o casamento dele com a imperatriz Sabina seria apenas por conveniências políticas e manutenção de uma imagem pública.

De qualquer forma, os costumes gregos estavam disseminados pela elite romana e o fato do imperador ter como amante um garoto inseria-se dentro da prática helênica da “pederastia“, onde se admitia que o mestre, mais velho (erastes), iniciasse sexualmente o discípulo (eromenos), aceitando-se que mantivessem relações sexuais até que o segundo saísse da puberdade e entrasse na idade adulta. Portanto, a opinião pública não deve ter dado muita importância ao relacionamento sexual entre o imperador e seu jovem pajem.

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(Busto da imperatriz Sabina, cujo casamento com Adriano foi notoriamente infeliz)

Consta que Adriano elogiava a inteligência de Antínoo. Ele escreveu poemas em homenagem ao amante, que infelizmente, não chegaram até os nossos dias. Por sua vez, não há nenhum indício de que Antínoo tenha se valido de sua privilegiada posição para obter algum ganho pessoal ou influência política.

Não se sabem muitos detalhes do relacionamento entre Adriano e Antínoo, mas é certo que as caçadas eram um dos divertimentos que eles faziam juntos, de acordo com o relato de um incidente, ocorrido em setembro de 130 D.C., durante uma viagem pelo norte da África, na Líbia, no qual os dois decidiram caçar um leão que estava atacando a população da região. Nessa caçada, Adriano teria salvo a vida de Antínoo e o incidente foi também imortalizado em um relevo circular (tondo), que sobreviveu até nossos dias, por ter sido posteriormente afixado no Arco de Constantino, em Roma (à esquerda, abaixo,  foto de Radomil).

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No decorrer dessa viagem pela África, Adriano e Antínoo chegaram ao Egito, por volta do início de outubro de 130 D.C., parando na  antiquíssima cidade sagrada de Heliopolis, de onde eles partiram para um cruzeiro pelo Nilo, navegando até a cidade de Hermopolis Magna. Nas proximidades da referida cidade, as fontes, sem entrar em detalhes, contam que Antínoo caiu no Nilo e morreu, ao que tudo indica, afogado, no dia em que se celebravam antigos festivais em homenagem ao deus egípcio Osíris.

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(Vista das ruínas de Hermopolis, foto de Roland Unger)

 

As principais fontes antigas assim relatam a  morte de Antínoo:

 

Dião Cássio

“Antinous era de Bithynium, uma cidade da Bitínia, a qual nós também chamamos Claudiopolis; ele foi um favorito do imperador e morreu no Egito, seja por ter caído no Nilo, como escreve Adriano, ou,  mais verdadeiro, por ter sido oferecido em sacrifício. Pois Adriano, como eu sempre afirmei, sempre se interessou por adivinhações e encantamentos de todo o tipo.  Então, Adriano homenageou Antinous – seja devido ao amor que sentia por ele, ou porque o jovem voluntariamente aceitou morrer (sendo necessário que uma vida fosse livremente oferecida para atingir os fins que Adriano tinha em vista) -com a construção de uma cidade no local onde ele sofreu o seu destino, dando-lhe o seu nome; e Adriano também ergueu estátuas, ou  imagens sagradas, dele, praticamente por todo o mundo. Finalmente, Adriano declarou que ele tinha avistado uma estrela que ele entendeu ser de Antinous, e alegremente emprestou seus ouvidos a estórias fictícas tecidas por seus adeptos no sentido de que a estrela havia nascido do espírito de Antinous e, assim, tinha aparecido pela primeira vez. No que se refere a isso, então, ele se tornou objeto de certo ridículo, e também porque, quando a sua irmã Paulina morreu, ele, na oportunidade, não fizera nenhuma homenagem.”

 

 

História Augusta

“Ele (Adriano) perdeu Antinous, seu favorito, durante uma viagem pelo Nilo, e por este jovem ele chorou como uma mulher. Com relação a este incidente, houve vários rumores:  alguns defendem que ele teria se entregado à morte por Adriano, e outros,  aquilo que a sua própria beleza, e a sensualidade de Adriano, sugerem…”

 

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“Outros defendem que este sacrifício de Antinous foi pio e religioso, pois, quando Adriano estava desejoso de prolongar a sua vida, e os feiticeiros demandaram que uma vítima voluntária fosse dedicada, diz-se que, após todos recusarem, Antinous ofereceu a si próprio”

 

Obviamente que não podemos excluir a hipótese de que a morte de Antínoo tenha sido acidental, segundo a versão dada pelo próprio Adriano, nem provar que os outros motivos alegados pelos autores antigos são inverídicos, muito embora tenham se registrado muitos episódios nos quais o o referido imperador mostrou-se explicitamente contrário à prática de sacrifícios humanos. Também não é impossível que, conforme a última passagem da História Augusta acima transcrita alude, a morte do rapaz tenha involuntariamente resultado de algum ato sexual, ou que a queda no rio tenha sido decorrente da embriaguez de ambos os amantes.

Entretanto, é fato que Antínoo estava no limiar de atingir a idade em que o seu relacionamento amoroso com Adriano (que estava com 54 anos de idade) tornaria-se extremamente embaraçoso para o imperador, pois o mesmo não mais poderia se dar sob o manto da pederastia.  O relacionamento sexual entre homens adultos livres não era admissível segundo a moral romana, e a chegada da maturidade sexual de Antínoo, que já estava com 18 ou 19 anos de idade, poderia expor o imperador à execração por parte da sociedade romana, especialmente na Itália, e, mais importante, a perda do seu prestígio entre os militares.

Desse modo, ainda que não se possa acusar Adriano, ou seus cortesãos, pelo assassinato de Antínoo, o fato é que a morte dele foi muito conveniente para o trono.

O que ninguém contesta é que Adriano ficou devastado com a morte de Antínoo e ordenou que homenagens inauditas fossem conferidas ao seu falecido amante.

Assim, ainda em outubro de 130 D.C., Adriano proclamou que Antínoo era um deus. A “deificação” já tinha se tornado comum para os imperadores falecidos e até algumas imperatrizes ou pessoas da família imperial já tinha sido tornados divinos, mas era a primeira vez que um simples pajem recebia essa distinção.

Adriano também fundou, no local onde Antínoo morreu, a cidade de Antinopolis, em 30 de outubro de 130 D.C..

O imperador também ordenou a construção de um santuário dedicado a Antínoo no interior de sua fabulosa Villa Adriana, em Tívoli, onde é provável que o falecido amante tenha sido enterrado (talvez depois de ser mumificado no Egito), conforme sugere o texto em hieróglifos no obelisco que  foi erguido ali e hoje encontra-se no Monte Pinciano, em Roma (vide https://followinghadrian.com/2016/10/02/the-obelisk-of-antinous/)

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A deificação de Antínoo foi seguida pela organização formal de seu culto, patrocinado pelo Estado, em diversas cidades, construindo-se templos e nomeando-se sacerdotes.

Embora, inicialmente, a criação e a adesão ao culto a Antínoo decorresse amplamente do patrocínio imperial e do desejo de adular Adriano (ou, igualmente, do temor em desagradá-lo), certamente a extraordinária beleza do rapaz, bem como as circunstâncias trágicas de sua morte e, principalmente, a similitude da forma e do lugar onde ele morreu com o mito de Osíris (que também morreu afogado no Nilo e depois foi ressuscitado pela mulher, Ísis), contribuíram para a popularização do novo deus, que no Egito, passou a ser associado a Osíris, recebendo o nome de Osirantinous.

Em algumas outras regiões, Antínoo foi considerado um herói mítico, como Hércules, um humano que superou a morte e pode transitar entre o mundo dos mortos e o dos vivos.

 

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(Antínoo retratado como Osíris, foto de DS)

Estátuas de Antínoo foram espalhadas por todo o Império Romano, aparentemente baseadas em modelos produzidos em Roma, por ordem de Adriano, uma vez que todas observam os mesmos padrões e contribuíram para popularizar o seu culto..

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Foram identificados até hoje 28 templos dedicados a Antínoo e encontrados vestígios de seu culto em pelos menos 70 cidades ao longo do Império Romano. No mundo grego, Antínoo também foi associado aos deuses Hermes e Dionísio. Os centros do culto eram as cidades de Antinopolis, Claudiopolis (local de nascimento de Antínoo) e Mantinea (De onde os seus ancestrais, fundadores de Claudiopolis, teriam vindo). Nessas cidades, também eram celebrados jogos em homenagem ao novo deus, o que ocorreu pelo menos até o início do século III, que também ocorriam em Atenas e Eleusis, tendo estes durado pelo menos até  267 D.C.

De fato, o culto a Antínoo perdurou por séculos após a morte de Adriano. Um papiro do final do século III preserva um poema em homenagem a Antínoo, mencionado a famosa caçada,, o Nilo, sua apoteose e a fundação da cidade em sua honra.

Os bispos e doutores da nascente Igreja também sentiram a necessidade de fazer invectivas contra o culto a Antínoo, No final do século II, Clemente de Alexandria escreveu:

“Outra nova divindade foi criada no Egito – e muito próxima aos Gregos também – que foi solenemente elevada pelo imperador à categoria de deus – o seu favorito cuja beleza era inigualável, Antinous. Ele consagrou Antinous da mesma maneira que Zeus consagrou Ganimedes. Pois a luxúria não é facilmente contida, quando não há medo, e mesmo agora o povo observa as noites sagradas de Antinous, que são realmente vergonhosas, como o amante que as passava junto com ele bem sabia. Por que, eu pergunto, vocês consideram um deus alguém que foi homenageado pela fornicação? Por que vocês ordenaram que ele fosse pranteado como um filho? Por que, igualmente, vocês narram as estórias da beleza dele? A beleza é algo vergonhoso quando manchada pelo ultraje. Não sejam tiranos da beleza, nem ultrajem aquele que está na flor de sua juventude. Guarde-a na pureza, para que permaneça bela. Tornem-se reis da beleza, não tiranos. Deixem-na livre. Quando vocês deixarem a imagem dela pura, então eu reconhecerei a vossa beleza. Então eu irei reverenciar a beleza, quando for o verdadeiro arquétipo das coisas belas. Agora nós temos uma tumba do amante, um templo e uma cidade de Antinous. (Exortação ao Gregos, 4.49.1-3)

O supracitado texto de Clemente de Alexandria também sugere que o culto de Antínoo poderia incluir alguma celebração orgiástica.

Por volta do ano 250 D.C., outro doutor da Igreja, Orígenes, em sua obra “Contra Celso”, refuta os argumentos do filósofo Celso contra  a fé cristã (que comparou, entre outros, Jesus Cristo a Antínoo). Nesse texto, Orígenes chega a reconhecer a existência de prodígios atribuídos a Antínoo, mas considera-os obra de um daimon (espírito) ou de mágicos.

Somente com o triunfo do Cristianismo, após a proibição das cerimônias públicas pagãs por Teodósio e a destruição de incontáveis templos, o culto a Antínoo desaparece da História, tendo o culto durado pelo menos uns duzentos e cinquenta anos.

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LEGADO

No século XIX, a revalorização do classicismo elegeu as estátuas de Antínoo como o último suspiro da arte clássica greco-romana e símbolo de beleza masculina. Ele também acabou inspirando vários escritores como Oscar Wilde, Fernando Pessoa e Marguerite Yourcenar.

Para saber mais: Lambert, Royston (1984). Beloved and God: The Story of Hadrian and Antinous. George Weidenfeld & Nicolson

 

O ESPORTE NA ROMA ANTIGA

 

O ESPORTE NA ROMA ANTIGA

Durante os próximos 30 dias, a bola será o centro do mundo e muitos discutem a paternidade do futebol, havendo até uma tese de o jogo teria suas raízes em um antigo esporte romano.

 

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Mens Sana in Corpore Sano”.

Quase todo mundo conhece a expressão acima, de origem romana, que significa “Uma mente sã em um corpo sadio” e imediatamente a identifica como uma exortação à necessidade de se cultivar, ao mesmo tempo, o intelecto e o físico. Trata-se, na verdade, de um verso do grande poeta romano Juvenal, que inclui a boa saúde física e mental como uma das bençãos que se deve pedir aos deuses, preferivelmente a uma vida longa, mas sem virtude.

Ao longo dos séculos, porém, a frase de Juvenal acabou adquirindo o caráter de lema romano pela prática de esportes. É com ela, portanto, que iniciamos nosso texto sobre a atividade esportiva em Roma.

Inicialmente, enquanto era apenas uma Cidade-Estado que se expandia pela Itália e pelo Mediterrâneo Ocidental, no período republicano, a prática de esporte em Roma era valorizada apenas como forma de treinamento militar para os jovens cidadãos. Havia um espaço na cidade, o Campo de Marte, onde eram feitas as manobras das legiões e onde os jovens podiam se exercitar no arco, na equitação e na esgrima, entre outras atividades. Porém, naquele tempo, o esporte por esporte não fazia parte da formação da criança e do jovem romano, ao contrário do que ocorria nas cidades-estado gregas.

O fato é que a elite romana, durante muito tempo e ainda no limiar do Império, julgava que exibir-se em público praticando qualquer atividade esportiva que não fosse ligada às artes militares era algo degradante e indigno de um patrício. Por outro lado, o grosso do exército era formado por pequenos agricultores livres, que, certamente, já praticavam bastante exercício físico na dura lida cotidiana do semeio, cultivo e colheita.

Assim, somente quando aumenta o contato direto dos romanos com a civilização grega, no sul da Itália e, sobretudo após a conquista de territórios na Grécia, no século II A.C, é que o esporte, em conjunto com outras manifestações culturais gregas, como o teatro, a filosofia, as artes,e a própria língua grega, passam a ter grande influência na elite romana (“a Grécia cativa cativou Roma”).

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A partir de então, os nobres, em suas villas (propriedades rurais de luxo), construíram espaços privados para a prática de ginástica e atletismo (gymnasia e palestrae). Note-se, porém, que, no início, os romanos viram com maus olhos o atletismo à moda grega, sobretudo porque os atletas se exercitavam e competiam completamente nus. Por isso, algumas leis tentaram proibir membros da aristocracia romana de competirem em público.

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Em 186 A.C., pela primeira vez, jogos públicos incluindo exibição de atletas são organizados pelo cônsul Marcus Fulvius Nobilior, em comemoração à sua vitória contra a Liga Etólia, na Grécia. Nobilior era um grande entusiasta da cultura grega, uma civilização em que os atletas profissionais eram admirados e, por isso, ele resolveu trazer a novidade para Roma.

As competições de atletismo compreendiam as seguintes modalidades: corrida, luta-livre (wrestling – hoje conhecida como luta greco-romana), pugilismo (boxe), pentatlo (que abrangia as modalidades de salto em distância, corrida, lançamento de disco, lançamento de dardo e luta-livre) e pancration (uma luta que pode ser comparada ao nosso “vale-tudo”, agora internacionalizada como MMA).

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Já no fim da República, as termas, ou banhos públicos, começam a proporcionar, além das piscinas e saunas, espaços adjacentes com palestras, ou seja, espaços abertos cercados por colunatas, destinados à prática de exercícios físicos. Nas termas, também havia piscinas específicas para a prática de natação (chamadas de natatio). Em seguida, muitas termas também passaram a dispor de espaços para jogos com bola, chamados de sphaerista, pois, além do atletismo e das lutas, os romanos importaram da Grécia uma série de jogos com bola (pila, em latim).

Entre os jogos com bola mais populares estava o Harpastum, cujo nome derivava do grego harpaston, que significa “capturar” ou “tomar”. Esse jogo também era chamado pelos romanos de “jogo com a bola pequena”. Essa bola pequena e dura, que não quicava, era chamada de harpasta (havia outros jogos com bolas maiores, parecidas com a do nosso futebol, que eram infladas e quicavam (ex: follis).

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O Harpastum, segundo o retórico e gramático Athenaeus, que escreveu sobre muitos costumes do mundo greco-romano no século II D.C, era o nome que os romanos davam ao jogo que os gregos também chamavam de Phaininda.

Não se sabe com precisão quais eram as regras do Harpastum, mas todos os textos que foram preservados mencionando o jogo levam a crer que era muito parecido com o rúgbi. Era, com certeza, um jogo jogado com as mãos, em um campo grande, provavelmente de terra ou às vezes areia e de formato retangular, não muito menor do que um campo de futebol moderno e dividido ao meio por uma linha. Talvez houvesse versões do jogo, variando o número de jogadores de 5 a 12 em cada um dos dois times oponentes. As descrições mencionam um jogador recebendo a bola e fazendo passes para os companheiros de time, com os adversários tentando interceptar. A marcação era dura e os adversários eram jogados no chão. Porém, o objetivo era penetrar no campo adversário e capturar a bola, daí resultando, talvez, o nome que foi dado à pelota.

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Fizemos questão de escrever sobre o Harpastum , nesta semana da abertura da Copa do Mundo, porque há um teoria de que este jogo seria o ancestral do nosso futebol. Sabe-se que os soldados romanos praticavam muito o Harpastum, porque, além de envolver muito esforço físico, o jogo servia também como treinamento estratégico e tático. E as legiões romanas teriam levado o jogo para todos os cantos do império, inclusive a Britânia. Após a Queda do Império Romano, o Harpastum teria evoluído em diversas regiões que se tornariam os futuros países da Europa, e seria o provável ancestral do La Soule, um jogo com bola que surgiu na Normandia, França, e também do ancestral inglês do rugby. E foi a partir de uma cisão ocorrida entre os praticantes deste último que, surgiu na Grã-Bretanha, o football association, o nosso futebol.

Não obstante, os romanos certamente jogavam algum jogo que envolvia chutar uma bola, pois Cícero nos conta acerca de um curioso caso forense envolvendo a morte de um cliente que tinha ido cortar o cabelo em uma barbearia e ali foi morto por causa de uma bola chutada por crianças que jogavam na rua, sendo que a bola bateu na mão do barbeiro no exato momento em que este usava a navalha no pescoço da infeliz vítima!

Se os romanos não foram muito criativos na invenção de esportes, adotando quase todos os que conheciam de outros povos, no entanto, ninguém pode tirar-lhes os louros de terem inventado a indústria do esporte como entretenimento.

Desde os primórdios, havia em Roma jogos públicos para o entretenimento do povo romano (ludi). Esses jogos tinham um nítido propósito religioso, pois integravam festividades em homenagens às diversas divindades adoradas pelos romanos. Não se tratavam, assim,  propriamente, portanto, de competições esportivas, mas sim de exibições que buscavam o espetáculo e a diversão. Com efeito, pelo menos desde 366 A.C., o calendário romano incluía dias feriados chamados de ludi romani (jogos romanos), patrocinados pelo Estado.

Em Roma, o principal espaço para a realização dos ludi era o Circo Máximo, cuja pista existe até hoje. A principal modalidade esportiva praticada ali eram as corridas de bigas e quadrigas (carruagens puxadas por dois ou quatro cavalos), chamadas de Ludi Circensis. Se o leitor quiser ter uma ideia de como elas deviam ser, é só assistir ao filme “Ben-Hur”, em que provavelmente foi encenada a melhor reprodução cinematográfica de uma corrida de quadrigas. Júlio César reconstruiu o Circo Máximo, dotando-o de arquibancadas permanentes revestidas de mármore.

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Como o número de espectadores é o melhor termômetro para se medir qual esporte é o mais apreciado, sem dúvida esse título em Roma vai para as corridas de quadrigas, pois o Circo Máximo tinha capacidade para, pelo menos, 250 mil espectadores!

As corridas consistiam em 7 bigas ou quadrigas darem 7 voltas por toda a extensão da pista de 650 m de comprimento que circundava uma plataforma em forma de “U” bem alongado, chamada de “spina”, ganhando a que chegasse em primeiro. Havia na spina uma espécie de placar marcando o número de voltas e o número da quadriga que estava liderando, consistindo os marcadores  em esculturas de 7 ovos e de 7 golfinhos que eram giradas conforme a situação se desenvolvia.

Mosaico del circo MCGR 2285 by QuartierLatin1968 - Own work. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Commons - httpscommons.wikimedia.orgwikiFileMosaico_del_circo_MCGR_2285.jpg#mediaFileMosaico_

Os romanos eram tão apaixonados pelas corridas de bigas que as equipes e respectivos apoiadores logo se dividiram em 4 facções: os Vermelhos, Brancos, Verdes e Azuis. Com o tempo, essas facções evoluíram para representarem não apenas as corridas, mas cultos religiosos, bairros da cidade e, finalmente, agrupamentos políticos. E essas facções perduraram não somente em Roma,  mas permaneceram em existência durante o Império Romano do Oriente, em Constantinopla, também chamado de Império Bizantino. A famosa revolta “Nika”, em 532 D.C, que tentou destronar o Imperador Justiniano, começou com um conflito urbano promovido pelas facções rivais dos Azuis e dos Verdes. Constantinopla, como muitas cidades romanas, também tinha o seu hipódromo, cujas ruínas podem ser vistas ainda hoje. Estima-se que a sua capacidade era de 80 mil lugares.

A história registra vários episódios de devoção ou fanatismo esportivo pelas corridas de bigas. Os escritores faziam questão de registrar as estatísticas esportivas. Consta que o auriga (condutor de carruagens) mais bem sucedido foi Gaius Appuleius Diocles que venceu 1.462 corridas de um total de 4.257 disputadas, ganhando um total de 35.863.120 sestércios, soma que, estima-se, equivaleria hoje a 15 bilhões de dólares, o que o tornaria o esportista mais bem pago de todos os tempos! Diocles aposentou-se com 42 anos, após 24 anos de carreira (conforme matéria publicada no jornal Daily Telegraph (vide https://www.telegraph.co.uk/news/newstopics/howaboutthat/7942699/Wealth-of-todays-sports-stars-is-no-match-for-the-fortunes-of-Romes-chariot-racers.html).

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Os ludi foram imediatamente utilizados pelos imperadores como forma de propaganda política e manipulação de massas. Desde o início do Principado, os espetáculos aumentavam em número e suntuosidade. As lutas de gladiadores, costume que os romanos adquiriram dos etruscos, utilizados em cerimônias fúnebres privadas, passaram a integrar os jogos públicos, oferecidos e custeados pelos cônsules e pelo próprio imperador. Não vamos tratar, aqui, dos detalhes relativos aos combates na arena, uma vez que, em nossa opinião, a prática não se enquadra como esportiva.

O uso dos jogos como ferramenta de controle das massas pelos imperadores romanos, em conjunto com a distribuição gratuita de alimentos (anonna), gerou a célebre expressão “Pão e Circo”,  também cunhada por Juvenal, por volta do ano 100 D.C. A sua análise foi tão profunda, que merece ser citada na íntegra :

Já por muito tempo, desde quando nós não vendíamos o nosso voto para apenas uma pessoa, o povo romano tem abdicado das nossas obrigações; pois ele, que, anteriormente, distribuía os comandos militares, os altos cargos públicos, as legiões, tudo, enfim; agora se auto-restringe e, ansiosamente, espera somente duas coisas: Pão e circo!” (Sátiras, X, 77-81).

Com a advertência de Juvenal, encerramos nosso artigo sobre o Esporte em Roma, esperando que tenham gostado.

TIBÉRIO – UM IMPERADOR RELUTANTE

Tiberius,_Romisch-Germanisches_Museum,_Cologne foto Carole Raddato(Cabeça de Tibério, Museu Romano-Germânico, Colônia, foto de Carole Raddato)

NASCIMENTO, INFÂNCIA E JUVENTUDE

Em 16 de novembro de 42 A.C., nasceu Tiberius Claudius Nero (Tibério), membro de uma das famílias mais tradicionais da nobreza romana, cujos ancestrais tinham ocupado os mais importantes postos desde o início da República, desde o longínquo ano de 494 A.C. O menino recebeu o mesmo nome de seu pai, que havia sido Cônsul, no ano de 50 A.C.

Tibério era filho de Lívia Drusila, que, mesmo estando grávida de seu irmão, Druso, o Velho, divorciou-se de seu pai e casou-se, em 39 A.C, com o jovem triúnviro Otaviano, o herdeiro de Júlio César (que em pouco mais de uma década, se tornaria o primeiro imperador romano, com o nome de Augusto).

Em 33 A.C., o pai de Tibério faleceu e foi ele quem fez o discurso fúnebre na tribuna dos Rostra, no fórum romano, diante da multidão, quando tinha apenas 9 anos de idade.

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(Cabeça de Lívia Drusila, molde do original da Glipoteca Ny Carlsberg, foto de Giovanni Dall’Orto)

O casamento de Lívia com Augusto fez Tibério entrar no círculo familiar do imperador, e, após a morte do pai dele, ele passou a viver na casa de Otaviano e Lívia, no Palatino, onde recebeu esmerada educação dos melhores tutores, como por exemplo, Teodoro de Gadara, que lhe ensinou Retórica.

Quando Otaviano celebrou o triunfo pela vitória contra Cleópatra (e Marco Antônio) pelas ruas de Roma, em 29 A.C., o menino Tibério, então com cerca de doze anos, recebeu a distinção de conduzir, ao lado de Marcelo, a quadriga triunfal na qual ia o seu padrasto.

A posição de Tibério na família imperial foi ainda mais reforçada quando ele se casou com Vipsânia Agripina, filha do maior colaborador e amigo de Augusto, o general Marco Vipsânio Agripa, então cotado para ser o sucessor. Arranjado ou não este casamento, o fato é que Tibério e a esposa apaixonaram-se. Eles tiveram dois filhos: Druso, o Jovem, em 14 A.C., e uma outra criança, que morreu precocemente.

(Tibério e Vipsânia Agripina)

Por sua vez, Augusto e Lívia não tiveram filhos e a única descendente do imperador era sua filha Júlia, nascida do seu casamento anterior com Escribônia, e que havia se casado com Agripa.

Porém, Agripa morreria em 12 A.C., deixando Júlia viúva com dois filhos pequenos, Caio César e Lúcio César, que já haviam sido adotados por Augusto em 17 A.C., fato que colocou os meninos na condição de prováveis sucessores do trono. Vale notar que essa adoção ocorreu após a morte do sobrinho e predileto de Augusto, Marcelo, filho de sua irmã, Otávia, a Jovem, ocorrida em 23 A.C. Aliás, essas escolhas permitem vislumbrar como Augusto planejava a questão da sua sucessão, isso também em função de suas reações em função dos imprevistos.

A condição de enteado do imperador fez com que que Tibério, aos 17 anos de idade, iniciasse a sua carreira pública como Questor, apesar de não ter a idade legalmente exigida para o cargo. Nessa função, Tibério demonstrou competência para lidar com um problema de abastecimento de grãos, em Óstia.

O progresso de Tibério na carreira das magistraturas foi rápido e, em 13 A.C., novamente antes de ter a idade legal, ele foi escolhido Cônsul.

ASCENSÃO DE TIBÉRIO

Em 11 A.C, Augusto, chegou à conclusão de que seu enteado Tibério, em caso de uma eventualidade (o já quinquagenário imperador tinha ficado gravemente doente onze anos antes), seria um bom candidato para ocupar o trono, pelo menos até a maioridade dos seus netos, Caio César e Lúcio César. Com essa finalidade, e provavelmente incentivado por Lívia, Augusto “pediu” (na verdade, provavelmente, ele deve ter ordenado) que Tibério se divorciasse de sua adorada Vipsânia e se casasse com sua filha viúva, Júlia.

Tibério, contrariado, teve que obedecer e casou-se com Júlia, tornando-se, agora, além de enteado, genro do imperador. Porém, segundo as fontes, certa vez, após o divorciar-se de Vipsânia, Tibério encontrou-a em algum evento social, ocasião em que copiosas lágrimas desceram pelo rosto dele, obrigando-o a se retirar do local e ir para casa. E, ainda de acordo com o relato, algumas testemunhas teriam ouvido, no trajeto, Tibério implorar aos céus, insistentemente, pelo perdão da ex-mulher. Foi uma cena que certamente inspirou preocupação na família imperial, pois Suetônio conta que

foram tomadas precauções para que Tibério nunca mais tivesse a oportunidade de encontrar a ex-mulher novamente“.

Enquanto isso, Tibério prosseguiu a sua carreira no serviço público como advogado, atuando em defesa de diversas cidades gregas no Senado e também como acusador público de um senador que havia conspirado contra Augusto.

Depois disso, Tibério destacou-se na carreira militar e acabou se revelando um grande general. Ele comandou campanhas bem-sucedidas na Panônia e na Germânia, estas muito bem descritas pelo historiador Veléio Patérculo, que serviu sob as ordens dele. Foi Tibério o primeiro romano a descobrir a nascente do Rio Danúbio e ele também marchou à testa de seu exército até o Rio Elba, um feito notável.

Assim, as vitórias de Tibério, na Germânia, abriram o terreno para estabelecer esta região como província romana, um projeto que, contudo, seria interrompido pelo Desastre de Varo, que narramos em uma das primeiras postagens de nossa página.

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(Campanha de Tibério na Germânia)

Graças a essas vitórias, Tibério foi o primeiro romano a receber os “ornamentos triunfais“, inaugurando esta nova forma de reconhecimento aos generais vitoriosos, já que os Triunfos, agora, passavam a ser reservados apenas ao Imperador, em pessoa.

Em 7 A.C., Tibério foi designado Cônsul e recebeu, em 6 A.C., o “Poder Tribunício” (que conferia ao magistrado o poder de vetar todos os atos dos demais magistrados e foi retirado do cargo de Tribuno da Plebe e conferido ao Imperador já no principado de Augusto). Este ato começava a se tornar praticamente um reconhecimento da posição do seu receptor como a pessoa mais importante no Império, depois do Imperador).

Com os despojos obtidos na guerra contra os Germanos, Tibério encarregou-se de restaurar o Templo da Concórdia, no Fórum Romano, que só seria completado em 10 D.C.

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(Reconstrução do Templo da Concórdia, no Fórum, restaurado por Tibério – autor Lasha Tskhondia)

TIBÉRIO NA BERLINDA

Porém, foi após receber essas honrarias e liderar outra bem-sucedida campanha, contra os Marcomanos, que Tibério, em 6 A.C, inusitadamente auto-exilou-se na ilha de Rodes. Há muitos debates sobre este misterioso exílio:

Em primeiro lugar, parece claro que Augusto nunca simpatizou muito com o reservado e frio Tibério, somente tendo-o favorecido por instigação da mãe dele, a sua influente esposa Lívia, e pela necessidade de ter um sucessor da família à mão, em caso de imprevisto.

Em segundo lugar, mas talvez mais importante, Caio César e Lúcio César, os já mencionados netos de Augusto, estavam crescendo. O primeiro, inclusive, já havia sido designado, naquele ano, para ser cônsul quando alcançasse os 20 anos, embora ele ainda tivesse apenas 14 anos na ocasião.

Assim, Tibério provavelmente deve ter sentido a sua posição na sucessão imperial enfraquecida e decidiu retirar-se voluntariamente das intrigas pela sucessão do já quase sexagenário Augusto. Segundo Suetônio, essa explicação teria sido dada, posteriormente, pelo próprio Tibério, porém atribuindo-a ao nobre propósito de não ofuscar e deixar o terreno livre para os dois rapazes.

Outro motivo que se cogita para o auto-exílio de Tibério em Rodes é o fato de que ele poderia estar se sentindo humilhado pela notória infidelidade da sua esposa Júlia, a quem se atribuía publicamente a participação em vários episódios de adultério e até de orgias.

Consta que Augusto, sincera ou fingidamente, tentou impedir Tibério de partir, somente permitindo a viagem após uma curta greve de fome do genro.  Entretanto, depois da chegada de Tibério à ilha, o imperador passou a preferir que ele permanecesse longe de Roma e a situação de Tibério passou a ser a de um exilado de facto. Há até relatos de que ele chegou a ser hostilizado por algumas pessoas, que percebiam a situação dele como a de alguém que havia caído em desgraça.

Para piorar, Augusto baniu Júlia de Roma, por causa dos adultérios, e decretou, em nome de Tibério, o divórcio de ambos.

Mas o destino, que, segundo a suspeita de muitos, de vez em quando recebia uma mãozinha de sua mãe Lívia, parecia sorrir para Tibério, uma vez que Caio César e Lúcio César morreriam no curto espaço de dois anos, entre 2 e 4 D.C.: Lúcio, por doença, aos 18 anos de idade, e Caio, por ferimentos recebidos em batalha, na Armênia, aos 23 anos.

Com efeito, segundo as fontes, pouco depois da morte de Lúcio César, ocorrida em 20 de agosto de 2 D.C., Augusto acabou cedendo aos apelos da imperatriz Lívia, e os do próprio Tibério, e, depois de oito anos de exílio, autorizou a volta do seu enteado para Roma, onde, após o retorno, ele se manteve como um cidadão privado, afastado de qualquer função pública.

Segundo uma passagem citada por Cássio Dião, em Rodes, Tibério estava acompanhado do famoso astrólogo Trasyllas, que, ao ver no horizonte um navio, teria previsto que ele trazia a mensagem de Augusto e Lívia chamando Tibério de volta à Roma. Prestigiado com o acerto da sua previsão, Trasyllas acompanharia Tibério – que acreditava piamente nos seus poderes de adivinhação – durante boa parte da existência dele.

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(Cabeça de Lúcio César)

Assim, como já mencionado, em 21 de fevereiro de 4 D.C., Caio César morreu na província romana da Lícia, no Oriente, após um prolongado agravamento de sua saúde decorrente de um ferimento sofrido no final do ano 2 D.C., em um ataque traiçoeiro na Armênia, quando ele liderava uma campanha visando pacificar o referido reino-cliente de Roma.

Porém, alguns historiadores, como Tácito e Dião Cássio, suspeitam de que Lívia estaria por trás da morte dos dois rapazes, com o objetivo de afastá-lo do caminho de seu filho Tibério ao trono.

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(cabeça de Caio César)

HERDEIRO DO TRONO

Agora sem os seus dois herdeiros consanguíneos mais próximos, Augusto, naquele mesmo ano de 4 D.C., no dia 26 de junho, adotou formalmente Tibério como herdeiro e sucessor, juntamente com seu último neto vivo, Agripa Póstumo, que era o irmão mais novo dos falecidos e tinha 16 anos de idade. E Tibério também recebeu, mais uma vez, o Poder Tribunício.

Augusto, contudo, ainda não havia abandonado totalmente a esperança de que um parente de sangue da gens Julia viesse a herdar o trono, pois o imperador exigiu, ao adotar Tibério, que este, por sua vez, adotasse o jovem Germânico, que era neto de sua irmã, Otávia, a Jovem, fruto do casamento desta com o Triúnviro Marco Antônio.

Todavia, em uma clara demonstração de que a posição de Tibério agora era inconteste, em 7 D.C., Augusto ordenou o banimento de Agripa Póstumo, que foi exilado para a remota ilha de Planásia, na costa italiana. Vale citar que, de acordo com alguns relatos, o rapaz tinha o temperamento inconstante e era dado a ataques de fúria, um indício de que ele não estava apto para ser imperador.

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(Cabeça de bronze de Agripa Póstumo, Louvre, foto de Mbzt)

Depois disso, Tibério recebeu comandos militares proconsulares (imperium) para combater os inimigos do império na Panônia e na Germânia (ele teve que lutar contra os bárbaros germânicos que haviam destruído as 3 legiões de Varo). Em 13 D.C., Tibério recebeu poder consular compartilhado com Augusto, tornando-se, na prática, coimperador.

TIBÉRIO IMPERADOR

Desse modo, com a morte de Augusto, em 19 de agosto de 14 D.C, um mês antes dele completar a avançada idade de 76 anos, a sucessão do trono em favor de Tibério foi praticamente “automática”.

Mesmo assim, algumas fontes relatam que Lívia teria escondido do público a morte de Augusto, mantendo-a em segredo até que Tibério, que estaria na Dalmácia, chegasse à Roma. Já outras fontes, ao contrário, segundo o relato de Cássio Dião, contam que Tibério chegou a receber pessoalmente algumas instruções e conselhos para o seu governo do próprio Augusto, em seu leito de morte.

De qualquer modo, concomitantemente ou logo depois da morte de Augusto, Agripa Póstumo foi prontamente assassinado em Planásia. Tibério foi acusado de ser o mandante, mas negou veementemente essa acusação no Senado. Até hoje há discussão se ele de fato foi o responsável, ou se isso ocorreu por alguma ordem anterior de Augusto. Seja como for, esta medida extrema logo demonstrou não ter sido inteiramente despropositada, pois, pouco tempo depois do fato, apareceu no Império um impostor fazendo-se passar por Póstumo, e o tratante chegou até a angariar algum apoio entre o populacho, causando algum tumulto público, até ele ser capturado e executado.

Vale observar que não havia precedentes para regular as relações do Príncipe com o Senado, já que Augusto, em seu longo reinado de quarenta anos, sem contar o tempo em que ele esteve à frente da República como Triúnviro, e, depois, em disputa contra Marco Antonio (cerca de 56 anos), ele sempre fizera questão de se apresentar como um magistrado da antiga República, que somente estava ocupando a sua posição excepcional na República em decorrência de crises e guerras civis.

E o fato é que o já citado temperamento frio, desconfiado, introvertido e orgulhoso de Tibério não facilitou em nada a tarefa de conciliar o novo regime que, na prática, era uma monarquia, com a existência de uma assembleia representativa de uma elite aristocrática que acreditava ter direito a administrar o Estado.

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Um episódio, relatado pelo historiador Tácito, já demonstra boa parte dessas dificuldades:

Em uma das primeiras sessões do Senado após a sucessão, quando os senadores discutiam quais os cargos, títulos, poderes e províncias, entre todos aqueles que Augusto tinha paulatinamente reunido sob o seu cetro, iriam ser conferidos a Tibério, o futuro imperador fingia não querer tamanho fardo sobre suas costas, de maneira não muito convincente recusando alguns deles, os quais sugeria que fossem conferidos ao Senado. Porém, essa relutância de Tibério, que foi considerada por muitos como apenas um gesto teatral, alongou-se por tanto tempo, que o senador Asínio Galo, já impaciente com a interminável encenação, perguntou, com ironia:

“Que parte do Império, então, ó César, vós quereis que vos seja confiada?”

E esse impasse durou praticamente um mês. Somente na sessão do dia 18 de setembro de 14 D.C., Tibério enfim seria oficialmente aclamado imperador, sendo, assim, essa demora devida não à resistência do Senado, mas à inesperada relutância do próprio imperador. Ele, por exemplo, recusou os títulos de “Augusto” e de “Pai da Pátria“.

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Ao contrário de Augusto, que, sabia muito bem manobrar seus apoiadores no Senado para que a vontade dele fosse imposta sob uma aparência de naturalidade e de preservação das tradições republicanas, Tibério demonstrou não ter tato nem astúcia para as sutilezas da política. De fato, ele quase sempre se mostrava ambíguo e enigmático para os senadores, parecendo esperar que os mesmos adivinhassem o que ele realmente queria. Todavia, a verdade é que Tibério não aceitava bem quando os senadores manifestavam oposição aos seus desígnios e isso, pouco a pouco, foi criando uma atmosfera de intrigas e de suspeita.

Uma passagem de Tácito exemplifica o desconforto e o desprezo que Tibério parecia sentir com relação ao cargo de imperador e às maneiras dos senadores. Certa vez, ao deixar um evento, ele foi cercado por senadores, que começaram a fazer reverências e pedidos. Tibério, então, teria comentado com um de seus acompanhantes:

“Que homens tão bem apropriados para serem escravos!”

MOTIM NA GERMÂNIA

Logo no início do reinado, estourou uma séria revolta entre as legiões da Germânia e da Panônia, as tropas mais numerosas e mais bem preparadas do Império, que estavam ocupadas lutando contra os bárbaros germânicos. Os soldados cobravam uma gratificação que tinha sido prometida por Augusto e não havia ainda sido paga por Tibério.

Germânico e o filho do imperador, Druso, o Jovem, foram enviados para lidar com os revoltosos e o primeiro, que chegou a correr risco à sua integridade física, conseguiu debelar a revolta. Em seguida, Germânico liderou essas tropas contra a coalizão de tribos germânicas que havia massacrado as legiões de Varo, invadiu a Germânia e conseguiu várias vitórias, recuperando duas das três águias-estandarte perdidas, até ser chamado de volta à Roma por Tibério para celebrar um grande triunfo, em 17 D.C. Para o historiador Tácito, o temor em relação ao grande prestígio popular que essas vitórias deram a Germânico foi o verdadeiro motivo para que Tibério ordenasse a interrupção da campanha.

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Depois do triunfo, Tibério conferiu à Germânico autoridade sobre as províncias orientais do Império Romano, com objetivo de organizá-las e estabelecer as relações com diversos reinos-clientes, e nomeou-o Cônsul para o ano de 18 D.C., ao lado do próprio imperador. Tais medidas pareciam uma demonstração, ao menos publicamente, de que Tibério prestigiava a posição de Germânico como seu sucessor.

MORTE DE GERMÂNICO

No Oriente, contudo, Germânico entrou em atrito com o governador da Síria designado por Tibério, Caio Calpúrnio Pisão. Além de visitar o Egito sem a permissão expressa de Tibério (esta província estava sob a autoridade direta do imperador e, com base em uma lei de Augusto, nenhum senador podia visitá-la sem autorização imperial), Germânico demitiu Pisão e ordenou que este se apresentasse em Roma.

Todavia, enquanto ainda estava em Antióquia, Germânico adoeceu sem causa aparente. Desconfiado de que tivesse sido vítima de feitiçaria ou veneno por parte do governador, Germânico enviou uma carta a Pisão, renunciando formalmente à amizade entre ambos. Logo em seguida, Germânico faleceu, em 10 de outubro de 19 D.C.

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Quando a notícia da morte de Germânico chegou à Roma, houve comoção popular e muitos suspeitaram de que Tibério, ou sua mãe, Lívia, que era amiga de Plancina, a esposa de Pisão, poderiam estar por trás do suposto envenenamento. Tibério ordenou uma breve investigação e Pisão foi preso e enviado para ser julgado pelo Senado. A acusação de envenenamento foi logo arquivada, mas a de traição foi mantida. Durante o julgamento, Pisão foi encontrado morto em sua cela, supostamente tendo cometido suicídio. Obviamente, o fato contribuiu para aumentar as suspeitas sobre Tibério e muitos consideraram que a morte de Pisão teria sido uma “queima de arquivo”.

Apesar do suicídio de Pisão, o julgamento dele prosseguiu e o veredito foi a sua condenação pelo crime de “maiestas“, em 20 D.C., que, pela primeira vez em Roma, foi considerado como abrangendo o imperador e a casa imperial, já que Germânico, enquanto membro desta, teria tido a autoridade desobedecida por Pisão. Essa mudança mostra que a transição da República para a Monarquia estava bem avançada, apesar das aparências que Augusto e Tibério procuraram manter.

O caso da morte de Germânico mobilizou tanto a opinião pública romana- segundo Suetônio, vários muros foram pichados com a frase: “Dê-nos Germânico de volta!” – que Tibério foi obrigado a tornar públicas as atas do julgamento de Pisão, o que hoje sabemos graças à descoberta, nos anos 80 do século XX, próximo à Sevilha, na atual Espanha, de tábuas de bronze contendo o texto do Senatus Consultum de Gn. Pisone Patre, que, basicamente, vem a ser um decreto do Senado Romano contendo a versão oficial sobre o assunto (cf. https://scholar.princeton.edu/sites/default/files/SCCPP_0.pdf). Entre outras coisas, o texto confirma o relato de Tácito de que a imperatriz Lívia intercedeu para que sua amiga Plancina fosse perdoada.

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Apesar das suspeitas de que Tibério estaria implicado na morte de Germânico, até este evento as ações do imperador tinham sido marcantemente em favor da manutenção do status do falecido como o primeiro na linha de sucessão imperial. Porém, a viúva de Germânico, Agripina, a Velha, não escondia de ninguém que suspeitava de Tibério e Lívia. Sintomaticamente, os dois não compareceram ao funeral de Germânico.

Consta, inclusive que, certa vez, Tibério, ouvindo Agripina queixar-se do assassinato do marido, teria recitado, em grego, para ela o seguinte verso de um então famoso poema clássico:

Porque não és rainha, eu te fiz algum mal?

Morto Germânico, Tibério passou a investir somente em seu único filho natural, Druso, o Jovem, que era cerca de um ano mais novo do que o falecido, e cuja carreira pública progredia junto com a do irmão adotivo (parece que Tibério copiou Augusto e planejou a sua sucessão de modo semelhante que o seu antecessor havia tentado em relação a Caio e Lúcio César: ou que ambos reinassem em conjunto, ou que um servisse como substituto no caso do outro morrer antes da sucessão).

Assim, em 22 D.C., Druso recebeu o Poder Tribunício, demonstrando que ele estava sendo preparado para suceder o pai.

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(Busto de Druso, o Jovem)

Enquanto isso, aparentemente Tibério ressentiu-se com o aumento de sua impopularidade causada pela morte de Germânico e começou, paulatinamente, a se ausentar mais e mais de Roma, passando temporadas no litoral da Campânia, região que, desde a República, era considerada como um balneário de luxo para a elite romana.

SEJANO E MORTE DE DRUSO

Na época em que Germânico morreu, já se notava o grande poder que o Comandante da Guarda Pretoriana, Lúcio Élio Sejano exercia em Roma. Ele expandiu a guarnição dos pretorianos para um efetivo de cerca de nove mil homens, os quais, durante o reinado de Augusto, estavam espalhados em várias cidades nos arredores de Roma, e que por iniciativa de Sejano foram centralizados em um grande quartel fortificado, adjunto às muralhas da cidade, por volta de 18 D.C.

Sejano era membro da classe equestre, e sucedera o seu pai, Lucius Seius Strabo, como comandante dos pretorianos. A família de Sejano era bem relacionada com a classe senatorial, seu avô paterno foi casado com a filha de Caio Mecenas, o rico e influente amigo de Augusto, e o próprio Sejano foi adotado por Caio Élio Galo, que foi governador do Egito no reinado de Augusto. Acredita-se que a esposa de Sejano, Apicata, era filha do rico e famoso gourmet Marcus Gavius Apicius (Apício). Segundo as más línguas, antes de se casar com Apicata, Sejano havia funcionado como amante do sogro. Não obstante, Sejano tornou-se amigo íntimo de Caio César, o neto de Augusto, e, portanto, apesar de ocupar uma posição social inferior à da alta aristocracia, ele acabou ficando próximo da casa imperial.

O poder de Sejano tornou-se tão destacado que Tibério, certa vez, referiu-se a ele como meu sócio de trabalho” (socius laborum). E Sejano, de fato, tinha altas pretensões. Em 20 D.C., ele arranjou uma promessa de casamento de sua filha, Junilla,  com o filho do sobrinho do imperador, Cláudio, quando as duas crianças tinham apenas quatro anos de idade. Porém, os planos de Sejano ingressar na família imperial iriam por água baixo, porque, poucos dias depois do arranjo, o menino morreria engasgado com uma pera.

Porém, Druso, o Jovem não tinha boas relações com Sejano e certa vez, segundo Tácito, ele chegou a dar um soco no Prefeito Pretoriano, sendo que, em outra ocasião, o rapaz teria reclamado que:

“Um estranho tenha sido convidado para auxiliar no governo enquanto o filho do imperador estava vivo” 

Mais grave do que tudo isso foi o fato de Sejano ter seduzido Livilla, a esposa de Druso, de quem ele havia se tornado amante.

Porém, em 14 de setembro de 23 D.C., Druso, o Jovem morreu, aos 36 anos de idade, de causa ignorada. Para alguns historiadores antigos, como Tácito e Dião CássioSejano foi o responsável pela morte de Druso por envenenamento, empresa na qual ele teria sido auxiliado por Livilla, que também era irmã do finado Germãnico.

Efetivamente, de acordo com o relato de Cássio Dião, oito anos após a morte de Druso, a esposa de Sejano, Apicata, teria enviado uma carta a Tibério, revelando que o marido e Livilla tinham envenenado o herdeiro. A acusação não parece muito plausível e o fato é que, se o adultério de Sejano e Livilla realmente ocorreu, e se a morte de Druso alguma vez lhe pareceu suspeita, Tibério continuou, durante muitos anos, a confiar em Sejano, e não demonstrou suspeitar da participação do auxiliar na morte do filho.

Seja como for, em 25 D.C., Sejano pediu formalmente a Tibério permissão para se casar com Livilla, o que foi recusado pelo velho imperador, que, após exaltar os méritos do subordinado, ressaltou, delicadamente, que ele, tendo nascido na classe Equestre, estava abaixo da posição social de Livilla, uma integrante da família imperial.

Com a morte de Druso, o Jovem, os jovens filhos de GermânicoAgripina, a Velha: Nero Julius Caesar Germanicus e Drusus Julius Caesar Germanicus, foram adotados por Tibério e adquiriram a condição de sucessores naturais dele, o que colocaria todos na alça de mira de Sejano.

AUTO-EXÍLIO EM CAPRI 

No ano seguinte, 26 D.C.Tibério foi viver na Ilha de Capri, em um novo auto-exílio voluntário que, desta vez, duraria onze anos, deixando, informalmente, o governo imperial nas mãos de Sejano, aparentemente a pessoa em quem ele mais confiava. A confiança que o imperador depositava em Sejano aumentou ainda mais após o incidente no qual o teto da gruta (grotto) da Villa de Tibério, em Sperlonga, adornada por primorosas esculturas, onde ele costumava fazer banquetes, desabou e Sejano protegeu Tibério com o próprio corpo, das rochas que caíam.

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(1- Grotto da Villa de Tibério, em Sperlonga, e 2- parte das esculturas restauradas, foto: Carole Radatto)

Não obstante, durante algum tempo, Tibério chegou a deixar Capri e ele viajou até as cercanias de Roma, talvez, quem sabe, com a intenção de deixar os senadores em suspense, pois ele, em certas ocasiões, enviava despachos informando que estava vindo à Cidade.

Certamente, a conhecida misantropia do imperador foi um dos motivos que o levou a se retirar de Roma e ir viver na maravilhosa Villa Jovis, que ele mandou construir em Capri. O outro teria sido a tristeza causada pela morte do filho.

Em Capri, o avanço da senilidade – ele tinha 68 anos de idade – e uma misteriosa doença que lhe cobria o rosto e o corpo de feridas (alguns a comparam à sífilis, e, embora a ciência tradicional considere que essa doença não era conhecida na Europa naquela época, estudos recentes parecem indicar que ela ali já circulava durante o Império Romano) aos poucos deram vazão a uma personalidade paranoica, cruel e devassa. Se for verdade o que Suetônio conta, em Capri aconteceram atos os mais tenebrosos de depravação sexual e assassinatos.

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villa jovisUnknown_d_0_0_800.20170804192902(Villa Jovis, Capri, 1- maquete e 2- estado atual)

MORTE DE LÍVIA

Em 29 de setembro de 29 D.C., com a provecta idade de 87 anos, morreu Lívia Drusila. a mãe de Tibério, que, por disposição testamentária de Augusto, recebera o nome de Júlia Augusta. Lívia permaneceu detentora de grande poder durante boa parte do reinado de Tibério, que passou a se ressentir da ascendência pessoal e da influência excessiva da mãe nos negócios do Estado. Houve até quem dissesse que o principal motivo da ida de Tibério para Capri foi o fato dele não suportar mais a personalidade dominadora da mãe.

Consta que, ao ser informado da morte de Lívia e dos preparativos para o funeral, Tibério não viajou, permanecendo em Capri por vários dias, até que os encarregados da cerimônia desistiram de esperar a chegada dele, tendo em vista que o corpo da falecida já estava apodrecendo. Então, Tibério acabou enviando seu sobrinho-neto, Gaius Julius Caesar Germanicus, apelidado Calígula”, o filho mais novo de Germânico e Agripina, a Velha, para fazer a oração fúnebre. E o imperador também vetou que o Senado divinizasse a mãe.

Livia_y_Tiberio_M.A.N._01 foto Miguel Hermoso Cuesta

(Estátuas de Lívia e de Tibério, lado a lado)

“REGÊNCIA” DE SEJANO

Enquanto isso, Sejano, que controlava toda informação entre Roma e Capri, agia como virtual governante de Roma, ainda mais agora que a intimidadora presença de Lívia desaparecera, e começou a eliminar os seus desafetos e adversários políticos. Um alvo preferencial de Sejano foi Agripina, a Velha, a esposa do falecido Germânico, que foi exilada em 30 D.C. Ela vinha acusando publicamente Tibério e Lívia de serem os mandantes da morte do esposo e reuniu em torno de si um grupo de senadores que faziam oposição a Sejano.

Sejano parece ter instigado Tibério para que este escrevesse uma carta ao Senado denunciando Agripina e seu filho primogênito, Nero Julius Caesar Germanicus (não confundir com o futuro imperador Nero), de conspiração. Após bastante relutância (Tibério teve que renovar as acusações), o Senado acabou banindo os dois, declarando-os “inimigos públicos”.

(Cabeças de Agripina, a Velha e de seu filho Nero Julius Caesar Germânico, National Archaeological Museum of Tarragona)

Agripina foi exilada para a ilha de Pandatária e lá, após sofrer maus-tratos, morreu de inanição voluntária, em 33 D.C.. Nero Julius Caesar Germanicus também foi exilado, no mesmo ano que a mãe, para a ilha de Pontia, e lá ele morreria no ano seguinte, compelido a se suicidar, em 31 D.C.

Por sua vez, o filho do meio de Agripina, Drusus Julius Caesar Germanicus, foi acusado por um senador de estar tramando contra Tibério. Consta que foi Amelia, a esposa de Drusus, quem o denunciou para Sejano, que a teria seduzido. Ele foi preso e confinado a uma cela no Palatino, também em 30 D.C.

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(Possível estátua de Drusus Julius Caesar, foto Sailko)

Em 31 D.CCalígula, que estava morando junto com sua avó Antônia, foi residir com Tibério na Villa Jovis em Capri.

A julgar pelo relato de SuetônioCalígula habilmente soube fingir ser inofensivo e servil a Tibério e, graças a isso teria conseguido sobreviver ao destino da sua família. Se os chocantes relatos do citado historiador forem verdadeiros, em Capri, Calígula deve ter sofrido a influência maléfica dos inúmeros atos de perversão sexual e crueldade relatados na “Vida de Tibério”, livro integrante da coletânea de biografias conhecida como “Os doze Césares”.

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(Cabeça de Calígula, com as cores originais que recobriam o mármore)

QUEDA DE SEJANO

Parecia que Sejano nessa época estava no auge de seu poder: o aniversário dele foi incluído no calendário como uma data a ser comemorada e várias estátuas foram erguidas em sua homenagem. E, em 30 D.C., ele conseguiu finalmente a tão almejada conexão familiar com a família imperial, obtendo a autorização para o casamento com Livilla, Nesta toada, no ano seguinte, Sejano foi designado Cônsul, na companhia de Tibério. Nas palavras de Dião Cássio,

parecia que Sejano era o Imperador, e Tibério, o governante de uma ilha.

Mas, então, naquele mesmo ano, Tibério começou a tomar atitudes ambíguas em relação à Sejano. Ele nomeou seu sobrinho Calígula para um prestigioso posto de sacerdote, gesto que foi recebido com entusiasmo pela Plebe, e insinuou que o rapaz poderia ser o seu sucessor.

Sejano chegou a ficar desconfiado de que talvez suas pretensões poderiam fracassar até que o Senado Romano recebeu um despacho oficial de Tibério convocando uma sessão para o dia 18 de outubro de 31 D.C., na qual  Sejano receberia o Poder Tribunício, acompanhado de uma carta de Tibério que deveria ser lida na sessão, ambos entregues por Névio Sutório Macro, que até pouco tempo era chefe dos Vigiles, o corpo de guardas-bombeiros criado por Augusto. Seguindo as ordens de Tibério, Macro informou o teor da carta a Memmius Regulus, que havia sucedido Sejano como Cônsul (Tibério pouco tempos antes havia renunciado ao cargo, forçando Sejano a segui-lo).

No dia designado, Sejano compareceu ao Templo de Apolo Palatino, onde, naquela ocasião, o Senado estava se reunindo, lotado de Senadores, que imediatamente o cercaram com bajulações. Enquanto a longa carta era lida, contendo uma introdução sobre assuntos variados e algumas menções lacônicas de Tibério ao seu “sócio“, o edifício foi cercado pelos vigiles, comandados por Graecinus Laco

A leitura da carta prosseguiu e, para a surpresa de todos, o tom inicialmente amistoso de Tibério, transformou-se na acusação de vários crimes contra Sejano, terminando por ordenar a sua prisão.

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(Templo de Apolo Palatino, acima à esquerda, nesta reconstrução do complexo de palácios e prédios imperiais, a maioria construídos posteriormente na Colina do Palatino)

O espanto logo se transformou em comoção, e os senadores que estavam sentados próximos a Sejano, afastaram-se dele correndo. Sejano continuou sentado, imóvel -ele somente levantou-se quando Regulus, pela terceira vez, ordenou que ele ficasse de frente para a assembléia.

Quando a carta terminou de ser lida, Regulus perguntou se algum senador se opunha à prisão de Sejano, mas ninguém teve coragem de se manifestar contra. Ele, então, foi levado para a prisão por Laco.

No caminho para a prisão, Sejano foi hostilizado pelo populacho, que zombou acerbamente das suas supostas pretensões ao trono. Naquele mesmo dia, o Senado, ao saber da reação da Plebe e perceber que nenhum soldado pretoriano aparecera para defender o chefe, votou pela condenação de Sejano à morte, decretando também a damnatio memoriae (destruição de todas as estátuas e supressão do seu nome dos registros públicos).

O que muitos senadores ainda ignoravam, enquanto hesitavam temendo alguma reação de soldados fiéis a Sejano, é que Tibério havia dado à Macro um documento nomeando-o novo comandante da Guarda Pretoriana, quando despachou-o para Roma para convocar o Senado. Assim, enquanto Laco cercava o Senado e a carta era lida, Macro já havia assumido o comando no quartel da Guarda Pretoriana.

Sejano foi executado e seu corpo atirado para rolar pelas “Escadas Gemônias“, onde ficou por três dias sendo vilipendiado pela turba (Parece que essa forma de punição foi inaugurada no reinado do próprio Tibério).  Os filhos de Sejano: Lúcio Seio Estrabão, Capito Elano e Junilla, também seriam executados, o primeiro em 24 de outubro, e os outros em dezembro de 31 D.C., pelo simples fato de serem filhos dele. Como se não bastasse, a ainda adolescente Junilla, antes de ser estrangulada, foi estuprada pelo carrasco, pois o costume proibia executar uma virgem.

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(Escadaria que leva ao Capitólio, em Roma, talvez construída sobre as Escadarias Gemônias)

De acordo com o historiador Flávio Josefo, foi Antônia, a Jovem, cunhada de Tibério e mãe do falecido Germânico, quem denunciou Sejano a Tibério. Ela teria enviado uma carta ao imperador, que estava em Capri, e, supostamente, ignorava as ações do subordinado, contando dos planos dele para tomar o poder, nos quais estaria sendo auxiliado pela amante, Livilla, filha da própria Antônia.

Livilla foi poupada de ser executada, mas foi entregue à mãe, em cuja casa ficou em prisão domiciliar, segundo consta, trancada em um quarto sem receber alimentação, até morrer de inanição.

Quando Apicata, a viúva de Sejano, soube da execução do filho, ela enviou, antes de se suicidar, uma carta a Tibério, acusando Livilla de ter envenenado o próprio marido, e filho do imperador, Druso, o Jovem, em conluio com seu amante Sejano. Muitos historiadores não dão crédito a essa acusação de Apicata, atribuindo-a à vingança de uma esposa traída contra a amante que estava em vias de substituí-la como esposa.

O fato é que a descoberta da conspiração instaurou um frenesi persecutório em Roma e vários senadores que tinham relacionamento com Sejano foram executados.

Tibério mais tarde declararia ao Senado que decidiu remover Sejano quando soube da participação dele na perseguição à Agripina e na morte do filho dela, mas essa explicação não convenceu nem os contemporâneos, nem os historiadores modernos, uma vez que Agripina continuou exilada, até morrer, em 33 D.C, de inanição. quase dois anos após a execução de Sejano, o mesmo ocorrendo com o filho dela, Drusus Julius Caesar, que também morreu de inanição, em sua cela no Palatino, em 33 D.C., igualmente de inanição (consta que ele, famélico, chegou a comer o colchão em que dormia). A coincidência no ano e forma das mortes é um forte indício de que as mortes deles foram ordenadas por Tibério.

TIBÉRIO COMO GOVERNANTE

Tibério era estóico e, durante a juventude e parte da sua vida adulta, ele parece ter se conduzido pelos rígidos padrões morais dessa corrente filosófica. Talvez por isso, a marca do seu reinado tenha sido a de uma austeridade nos gastos públicos, política que acarretou um grande superávit no tesouro do Estado. Consequentemente, em termos econômicos, houve grande prosperidade no Império. Assim, quando morreu, Tibério deixou nos cofres do Tesouro a formidável quantia de três bilhões e setecentos milhões de sestércios.

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(Aureus de Tibério, c. 27/30 D.C., foto cgb)

Por outro lado, a falta de espetáculos públicos e de outras formas de propaganda tornou-o antipático para a plebe romana.

Procurou-se controlar os excessos dos governadores das províncias e nomear homens capazes e de boa reputação para administrá-las. Ficou famoso o episódio em que o governador do Egito, Aemilius Rectus, enviou à Roma um volume de tributos maior do que o normal, e recebeu de Tibério a seguinte advertência:

“Eu quero minhas ovelhas tosquiadas, mas não depiladas!”

A cidade de Tiberias, na Galiléia, um reino-cliente de Roma, foi fundada pelo tetrarca Herodes Antipas, em 20 D.C., e foi assim batizada em homenagem a Tibério.

Outro motivo que contribuiu para a grande prosperidade econômica experimentada durante o reinado de Tibério foi o fato dele ter evitado travar campanhas militares, após as campanhas de Germânico, valendo-se precipuamente da diplomacia nas questões de interesse do Estado. Entre as poucas ocorrências bélicas estão a supressão de uma revolta gaulesa liderada por Julius Sacrovir, em 21 D.C., a vitória final contra uma rebelião berbere na Numídia, comandada pelo chefe Tacfarinas, que, após dez anos, foi finalmente derrotado, em 24 D.C., e uma vitória contra tribos montanhesas insubmissas na Trácia, em 26 D.C.

Em 28 D.C., um forte romano foi cercado pela tribo germânica dos Frísios, na Floresta Baduhenna, na atual Holanda. Os Frísios estavam insatisfeitos com o tributo que pagavam como clientes de Roma e mataram os coletores de impostos romanos. Destacamentos da V Legião, após um duro combate, conseguiram repelir os bárbaros, mas 900 soldados romanos morreram. Seguindo política de Tibério de evitar guerras custosas, não houve nenhuma represália e, de acordo com Tácito, o assunto foi deixado de lado.

Politicamente, o reinado de Tibério foi um reinado de perseguições e de julgamentos de senadores por traição (maiestas), instalando-se uma cultura de delações e do uso de informantes.

Segundo Dião Cássio, Tibério também baniu praticantes de religiões estrangeiras que residiam em Roma, inclusive muitos judeus, no caso destes, supostamente motivado pelo fato de que eles estariam fazendo muitas conversões entre os habitantes da cidade. Curiosamente, muitos estudiosos acreditam que provavelmente, foi o seu braço-direito Sejano quem nomeou Pôncio Pilatos governador da Judéia, entre 26 e 36 D.C, sendo que Jesus Cristo foi crucificado por volta do ano 30 D.C.

FINAL DO REINADO E MORTE DE TIBÉRIO

Após a queda de Sejano, parece que Tibério desiludiu-se e desinteressou-se por completo do cargo de imperador e permaneceu em Capri, deixando a administração do Império por conta dos funcionários da casa imperial e dos governadores das províncias. Segundo os relatos, ele sequer deu-se ao trabalho de preencher os cargos que iam ficando vagos, e o Senado, por temor de desagradá-lo, ficava de mãos atadas.

Em 33 D.C., Tibério nomeou seu sobrinho, Gaius Julius Ceasar Germanicus (Calígula), Questor honorário, e, cerca de dois anos depois, em 35 D.C., ele fez um testamento no qual Calígula, então com 23 anos de idade, junto com e seu neto, Tibério Gemelo, filho de Druso, o Jovem, que tinha apenas 15 ou 16 anos, eram designados como herdeiros de suas propriedades. Segundo Tácito, nessa ocasião, quando os dois rapazes estavam em Capri, Tibério abraçou Gemelo e, em lágrimas, disse para Calígula:

“Você o matará, e um outro irá te matar”

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(Raríssima moeda com a efígie de Tiberius Gemellus, cunhada em 37 D.C., foto Classical Numismatic Group)

Tibério nunca mais voltou à Roma e a sua reclusão em Capri aumentou os boatos sobre o que ele fazia na ilha. A sua saúde foi dando sinais de que estava indo embora, mas o velho imperador, temendo, talvez, que a sua fraqueza física incentivasse alguma tentativa de assassinato, fazia o possível para não a demonstrar em público, e até evitava que o seu médico lhe medisse o pulso na frente dos outros.

Em 16 de março de 37 D.C., Tibério agonizava em sua outra Villa, em Misenum, e a sua morte era iminente. Em certo momento, ele parou de respirar e os presentes logo foram congratular Calígula como o novo imperador. Porém, segundo Tácito, o imperador moribundo voltou a respirar, o que deixou a todos aterrorizados. Então, naquele mesmo dia, Macro teria entrado no quarto e sufocado Tibério, usando a a colcha e os lençóis. No relato de Dião Cássio, Macro teria sido ajudado por Calígula. Já Suetônio, embora narre fatos semelhantes, adiciona que antes Calígula teria envenenado Tibério e que, aquele, ao tentar tirar o anel com o selo do imperador do dedo do tio, ao perceber que esse resistia, sufocou-o com o travesseiro.

Assim morreu Tibério, aos 78 anos de idade. O Senado e Povo Romano (pelo menos o povo de Roma e de parte da Itália) comemoraram a morte do antipático imperador e consta que, quando o cortejo fúnebre trazendo o cadáver de Tibério chegou à Cidade, a plebe nas ruas, ameaçando jogar o corpo dele nas águas do rio, gritava:

“Tibério ao Tibre!”

O Senado recusou-se a divinizar Tibério, mas ele foi sepultado no Mausoléu de Augusto, tendo um funeral apropriado e com seu sucessor, Calígula, fazendo a oração fúnebre (eulogia).

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CONCLUSÃO

Na opinião dos historiadores romanos antigos, com exceção de Veleio Patérculo, não há dúvida de que Tibério faz parte do time dos “maus imperadores”.

Porém, a leitura dos textos desses membros da classe senatorial, não permite um julgamento tão fácil.

Só o fato de Tibério ter reinado durante quase 23 anos já foi um feito importante. O seu reinado serviu para consolidar a maior parte das instituições e práticas político-administrativas forjadas por Augusto.

Em seus primeiros anos, parece que Tibério efetivamente procurou dividir o poder com o Senado, participando ativamente das sessões desta assembleia e tentando fazer com que os senadores assumissem diversas tarefas. Ele escolheu bons administradores para as províncias e a manutenção da paz, e a parcimônia com os gastos públicos assegurou uma grande prosperidade econômica, com grande valorização da moeda.

Porém, a personalidade fria e distante e a falta de tato político de Tibério não criaram empatia com a classe senatorial. Talvez a sua relutância em assumir totalmente os poderes de Augusto fosse fruto da consciência de sua incapacidade para o jogo político. Mas pode também ter sido apenas uma maneira desastrada e inábil de imitar o primeiro imperador. De qualquer modo, a postura de Tibério contribuiu para agravar o grande problema enfrentado durante boa parte do período imperial: o não-reconhecimento do caráter monárquico do regime pela sua própria cúpula e elite política, com a consequente ambiguidade na delimitação dos papéis do imperador e do Senado.

O grande divisor de águas no reinado de Tibério parece ter sido a morte de Germânico, que, designado como seu sucessor ainda durante a vida de Augusto (que obrigou Tibério a adotá-lo), sempre foi uma sombra capaz de ofuscá-lo e uma opção de governante muito mais querida pela população. Diga-se, como atenuante da suposta responsabilidade de Tibério pela morte do filho adotivo, que, em vários episódios da vida de Germânico, transparece que este realmente cortejava a população e os senadores e agia com demasiada independência em relação a Tibério.

A forma como Tibério lidou com a hostilidade da viúva de Germânico, Agripina, a Velha, que sem dúvida reuniu em torno de si um núcleo de oposição ao imperador, também parece excessiva, já que isso importou na destruição quase que total da própria dinastia, somente deixando vivo Calígula e as irmãs dele, logo ele que, em seguida, se tornaria o pior de todos os imperadores Júlio-Cláudios, e cuja personalidade doentia pode muito bem ter sido agravada pelo clima de terror que a sua família viveu sob Tibério.

A ida de Tibério para Capri pode denotar um traço de misantropia em sua personalidade, mas também pode ter sido uma maneira de lidar com a desilusão e o desânimo que ele sentia pela função de monarca. É difícil compreender como Tibério pôde ter deixado que Sejano concentrasse tanto poder e porque ele depositou em Sejano tanta confiança. Isso tanto aparenta ter sido um sinal de fraqueza psicológica após a morte do filho, mas também pode ter sido uma forma maquiavélica de instaurar um reinado de terror, usando Sejano como instrumento, colocando a culpa no subordinado. Se é que houve mesmo tal “reinado de terror”, pois, em 23 anos de governo, as execuções registradas foram em número menor comparadas com as que ocorreriam em alguns reinados posteriores. De qualquer forma, Tibério fica com a má distinção de ter sido o primeiro imperador a recorrer aos processos de lesa-majestade (maiestas).

Porém, a facilidade com que Tibério prendeu e executou Sejano mostra que o Principado estava consolidado como instituição, e ainda era grande o prestígio que a dinastia dos Júlio-Cláudios gozava entre a população civil e o Exército, mesmo quando o seu representante era antipático e pouco querido.

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SANTO AGOSTINHO

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Infância e juventude

No dia 13 de novembro de 354 D.C., nasceu, na cidade de Taghaste (atual Souk Ahras, na Argélia), na província romana da Numídia, Aurelius Augustinus, filho de um pequeno proprietário rural e de sua esposa Mônica, cristã fervorosa e mãe possessiva (que, posteriormente, assim como o próprio filho, seria canonizada como Santa Mônica).

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(Os locais acreditam que essa oliveira, na atual Souk Ahras foi plantada por Santo Agostinho)

Augustinus, que ficaria conhecido como Santo Agostinho, seria o principal filósofo cristão durante o Império Romano, e a influência do seu pensamento moldaria não só a doutrina da Igreja Católica até os nossos dias, mas a própria civilização ocidental.

Agostinho estudou em Cartago, o maior centro urbano do Norte da África (sem contar o Egito). Financiado a duras penas pelo pai, o jovem cursou retórica, visando obter um cargo público. Mas, embora ele se aprofundasse nos autores latinos, sobretudo Cí­cero (Inclusive, Agostinho foi muito influenciado pela obra de CíceroHortensius“, que não sobreviveu até os nossos dias), Agostinho detestava estudar grego, língua que  ele não conseguiu aprender, e este fato prejudicou consideravelmente o seu desempenho acadêmico.

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Mas Agostinho também se negava a ler a Bí­blia, apesar de muita insistência da mãe. Tudo isso, somado às suas travessuras de jovem, suas dúvidas, paixões e ansiedades, e também a sua contí­nua aventura intelectual, é narrado magistralmente, de forma autobiográfica, em suas “Confissões“.

Após a morte do pai, Agostinho voltou para Thagaste, com o encargo de, agora na condição de chefe da famí­lia, administrar a propriedade paterna. Todavia,  no lugar dessas tarefas mais mundanas, Agostinho resolveu abrir uma escola.

Primeiras influências

Enfim, depois de resolvidas as questões sucessórias,  Agostinho voltou para Cartago para assumir um cargo de professor de retórica. Durante esse tempo, ele leu a obra de Aristóteles, traduzida para o latim.

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(Vista atual de Souk Ahras, antiga Tagaste, foto de Omaislam)
 

Por volta dessa época, Agostinho teve contato com os ensinamentos do sábio persa Mani, que afirmava ser o universo governado pelo conflito entre dois princí­pios: a Luz ( o Bem) e a Escuridão (o Mal), uma doutrina que ficaria conhecida pelo nome de Maniqueí­smo.

Em 384 D.C., sentindo-se limitado pela estreiteza da vida intelectual na província, Agostinho, contra a vontade da mãe, que fez de tudo para demovê-lo, decidiu ir para Roma. Porém, naquele tempo, as melhores oportunidades para  jovens ambiciosos estavam em Milão, que era a capital do Império Romano do Ocidente e onde ficava a corte imperial.  Ali, Agostinho conseguiu um cargo de professor de retórica.

No entanto, agora, Agostinho estava imerso em indagações intelectuais e à procura de um sentido para as questões existenciais.  Ele flertou por algum tempo com o Ceticismo platônico, até conhecer o Neoplatonismo, através dos discí­pulos de Plotino, cuja doutrina era, então, popular entre os católicos em Milão, porque lhes parecia conferir uma base argumentativa racional para a fé cristã.

Agostinho tinha se aproximado dos católicos após conhecer (Santo) Ambrósio, o célebre bispo da cidade, uma pessoa que lhe causaria forte impressão e que já era idolatrado pela sua mãe.

Não obstante, Agostinho não escondeu o entusiasmo que ele teve ao ler a filosofia de Plotino, um filósofo de origem greco-egí­pcia, cujo cerne era a prática da ascensão da alma ao Uno – o princí­pio único, eterno, indivisí­vel, imutável e transcendente que era a fonte de todas as coisas – pela contemplação interior. Segundo este filósofo,  a partir do Uno a realidade fluiria constantemente, como a água de uma fonte, e as  suas principais emanações seriam o Intelecto e a Alma. Consta que as últimas palavras de Plotino antes de morrer foram:

Estou tentando devolver o Divino que há em mim para o Divino que há em Tudo“.

Coincidentemente ou não, o Uno de Plotino era bem parecido com o Deus Cristão descrito no Novo Testamento…

Conversão

Até que um dia, em agosto de 386 D.C., em um momento de grande angústia pessoal, para a qual certamente contribui o fato dele ter sido obrigado a se separar da mulher que ele amara desde a juventude na África, que lhe dera um filho, chamado Adeodato, e com a qual ele vivera em concubinato, Agostinho contou que ouviu uma voz infantil repetindo como um mantra as palavras:

tolle, lege, telle lege” (“pega e lê, pega e lê”).

Assim, ele levantou-se e viu um livro caído aberto. Imediatamente,  Agostinho pegou o volume e leu o seguinte texto da Carta de São Paulo aos Romanos:

Andemos honestamente como de dia, não em orgias e bebedices, não em impudicí­cias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não vos preocupeis com a carne para não excitardes as suas cobiças”).

Livre da angústia e com o rosto iluminado, Agostinho foi contar a boa nova à sua mãe. Eu não tenho dúvidas que este deve ter sido o dia mais feliz da existência de Mônica: Após 32 anos de continuados esforços maternos, Agostinho tinha se convertido ao Cristianismo! Logo em seguida, Agostinho pediu demissão do cargo de professor e saiu de Milão para um retiro na fazenda do amigo Verecundo, junto com a mãe, o filho e  os seus grandes amigos Nebrí­dio e Alí­pio.

Então, na páscoa de 387 D.C., o poderoso bispo de Milão, Ambrósio, batizou Agostinho e Adeodato, como era costume entre os cristãos. Poucos meses depois, Mônica, finalmente realizada por ter atingido o seu maior objetivo, a conversão do filho, faleceria em Óstia.

Em seguida, Agostinho decidiu voltar para Thagaste, vender as terras que herdara do pai e fundar uma comunidade religiosa, para viver em recolhimento e dedicar-se aos estudos teológicos na casa em que nascera.

Entretanto, a já famosa trajetória de Agostinho como religioso não lhe permitiria viver muito tempo em retiro e ele acabou sendo eleito assistente do Bispo de Hippo Regius (Hipona), cidade que ficava na atual Argélia. Quatro anos depois, em 395 D.C., Agostinho foi consagrado Bispo de Hipona, cargo que ele ocuparia pelos próximos 35 anos, até o fim de sua vida.

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(Ruínas de Hippo Regius (Hipona), foto de Oris)

A função de bispo, no final do Império Romano, combinava a atuação pastoral, com atribuições administrativas, notadamente a gestão do crescente patrimônio das sés católicas, e também assistenciais e judiciárias, as quais vinham sendo atribuí­das à Igreja Católica desde o reinado de Constantino I, o primeiro imperador cristão (Não é a toa que, até hoje, o organograma da Igreja Católica reproduz, em boa parte, a divisão do Baixo Império Romano, com as suas dioceses). Para Agostinho, porém, essas tarefas constituíam um fardo pesado, que competia com a sua atividade intelectual intensa e a produção literária. Não obstante, Agostinho foi um assíduo pregador no púlpito – sobreviveram, até os dias de hoje, cerca de 500 homilias ou sermões que ele ministrou em Hipona.

Foi como Bispo de Hipona que Agostinho escreveu as suas maiores obras: De Trinitate, Contra os Acadêmicos, Solilóquios, Do Livre-Arbítrio, De Magistro, Confissões, Espírito e Letra, A Cidade de Deus e Retratações.

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Obra

Antes de Agostinho, o Cristianismo era uma religião revelada pela vida e pelos ensinamentos legados por Jesus Cristo, considerado pelos seus seguidores o Messias previsto pela Bíblia Judaica, que, contudo se apresentara e por eles fora percebido, não como o santo rei de Israel, mas como o filho do deus único, Jeová, adorado pelos hebreus. Agostinho, porém, pode ser considerado o fundador de uma filosofia cristã – um termo que ele mesmo criou – e, ainda que se discorde disso, de fato ele dotou o Cristianismo de uma coerência lógica que pela primeira vez foi sistematizada em bases racionais que poderiam inserir-se na especulação filosófica greco-romana. E embora esse fato talvez não significasse muito para o homem simples do campo, foi algo muito importante para  atrair para a Igreja os membros da elite romana.

Entre as contribuições filosóficas de Agostinho ao Cristianismo, está o conceito de Beatitude, entendida como o estado de felicidade plena, somente encontrável em Deus. Agostinho tentou conciliar a fé e a razão, sendo a fé a forma de se atingir a verdade eterna, a qual, não sendo demonstrável pela razão, somente através da fé podemos demonstrar, a nós e aos outros, a certeza de acreditar:

“intellige ut credas, crede ut intelligas” (É preciso compreender para crer, e crer para compreender“).

Contra os céticos, Agostinho afirmou que a percepção através dos sentidos não era falsa ou imperfeita (motivo pelo qual aqueles acreditavam que não era possível conhecer de forma absoluta ou indiscutível, sendo todo o conhecimento imperfeito e passível apenas de afirmar uma verdade provável). Para o Bispo de Hipona, a sensação sempre é verdadeira, o erro pode estar no juízo que se extrai das sensações. Assim, a sensação é absoluta. Ninguém pode dizer que o sujeito não sentiu, a sensação é uma verdade interna ao sujeito. Assim, em certo grau, na obra “Cidade de Deus“, Agostinho antecipou o pensamento de Descartes:

“Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”.

O pensamento, assim, era uma realidade em si mesma e uma prova da existência – não só do homem, mas de Deus.

Não obstante, para ele, a inefável natureza divina não poderia ser compreendida pelo homem, transcendendo ao pensamento, como bem exemplifica a resposta de Jeová a Moisés: “Eu sou o que sou” (IHVH), assemelhando-se, assim, em sua imutabilidade, inamovibilidade, indivisibilidade e eternidade, ao Uno de Plotino.

Para Agostinho, Deus é perfeito e toda a criação é perfeita, pois tudo o que existe foi criado por Deus. O mal, portanto, somente pode consistir no oposto do bem, ou seja, no “não-ser“. Portanto, para o filósofo cristão, onde houver mal, não há Deus. O pecado, por via de consequência, é o afastar-se de Deus e é possibilitado pelo livre-arbítrio com que Ele dotou o Homem à Sua imagem e semelhança.

Nessa linha, Agostinho também elaborou sobre o insondável mistério da multiplicidade das 3 pessoas na unidade da Santíssima Trindade, iguais e consubstanciais, sendo o Pai, a essência divina; o Filho, o Verbo e a Razão, através da qual Deus se manifesta; e o Espírito Santo, de onde flui o amor que tudo criou:

“Onde existe o Amor existe a Trindade: Um que ama, Um que é amado e uma Fonte de Amor”.

Na concepção de Agostinho, a criação do universo coincide com a criação do tempo, antecipando intuitivamente o próprio Einstein, ao demonstrar que tempo e espaço são uma mesma dimensão. De fato, para Agostinho, tudo no universo teria sido criado simultaneamente, isto é, de uma só vez e não em 6 dias, como escrito na Bíblia, que. neste particular, para ele não deveria ser entendida em sentido literal. Da mesma forma, o conceito de Agostinho sobre o Pecado Original, a Graça e Predestinação influenciaram a Teologia desde o século V D.C. até o presente.

Com efeito, a concepção de Agostinho sobre o Pecado Original, por exemplo, influenciou posteriormente o Protestantismo. Ele o via como resultado da influência de Satã sobre os os sentidos e carne (“a semente do mal“), afetando a inteligência e o livre-arbítrio do homem, decorrente da concupiscência e libido.

Para rebater a acusação dos pagãos de que o Saque de Roma, ocorrido em 24 de agosto de 410 D.C, devia-se ao abandono pelos romanos dos deuses pagãos e à corrupção das virtudes romanas pelo Cristianismo, Agostinho escreveu a obra Civitas Dei (“A Cidade de Deus”), onde, desenvolvendo todos as suas ideias, ele elabora a história da Humanidade como sendo a da “Cidade dos Homens”, terrena e fadada à destruição pelos pecadores, que eram continuamente castigados através dos tempos, e da “Cidade de Deus”, a ser erguida pelos cristãos.

Porém, em 430 D.C, chegara a vez de Hipona ser destruída pelos bárbaros Vândalos, que cruzaram o Estreito de Gibraltar e invadiram a rica África romana, até então poupada dos saques e da destruição das incursões germânicas.

Assim, em 28 de agosto de 430 D.C., durante o primeiro cerco vândalo, Santo Agostinho morreu, aos 75 anos de idade.

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(Afresco do século VI da Basílica de Laterano, em Roma, a mais antiga representação de Agostinho)

CONCLUSÃO

Santo Agostinho foi um dos intelectuais romanos mais importantes e influentes, cujas obras repercutem até o século XXI, e certamente ecoarão muito além. O seu pensamento representa uma ligação intelectual do mundo helenístico greco-romano, que agonizava, com a civilização cristã-ocidental que, da reciclagem das cinzas do primeiro, se desenvolveria na Idade Média. A obra dele também demonstra a força do Cristianismo em atrair não só os excluídos materiais da civilização greco-romana, mas também os exilados espirituais daquela sociedade, para quem a velho modo de vida pagão não oferecia mais respostas adequadas às inquietações existenciais.

FIM

PAPA LEÃO I, O GRANDE

Em 10 de novembro do ano 461 D.C., faleceu o Papa Leão I.

Wlbw68, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Natural da Toscana, nascido em data incerta, Leão, proveniente da nobreza romana da Itália, foi consagrado bispo de Roma em 440 D.C, quando o Cristianismo já era a religião oficial do Império Romano havia quase meio século.

Em seu papado, Leão estabeleceu as bases para o reconhecimento inconteste da primazia de Roma sobre as demais arquidioceses, tendo jurisdição universal derivada diretamente de São Pedro (“Primazia Petrina“), influenciou os importantes Concí­lios de Éfeso e de Calcedônia e combateu heresias, notadamente o Maniqueí­smo. Nessa questão, Leão contou com o apoio do Imperador Romano do Ocidente, Valentiniano III.

Porém, o fato mais notável da carreira de Leão foi o encontro com Átila, o Huno, quando este invadiu a pení­nsula italiana, saqueando e destruindo a grande cidade romana de Aquileia.

Após conversar com o Papa, às margens do Lago Garda, Átila decidiu se retirar da Itália, fato que os contemporâneos consideraram miraculoso. Fontes mencionam que as correntes quebradas de São Pedro (que até hoje estariam guardadas na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma) teriam se unido milagrosamente durante a embaixada de Leão à Átila.

Crenças à parte, muitos historiadores reconhecem a importância da embaixada do Papa, mas que o motivo principal que teria convencido o Huno a deixar a Itália foi a notícia de que grassava a Peste na pení­nsula.

Por sua trajetória, muitos consideram Leão o fundador do papado moderno, e por tudo isso, recebeu o cognome de “Magno” (grande).